Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3174/21.3T8FAR.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: DESPEJO
RECUSA
PROCEDIMENTO
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não se pode negar ao requerente do procedimento especial de despejo o direito de reclamar para o tribunal competente da decisão de recusa do requerimento de despejo pelo Banco Nacional de Arrendamento; fazê-lo, constituiria uma flagrante violação do direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, consagrado genericamente no artigo 20.º da Constituição da República.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 3174/21.3T8FAR.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), requerente no procedimento especial de despejo que intentou contra (…) e (…), interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Faro, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual indeferiu a reclamação da decisão de recusa do seu requerimento de despejo, emitida pelo Balcão Nacional de Arrendamento.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:
«(…) requereu, em 05.08.2021, através de requerimento de despejo, procedimento especial de despejo (doravante PED) (contra … e …) a que foi atribuído no Balcão Nacional do Arrendamento (doravante BNA) o n.º 1030/21.4YLPRT.
Por intermédio de carta registada (datada de 20.09.2021) o BNA notificou (…) da sua decisão de recusa do aludido requerimento.
Posteriormente, a 06.10.2021, a requerente (…), nos termos do artigo 157.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (doravante CPC), apresentou reclamação da decisão de recusa (do BNA) do supra referido requerimento de despejo, peticionando a sua revogação e substituição por um despacho que ordene a citação das requeridas (…) e (…) para se oporem, caso queiram, sob pena de prosseguimento da ulterior tramitação legal, até à decretação e realização efetiva do despejo.
Na sequência do que o BNA remeteu o processo para o Tribunal.
Cumpre decidir.
Os presentes autos reportam-se a um PED, cujo objeto se encontra definido no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (Novo Regime do Arrendamento Urbano, doravante NRAU) como “um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes”.
Por sua vez e como decorre do artigo 15.º-A, também do NRAU, o BNA é uma entidade administrativa, criada na dependência da Direção Geral da Administração da Justiça, destinada a tramitar, no essencial, a primeira fase do PED, tendo em vista, na falta de oposição do arrendatário, a emissão do respetivo título de desocupação do locado (cfr. também o DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro, que instalou o BNA).
Com relevância para a resolução da questão “sub iudice”, tome-se em consideração, desde logo, o artigo 15.º-C do NRAU (aditado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto de acordo com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro), o qual, sob a epígrafe “Recusa do requerimento”, dispõe:
“1 - O requerimento só pode ser recusado se:
a) Não estiver endereçado ao BNA;
b) Não indicar o fundamento do despejo ou não for acompanhado dos documentos previstos no n.º 2 do artigo 15.º;
c) Não estiver indicado o valor da renda;
d) Não estiver indicada a modalidade de apoio judiciário requerida ou concedida, bem como se não estiver junto o documento comprovativo do pedido ou da concessão do benefício do apoio judiciário;
e) Omitir a identificação das partes, o domicílio do requerente, os números de identificação civil ou o lugar da notificação do requerido;
f) Não estiver assinado;
g) Não constar do modelo a que se refere o n.º 1 do artigo anterior;
h) Não se mostrar paga a taxa;
i) Não se mostrar pago o imposto do selo ou liquidado o IRS ou IRC pelas rendas relativas ao locado, nos últimos quatro anos, salvo se o contrato for mais recente;
j) O pedido não se ajustar à finalidade do procedimento.
2 - Nos casos em que haja recusa, o requerente pode apresentar outro requerimento no prazo de 10 dias subsequentes à notificação daquela, considerando-se o procedimento iniciado na data em que teve lugar o pagamento da taxa devida pela apresentação do primeiro requerimento ou a junção do documento comprovativo do pedido ou da concessão do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa de justiça e dos demais encargos com o processo”.
Com efeito, na senda do princípio da economia processual, da recusa do PED pelo BNA, nos termos do n.º 2 do supra mencionado preceito legal, a lei é clara a prever a possibilidade de o requerente poder apresentar novo requerimento, no prazo de 10 (dez) dias (subsequentes à notificação da recusa), aproveitando o procedimento já iniciado e a taxa de justiça já liquidada.
O mesmo já não acontecendo quanto à reclamação para o juiz competente da recusa do PED pelo BNA, uma vez que essa possibilidade não se encontra “expressis verbis” consagrada no transcrito artigo 15.º-C do NRAU, ou noutra disposição legal, o que naturalmente deixa margem para a existência de dúvidas hermenêuticas neste ponto em específico.
Efetivamente, nestes casos, e quanto à admissibilidade de reclamação para o juiz competente, a doutrina, socorrendo-se das diretrizes hermenêuticas fornecidas ao intérprete pelo artigo 9.º do Código Civil, divide-se, entre: i) uns (como Laurinda Gemas) que – referindo que o BNA é uma secretaria judicial com competência exclusiva para tramitação do PED em todo o território nacional – admitem a possibilidade de reclamação de todos os atos dos funcionários do BNA relativos ao PED para o Tribunal da situação do locado (nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º do DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro, 157.º, n.º 5, do CPC e 15.º-S, n.º 7, do NRAU); ii) e outros, em sentido contrário, (como Rui Pinto) que afirmam perentoriamente que da recusa do requerimento de despejo não cabe reclamação judicial, mas apenas a possibilidade de apresentação de novo requerimento prevista no já citado n.º 2, do artigo 15.º-C do NRAU.1
1 Cfr. Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, pág. 1179.
Quanto a nós, aderimos a esta última posição, por se nos afigurar a mais consentânea com a fase puramente extrajudicial em que o PED se encontra neste seu momento inicial de apresentação no BNA e a única com apoio na letra da lei, que não prevê nestes casos a reclamação judicial.
Restará, assim, ao requerente apenas a possibilidade de apresentação de novo requerimento (nos termos do artigo 15.º-C, n.º 2, do NRAU).
Pelo exposto, o Tribunal decide indeferir a reclamação apresentada, por inadmissibilidade legal.
Notifique.
Comunique a presente decisão ao BNA.».

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I. A Decisão da qual ora se recorre tem como thema decidendum o indeferimento da reclamação apresentada junto do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, na sequência da recusa do BNA do requerimento de despejo;
II. Com o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao indeferir a mencionada reclamação, sem apreciar os fundamentos de recusa invocados pelo BNA, pronunciando-se no sentido que é mesma é inadmissível por não encontrar suporte na letra da lei;
III. Tendo a Apelante apresentado no seu requerimento os documentos previstos nos n.ºs 2, alínea c), e 4 do artigo 15.º, n.º 2, alínea h), do artigo 15.º-B e no n.º 1, alínea b), do artigo 15.º-C, todos do NRAU, o mesmo foi recusado pelo BNA com os seguintes fundamentos:
− “A comunicação da cessação do contrato de arrendamento não foi dirigida a cada um dos cônjuges (artigo 12.º do NRAU);
− A comunicação da cessação do contrato de arrendamento não foi dirigida a cada um dos cônjuges (artigo 1068.º do Código Civil);
− Não vem acompanhado do(s) documento(s) previsto(s) no n.º 2 do artigo 15.º do NRAU (artigo 15.º-C, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, do NRAU);”
IV. Não se pronunciando sobre se o BNA, face aos elementos apresentados, deveria, ou não, ter aceite o requerimento de despejo, o Tribunal a quo limita-se a indicar que, nos termos do n.º 2 do artigo 15º-C do NRAU, a lei concede ao Requerente a possibilidade de apresentar um novo requerimento, no prazo de 10 dias subsequentes à notificação de recusa, aproveitando o procedimento especial de despejo já iniciado e a taxa de justiça já liquidada;
V. A ratio legis desta norma assenta na faculdade que o legislador ordinário concedeu ao Requerente de poder emendar, como um novo requerimento, uma irregularidade cometida aquando da apresentação do requerimento inicial, mas não de repetir aquele que bem instruíra, e que veio a ser incorretamente recusado pelo BNA;
VI. Entendendo a Apelante que o seu requerimento se encontrava corretamente instruindo e assumindo que o BNA manteria a recusa de aceitação de um segundo requerimento, em tudo idêntico ao primeiro, aquele constituiria obviamente um ato inútil;
VII. Tal entendimento, veda assim ao requerente do procedimento especial de despejo qualquer meio de defesa;
VIII. Porém, o Tribunal a quo entendeu que não cabe reclamação para o Juiz competente a recusa do procedimento especial de despejo recusado pelo BNA, uma vez que essa possibilidade não se encontra expressis verbis consagrada no artigo 15º-C do NRAU ou noutra disposição legal;
IX. Para fundamentar a sua decisão socorreu-se da invocação de duas posições doutrinais antagónicas;
X. Por um lado, reconhece que uns, como Laurinda Gemas, admitem a possibilidade de reclamação de todos os atos dos funcionários do BNA relativos ao procedimento especial de despejo para o Tribunal da situação do locado, porquanto defendem que o BNA é uma secretaria judicial com competência exclusiva para a tramitação do PED em todo o território nacional (cfr. artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 1/2013, de 7 de Janeiro, artigo 157.º, n.º 5 do CPC e artigo 15.º-S, n.º 7, do NRAU).
XI. Por outro lado, revela que outros, como Rui Pinto, afirmam perentoriamente que a recusa do requerimento de despejo não cabe reclamação judicial, mas apenas a possibilidade de apresentação de um novo requerimento (cfr. artigo 15.º-C, n.º 2, do NRAU);
XII. E concluiu, em adesão à segunda posição, indeferindo a reclamação apresentada pela aqui Apelante, por inadmissibilidade legal;
XIII. O Tribunal a quo, ao decidir deste modo, ignorou que esta matéria tem sido abundantemente objeto de análise em sede de Recurso, que apreciaram reclamações a decisões de recusa de requerimentos de despejo pelo BNA;
XIV. Citam-se a este propósito o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Processo n.º 11742/17.8 T8LRS.L1-6, datado 25/01/2018, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf, que julgou procedente a Apelação e revogou o despacho recorrido, que indeferira reclamação formulada ao abrigo do artigo 157.º, n.º 5, do CPC, na sequência de procedimento especial de despejo objeto de recusa pelo BNA, e o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no âmbito do Processo n.º 262/19.0T8BNV.E1, datado de 26/09/2019, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf;
XV. O Decreto-Lei n.º 1/2013, de 07 de Janeiro, define o BNA “como secretaria judicial com competência exclusiva para a tramitação do procedimento especial de despejo em todo o território nacional” (vide artigo 2.º, 2.ª parte);
XVI. Estipula o n.º 5 do artigo 157.º do CPC dos atos dos funcionários da secretaria judicial é sempre admissível reclamação para o Juiz de que aquela depende funcionalmente;
XVII. Decorrendo da lei que o procedimento especial de despejo é um meio processual e que o BNA é uma secretaria judicial, não se entende como pode, assim como decidiu o Tribunal a quo, ser coartado à aqui Apelante o direito de reclamar de uma decisão deste que, sendo-lhe prejudicial, é ilegal;
XVIII. Acresce que, nos termos do n.º 4 do artigo 11.º da Portaria n.º 9/2013, de 10 de Janeiro: “Os autos são apresentados à distribuição sempre que se suscite questão sujeita a decisão judicial, correndo, no entanto, nos próprios autos e perante o mesmo juiz as questões sujeitas a decisão judicial relativas a procedimento especial de despejo anteriormente distribuído”;
XIX. Também o n.º 4 do artigo 15.º-H do NRAU ordena a apresentação dos autos à distribuição quando se suscite questão sujeita a decisão judicial;
XX. Condicionar a ação da ora Apelante à salvaguarda prevista no n.º 2 do artigo 15.º-C do NRAU, como meio exclusivo para reagir à decisão de recusa do BNA ao requerimento de despejo apresentado, configura a violação do princípio da economia processual;
XXI. E também do princípio consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se, consequentemente, que o Meritíssimo Tribunal a quo aprecie a reclamação da decisão de recusa do BNA do requerimento de despejo apresentado pela aqui Apelante,
Assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!».

I.3.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

II.2.
A única questão que cumpre decidir consiste em saber se no âmbito do procedimento especial de despejo é legalmente admissível a reclamação judicial da decisão de recusa, pelo Balcão Nacional de Arrendamento, do requerimento de despejo.

II.3.
Factos
Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos que constam da decisão recorrida acima transcrita.

II.4.
Mérito do recurso
Está em causa no presente recurso o acerto da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que, por (suposta) inadmissibilidade legal, indeferiu a reclamação que a apelante apresentou junto dele e relativa à recusa do seu requerimento de despejo apresentado junto do Balcão Nacional de Arrendamento, no âmbito de um procedimento especial de despejo.
O procedimento especial de despejo foi criado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, doravante designado de NRAU, e encontra-se previsto nos artigos 15.º e seguintes daquele diploma legal.
Em síntese e previamente se dirá que o procedimento especial de despejo sob análise é definido no n.º 1 do referido artigo 15.º como «o meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes», tendo sido criado, nas palavras do Preâmbulo do D/L n.º 1/2013, de 07-01 (o qual procedeu à instalação e à definição das regras de funcionamento do Balcão Nacional do Arrendamento e do procedimento especial de despejo) «para tornar o arrendamento um contrato mais seguro e com mecanismos que permitam reagir com eficácia ao incumprimento (…)», aplicando-se «à cessação do contrato por revogação, por caducidade pelo decurso do prazo, por oposição à renovação, por denúncia livre pelo senhorio, por denúncia para habitação do senhorio ou filhos ou para obras profundas, por denúncia pelo arrendatário, bem como à resolução do arrendamento por não pagamento de renda por mais de dois meses ou por oposição pelo arrendatário à realização de obras coercivas».
O Banco Nacional de Arrendamento é uma secretaria judicial com competência exclusiva para assegurar a tramitação do procedimento especial de despejo, em todo o território nacional – cfr. artigo 15.º-A do NRAU e artigo 2.º do D/L n.º 1/2013, de 07-01.
In casu, a decisão do Banco Nacional de Arrendamento que foi objeto de reclamação da apelante foi de recusa do requerimento de despejo.
A questão que aqui se coloca prende-se com a (in)admissibilidade legal de reclamação da decisão de recusa do requerimento de despejo para o juiz competente, a qual sabemos não ser pacífica.
É um facto que no procedimento especial de despejo e em face da recusa pelo Balcão Nacional de Arrendamento do requerimento de despejo não está expressamente consagrado o controle judicial de tal recusa por via de reclamação para o tribunal competente, mas tão só, a possibilidade de o requerente apresentar um novo requerimento de despejo. Efetivamente o artigo 15.º-C, n.º 2, do NRAU dispõe que:
«Nos casos em que haja recusa, o requerente pode apresentar outro requerimento no prazo de 10 dias subsequentes à notificação daquela, considerando-se o procedimento iniciado na data em que teve lugar o pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação do primeiro requerimento ou a junção do documento comprovativo do pedido ou da concessão do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa de justiça e dos demais encargos com o processo».
Não obstante, não se pode olvidar que o Balcão Nacional de Arrendamento é, como supra assinalámos, uma mera secretaria judicial e que, nos termos do disposto no artigo 157.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, dos atos dos funcionários da secretaria judicial é sempre admissível reclamação para o juiz de que aquela depende funcionalmente, ou seja, os atos praticados pela secretaria judicial são sempre passíveis de controlo judicial, por reclamação.
Ademais, e sobretudo, não permitir ao requerente do procedimento especial de despejo sindicar uma decisão proferida por uma secretaria judicial que afeta os seus interesses legítimos traduzir-se-ia numa flagrante violação do direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, consagrado genericamente no artigo 20.º da Constituição da República, o qual implica «a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, e cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de ação no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas» – vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/94, in DR, II Série, n.º 202, de 01.09.
Como refere Lebre de Freitas[1], referindo-se àquele preceito constitucional: «para o entender em toda a sua amplitude, há que o interpretar e integrar, em obediência ao disposto no art. 16.º-2 da Constituição, de harmonia com o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, segundo o qual «todas as pessoas têm direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, por um tribunal independente e imparcial, que decidirá sobre os seus direitos e obrigações» (negritos nossos).
O artigo 20.º da CR consagra assim a garantia da via judiciária que consiste no direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante.
Finalmente dir-se-á que as normas reguladoras do procedimento especial de despejo, e para o que ora releva, o artigo 15.º-C do NRAU, devem ser interpretadas tendo em conta a unidade do sistema jurídico, ou, nas palavras de Batista Machado[2], «o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico».
Uma das formas de apurar a «coerência intrínseca do ordenamento» é a busca dos chamados «lugares paralelos», isto é, normas respeitantes a institutos ou hipóteses de qualquer modo relacionados com a fonte que se pretende interpretar — José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pp. 321 e seguintes.
Como ensina Batista Machado, ob. cit., p. 183, «o recurso aos “lugares paralelos” pode ser de grande utilidade, pois que se um problema de regulamentação jurídica fundamentalmente idêntico é tratado pelo legislador em diferentes lugares do sistema, sucede com frequência que num desses lugares a fórmula legislativa emerge mais clara e explícita. Em tal hipótese, porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve por igual formar um todo coerente, é legítimo recorrer à norma mais clara e explícita para fixar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua» (negritos nossos).
Daí que, nesta sede – fixação dos meios de reação do requerente do procedimento especial de despejo à recusa do requerimento de despejo –, se nos afigure inultrapassável olharmos para o regime previsto nas disposições conjugadas dos artigos 558.º, 559.º e 560.º, todos do CPC, o qual, em caso de recusa pelas secretarias judiciais da petição inicial, prevê o direito do autor reclamar, para o juiz, do ato de recusa e o direito de recorrer para o tribunal da relação do despacho que confirme o não recebimento da petição inicial, para além de conceder ao autor o benefício de apresentar outra petição ou juntar o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou da concessão de apoio judiciário, no prazo ali fixado, «considerando-se a ação proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo».
Resulta assim do exposto que em face da recusa, pelo Balcão Nacional de Arrendamento do requerimento de despejo, o requerente pode optar entre reclamar daquele ato para o juiz competente ou apresentar um novo requerimento de despejo.
Destarte, mal andou o tribunal a quo ao indeferir a reclamação da ora apelante, por (alegada) inadmissibilidade legal da mesma.
Impõe-se, assim, a revogação da decisão recorrida, devendo o juiz a quo apreciar a reclamação da decisão de recusa do Banco Nacional de Arrendamento do requerimento de despejo apresentado pela apelante.

Sumário:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, ordenando ao juiz a quo que aprecie a reclamação da decisão de recusa do Banco Nacional de Arrendamento do requerimento de despejo apresentado pela apelante.
Sem custas porquanto a apelante procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e, não tendo havido resposta às alegações de recurso, não há lugar a custas de parte na presente instância recursiva.
Notifique.
Évora, 13 janeiro de 2022
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
José António Moita (1.º Adjunto)
Silva Rato (2.º Adjunto)

__________________________________________________
[1] Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 1996, p. 77.
[2] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25.ª Reimpressão, Almedina, p. 183.