Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7633/15.9T8STB-A.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: LIVRANÇA
AVALISTA
PROTESTO
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Compete ao oponente/subscritor, assim como ao seu avalista, no âmbito das relações imediatas, o ónus da prova quanto ao preenchimento abusivo da livrança, por se tratar de um facto impeditivo do direito de crédito invocado pelo exequente, nos termos do n.º2 do art.º 342.º do C. Civil.
2. No caso do aval prestado ao subscritor de livrança, não é necessário a formalização do protesto, por falta de pagamento, para acionar o avalista, porque este responde no lugar do subscritor, não tem a posição equivalente ao sacador, endossantes e outros coobrigados a que alude o art.º 53.º da LULL, já que estes são meros obrigados de regresso, responsáveis entre si, nos termos do art.º 516 do C. Civil, enquanto o avalista é um obrigado direto, que fica sub-rogado nos direitos do subscritor (art.º 32.º e 77.º da LULL).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório.
Os executados BB, Unipessoal, Lda. e CC, vieram, por apenso à execução que lhes move DD, S.A., deduzir a presente oposição à execução, alegando a falta de protesto e preenchimento abusivo da livrança dada à execução, peticionando a suspensão da execução com fundamento na inexigibilidade da obrigação.
Respondeu a exequente, impugnando os factos alegados pelos embargantes, e concluindo pela improcedência da oposição.
Foi proferido saneador sentença que julgou parcialmente procedente os embargos “decidindo absolver do pedido executivo CC, e determinando o prosseguimento da ação executiva contra a executada BB, Unipessoal, Lda.”
Desta sentença veio o exequente/embargado interpor o presente recurso, na parte em que absolveu do pedido o executado CC, formulando as seguintes conclusões:
1. A sacadora de uma Letra de Câmbio está dispensada de realizar protesto por falta de pagamento, relativamente aos obrigados cambiários diretos, aceitante e avalistas.
2. O disposto no art.º 53º da LULL dispensa a recorrente desse protesto contra o
avalista e executado CC.
3. A Sentença recorrida violou o disposto no art.º 53º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.
4. O Tribunal recorrido fez uma interpretação incorreta da redação do pacto de
preenchimento do título cambiário, (cfr. últimos 2 parágrafos da penúltima página da Sentença e 2 primeiros parágrafos da última página da Sentença) Designadamente quando afirma que a exequente/embargada não inseriu na “Livrança” os dizeres “sem despesas” e/ou “sem protesto” e que sem isso não poderia acionar o avalista sem antes fazer um protesto,
4. A habilitação do exequente/portador da Letra de inscrever nesta tais cláusulas e dizeres, serviam, apenas, para a hipótese de a sacadora (exequente/embargada) pretender acionar outros obrigados cambiários que não o aceitante e respetivos avalistas, designadamente, endossantes e sucessivos posteriores
portadores do título cambiário.
5. Dos factos provados nº 18 a 23 resulta que a exequente/embargada apresentou o título cambiário a pagamento na respetiva data de vencimento.
6. A instância executiva deve prosseguir também contra o executado Vasco.
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, dever ser revogada a Sentença recorrida e substituída por Acórdão que julgue totalmente improcedentes os embargos e determine o prosseguimento da execução também contra o executado CC.
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Também a embargante/executada BB, UNIPESSOAL, LDA, recorre do assim decidido, terminando as alegações com as seguintes conclusões:
1. Porque o tribunal a quo não atendeu ao facto alegado pelos Executados na sua Oposição à Execução: “ o clausulado em tal contrato leonino foi articulado com evidente má-fé e abuso de direito por parte da exequente pretendendo esta não mais que o enriquecimento sem causa à custa do património dos executados”, e deveria tê-lo feito, a aliás Douta Sentença em crise é nula, nessa parte;
2. Também a Embargada não tomou posição perante esse facto alegando apenas
que respeitou o pacto de preenchimento entre as partes acordado, pelo que o mesmo sempre deveria ter sido considerado PROVADO.
3. Consequentemente, e pelo que se expôs, mesmo que assim esse Venerando Tribunal não entenda, pelo menos das Questões a decidir deveria constar o alegado abuso de direito e a má-fé da ora Apelada, com as legais consequências.
Pelo exposto, e sempre com o Douto suprimento de V. Exªs. deve ser o presente Recurso julgado procedente, revogando-se a aliás douta Sentença proferida em 1ª Instância, e em consequência ser a Oposição à Execução julgada procedente, por provada, absolvendo-se do pedido executivo também a executada BB, UNIPESSOAL LDA.
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O executado/recorrido CC contra alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, e a senhora Juíza pronunciou-se pela in verificação da apontada nulidade da sentença.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia.
b) Se ocorreu abuso de direito quanto ao preenchimento da livrança.
c) Falta de protesto e respetivas consequências jurídicas.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
1.1. A matéria de facto considerada pela 1.ª instância, que não foi validamente impugnada e que se mantém, é a seguinte:
1. O Exequente apresentou na execução de que os presentes autos são apensos, uma livrança no valor de 58.375,67 euros, com data de vencimento 19.05.2015;
2. A referida livrança mostra-se subscrita pela executada BB, Unipessoal, Lda., e avalizada pelo executado CC;
3. A livrança foi apresentada a pagamento;
4. A Exequente é uma sociedade comercial anónima por ações que se dedica à atividade de construção de carroçarias e comércio de veículos pesados de passageiros;
5. A primeira executada é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à
atividade de transporte rodoviário de passageiros em autocarro, turismo e viagens e aluguer de Autocarros;
6. Em 12-06-2013, no exercício do seu comércio e a solicitação da primeira Executada, a Exequente vendeu-lhe e aquela adquiriu, um veículo pesados de passageiros de marca Volvo, no estado de usado e com a matrícula …-…-ZN;
7. A venda foi feita pelo preço € 79.950,00, acrescido dos encargos e impostos pelo diferimento do pagamento do preço em prestações no valor de € 24.959,50, tudo no valor global de € 104.909,5 (cento e quatro mil novecentos e nove euros e cinquenta cêntimos), a pagar em 49 prestações, conforme contrato de compra e venda junto aos autos que aqui se dá por reproduzido;
8. A venda do veículo foi feita com reserva de propriedade a favor da Exequente até integral pagamento do preço;
9. A reserva de propriedade sobre o veículo foi definitivamente inscrita no registo automóvel a favor da Exequente;
10. A Executada obrigou-se ao pagamento do preço de venda em 49 prestações:
- 1.ª prestação no valor de € 16.224,22, com vencimento em 15-12-2013;
- 48 prestações mensais e sucessivas no montante de € 1.847,61 cada, com vencimento mensal e sucessivo nos meses compreendidos entre 15-07-2013 e 15-06-2017;
11. Os demais executados afiançaram todas as obrigações contratuais da primeira executada e assumiram-se como fiadores e principais pagadores de todas as obrigações da executada decorrentes do contrato, com renúncia ao benefício de divisão e de excussão prévia;
12. No referido contrato as partes fixaram na cláusula sexta:
2. Em caso de resolução do contrato por incumprimento e acionamento da cláusula de reserva de propriedade e a título de cláusula penal, a Primeira Outorgante, para além do direito à restituição imediata do veículo, fará suas todas as quantias recebidas até essa data, cujas prestações serão perdidas a seu favor, obrigando-se ainda a Segunda e Terceiros Outorgantes, a liquidarem-lhe uma indemnização correspondente a 50% (cinquenta por cento) do valor global do preço do veículo, ou do valor total do prejuízo sofrido pela Primeira Outorgante, com o incumprimento, consoante o que for mais elevado, considerando as partes que em função do uso, desgaste e desvalorização do veículo, que o prejuízo provocado à Primeira Outorgante, corresponde à razão de 25% ao ano ou fração, sobre o valor do preço global inicial, devendo o prejuízo ser calculado até à data da efetiva entrega do veículo.”
13. Também no referido contrato e para garantir o cumprimento pontual e integral de todas as obrigações dele emergentes, os executados aceitaram e avalisaram uma Letra de Câmbio em branco e outorgaram o seguinte pacto de preenchimento (cláusula nona):
“…para garantir o cumprimento pontual e integral de todas as obrigações dele emergentes compreendendo o respetivo capital, juros remuneratórios e de mora, cláusula penal, respetivas comissões, despesas e demais encargos, imposto de selo, incluindo as despesas judiciais e extrajudiciais em que a Primeira Outorgante venha a incorrer para cobrança dos seus créditos, aqui fixadas em € 2.500,00, a Segunda Outorgante aceita e os Terceiros Outorgantes avalizam, uma Letra de Câmbio sacada pela Primeira Outorgante em branco, sem preenchimento de importância/valor, sem preenchimento de datas de emissão e de vencimento e sem preenchimento de local de pagamento, ficando a Primeira Outorgante irrevogavelmente autorizada a proceder ao preenchimento dos espaços que propositadamente estão em branco no referido título, designadamente no que respeita à importância e às datas de emissão e de vencimento, bem como para nele inscrever o local de emissão e de pagamento, ficando desde já habilitada a inserir cláusulas “sem despesas” e/ou “sem protesto", e a apresentá-lo a pagamento, quando considerar oportuno.”;
14. Executada BB, LDA. incumpriu com 9 prestações vencidas nos meses de Setembro a Dezembro de 2014 e Janeiro a Maio de 2015 no montante total de € 18.400,67, a Exequente deu entrada ao Procedimento Cautelar de Apreensão de Veículo Automóvel, ação que com o nº 5151/15.4T8VNG, correu os seus termos na Comarca do Porto, Vila Nova de Gaia, 3ª Secção-J3;
15. Tal processo extinguiu-se por inutilidade superveniente da lide porque a ora
Executada entregou, voluntariamente, à Exequente o autocarro identificado;
16. Autocarro, esse que a mesma exequente vendeu a terceiro, no dia 4 de Agosto de 2015;
17. Estimando-se o valor comercial do mesmo em € 40.000,00;
18. Em razão do incumprimento dos executados a exequente notificou-os por cartas registadas com aviso de receção e interpelou-os com prazo para o pagamento sob pena de resolução do contrato e com apresentação a pagamento da Letra de Câmbio para o primeiro dia útil após a resolução;
19. E na data de 05-05-2015 a Exequente remeteu aos executados uma carta escrita com, nomeadamente, o seguinte teor:
“Ex.mos Srs. Na data de 12-06-2013 V. Exªs outorgaram connosco um contrato de compra e venda com reserva de propriedade do veículo pesado de passageiros de marca VOLVO matricula …-…-ZN, com pagamento do preço em prestações.
Entretanto, na presente data verifica-se um incumprimento do pagamento de oito prestações e encargos, vencidas nos meses de Setembro, Outubro, Novembro, Dezembro de 2014 e Janeiro, Fevereiro, Março, Abril de 2015, no montante total de € 16.532,26, o que representa um valor superior a uma oitava parte do preço total em dívida.
Considerando que não é tolerável a continuação da presente situação de incumprimento, a que acresce o continuado desgaste e desvalorização do veículo vendido com reserva de propriedade com evidente prejuízo nosso, vimos, pela última vez, interpelar-vos para cumprimento.
Assim e nos termos do disposto nas cláusulas quinta, sexta e nona do contrato de compra e venda, ficam V.Exªs interpelados para no prazo de 10 dias, a contar da receção ou depósito postal desta carta, procederem à liquidação do montante total vencido e não pago, no valor de € 16.532,26, (dezasseis mil quinhentos e trinta e dois euros e vinte e seis cêntimos) sob pena de se vencer a totalidade da dívida, de se considerar definitivamente incumprido o contrato de compra e venda e de se considerar o mesmo resolvido por incumprimento culposo da vossa parte.
Uma vez concretizada a resolução do contrato, deverão V.Exªs proceder à entrega imediata do veículo na sede e instalações da EE, S.A. sita na Estrada Nacional …, Km6, …, Vila Nova de Gaia.
Com a efetivação da resolução do contrato ficam V.Exªs obrigados a pagar-nos a indemnização contratual por incumprimento definitivo, fixada nas cláusulas quinta e sexta do contrato de compra e venda, em valor nunca inferior a € 39.975,00, correspondente a metade do preço,
Ficam também desde já notificados de que caso se efetive a resolução do contrato por incumprimento será preenchida a Letra de Câmbio subscrita e aceite em branco, pelo valor da indemnização contratual devida, acrescida dos juros, imposto de selo e encargos de cobrança contratualmente fixados e com data de vencimento no primeiro dia útil seguinte à efetivação da resolução, que será dada à execução para cobrança judicial no dia seguinte ao seu vencimento caso não seja paga…;
20. A executada rececionou a carta em 07-05-2015, cujo aviso de receção se encontra assinado pelo seu gerente e aqui segundo executado;
21. O mesmo segundo executado não atendeu nem reclamou a carta que lhe foi
dirigida a título pessoal como avalista, não obstante ter assinado a carta dirigida à executada, sua representada;
22. O terceiro executado rececionou a carta na data de 06-05-2015;
23. Nos termos da cláusula nona do contrato e em cumprimento do pacto de preenchimento, a exequente procedeu ao preenchimento da Letra de Câmbio subscrita e aceite em branco, pelo valor da indemnização contratual devida, acrescida de juros, imposto de selo e encargos de cobrança contratualmente fixados e com data de vencimento no primeiro dia útil seguinte à efetivação da resolução.
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4. O Direito.
4.1. Nulidade da sentença – omissão de pronúncia (abuso de direito).
A embargante/recorrente BB, UNIPESSOAL, LDA, veio invocar a nulidade da sentença, porque “o tribunal a quo não atendeu ao facto alegado pelos Executados na sua Oposição à Execução: “ o clausulado em tal contrato leonino foi articulado com evidente má-fé e abuso de direito por parte da exequente pretendendo esta não mais que o enriquecimento sem causa à custa do património dos executados”, e deveria tê-lo feito.
E mais refere que a Embargada não tomou posição perante esse facto, alegando apenas que respeitou o pacto de preenchimento entre as partes acordado, pelo que o mesmo sempre deveria ter sido considerado PROVADO.
Entende, pois, que se deveria ter conhecido do “alegado abuso de direito e má-fé da exequente.
Assim, segundo a recorrente, está em causa a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Porém, sem razão, como é apodítico.
Com efeito, de acordo com a 1.ª parte da alínea d), do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil, a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art.º 608.º/2 do C. P. Civil.
E a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Tem sido entendimento pacífico da doutrina e na jurisprudência, que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art.º 615º nº 1, al. d), do CPC. Daí que, se na sua apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Como escreve Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª Edição, pág. 57, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”. E acrescenta, citando Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, pg. 143, que “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Ora, a embargante apenas invocou a violação do pacto de preenchimento e falta de protesto enquanto fundamento dos embargos, como flui expressamente dos termos em que os concluiu.
E estas concretas questões foram devidamente apreciadas na sentença, como facilmente se deteta na sua leitura, nomeadamente quanto ao preenchimento abusivo:
“Seguindo o relatado no acórdão da Relação de Évora de 24.04.2014. in www.
dgsi.pt, “pretendendo a executada defender-se com a exceção de preenchimento abusivo cabia-lhe, no seguimento do disposto no art.º 264º, nº 1 do Código de Processo Civil, alegar e provar em que consistiu tal preenchimento abusivo (neste sentido vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de Dezembro de 2001, acessível na base de dados em www.dgsi.pt.

Provada a autoria do aval pelo opoente, considerando ainda que o avalista é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, não tem razão o embargante.
Verificam-se os requisitos da livrança (cfr. art.º 75.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), sendo a qualificação da obrigação a que o embargado está vinculado na mesma, como aval (cfr. art.ºs 30.º, 31.º e 77.º, da LULL).
No caso concreto, há que verificar se o valor aposto na livrança é o correto por referência ao nº 2 da cláusula 6ª do contrato de compra e venda com reserva de propriedade celebrado entre as Partes.

Ora, no caso concreto, os embargantes não alegaram expressamente qual o valor que deveria constar na livrança.
O Tribunal chegou a um valor mas que não contém a penalização da resolução do contrato, estipulada na cláusula 6ª nº 2 do contrato de compra e venda de viatura automóvel com reserva de propriedade o que daria um valor acima do escrito pelo exequente na livrança (metade do valor inicial da compra e venda).
Termos em que, decido julgar improcedente esta exceção perentória alegada pelos embargantes/executados”.
É certo que a embargante alegou na sua petição de oposição ( art.º 3.º):
Como resulta da análise da exposição dos factos no requerimento executivo, o clausulado em tal contrato leonino, foi articulado com evidente má-fé e abuso de direito por parte da Exequente, pretendendo esta não mais que o enriquecimento sem causa da exequente à custa do património dos executados”.
Todavia não concretizou os factos concretos que permitam concluir pela má-fé e abuso de direito, limitando-se a expor argumentação jurídica, sem invocar o respetivo suporte factual, e se considerou que esse clausulado era passível desse juízo e que a exequente pretendia enriquecer injustamente à sua custa, não devia ter celebrado o mencionado contrato. Se o fez, é porque lhe era também vantajoso e satisfazia os seus interesses.
Portanto, a questão objeto da oposição foi devidamente apreciada, face aos factos apurados, não estando o tribunal a quo vinculado a pronunciar-se sobre todos os argumentos invocados pelo oponente ou tecer outras considerações.
Em todo o caso, ainda que se detetasse a imputada nulidade, este Tribunal não está impedido de apreciar o recurso – art.º 665.º/1 do CPC.
Ora, a verdade é que não se vislumbra, com base nos apurados factos, que a exequente haja procedido com abuso de direito.
Na verdade, como flui do art.º 334.º do C. Civil, apenas será ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ensina Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, 2ª Edição, 2000, Almedina, pág. 249/251, que “a conceção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados á atuação jurídica individual. Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e da boa-fé”. E integra nessa categoria o venire contra factum proprium, que exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 300, acentuam que “a nota típica do abuso de direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.
E ensina o Professor Almeida Costa, ob. cid. Pág. 83, que “ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social”. E acrescenta, “os efeitos do abuso de direito equiparam-se aos da pura falta de direito”.
Para o Professor Vaz Serra [1] : “Há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado”.
Em resumo, para que se verifique abuso de direito é necessário que a pessoa a quem tal direito assiste, em termos formais, nas circunstâncias concretas do seu exercício, o exerça de modo que, face aos valores consagrados na lei, constitua manifesta injustiça.
Ora, não se vê como possa o contrato celebrado pela recorrente constituir abuso de direito e ter sido celebrado de má-fé, visto dele não resultar qualquer evidente injustiça e não ofender o sentimento de justiça dominante na comunidade social, sendo a cláusula penal aí introduzida em caso de incumprimento definitivo por banda da embargante.
Com efeito, as partes acordaram no n.º2 da cláusula sexta que em “caso de resolução do contrato por incumprimento e acionamento da cláusula de reserva de propriedade e a título de cláusula penal, a Primeira Outorgante, para além do direito à restituição imediata do veículo, fará suas todas as quantias recebidas até essa data, cujas prestações serão perdidas a seu favor, obrigando-se ainda a Segunda e Terceiros Outorgantes, a liquidarem-lhe uma indemnização correspondente a 50% (cinquenta por cento) do valor global do preço do veículo, ou do valor total do prejuízo sofrido pela Primeira Outorgante, com o incumprimento, consoante o que for mais elevado, considerando as partes que em função do uso, desgaste e desvalorização do veículo, que o prejuízo provocado à Primeira Outorgante, corresponde à razão de 25% ao ano ou fração, sobre o valor do preço global inicial, devendo o prejuízo ser calculado até à data da efetiva entrega do veículo.”
De acordo com o disposto no n.º2, do art.º 801.º do C. Civil, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.
Em anotação a este preceito legal realçam Pires de Lima e Antunes Varela, in C. C. Anotado, Vol. II, 4.ª Edição, pág. 58, “(…) o credor pode ter tido prejuízos. Em relação a eles há direito à respetiva indemnização. O devedor pode, por ex., não estar em condições de restituir no todo ou em parte, a contraprestação recebida, ou, mesmo que a restitua, pode o credor ter um prejuízo derivado da não realização do contrato. (…) O direito à resolução e à restituição da contraprestação existe, na verdade, independentemente do direito à indemnização. (…) A indemnização a que o credor tem direito, quando opte pela resolução do contrato, refere-se obviamente ao dano de confiança, ou seja, ao interesse contratual negativo, nomeadamente ao lucro que o credor teria tido, se não fora a celebração do contrato resolvido.”
Em consequência da resolução do contrato de compra e venda, com reserva de propriedade do veículo, a embargante assumiu a obrigação de restituir à exequente (vendedora) o veículo, subsistindo a obrigação de pagar as prestações vencidas até à data da resolução, nos termos dos art.ºs 433º e 434º nº 2 do C. Civil.
Na verdade, o incumprimento por parte da compradora/embargante do pagamento do preço em prestações, conforme acordado, permite ao vendedor optar entre resolver o contrato ou exigir o cumprimento dele mediante o pagamento coercitivo, imediato, do valor total dessas prestações, vencidas e vincendas.
Aliás, o direito à resolução do contrato foi acordado pelas partes.
Mas só o incumprimento definitivo, imputável à compradora, confere ao vendedor o direito de resolver o contrato e a indemnização pelos danos sofridos, nos termos dos artigos 432º, nº 1, 799.º/1 e 801º, nº 2, do C. Civil.
E prevê-se no art.º 810.º do C. Civil, que “ as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização: é o que se chama cláusula penal”.
Como ensina Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. II, 2011, pág. 299, o atual art.º 811.º do C. Civil, “parece aproximar-se de uma conceção exclusiva da cláusula penal como liquidated damages clause”, ou seja, tem por finalidade liquidar antecipadamente os danos exigíveis em caso de incumprimento”.
Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 3.ª Edição, Vol. II, pág. 74, referem que “ o principal objetivo da cláusula penal é evitar dúvidas futuras e litígios entre as partes quanto à determinação do montante da indemnização”.
A essa finalidade também se refere Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 12.ª Edição, pág. 799, realçando que “ por via de regra, todo o alcance da cláusula penal consiste em fixar um quantitativo indemnizatório que substitui o que o juiz arbitraria se aquela não existisse”. E acrescenta, “salvo convenção em contrário, é exigível sob os mesmos pressupostos da responsabilidade civil. Apenas com a diferença de que não há que apurar se o credor sofreu prejuízos efetivos e qual o montante destes. Precisamente, a estipulação de uma cláusula penal destina-se a dispensar tais averiguações e, por conseguinte, também a prova do nexo de causalidade entre o facto e quaisquer danos[2] [3].
Ora, não oferece qualquer dúvida, face à factualidade apurada, que a embargante incumpriu definitivamente o contrato, o que aliás nem sequer questiona.
E o incumprimento do contrato, por banda do devedor, torna-o responsável pelo prejuízo que cause ao credor, sendo que este, como se deixou dito, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato – art.ºs 798.º e 801.º/2 do C. Civil.
Portanto, a exequente veio apenas exigir o pagamento do que tem direito, à luz do que as partes acordaram, ou seja, o montante correspondente 50% do valor da venda, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos com o incumprimento (cláusula penal), acrescido das prestações vencidas e despesas de cobrança, como acordado.
Por isso, não configura abuso de direito, por não exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, o exercício do direito de resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade, pelo vendedor, com base no incumprimento definitivo pelo comprador, e consequente liquidação de montante correspondente a 50% do valor da venda do veículo, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos, nos termos da cláusula penal estabelecida, acrescido das prestações vencidas e despesas de cobrança, como acordado – art.ºs 798.º, 801.º/2 e 810.º do C. Civil
E carece de sentido pretender-se, como defende a recorrente, dar-se como provado que a exequente atuou com abuso de direito, pela singela razão de não ter impugnado essa afirmação, ou seja, por confissão, pois como é consabido esta apenas pode incidir sobre factos que lhe são desfavoráveis ( art.º 352.º do C. Civil), não sobre argumentação jurídica.
Improcede, pois, a apelação da recorrente BB, UNIPESSOAL, LDA.
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4.2. Da falta de protesto.
Na decisão recorrida considerou-se relevante o facto de a exequente ter dado à execução a livrança sem ter lavrado o respetivo protesto quanto ao executado CC e, em consequência, absolveu-o do pedido executivo.
Para assim decidir, fundamentou do seguinte modo:
Mas prevê, a cláusula 9ª, a habilitação do exequente/portador da livrança de inscrever nesta as cláusulas “sem despesas” e/ou “sem protesto”, e a apresentá-la a pagamento, quando considerar oportuno.
Estes dizeres não constam da livrança, pelo que o exequente só poderia instaurar a execução contra a aceitante do título executivo.
Donde, existe fundamento para que se afirme ter ocorrido desrespeito do acordo estabelecido quanto ao modo de preenchimento da livrança, o que respeita exclusivamente ao embargante/executado pessoa singular.
Assim se conclui pela verificação da exigência ao embargado/exequente de lavrar a falta de protesto pelo não pagamento da livrança antes de instaurar a execução contra o avalista do aceitante, devendo ser este (o avalista) embargante/executado absolvido do pedido executivo”.
Dissente a recorrente/exequente, alegando que, enquanto sacadora de uma Letra de Câmbio, está dispensada de realizar protesto por falta de pagamento, relativamente aos obrigados cambiários diretos, aceitante e avalistas, por força do art.º 53º da LULL, e que a circunstância de ficar habilitado a inscrever tais cláusulas e dizeres, serviam, apenas, para a hipótese de a sacadora (exequente/embargada) pretender acionar outros obrigados cambiários que não aqueles, designadamente, endossantes e sucessivos posteriores portadores do título cambiário.
Vejamos, pois, de que lado está a razão, adiantando-se liminarmente pertencer à recorrente.
Estabelece o art.º 10.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças - L.U.L.L (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem outra denominação de origem), aplicável às livranças, por força do seu art.º 77.º, que “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”
Para haver uma letra em branco, a assinatura que dela constar deve ter sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária ( Prof. José G. Pinto Coelho, in “Lições de Direito Comercial, 2.º Volume, As Letras”, Fasc. II, pág. 28 e segs).
E mais refere, a pág. 38, “é manifesto que, se o título foi preenchido por aquele a quem o subscritor o entregou , e com inobservância das cláusulas acordadas, a este pode o subscritor opor as exceções baseadas no abusivo preenchimento, ou nessa observância.
Quando se fala, pois, de acordos de preenchimento, tanto se considera os acordos expressos ou diretos como os tácitos ou indiretos. Pode mesmo dizer-se que, em regra, o acordo será tácito, definindo-se o seu conteúdo pelos próprios termos da relação fundamental, subjacente”.
O contrato de preenchimento mais não é do que o acordar os termos da relação cambiária, a fixação do seu montante, o tempo de vencimento, e a estipulação dos juros, além de outros elementos, o que o avalista só pode questionar se, ao subscrevê-lo, tiver condicionado a esses termos a prestação da sua garantia – cf. Ac. do S. T. J., de 22/2/2011, relatado pelo Exm.º Conselheiro Sebastião Póvoas, Proc. n.º 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1.
No contrato de preenchimento, as partes estabelecem os termos em que a letra de câmbio deve ser completada, nomeadamente o seu montante, a data de vencimento e juros devidos, visto que, como sucede, em regra, no momento da sua subscrição a dívida não se mostra apurada ou vencida. Vencida e não cumprida a obrigação causal é preenchida a letra, a qual deverá ser paga na data do vencimento. Mas sendo a letra entregue em branco ao beneficiário e com as assinaturas dos seus subscritores (sacador, sacado, avalista) para em momento posterior a preencher, fica com a obrigação de o fazer nos precisos termos acordados, ou seja, estabelecer a quantia efetivamente em dívida e o respetivo prazo de pagamento.
Como refere Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”, 5.ª Edição, pág. 82, “O contrato de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, a sede de pagamento, a estipulação de juros, etc.”
O mesmo é dizer que a relação cambiária tem sempre subjacente uma relação fundamental ou causal, embora dela se autonomize.
Porém, a obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado, mantendo-se mesmo no caso da obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma – art.º 32º da L.U.L.L.
Mas essa circunstância não obsta a que estando a letra no âmbito das relações imediatas o avalista possa defender-se contra o sacador, invocando o preenchimento abusivo, ficando a seu cargo essa prova.
Neste sentido se pronunciou o Acórdão do STJ, de 28/9/2017 (Tomé Gomes), in dgsi.pt: “Já no domínio das relações imediatas, é lícito ao signatário cambiário invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, nomeadamente a violação do pacto de preenchimento, recaindo sobre ele o respetivo ónus de prova, nos termos conjugados dos arts. 342.º, n.º 2, e 378.º do CC e artigos 10.º e 17.º da LULL a contrario sensu”.
É que nas relações imediatas não funciona as características da obrigação cambiária – literalidade e abstração.
Esta regra vale para o aceitante ou subscritor da livrança, assim como para o avalista, perante o sacador, desde que tenha tido intervenção no acordo de preenchimento.
O regime supra enunciado é, como se disse, aplicável às livranças, por força da remissão contida no art.º 77.º.
Assim, tendo em conta os factos assentes em 12, 13, 18, 19 e 23, não se vislumbra que o preenchimento da livrança tenha sido abusivo, por contrário ao acordo de preenchimento, já que as quantias nela inscrita estava efetivamente por pagar à data do seu preenchimento e foi completada em conformidade com o acordado.
E competia aos embargantes o ónus da prova dos factos constitutivos dessa exceção, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil.
E quanto à falta de protesto, a jurisprudência tem vindo a decidir uniformemente, acompanhada pela maioria da doutrina, que no caso do aval prestado ao subscritor de livrança, não é necessário a formalização do protesto, por falta de pagamento, para acionar o avalista, porque este responde no lugar do subscritor, não tem a posição equivalente ao sacador, endossantes e outros coobrigados a que alude o art.º 53.º da LULL, já que estes são meros obrigados de regresso, responsáveis entre si, nos termos do art.º 516 do C. Civil, enquanto o avalista é um obrigado direto, que fica sub-rogado nos direitos do subscritor (art.º 32.º e 77.º da LULL).
Na realidade, de acordo com o disposto no art.º 53.º da LULL, o portador perde os seus direitos de ação contra o sacador e contra outros coobrigados, mas não contra o aceitante.
E assim sendo, entende-se que o art.º 32.º da LULL limita o âmbito de aplicação do artº 53.º, excluindo o avalista do aceitante do ato de protesto, pois se este responde nos mesmos termos da pessoa que avalizou não se pode exigir ao portador da livrança a prática de atos que a lei dispensa, no caso o protesto.
Neste sentido, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/02/2013, proferido no proc. n.º 9778/11.5TBOER-A.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, citando vasta jurisprudência e doutrina, reproduzindo-se a seguinte passagem:
“Neste sentido, vai também a jurisprudência ao que se crê unânime (…)
Assim, e apenas por exemplo, o Ac. do STJ de 30/09/2003 (03A2113):
[…] Como está demonstrado o embargante deu o seu aval à subscritora da livrança ora em execução, respondendo por isso, da mesma forma que a pessoa afiançada (art. 77 e 32 da LU).
Por sua vez, o subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (art. 78 da LU) o que significa que é o devedor principal e não uma obrigação de regresso.
Portanto, o avalista, respondendo nos mesmos termos que o subscritor, também não é um obrigado de regresso.
Assim, embora a lei imponha ao portador o dever de apresentar o título a pagamento e ao protesto por falta de pagamento, sob pena de caducidade dos seus direitos contra as garantes, essa caducidade não se aplica ao aceitante (devedor principal, em relação ao qual o portador tem, não ação de regresso, mas ação direta), como expressamente declara o art. 53 da LU.
E assim, se é dispensada a apresentação a pagamento e o protesto quanto ao subscritor de uma livrança, equiparado ao aceitante, da mesma forma é dispensada aquela apresentação e protesto em relação ao avalista do subscritor, visto que responde nos mesmos termos que ele.
É, pois, irrelevante a falta de apresentação a pagamento ou a protesto, no caso concreto.”
O Ac. do STJ de 14/01/2010 (960/07.0TBMTA-A.L1.S1 – só sumário):
“I - O portador de uma letra pagável em dia fixo deve apresentá-la a pagamento no dia em que ela é pagável ou num dos dois dias úteis seguintes (art. 38.º da LULL), sendo que se não a apresentar, tratando-se duma letra com a cláusula «sem despesas», perde o direito de regresso contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros coobrigados, à exceção do aceitante.
II - Assim, uma letra ou tem a cláusula «sem despesas» ou não tem: se não tem, impõe-se o protesto; se tem, releva a apresentação a pagamento.
III - A este regime escapa a ação contra o aceitante ou contra o subscritor, na medida em que este último é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (art. 78.º da LULL).
IV - Uma vez que, nos termos do art. 32.º da LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, a falta de apresentação a pagamento ou a falta de protesto não beliscam a relação cambiária entre o portador e o avalista, quer do aceitante –nas letras –, quer do subscritor – nas livranças.”
Ac. do STJ de 01/10/2009 (381/09.0YFLSB):
“Mas há ainda outro argumento, e decisivo, no sentido de que a falta de apresentação a pagamento de uma letra ou livrança não acarreta para o portador a perda do seu direito de ação contra o aceitante, que é o facto de o art. 53 da LULL excetuar do regime de perda dos direitos de ação do portador do título, mesmo tratando-se de letras à vista ou no caso da cláusula «sem despesas», os direitos contra o aceitante, como salientava o insigne Prof. Gabriel Pinto Coelho (7).
Neste sentido, pode ver-se, v. g., o Acórdão da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 2004, onde se sentenciou no sentido de que «a falta de apresentação a pagamento da livrança não implica a perda dos direitos do portador em relação ao aceitante e, nessa medida, também em relação ao avalista deste» ( Col. Jur. 2004, V, pg. 193) e outro, da mesma Relação, de 2 de Julho de 1992 ( Col. Jur. 1992, III, 300).”
Ac. do STJ de 29/10/2009 (2366/07.2TBBRR-A.S1):
“1. A falta de apresentação a pagamento de uma livrança apenas tem como consequência inutilizar o direito de regresso, mas não determina a decadência («decadenza») dos direitos contra o devedor principal – o emitente – ou o seu avalista.
2. A livrança, mesmo que não apresentada a pagamento na data respetiva, não perde a qualidade de título cambiário exequível contra o emitente e seus avalistas.” fim de citação.
No mesmo sentido se pronunciaram:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/06/2011, proc. n.º 2605/08.2TBVFX-A.L1-7, em cujo sumário se lê: “Sendo o avalista de uma letra responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, ao aceitante deve ser equiparado, aquele que em seu favor presta aval, pelo que em relação a este é de dispensar também o protesto da letra”;
- Acórdão do STJ de 8/2/1999, proc. n.º 99A662: “O protesto por falta de pagamento de uma letra, de uma livrança, não é necessário para acionar o avalista do acidente ou do subscritor, por força do disposto no artigo 77 da LULL”;
- Acórdão do STJ de 23/01/1996, proc. n.º087669: “O dador de aval ao subscritor de uma livrança que este não pagou é responsável pelo pagamento, independentemente de protesto”.
- Acórdão do STJ de 3/05/1990, proc. n.º 078521: “Sendo dispensado o protesto da livrança em relação ao aceitante ( artigo 53 da Lei Uniforme de Letras e Livranças ), também não e de exigir quanto ao avalista porque este e responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada ( artigo 32 da Lei Uniforme de Letras e Livranças )”.
Esta orientação é também dominante na nossa doutrina, citando-se, a título de exemplo, J. G. Pinto Coelho, Abel Pereira Delgado e Oliveira Ascensão.
Perfilhando este entendimento, J. G. Pinto Coelho, “Lições de Direito Comercial”, 2.º Volume, Fascículo V, As Letras, 2.ª Parte, 1946, pág. 24, escreve que “considerando o fundamento do protesto, somos ainda levados a reconhecer que ao aceitante deve equiparar-se o seu avalista, e que, se o portador não precisa de protestar a letra para acionar o aceitante, tão pouco terá que o fazer para acionar o avalista deste”.
E acrescenta, “A sua assinatura não tem outro fim, como já acentuámos, que não seja caucionar a obrigação do avalizado. Não é uma responsabilidade secundária, derivada da ordem de pagamento, como a do sacador, ou endossante, mas uma responsabilidade primária; não se justifica, pois, que se condicione à formalidade do protesto” ( nosso sublinhado).
Posição também defendida por Abel Pereira Delgado, ob. cit., págs. 162, sublinhando que o avalista do aceitante e o aceitante ocupam o mesmo degrau na escala de responsáveis, sendo lícito designar o avalista do aceitante como co aceitante, sendo a sua posição diferente dos outros garantes.
E, por isso, considera ser “desnecessário o protesto para acionar o avalista do aceitante, pois é responsável da mesma maneira que o aceitante e este continua a ser responsável, embora a letra não tenha sido protestada por falta de pagamento” - pág. 197/198.
Assim também ensina Oliveira Ascensão, “Direito Comercial”, Vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa 1992, pág. 204, justificando que “o avalista toma uma responsabilidade direta: não é aceitante, mas responde no lugar do aceitante. Não tem uma expectativa de que o protesto seja realizado, porque a sua obrigação envolve tudo a1quilo de que o aceitante podia responder. A declaração formal de que não houve pagamento é neste caso irrelevante.”
Idêntico entendimento é partilhado por Rui Pinto, “Ação Executiva”, AAFDL, 2018, pág. 381, afirmando expressamente: “no caso da cláusula “sem despesas” não constituem condição da execução dos direitos do portador de livrança, contra o avalista o protesto prévio por falta de pagamento ou a apresentação a pagamento”.
Resumindo, tem vindo a ser decidido unanimemente pela jurisprudência, com apoio na doutrina mais representativa, no sentido da desnecessidade do protesto por falta de pagamento para se poder acionar o avalista do aceitante de letra de câmbio ou subscritor de livrança.
E não se descortinam razões ou argumentos que justifiquem alterar essa interpretação.
Decorrentemente, a sentença recorrida não poderá ser mantida, visto ter decidido em sentido oposto.
Procede, pois, a apelação.
Vencidos na apelação, suportará a recorrente e recorrido as custas respetivas, assim como as devidas na 1.ª instância – Art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. Compete ao oponente/subscritor, assim como ao seu avalista, no âmbito das relações imediatas, o ónus da prova quanto ao preenchimento abusivo da livrança, por se tratar de um facto impeditivo do direito de crédito invocado pelo exequente, nos termos do n.º2 do art.º 342.º do C. Civil.
2. No caso do aval prestado ao subscritor de livrança, não é necessário a formalização do protesto, por falta de pagamento, para acionar o avalista, porque este responde no lugar do subscritor, não tem a posição equivalente ao sacador, endossantes e outros coobrigados a que alude o art.º 53.º da LULL, já que estes são meros obrigados de regresso, responsáveis entre si, nos termos do art.º 516 do C. Civil, enquanto o avalista é um obrigado direto, que fica sub-rogado nos direitos do subscritor (art.º 32.º e 77.º da LULL).
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação interposta pela embargante/executada BB, UNIPESSOAL, LDA, e julgar procedente o recurso interposto pela exequente DD, S.A. e, em consequência, revogam a sentença recorrida na parte em que absolveu do pedido executivo o executado CC, determinando o prosseguimento da ação executiva contra este e a executada BB, Unipessoal, Lda.
Custas da apelação interposta pela embargante BB, UNIPESSOAL, LDA, a cargo desta.
Custas da apelação interposta pela exequente DD, S.A., a cargo do executado CC, porque vencido.
Custas devidas na 1.ª instância a cargo dos embargantes/executados BB, UNIPESSOAL, LDA e CC.

Évora, 20/12/2018
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência 111ª, p. 296.
[2] No mesmo sentido o Acórdão do STJ de 12/1/2006 ( Moitinho de Almeida) Processo n.º 05B3664.
[3] Em sentido contrário, ou seja, da necessidade da existência de dano para fazer funcionar a cláusula penal, se pronuncia Carlos Alberto Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª Edição, pág. 592, referindo que “uma vez que esta cláusula se destina a liquidar o dano, a fixar o quantum respondeatur, naturalmente que o devedor só terá de pagar a soma preestabelecida caso seja responsável, o que não sucede provando ele a sua falta de culpa. Assim como a mesma não será devida provando o devedor a inexistência de qualquer dano: a falta deste retira toda e qualquer base à sua liquidação anterior”.
E adianta, em nota de rodapé, “o caráter de liquidação forfaitaire impede qualquer pretensão ulterior em ordem a ajustar ou a fazer coincidir o montante indemnizatório predeterminado com o prejuízo real. Mas isso só significa, convém frisá-lo, que ficam arredadas, com a estipulação da cláusula, discussões posteriores sobre a extensão do dano efetivo – não, porém, sobre a existência do dano, base e pressuposto da liquidação operada”.