Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1498/09.7PAOLH.E1
Relator: JOÃO MANUEL MONTEIRO AMARO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REC URSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
Perante as prementes exigências de prevenção geral – na vertente da necessidade de protecção dos bens jurídicos aqui em causa – e não existindo qualquer expectativa de que o arguido - sendo suspensa a execução da pena de prisão e devolvido à liberdade - se reintegre de alguma forma no meio social envolvente, sem praticar crimes de violência doméstica, tudo apontando para que o arguido, uma vez libertado, retome de imediato o comportamento manifestamente anti-social que, face aos factos dados como provados neste processo, tem marcadamente e reiteradamente revelado, deve recusar-se a aplicação da pena de substituição reclamada pelo arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, com o nº 1498/09.7PAOLH, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, em que é arguido ML, após audiência de discussão e julgamento, foi decidido (com interesse para o que ora nos ocupa):

“- Condenar o arguido, na pena parcial de 2 anos e 5 meses de prisão, pela prática do crime violência doméstica, previsto e punido art. 152º, nº1, al. b) do Código Penal, praticado sobre EC.

- Condenar o arguido, na pena parcial de 2 anos e 3 meses de prisão, pela prática do crime violência doméstica, previsto e punido art. 152º, nº1, al. d) do Código Penal, praticado sobre NC.

- Em cúmulo jurídico na pena conjunta de 3 anos de prisão;

- Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de todo e qualquer contacto com EC e NC pelo período de 5 anos, acompanhada de afastamento da residência, com recurso a meio tecnológico de controlo à distância, pelo durante um ano, com possível reapreciação, quando o arguido retorne à liberdade – cfr. art. 152.º, nº4 do CP.

- Mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (cfr. art. 513, nº1 do CPP e art. 8, nº5 do Regulamento das Custas Judiciais, com referência à tabela III)”.
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Inconformado com a sentença condenatória, interpôs recurso o arguido, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

A) A suspensão da execução da pena de prisão, com sujeição a um regime de prova e às penas acessórias, mostra-se adequada às exigências de prevenção especial no caso;

B) Neste sentido o Tribunal a quo não valorizou a ausência de antecedentes criminais do Arguido;

C) O Tribunal a quo não valorizou também a sujeição do Arguido a um regime de prova através de um plano de readaptação delineado pela DGRS, com enfoque na prevenção da violência doméstica;

D) O Tribunal a quo também não valorizou a sujeição do Arguido a um regime de prova através de um plano de readaptação delineado pela DGRS, com intervenção ao nível da prevenção e tratamento do alcoolismo;

E) O Tribunal a quo também não valorizou devidamente a doença de epilepsia que afecta o Arguido, e a suas consequência mentais e comportamentais, ao nível das alterações de humor e bipolaridade, com relevância directa no grau de culpa do Arguido,

F) O Tribunal a quo decidiu pela aplicação de uma pena de prisão efectiva ao Arguido, quando o sistema penal prevê outras respostas para o caso, mais adequadas às suas circunstâncias e aptas a satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial da prática do crime de violência doméstica, que no seu conjunto permitem um prognóstico positivo em relação à conduta do Arguido.

Termos em que, requer-se a V. Exas que a pena de prisão seja suspensa na sua execução por período adequado, mediante a sujeição do Arguido a regime de prova e a plano de readaptação social a delinear pela DGRS”.
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O Ministério Público na primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo nos seguintes termos (em transcrição):

“1. Os argumentos invocados pelo recorrente, nos quais assenta a sua discordância, não permitem, salvo o devido respeito, decisão diversa da proferida pelo Mmº Juiz “a quo”;

2. A suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos deve ter lugar, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

3. A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.

4. A suspensão de execução da pena, como medida de substituição da pena de prisão, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar a sua vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa.

5. O tribunal afirma a prognose social favorável em que assenta o instituto da suspensão da execução da pena se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo, para tal, atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.

6. A suspensão da pena de prisão não é uma mera possibilidade que pode provir da apreciação do julgador quando da aplicação de uma pena privativa da liberdade, é sim um dever imposto pelo art. 50.º, n.º 1 do CP.

7. No entanto, na douta decisão recorrida foi efectuada uma adequada ponderação quanto à aplicação de pena privativa da liberdade, tendo-se adequadamente considerada que apenas a não suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido salvaguardaria as finalidades da punição.

8. Não foram, assim, violados quaisquer normativos legais.

Termos em que se conclui sufragando a posição adoptada pelo Mmº Juiz “a quo” na douta sentença sindicada, julgando-se o recurso interposto pelo recorrente Mihall Leorda improcedente, como é de toda a JUSTIÇA”.
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Do mesmo modo, a ofendida EC respondeu ao recurso, secundando, no essencial, a resposta apresentada pelo Ministério Público
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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer (fls. 529), pronunciando-se também no sentido de o recurso interposto dever ser julgado improcedente.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos, foi designada data para conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.
A questão suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objecto e poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, consiste em saber se ao arguido deve ser aplicada uma pena de prisão efectiva (como decidiu o tribunal a quo), ou se, pelo contrário, a pena de prisão aplicada deve ser suspensa na sua execução.

2 - A decisão recorrida.

A sentença condenatória proferida nos autos é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados):

“II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Da discussão em audiência resultou provado que:

1. Em Portugal, EC e o arguido iniciaram uma relação amorosa com comunhão de mesa, leito e habitação em Novembro de 1999;

2. Em Dezembro de 1999, o arguido desferiu uma bofetada na face de EC, por esta pretender falar com a sua filha NC, que se encontrava na Moldávia, sendo esta filha de um relacionamento anterior;

3. Em 2002, na casa de ambos, o arguido voltou a dar-lhe uma bofetada e empurrou-a contra a parede;

4. Nesse mesmo período, o arguido, na sequência de discussão, no interior da casa de banho da residência, empurrou E, o que fez com que esta fosse projectada e caísse na banheira, tendo ficado com um olho negro e sentido dores;

5. Ainda nesse ano, em Sines, quando foram visitar um primo, na presença deste, o arguido iniciou discussão e em acto contínuo desferiu uma bofetada na cara de E;

6. Em data não concretamente apurada do ano 2003, na sequência de discussão, o arguido empurrou EC e fez com que esta caísse no solo sobre um braço, o que provocou a sua fractura;

7. Em 2004, na casa de banho da residência, na sequência de E lhe ter pedido para o arguido deixar de ingerir bebidas alcoólicas, este pegou-lhe nos ombros e obrigou-a a embater no chão e com a cabeça na parede;

8. Em 2006, empurrou uma porta da residência contra a cara de E, o que lhe provocou sangramento e olho negro, cujas consequências físicas foram colhidas em suporte fotográfico de telemóvel, em que o arguido prontamente diligenciou pela destruição do respectivo aparelho;

9. Durante o período da convivência em comum (1999 a Outubro de 2010), em várias ocasiões distintas o arguido apelidava EC de “puta”, “vaca” e “ cabra”;

10. Em data não concretamente apurada do ano de 2008, depois de E ter dito para ele fazer o jantar, pois não gostava do que esta havia comprado, desferiu-lhe com uma panela na cabeça;

11. Ao longo do tempo e com a vinda de NC em 2009, as discussões e agressões aumentaram de frequência e intensidade e passaram também a ser dirigidas a NC;

12. O arguido apresentava-se frequentemente alcoolizado, com postura quezilenta e de manifesto desprezo, na residência comum, relativamente a E e NC, interferindo nos hábitos sociais de visionamento de televisão, refeições e no auxílio escolar prestado pela mãe à filha;

13. Em data concretamente não apurada, o arguido impediu-as de ver televisão e arremessou o aparelho ao solo;

14. O arguido insurgiu-se e não se conformou com a vinda de NC para Portugal;

15. Impedia que EC auxiliasse N nos estudos, apesar desta sentir dificuldades por causa da língua;

16. Em 2009, afirmou, por diversas vezes, que N era uma puta, que se vestia como uma puta;

17. Anunciou que lhe cortaria o pescoço;

18. Disse a NC para esta ir para a “Rotunda de Olhão” (local desta urbe em que as mulheres se prostituem, significa tal expressão que N devia dedicar-se à prostituição);

19. No Inverno do ano de 2010, desferiu bofetadas na face de NC, empurrou-a quando esta tentou evitar que a mãe fosse agredida;

20. Durante a sua estadia em Portugal, o arguido, por vezes, no ano de 2009 e até Outubro de 2010, quando a sua mãe não estava, dirigia-se ao quarto de N e deitava-se com ela, contra a sua vontade, afirmava para esta lhe chamar de pai;

21. Nessas ocasiões, por vezes, acariciava-lhe as pernas e coxas;

22. Outras vezes, acariciava-lhe as pernas e coxas mesmo na presença da sua mãe, quando estavam a ver televisão, sendo que a sua mãe tinha de se sentar entre os dois;

23. No período compreendido entre o início de 2009 a Outubro de 2010, pelo menos por duas vezes, numa altura em que NC tinha cerca de 14/15 anos, quando esta estava nua a tomar banho, numa das duas toilettes existentes no apartamento, o arguido introduzia-se na mesma e ficava a contemplá-la;

24. Sob o pretexto de lavar as mãos, ficava a olhar para ela, só saindo quando esta agarrava na toalha e tapava-se;

25. Entre o início de 2009 até Outubro de 2010, altura em que EC não quis praticar sexo com o arguido, este referiu que ia dormir com as duas, se ela não queria que o faria com NC;

26. Naquele período de 2009 e 2010, quando EC não queria relacionar-se sexualmente, o arguido agarrava-a pelos braços, empurrava-a para cima da cama e obrigava-a a tal acto;

27. Outras vezes, anunciava que lhe cortaria o pescoço caso não tivesse relações sexuais com este, o que levou EC, contra a sua vontade, a praticar tal acto;

28. Em data não concretamente apurada entre o início de 2009 e Outubro de 2010, o arguido anunciou para as duas que tinha uma arma de fogo e com ela mataria primeiro E depois N e por fim acabaria com a vida dele;

29. No dia 8 Dezembro de 2009, em casa de ambos, o arguido começou a discutir com E e, em acto contínuo, esbofeteou-a e empurrou-a;

30. Nessa sequência, E quis sair de casa mas este impediu-a;

31. Consequentemente, o comportamento do arguido provocou dores e hematomas nos braços e joelhos de E, determinando-lhe 10 dias de doença;

32. No dia 23 de Agosto de 2010, pelas 19h00, na residência comum, na presença de N, o arguido dirigiu-se a EC, apelidou-a de puta, vaca e cabra;

33. Anunciou ainda que “vou-me levantar uma noite e vou-te cortar o pescoço”;

34. Agarrou-a pelos braços e torceu-os pelas costas, provocando-lhe dores nos ombros, braços e pescoço, criando-lhe hematomas no pescoço e braço;

35. O comportamento do arguido provocou dores e traumatismo na cabeça e cervical da EC, determinando-lhe 10 dias de doença;

36. No dia 24 de Agosto de 2010, o arguido obrigou EC, mediante o anúncio de que lhe atingiria o seu corpo com pancadas físicas, caso não anuísse, para que se dirigisse consigo ao Banco Millenium, sita na Avenida da República, nesta localidade, para proceder a um levantamento bancário a seu favor;

37. Em data não concretamente apurada do ano de 2009, na cozinha da residência, o arguido encostou uma faca ao pescoço de EC;
38. No mesmo ano, o arguido lançou-lhe uma faca, que não lhe acertou, por esta se ter desviado;

39. Ainda em data concretamente não apurada do ano, entre o início de 2009 e Outubro de 2010, quando Elena estava na cama, o arguido empunhando uma faca, direccionou-a para a mão da ofendida e desfere um golpe, que não lhe acertou por E se ter desviado, acabando por furar o colchão;

40. Em outra ocasião, desse período, perseguiu EC com uma faca na residência de ambos;

41. De igual modo em 2010, em data anterior a Outubro, na casa de ambos, na presença da menor, o arguido deu uma faca a E para que esta cortasse os pulsos;

42. Ainda em 2010, na sequência de discussão, o arguido agarrou a cabeça de E debaixo do seu braço e pressionou-a;

43. O arguido agiu, como acima se descreveu, de forma livre, consciente e deliberada, visando, repetidamente, molestar física e psicologicamente EC, com quem manteve uma relação de comunhão de mesa, leito e habitação, bem como da sua filha NC, pessoa que vivia com eles, desde pelo menos 2009, e que dele dependia, indefesa nesse contexto familiar, o que efectivamente conseguiu, bem como, em determinados momentos, ofender a sua honra e consideração que lhe eram devidas, como, ainda, invadir-lhes a sua privacidade, em suma, maltratando-as, física e psicologicamente, de forma reiterada ao longo desse período de tempo;

44. O arguido sabia que estava atentar contra a dignidade, integridade, liberdade sexual, honra e consideração de E e NC, mas mesmo assim quis assumir os comportamentos supra descritos;

45. O arguido agiu livre e consciente, com perfeito conhecimento que a sua conduta era contrária à lei;

46. Desde pelo menos 1999 que o arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso, problema que se agudizou ao longo dos tempos;

47. A maioria das vezes assumia os comportamentos supra descritos quando estava embriagado ou quando precisava de dinheiro para alimentar o vício;

48. Padece de epilepsia;

49. Não valorizou de forma adequada o diagnóstico de epilepsia;

50. Nega hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas;

51. O arguido não tem familiares em Portugal;

52. Mesmo depois de estar proibido de contactar com E e de se afastar da residência, o arguido continuou a dirigir-se a E e a tentar entrar na referida residência;

53. A nível laboral, o arguido trabalhou cerca de dez anos na firma “A. e Filhos, Lda”, tendo a desvinculação, despedimento por justa causa, da mesma ocorrido no primeiro trimestre de 2011, na sequência de não regularização da situação de baixa clínica que já se verificava havia algum tempo. O diagnóstico de um quadro de epilepsia, concomitante com a desresponsabilização do arguido ao nível da medicação prescrita e o registo de hábito de consumo de bebidas alcoólicas, estiveram eventualmente na génese de várias situações de perda de consciência/incapacidade para o trabalho;

54. Era bom técnico, mas no seu lugar de trabalho provocava mau ambiente com os colegas, pois sentia inveja dos mesmos, não falava com estes;

55. Quando este abandonou o posto de trabalho foi um alívio para os colegas;

56. Expressa que ainda quer reatar a vida em comum com EC;

57. Não assumiu a factualidade no seu todo;

58. Não revelou arrependimento, pois não pediu desculpa a N ou EC;

59. Sem referências sócio-familiares consistentes em Portugal para além da ofendida, aquando da saída domiciliária, em Outubro de 2010, o arguido foi encaminhado para a residência do MAPS - Movimentos de Apoio à Problemática da Sida - , a qual viria a abandonar, decorridos três meses, por não concordar com a percentagem do então subsídio de baixa clínica exigida como pagamento pelo alojamento. Depois de ter permanecido um curto período numa pensão, e por motivos de um quadro sintomático - dores musculares/dificuldades na mobilidade dos membros inferiores -. O arguido recorreu ao apoio de irmãos residentes em Itália, onde permaneceu de Fevereiro a Maio p.p., tendo estado hospitalizado na sequência de uma bactéria nos pulmões e de um quadro de neuropatia – perturbação das funções fisiológicas atribuída a uma afecção do sistema nervoso central;

60. Quando regressou a Portugal, o arguido foi despedido por justa causa, não detendo quaisquer meios de subsistência;

61. O único apoio exterior restringe-se aos telefonemas esporádicos com um amigo/oriundo do meio origem;

62. Apesar dos familiares estarem dispostos a aceitá-lo, o arguido não tem intenção no sentido de sair de Portugal, centralizando o seu discurso no direito a residir e/ou partilhar a habitação ocupada pela ofendida, igualmente sua propriedade;

63. A intensidade dos sentimentos de injustiça relativamente ao facto da ex-companheira poder permanecer na habitação obstaculizam a elaboração de uma adequada análise crítica dos factos subjacentes ao processo em causa e/ou do incumprimento das proibições impostas pelo mesmo;

64. O arguido manifesta dificuldade em compreender/aceitar que não poderá voltar a partilhar com a ofendida a habitação, propriedade de ambos;

65. Não regista antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não ficou demonstrado que:

- O arguido tenha esbofeteado a ofendida na toilette;

- O arguido tenha agarrado E pelos cabelos, fazendo com que a mesma embatesse com a cabeça na esquina da porta;

- De seguida tenha desferido bofetada na cara da mesma e uma pancada na nuca;

- No dia 23 de Agosto de 2010, o arguido tenha empurrado E pelos ombros contra uma parede;

- No dia 10 de Outubro de 2010, o arguido tivesse pedido dinheiro para o tabaco e, por via da não entrega, tenha agarrado o pescoço, altura em que interveio N, soltando-a”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

A suspensão da execução da pena.

Requer o recorrente a suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada, com sujeição a regime de prova e a plano de readaptação social (a delinear pelos competentes serviços da Direcção Geral de Reinserção Social).

Há que decidir.

Nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Como é sabido, não são considerações de culpa que interferem na decisão que agora nos ocupa, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, e não qualquer correcção ou melhora das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zift, uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência” (Prof. Figueiredo Dias, in ”Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, págs. 343 e 344).

Como bem esclarece este ilustre professor (ob. citada, pág. 344) “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime (...). Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”.

Acresce que está em causa, no instituto da suspensão da execução da pena, não uma qualquer “certeza”, mas apenas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade. Existindo, porém, razões sérias para questionar a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cfr. ainda o Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, págs. 344 e 345).

A suspensão da execução da pena de prisão assenta, pois, num prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, prognóstico esse efectuado no momento da decisão. Tal juízo de prognose fundamentar-se-á, cumulativamente, na ponderação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto (ainda que essas circunstâncias sejam posteriores ao facto e mesmo que já tenham sido valoradas em sede de medida concreta da pena).

Ou seja, no referido juízo de prognose há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.

Revertendo ao caso destes autos, ficou provado, além do mais (cfr. factos provados nºs 46 a 64 da sentença sub judice), que:

- Desde pelo menos 1999, o arguido ingere bebidas alcoólicas em excesso (problema que se agudizou ao longo dos tempos), negando o arguido esse mesmo hábito.

- O arguido padece de epilepsia (não valorizando o arguido, de forma adequada, tal diagnóstico).

- Não tem familiares em Portugal (e o apoio exterior consiste apenas em telefonemas esporádicos com um amigo oriundo do seu meio de origem).

- Mesmo depois de estar proibido, pelo tribunal, de contactar com a ofendida EC, e de lhe ser imposto, também pelo tribunal, o afastamento da residência do casal, o arguido continuou a dirigir-se à ofendida e a tentar entrar em tal residência.

- No seu local de trabalho, o arguido provocava mau ambiente com os colegas, tendo abandonado o seu posto de trabalho.

- O arguido quer ainda reatar a vida em comum com a ofendida EC.

- O arguido não assumiu a factualidade no seu todo, não revelou arrependimento, e não pediu desculpa às ofendidas.
- O arguido não possui quaisquer meios de subsistência.

- O arguido não tem intenção de sair de Portugal, centralizando o seu discurso no direito a residir na habitação ocupada pela ofendida EC, habitação essa propriedade de ambos.

- O arguido sente-se injustiçado pelo facto da ofendida EC poder permanecer na habitação em causa.

- O arguido não faz uma adequada análise crítica dos factos subjacentes ao presente processo, nem do incumprimento das obrigações que lhe foram impostas pelo tribunal (proibição de contactar com a ofendida EC, e afastamento da residência do casal).

- O arguido manifesta dificuldade em compreender (e em aceitar) que não poderá voltar a partilhar com a ofendida EC a habitação, propriedade de ambos.

Atendendo a todos estes factos dados como provados (factos esses, aliás, não questionados na motivação do recurso), constata-se, desde logo, que o arguido mantém ainda a ideia de voltar para a casa do casal, sentindo-se injustiçado por não poder permanecer em tal casa, que não reconhece o seu problema de alcoolismo, e que não interiorizou devidamente a gravidade dos factos sob julgamento.

Em segundo lugar, verifica-se que o arguido não tem familiares em Portugal, não tem ocupação laboral, e tem, além disso, um relacionamento social difícil.

Por último, não pode esquecer-se que o arguido manteve, ao longo do processo, uma postura inadequada, incumprindo as medidas de coacção de afastamento da residência e de proibição de contactos com a vítima (o que determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva).

Assim sendo, e analisados todos os descritos factos, na sua globalidade complexiva, entendemos que o arguido, se for deixado em liberdade, voltará a delinquir, continuando com a prática do crime pelo qual agora foi condenado. É que, e em suma, o arguido evidencia pouca (ou mesmo nenhuma) interiorização de valores e de práticas que possam sustentar mudanças efectivas no seu comportamento futuro, revelando ainda muito pouco respeito pelos bens jurídicos.

Vistos os factos em que se consubstanciou a prática pelo arguido do crime em causa (sendo elevado o grau de ilicitude desses factos, face, designadamente, ao longo período em que perduraram os comportamentos maltratantes das ofendidas), perante a indiferença manifestada pelo arguido (não denotando o arguido autocrítica e arrependimento, e não assumindo a sua culpa), e considerando a personalidade do arguido e as suas condições de vida, não vemos como a suspensão da execução da pena de prisão possa, no futuro, evitar a repetição pelo arguido de comportamentos delituosos.

E a mesma conclusão se retira ainda que sujeitando a suspensão da execução da pena de prisão a regime de prova (conforme é pretendido na motivação do presente recurso).

Na verdade, a personalidade patenteada pelo arguido, desde logo pela não assunção da sua culpa, e a ausência de reflexão sobre o mal do crime, não permitem, com o devido respeito pela opinião expressa na motivação do recurso, sustentar um juízo de confiança no comportamento futuro do arguido, por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não venha a delinquir.

É certo que o arguido não possui antecedentes criminais (facto provado nº 65 da sentença revidenda). Porém, nenhum outro facto dado como provado permite um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido, mesmo com sujeição a regime de prova.

Em conclusão: a suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde logo numa perspectiva de prevenção especial.

Assiste, assim, neste aspecto, inteira razão ao tribunal a quo, quando, e muito bem, deixa escrito na sentença revidenda: “(…) o arguido persiste na ideia de voltar para casa, reatar a relação com E, não reconhece o seu problema de alcoolismo nem mesmo que tenha praticado a factualidade de que vinha acusado, culpabiliza as vítimas pela sua actuação, não tem familiares em Portugal, tem relacionamento difícil, manteve sempre uma má postura processual, incumprindo as medidas de coacção de afastamento da residência e proibição de contactos com a vítima, o que nos leva a crer que em liberdade voltará a delinquir, isto é a praticar o crime de violência doméstica. Nesta sequência, por ausência de prognose positiva, não se suspende a execução da pena de prisão”.

Ou seja, e por outras palavras: não existe qualquer expectativa de que o arguido - sendo suspensa a execução da pena de prisão e devolvido à liberdade - se reintegre de alguma forma no meio social envolvente, sem praticar crimes de violência doméstica, tudo apontando para que o arguido, uma vez libertado, retome de imediato o comportamento manifestamente anti-social que, face aos factos dados como provados neste processo, tem marcadamente e reiteradamente revelado.

Por outro lado, importa também ponderar as exigências de prevenção geral, na vertente da necessidade de protecção dos bens jurídicos. Isto é, a suspensão da execução da pena de prisão não pode colocar irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas da comunidade na validade da norma violada.

Nesta perspectiva (da prevenção geral) não podemos esquecer a frequência com que, na nossa sociedade, ocorre a prática do crime em análise, com consequências muito nefastas para a saúde, física e psíquica, das pessoas violentadas.

Ora, neste aspecto, e atendendo às concretas circunstâncias dos dois crimes de violência doméstica praticados pelo arguido, afigura-se-nos também ser difícil de concluir que a suspensão da execução da pena de prisão realize o limiar mínimo de defesa da ordem jurídica, isto é, satisfaça as exigências de prevenção geral.

Posto o que precede, entende-se não ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada, sendo de negar, por isso, provimento ao recurso.
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Entende o recorrente que o tribunal a quo devia ter optado pela suspensão da execução da pena de prisão, com sujeição a regime de prova, através de um plano de readaptação delineado pela DGRS, com enfoque na prevenção da violência doméstica e com intervenção ao nível da prevenção e tratamento do alcoolismo.

Dispõe o artigo 53º, nº 1, do Código Penal, que “o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade”. Por sua vez, o nº 3 do mesmo artigo estabelece que “o regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade ou quando a pena de prisão cuja execução for suspensa tiver sido aplicada em medida superior a três anos”.

Ou seja, a sujeição do arguido a regime de prova, com elaboração de um plano de reinserção social (cfr. o preceituado no artigo 54º do Código Penal), pressupõe, necessariamente (como é óbvio, e como resulta, expressamente, do disposto no transcrito artigo 53º, nºs 1 e 3, do Código Penal), a prévia (ou a concomitante) opção do tribunal pela aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, opção esta que, como acima exposto, não foi feita in casu (na situação do arguido/recorrente optou-se, fundadamente, pela aplicação de uma pena de prisão efectiva).

Por conseguinte, além do que já se deixou supra referido (quando se optou pela aplicação de uma pena de prisão efectiva), nada mais há a ponderar ou a decidir sobre a pretensão do recorrente ora em análise (sujeição a regime de prova, com um plano de readaptação delineado pela DGRS).

Face a tudo o predito, é totalmente de improceder o presente recurso.


III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 31 de Janeiro de 2012.

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(João Manuel Monteiro Amaro)
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(Maria de Fátima Mata-Mouros)