Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6/12.7TASTR.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: BURLA
ELEMENTO CONSTITUTIVO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A validade da acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, depende, entre o mais, da narrativa dos factos integradores do tipo objectivo em causa;
II – Por isso, deve ser rejeitada a acusação deduzida pelo M.º Pº contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217.º do CP, se naquela não constam quaisquer factos que integrem o erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo arguido, constando tão só que este se encontra registado num site de leilões, que o ofendido adquiriu uma máquina fotográfica nesse site, que o vendedor da máquina inscrito no site é o arguido, que o ofendido procedeu à transferência do valor da máquina para o NIB indicado pelo arguido mas que não recebeu a máquina ou o dinheiro que havia pago, desculpando-se o arguido para a não entrega da máquina com o atraso da transportadora que devia proceder a essa entrega.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6/12.7TASTR.E1

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I
1 – Nos autos em referência, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, BB, imputando-lhe a prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de burla previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 217.º n.º 1, do Código Penal (CP).
2 – O assistente, CC, aderiu à acusação do Ministério Público e, DE PAR, formulou pedido de indemnização civil contra o arguido pela quantia indemnizatória de € 1.579,00 e juros.
3 – Em sequência, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido, por despacho de 5 de Junho de 2015, decidiu não receber a acusação e determinar o arquivamento dos autos.
4 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância interpôs recurso deste despacho.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1 – Nestes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido BB imputando-lhe a prática de um crime de burla simples, pp art. 217º nº 1 do Código Penal.
2 – Efectuadas as devidas notificações, e remetidos os autos à distribuição, foram os mesmos conclusos ao Mmo. Juiz que após conhecer das questões a que se refere o art. 311º nº 1 do CPP decidiu, nos termos do art. 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) CPP não receber a acusação por a considerar manifestamente infundada por os factos não constituírem crime.
3 – Ressalta do despacho sob recurso que da acusação não consta qualquer facto que indicie ter o arguido provocado no ofendido erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou determinando-lhe a prática de actos que lhe causem prejuízo patrimonial.
4 – Com o devido respeito por opinião contrária, a nosso ver é exactamente o aparente negócio anunciado pelo arguido que fez criar no assistente o errado convencimento e que iria receber a máquina fotográfica após efectuar o respectivo pagamento, sendo que o arguido nunca quis estabelecer qualquer negócio, mas apenas locupletar-se à custa do património do assistente.
5 – Dos arts. 358º e 359º CPP resulta a possibilidade de serem tidos em conta factos novos na decisão a proferir sem necessidade de desencadear, quanto a eles, novo inquérito, desde que se assegurem as garantias de defesa do arguido.
6 – Assim sendo, e ao não receber a acusação, o despacho recorrido violou o disposto no art. 311.º nº 2 al. a) e nº 3 al. d) do CPP.
8 [a minuta contém lapso de numeração] – Caso assim se não entenda, o que não se perspectiva mas por mera cautela, então não devem os autos ser arquivados como determina o despacho recorrido mas devolvidos ao Ministério Público para os fins convenientes.
9 – Deve pois o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que decida receber a acusação pública deduzida nos autos, e designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.»
5 – O recurso foi admitido, por despacho de 27 de Outubro de 2015.
6 – O arguido respondeu ao recurso.
Defende a confirmação do julgado.
Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«- Os factos constantes da acusação não configuram qualquer intenção fraudulenta do arguido, traduzida no uso de astúcia para provocar o engano do lesado com intenção de lhe causar prejuízo.
- Apenas está configurada uma situação em que o vendedor não entregou ao comprador a coisa vendida.
- Este comportamento traduz apenas incumprimento contratual e não crime de burla.
- Não merece, por isso, censura do despacho que ordenou o arquivamento dos autos.»
7 – Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, aderindo à resposta do arguido e fazendo lembrete de pertinente jurisprudência, é de parecer que o despacho recorrido deve ser mantido.
8 – O objecto do recurso reporta ao exame da questão de saber se, do passo em que decidiu rejeitar a acusação do Ministério Público, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, por violação do disposto no artigo 311.º n.os 2 alínea a) e 3 alínea d), do Código de Processo Penal (CPP).
II
9 – O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Não se verificam excepções, nulidades, questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação da causa, de que possa conhecer. O Arguido BB está acusado nestes autos prática dum crime de Burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n. ° 1 do Código penal.
Tal crime tem como elemento objectivo o enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou determinado outrem a prática de actos que lhe causem ou a outrem prejuízo patrimonial, Cfr., artigo 217.°, n.º 1, do Código Penal.
Compulsados os autos constata-se que na douta acusação não consta qualquer facto que consubstancie erro ou engano que o agente astuciosamente provocou determinado o Assistente a prática de actos que lhe causem prejuízo patrimonial enquanto parte integrante do elemento objectivo do crime imputado ao arguido.
Efectivamente, sem tal elemento estamos perante uma questão de natureza cível traduzida em incumprimento contratual, não bastando a referência a "... que o arguido quis obter enriquecimento à custa do património do ofendido e quis causa a este o prejuízo correspondente ao valor que recebeu pelos bens ... "., é necessário para que estejamos no domínio da pratica do crime de burla que o arguido tenha provocado no ofendido erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou determinando a pratica de actos para si lesivos, matéria acerca da qual a acusação é omissa
Em suma a douta acusação é omissa quanto ao elemento objectivo enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou determinado outrem a prática de actos que lhe causem ou a outrem prejuízo patrimonial, elemento do tipo legal do crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.°, n.º 1 do Código penal, sem a verificação do qual o mesmo não se pode ter por preenchido não, constituindo, assim, os factos constantes da acusação imputados ao Arguido crime.
A referida situação, documentada nos autos, resultante do próprio texto da acusação, conduz a rejeição da acusação nos termos das disposições conjugadas dos artigos 311.°, n.º 2, alínea a) e n." 3, alínea d), do C. P. P.
Importa agora aprofundar a matéria do destino dos autos.
Devem os autos ser arquivados ou remetidos ao M." P." para corrigir a acusação?
A referida falta de factos traduz-se em nosso entender, e ressalvando o devido respeito por opinião contrária, na inevitabilidade da extinção do procedimento criminal contra o arguido.
Efectivamente, a nosso ver o princípio do acusatório e da vinculação temática não consentem que a acusação seja corrigida e remetida para esse efeito ao M.º P.º.
Como se escreveu no douto acórdão da Relação do Porto de 27/6/2012, in www.dgsi.pt, "A acusação à qual falte um dos elementos constitutivos do tipo não é nula mas improcedente"... "Deduzida acusação improcedente... levaria à rejeição desta" e se "não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do Arguido com o consequente arquivamento dos autos" e "Em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo em vez do seu arquivamento", " A reformulação ou correcção da acusação, nestas circunstâncias, subverteria o sistema processual penal vigente"
Na esteira deste entendimento e refletindo-o pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça a propósito da falta do elemento subjectivo do tipo de crime a considerar na acusação no douto Acórdão uniformizador de jurisprudência proferido em 20/11/2014 no processo nº' 17/07.4GBORQ.E2 a cuja doutrina aderimos "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime", (e por maioria de razão dos objectivos acrescentamos nós) "nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do Código de Processo Penal."
Em face do que ficou exposto e nos termos das sobre ditas disposições legais não recebo a acusação deduzida nestes autos pelo M.º P.º contra o Arguido BB e determino o arquivamento dos autos.»
10 – O despacho acusatório, datado de 29 de Setembro de 2014 (fls. 109-11) é do seguinte teor:
«[…] O Ministério Público deduz acusação contra o arguido BB […] porquanto:
No dia 2 de Agosto de 2011, o ofendido adquiriu através do site Leilões Net ima máquina fotográfica de marca Nikon modelo D5100N.
O vendedor da máquina inscrito no respectivo site era o aqui arguido.
Nesse mesmo dia o arguido procede à transferência bancária no valor de 579 euros, para o NIB facultado pelo arguido.
Após o referido pagamento, o ofendido tentou por diversas vezes receber a respectiva máquina ou o seu dinheiro, sendo que o arguido sempre se desculpou com atrasos por parte da transportadora que procedia à entrega.
Até hoje o ofendido não recebeu qualquer máquina ou quantia cedida pela mesma.
O ofendido teve danos patrimoniais no valor total de 579 euros.
O arguido quis obter enriquecimento à custa do património do ofendido e quis causar a este, o prejuízo correspondente ao valor que recebeu pelos bens, o que logrou conseguir.
O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
Cometeu assim o arguido como autor material e na forma consumada um crime de burla previsto e punido no art. 217.º n.º 1 do Código Penal. […]».
11 – O artigo 217.º n.º 1 do CP (burla) persegue «quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial».
12 – Como é sabido, para dizer com a lição de A. M. Almeida Costa (no «Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial», Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 293, § 13),
«[…] a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
[…] a este processo, globalmente considerado, se reconduz o “domínio-do-erro” como critério de imputação inerente à figura da burla e que esgota o sentido da referência à “astúcia”, constante do nº 1 do art. 217º.»
13 – Nos termos prevenidos na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, do CPP, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.
14 – Vale dizer, no que ao caso importa, que a validade da acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, depende da narrativa dos factos integradores do tipo objectivo em causa, designadamente daqueles factos que integram o falado erro ou engano sobre factos astuciosamente provocado pelo agente do crime de burla.
15 – Como se evidencia do despacho acima editado, a Ex.ma Magistrada do Ministério Público não levou à acusação tal materialidade.
16 – À míngua de tal factologia, a materialidade reportada na dita acusação não configuram a prática do pretextado crime de burla.
17 – Nos termos prevenidos no artigo 311.º n.os 2 alínea a) e 3 alínea d), e no âmbito do saneamento do processo como acto preliminar do julgamento, a acusação deve ser rejeitada se for manifestamente infundada e assim, particularmente, quando os factos ali reportados não constituírem crime.
18 – Daí que, no ponto em que consubstancia a decisão de rejeitar uma acusação inválida, o despacho revidendo não mereça qualquer reparo.
19 – A determinação do arquivamento dos autos decorre da inaplicabilidade do disposto no artigo 358.º, do CPP – e assim, sob pena de, indevidamente, se conferir tipicidade a uma conduta atípica.
20 – Como transcorre da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão uniformizador de 20 de Novembro de 2014 (Diário da República, 1.ª série n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015),
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
21 – Outro tanto não pode deixar de valer – por um argumento de maioria de razão – para os elementos de facto concernentes ao tipo objectivo do ilícito.
22 – Assim, também no particular da determinação do arquivamento dos autos, o despacho recorrido não merece comutação ou suprimento.
23 – Termos em que o recurso não pode deixar de julgar-se improcedente.
24 – Não cabe tributação – artigo 522.º, do CPP.
III
25 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Évora, 12 de Julho de 2017
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)