Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
127/16.7GCPTM.E2
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: DIREITO DE DEFESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ROL DE TESTEMUNHAS
PRAZO DA CONTESTAÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
IRREGULARIDADE
ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário: I – O direito de defesa do arguido não é incompatível com regras processuais com vista a agilizar o fim último de processo, que é o julgamento, que deve ser realizado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art.º 32 n.º 2 da CRP), o que supõe uma harmonização entre o direito de defesa do arguido – que será sempre acautelado com a admissão de todos os meios de prova que se revelem essenciais para a descoberta da verdade – e o julgamento, a realizar no mais curto prazo possível, tanto mais tratando-se de processo urgente, em que o arguido está detido;
II – Por isso, tendo o arguido arrolado 37 testemunhas para serem ouvidas na audiência de julgamento, mas não enunciando os factos sobre os quais as testemunhas iriam depor e o motivo pelo qual tinham conhecimento direto dos factos, não estando em causa nenhuma dos crimes enunciados no n.º 3 do artigo 283.º do CPP, nem se tratando de processo de especial complexidade, o tribunal apenas se encontrava vinculado a ouvir 20 dessas testemunhas;
III – Viola o exercício do direito de defesa do arguido, assim como o princípio do contraditório, o iniciar-se o julgamento numa altura em que estava em curso o prazo para (o arguido/demandado) contestar os pedidos de indemnização civil, obstando a que o arguido, no prazo legal, apresentasse contestação antes da produção da prova dos factos que lhe eram imputados e que suportavam também os pedidos de indemnização civil;
IV – O início do julgamento nestas circunstâncias viola também o disposto no art.º 78 n.º 1 do CPP e 32 n.ºs 1 e 5 da CRP, violação que, não sendo cominada como nulidade em qualquer norma legal, integra uma irregularidade, ex vi art.º 118 n.º 2 do CPP, que deve ser arguida pelos interessados, estando presentes, no próprio ato, nos termos do art.º 123 n.º 1 do CPP, sob pena de se ter como sanada;
V – Tendo o arguido invocado a referida irregularidade no inicio da audiência de julgamento, porque relevante para a decisão da causa, violadora do direito de defesa do arguido - e da norma processual que estabelece o prazo de vinte dias para contestar o pedido (antes da produção de prova) – porque afeta o valor do ato praticado - o julgamento – determina a sua invalidade e todos os termos subsequentes do processo por ela afetados.
Decisão Texto Integral: Proc. 127/16.7GCPTM.E2

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central de Portimão, J3, correu termos o Proc. Comum Coletivo n.º 127/16.7GCPTM, no qual foi julgado o arguido BB - filho de (…), atualmente em prisão preventiva - pela prática, em autoria material e em concurso real, de seis crimes de incêndio florestal, sendo um deles agravado, p. e p. pelos artigos 14, 26, 30 n.º 1 e 274 n.ºs 1 e 2 al.ª a) todos do Código Penal.
E foram deduzidos os seguintes pedidos de indemnização civil:
1) Pelo Ministério Público, em representação do Estado, a fls. 963 e seguintes, que pediu a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 2.457.762,21, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento;
2) Pelo Município de EE, a fol.ªs 1353 e seguintes, que pediu a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 22.658,95, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento;
3) Por CC, a fol.ªs 1395, que pediu a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 4.990,00;
4) Por DD que pediu a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 5.150,00.
A final veio a decidir-se:
1) Quanto à matéria crime:
- Absolver o arguido BB, pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, em concurso real, de cinco crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo artigo 274 n.º 1 do Código Penal;
- Condenar o arguido BB, pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de incêndio florestal agravado, p. e p. pelo artigo 274 n.ºs 1 e n.º 2 al.ª a) do Código Penal, na pena de nove anos de prisão;
2) Quanto aos pedidos de indemnização civil:
- Julgar totalmente procedentes os pedidos de indemnização civil formulados pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, e pelo Município de EE e, em consequência, condenar o demandado BB, em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos (483 e seguintes do Código Civil, ex vi artigo 129 do Código Penal), no pagamento dos montantes de € 2.457.762,21 e de € 22.658,95, respetivamente, a título de danos patrimoniais, acrescidos juros, à taxa de 4%, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
- Julgar parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civil formulados por CC e DD e, em consequência, condenar o demandado BB, em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos (483 e seguintes do Código Civil, ex vi artigo 129 do Código Penal), no pagamento dos montantes de € 2.500,00 e de € 1.200,00, respetivamente, a título de danos patrimoniais, absolvendo-se o demandando do demais contra si peticionado.
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2. Recorreu o arguido desse acórdão, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
(…)

180 - Entende o aqui recorrente que foram violadas ou mal interpretadas as seguintes disposições legais: artigos 40, 50, 71, 72, 129 e n.ºs 1 e 2 alínea a) do artigo 272, todos do Código Penal, 61, 71, 118, 120, 122, 123, 315, 340 e 374, todos os Código de Processo Penal, n.º 1 do artigo 483, 499, 564, 566 e 805, todos os Código Civil, 130 do Código de Processo Civil, 18, 20, 29 e 32, todos da Constituição da República Portuguesa, e 6 da CEDH, e o tribunal a quo violou os seguintes princípios, deveres e direitos:
- Princípio in dubio pro reo;

- Princípio da legalidade;

- Princípio do contraditório;

- Garantias de defesa;

- Direito a uma defesa efetiva e plena;

- Direito a intervir no processo;

- Direito a ter um juiz que ouve as razões das partes;

- Direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

181 - Assim, atenta a matéria constante dos autos e, ainda, toda a demais prova carreada, com especial relevo para a produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, entende o aqui recorrente que deverá ser proferido acórdão que o absolva da prática do crime pelo qual foi condenado.

182 - Caso assim se não entenda, ao arrepio de tudo o supra exposto e da verdade material, deverá ser reavaliada a pena aplicada, limitando-a à culpa do agente, com aplicação de pena de prisão muito próxima dos seus limites mínimos, suspensa na sua execução.

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3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
(…)

11 - O tribunal a quo interpretou e apreciou bem a prova, com senso e ponderação, segundo as regras da experiência comum e da normalidade das circunstâncias, concluindo por imputar ao arguido/recorrente a prática do crime de incêndio agravado, formulando um juízo de certeza, cujo processo lógico a que chegou devidamente fundamentou.
12 - Concluiu acertadamente pelo preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do artigo 274 n.ºs 1 e 2 al.ª a) do Código Penal, condenando o arguido, pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de incêndio florestal agravado, na pena de 09 (nove) anos de prisão.
13 – O acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal, pelo que deverá negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.
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4. Foram interpostos outros recursos pelo arguido, que subiram com o interposto da decisão final:
(…)

4.2. Do despacho de 8.01.2018, de fol.ª 2116 (que apenas admitiu o rol de testemunhas apresentado pelo arguido no que concerne às primeiras vinte testemunhas, indeferindo-o quanto às demais apresentadas).
4.2.1. Recorreu o arguido desse despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões (fol.ªs 2300 e seguintes):
1 - Em sede de contestação o arguido arrolou 37 testemunhas; após identificar a 20.ª, disse: “por se afigurar relevante para a descoberta da verdade material, requer-se que seja ultrapassado o limite previsto no n.º 3 al.ª d) do artigo 283, nos termos do previsto no n.º 7 do supra citado artigo e diploma legal”.
2 - As testemunhas indicadas de 21 a 37 são as testemunhas apresentadas pela acusação.
3 - A fundamentação apresentada é, assim, inexistente.
4 - O processo conhece os factos sobre os quais as testemunhas têm conhecimento direto, repetir os factos seria apenas encher o processo, repetir atos.
5 - São testemunhas que estiveram no local e presenciaram os factos, como é do conhecimento do tribunal.
6 - Aliás, da identificação das testemunhas em sede de rol junto com a contestação consta a referência à página do processo em que estão indicadas.
7 - Inexistindo fundamentação, o despacho deverá ser revogado e substituído por outro, com todas as consequências legais.
8 - Com aquele despacho o arguido ficou limitado na inquirição, violando-se o disposto no art.º 283 n.ºs 3 e 7 do CPP e desatendendo os direitos fundamentais do arguido.
9 - A não existir tal limitação o desfecho do processo poderia ser outro.
10 - Ao rejeitar parte do rol de testemunhas indicado pelo arguido na contestação coartou-lhe o exercício de um direito, sem que tal seja legítimo ou legal.
11 - A rejeição constitui um vício processual, cominado como nulidade, porque, nos termos da al.ª d) do n.º 2 do art.º 120 do CPP, derroga e omite a realização de diligências – inquirição de testemunhas – essenciais à descoberta da verdade material, diligências que constituem ainda um direito constitucional do arguido a oferecer e a requerer provas.
12 - Entendimento distinto colidirá com os princípios da presunção de inocência e do contraditório (art.º 32 n.ºs 1, 2 e 5 da CRP).
13 - Do despacho em referência resultam violados ou mal interpretados os artigos 283, 118, 120 e 122 do Código de Processo Penal, 18 e 32 da Constituição da República Portuguesa e os princípios da presunção de inocência e do contraditório.
14 - Assim, deverá, nos termos do art.º 120 n.º 2 al.ª d), in fine, do CPP, declarar-se nula a decisão proferida e, consequentemente, inválidos todos os atos subsequentes, incluindo o julgamento.

15 - Deve o presente recurso ser considerado procedente, por provado, e ser declarado o vício invocado, com todas as consequências e para todos os efeitos legais.

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4.2.2. Respondeu o Ministério Público a esse recurso, concluindo a sua resposta nos seguintes termos (fol.ªs 2951 e seguintes):
1 - No que respeita ao objeto e finalidades do processo penal, é manifesta uma tensão entre a necessidade de realizar a justiça criminal e de garantir aos suspeitos da prática de crimes efetivas garantias de defesa consentâneas com a total possibilidade de prova da inocência ou de instalar a dúvida sobre a culpabilidade.
2 - O exercício do direito de defesa será sempre acautelado com a solução legal que admita a produção dos meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, sem que isso represente qualquer compressão inadmissível à luz da Constituição.
3 - A contestação e o rol de testemunhas constituem os meios processuais através dos quais o arguido exerce, em primeira linha, o seu direito de defesa face à acusação contra si deduzida (ou despacho de pronúncia), tendo em vista a audiência.
4 - O arguido, tal como o Ministério Público, na acusação pode arrolar vinte testemunhas; apenas é possível ultrapassar esse limite quando necessário para a descoberta da verdade material, nos termos do art.º 287 n.º 3 do CPP, enunciando-se no respetivo requerimento os factos sobre os quais as testemunhas irão depor e o motivo pelo qual têm conhecimento direto dos mesmos.
5 - Qualquer pedido de produção de prova ou exame de meios de prova e de meios de obtenção de prova deve ser acompanhado da respetiva justificação, isto é, do facto que se pretende provar, para efeitos do art.º 340 n.º 4 do CPP.
6 - A omissão de diligências probatórias que podiam/deviam ser ordenadas oficiosamente ou a requerimento pelo tribunal constitui nulidade sanável, prevista no art.º 120 n.º 2 al.ª d) do CPP, que pode ser invocada em sede de recurso, ou uma irregularidade, a ser arguida nos termos do art.º 123 do CPP, conforme se trate de diligência essencial ou simplesmente necessária à descoberta da verdade.
7 - Não enunciado os factos sobre os quais as testemunhas arroladas na posição 21 a 37 do rol de testemunhas iriam depor, bem como o motivo pelo qual tinham conhecimento direto dos mesmos, o arguido impediu o tribunal de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade.
8 - Ao admitir o rol de testemunhas apresentado pelo arguido apenas no que concerne às primeiras 20 testemunhas, indeferindo quanto às demais testemunhas apresentadas, o despacho recorrido não incorreu em qualquer nulidade – designadamente, a prevista na al.ª d) do n.º 2 do art.º 120 do CPP – nem retirou ao arguido a possibilidade de se defender com toda a amplitude que a lei lhe concede.
9 - O despacho recorrido não violou qualquer disposição legal, pelo que deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se tal despacho.
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4.3. Do despacho de 15.01.2018, de fol.ªs 2135 e seguintes (sessão de 15.01.2018), que decidiu considerar sanada a irregularidade resultante da realização da audiência de julgamento no dia 15.01.2018, numa data em que ainda decorria o prazo para contestar e arrolar testemunhas relativamente a dois dos pedidos civis.
4.3.1. Recorreu o arguido desse despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões (fol.ªs 2391 e seguintes):

1 - O presente recurso visa sindicar o despacho constante da ata de audiência de discussão e julgamento (1.ª sessão – 15 de janeiro de 2018), Referência 108139301.

2 - Com tal despacho não pode o aqui recorrente conformar-se, por a audiência de discussão e julgamento se ter iniciado antes de terminado o prazo para contestar e arrolar testemunhas relativamente a dois pedidos de indemnização deduzidos nos autos.

3 - Decorre dos princípios gerais de processo penal que a contestação é apresentada antes do início do julgamento e com vista ao julgamento.

4 - A contestação, ainda que de uso facultativo, releva ao nível da organização da defesa do arguido e do próprio julgamento.

5 - É conhecido por todos e, por isso, elementar, o direito conferido ao arguido de contestar e arrolar testemunhas.

6 - Tal respeita o princípio do contraditório e as demais garantias de defesa – artigo 32 n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

7 - Ora, assim, o agendamento da audiência de discussão e julgamento antes do fim do prazo para a apresentação de contestação e rol de testemunhas configura ilegalidade, ilegalidade prevista no artigo 118 do Código de Processo Penal, cominada na lei como irregularidade – artigo 123 n.º 1 do Código de Processo Penal.

8 - No início da audiência tal vício processual foi invocado, arguição deu origem ao despacho de que ora se recorre. Mal… entende o arguido… isto porque o que se vem entendendo é que se a audiência começar antes de decorrido o prazo de contestação se estará perante o cometimento de uma irregularidade, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 123 do Código de Processo Penal, irregularidade essa que deve ser invocada em sede de julgamento, sob pena de sanação (ao invés do que resulta do despacho que aqui se pretende sindicar) - vide acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 25 de outubro de 1995, no Processo nº. 9540045.

9 - Entendimento distinto colide com as mais elementares garantias de defesa que o processo deve assegurar – n.º 1 do artigo 32 da Constituição da República Portuguesa.

10 - Nas garantias de defesa deverão englobar-se todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar todos os factos que lhe são imputados (direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as formas de tratamento arbitrárias).

11 - Entendimento distinto colide diretamente com o princípio do contraditório – n.º 5 do artigo 32 da Lei Fundamental (vide entendimento do Tribunal Constitucional, acerca do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório, segundo a qual todos os intervenientes no processo devem exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo), proibição de indefesa e direito ao contraditório, traduzido essencialmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar a produção das provas e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras.

12 - Assim, deverá o despacho proferido ser revogado, declarando-se a irregularidade arguida e inválidos todos os atos subsequentes, incluindo o julgamento.

13 - Do despacho em referência resultam violados ou mal interpretados os artigos 118 e 123 do Código de Processo Penal, 18 e 32 da Constituição da República Portuguesa e o princípio do contraditório.

15 - Termos em que deverá o presente recurso ser considerado procedente, por provado, e ser declarado o vício invocado, com todas as consequências e para todos os efeitos legais.
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4.3.2. Respondeu o Ministério Público a esse recurso, concluindo a sua resposta nos seguintes termos (fol.ªs 3016 e seguintes):
1 - O processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos atos, não sendo admitida a prática de atos que a lei não permita.
2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular, conforme dita o n.º 2 do artigo 118 do Código de Processo Penal.
3 - Se a irregularidade não for arguida pelos interessados - no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado - o ato produzirá todos os efeitos jurídicos como se fosse perfeito.
4 - Não obstante, a irregularidade pode ser reparada oficiosamente, a todo o tempo que dela se tome conhecimento, quando puder afetar o valor do ato praticado.
5 - Tendo o arguido e a sua ilustre mandatária sido regularmente notificados, no dia 05 de janeiro de 2018, para apresentarem contestação aos pedidos de indemnização civil deduzidos por DD e pelo Município de EE, tal prazo (que corre em férias, por se tratar de processo com arguido privado da liberdade) só terminaria no dia 25 de janeiro de 2018.
6 - A audiência de julgamento teve início no dia 15 de janeiro de 2018, antes de decorrido o prazo de 20 (vinte) dias para contestar e arrolar testemunhas relativamente a esses dois pedidos de indemnização civil deduzidos nos autos.
7 - Tal situação configura uma irregularidade, como resulta do disposto no artigo 118 n º 2 do Código de Processo Penal, já que não se encontra expressamente prevista como nulidade, e foi arguida extemporaneamente pelo recorrente, no dia 15 de janeiro de 2018, aquando do início da audiência de julgamento, pois, como bem se evidencia no douto despacho recorrido, deveria tê-lo sido no prazo de 03 (três) dias seguintes à notificação do despacho que notificava o arguido e a sua mandatária para apresentarem a contestação, ou seja, até ao dia 08 de janeiro de 2018 (data em que já estava fixada a data para a realização da audiência de discussão e julgamento), nos termos do disposto no artigo 123 n.º 1 do Código de Processo Penal.
8 - Não tendo sido arguida no prazo legalmente previsto, ficou sanada a invocada irregularidade da data de audiência de julgamento ocorrer antes de findo o prazo para contestar relativamente a dois dos pedidos de indemnização civil interpostos.
9 - O douto despacho recorrido não violou qualquer disposição constitucional ou criminal nem colide com as mais elementares garantias de defesa que o processo deve assegurar, designadamente, com o princípio do contraditório.
10 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, deverá negar-se provimento ao recurso, confirmando-se o douto despacho recorrido).
(…)

5. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos (fol.ªs 3472 a 3473).
6. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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7. Matéria de facto considerada como provada no acórdão recorrido:
(…)
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10. As conclusões do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art.ºs 402, 403 e 412 n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões que o recorrente pretende submeter à apreciação do tribunal superior, sem perder de vista a natureza do recurso, que não se destina a um novo julgamento sobre o objeto do processo, mas a uma apreciação da decisão recorrida, por forma a corrigir os vícios ou erros de que a mesma enferme.
Como escreve Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 350, elas “são extraordinariamente importantes, exigindo muito cuidado... devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objeto de decisão”.
Não são concisas as conclusões da motivação do recurso, porém, com algum esforço, delas se extraem as seguintes questões colocadas à apreciação deste tribunal:
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A – Quanto aos recursos interlocutórios:
1.ª – (…);
2.ª – Se o indeferimento do rol de testemunhas apresentado pelo arguido na parte em que excede o n.º 20 viola o disposto no art.º 283 n.º 3 al.ª d) do CPP;
3.ª – Se o início da audiência de julgamento numa altura em que não havia terminado o prazo da contestação de dois dos pedidos de indemnização civil enferma de irregularidade;
(…)

10.1. – Recursos interlocutórios (começaremos pelo conhecimento destes, pela ordem cronológica dos despachos recorridos, face à prejudicialidade que do seu conhecimento – a proceder algum deles – resultará quanto ao conhecimento dos subsequentes).
1.ª questão
(…)

2.ª questão
Na contestação o arguido arrolou 37 testemunhas, alegando que – no seu entender – se afigura “relevante e necessário para a descoberta da verdade material… que seja ultrapassado o limite…” legalmente previsto no art.º 283 n.º 3 al.ª d) do CPP.
O tribunal, por decisão de 8.01.2018, decidiu indeferir o rol de testemunhas na parte em que excede o n.º 20, por um lado, porque não foram enunciados os factos concretos sobre os quais as testemunhas irão depor, bem como o motivo pelo qual têm conhecimento direto dos factos, por outro, porque o limite do número de testemunhas previsto no art.º 283 n.º 3 al.ª d) do CPP “apenas pode ser ultrapassado desde que tal se afigure necessário para a descoberta da verdade, designadamente… enunciando-se no respetivo requerimento os factos sobre os quais as testemunhas irão depor e o motivo pelo qual têm conhecimento direto dos factos”.
Pretende o arguido que o despacho não está fundamentado, que o processo conhece os factos sobre os quais as testemunhas têm conhecimento direto.
Ora, por um lado, o despacho é claro quanto às circunstâncias/pressupostos em que o limite do número de testemunhas pode ser ultrapassado, transcrevendo a norma que prevê que esse limite apenas pode ser ultrapassado desde que se verifiquem os pressupostos aí estabelecidos (art.º 283 n.º 7 do CPP), por outro, não estando em causa nenhuma dos crimes aí enunciados e não se tratando de processo de especial complexidade, o arguido não enunciou os factos sobre os quais as testemunhas irão depor e o motivo pelo qual têm conhecimento direto dos factos, sendo certo que o juízo sobre a essencialidade do seu depoimento para a descoberta da verdade material não resulta – não pode resultar – de mera alegação (se assim fosse ficaria sem qualquer efeito prático a 2.ª parte da norma que prevê a ultrapassagem desse limite), devendo ser alegadas as razões donde se infira essa essencialidade, designadamente, as previstas na 2.ª parte daquele preceito.
Não as indicando, a invocada relevância da inquirição dessas testemunhas para a descoberta da verdade – não justificada - não é razão/fundamento bastante para a ultrapassagem do limite do número de testemunhas previsto no art.º 283 n.º 3 al.ª d) do CPP, pelo que a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal, designadamente aquelas cuja violação vem invocada pelo recorrente.
Isto em nada colide com o direito de defesa do arguido, pois que este não é incompatível com regras processuais com vista a agilizar o fim último de processo, que é o julgamento, que deve ser realizado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art.º 32 n.º 2 da CRP), o que supõe uma harmonização entre o direito de defesa do arguido – que será sempre acautelado com a admissão de todos os meios de prova que se revelem essenciais para a descoberta da verdade – e o julgamento, a realizar no mais curto prazo possível, tanto mais tratando-se de processo urgente, em que o arguido está detido.
Improcede, por isso, o recurso.
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3.ª questão
Na sessão da audiência de julgamento que teve lugar em 15.01.2018 (fol.ªs 2135 e seguintes), logo no início da audiência, o arguido requereu o adiamento da audiência de julgamento para se “cumprirem todos os direitos de defesa do arguido” (sic), invocando a irregularidade do julgamento, uma vez que nessa data decorria ainda o prazo para contestação de dois dos pedidos de indemnização civil.
Sobre esse pedido recaiu o despacho de fol.ªs 2137 e 2138, no qual se decidiu:
- que, de facto, nessa data decorria o prazo de contestação dos pedidos de indemnização civil deduzidos por DD e Município de EE, que terminaria em 25.01.2018, uma vez que a Exm.ª mandatária fora notificada em 5.01.2018 e o arguido em 5.01.2018;
- que a marcação do julgamento para data em que decorria tal prazo não configura qualquer nulidade, mas apenas uma irregularidade, ex vi art.º 118 n.º 2 do CPP – como, aliás, o arguido alega - que não foi tempestivamente arguida – no prazo de três dias a contar da data em que teve conhecimento da mesma, ou seja, até 8.01.2018 – e que, por isso, se considera sanada.
Alega o arguido, em recurso, que não pode conformar-se por a audiência de discussão e julgamento se ter iniciado antes de terminado o prazo para contestar e arrolar testemunhas relativamente a dois pedidos de indemnização deduzidos nos autos, que a contestação é apresentada antes do início do julgamento e com vista ao julgamento, que é elementar o direito conferido ao arguido de contestar e arrolar testemunhas.

E tem razão o arguido.
Não está em causa neste recurso a notificação da data para julgamento, que ocorreu em 12.12.2017 (numa altura em que haviam sido deduzidos dois pedidos de indemnização civil e que não haviam sido admitidos, o que apenas veio a acontecer em 22.12.2017) e relativamente à qual não foi suscitada qualquer ilegalidade, sendo certo que – deve dizer-se – temos alguma dificuldade em compreender porque razão o tribunal, apercebendo-se do lapso e admitindo tais pedidos depois de marcada data para julgamento, não reparou tal irregularidade de imediato, podendo fazê-lo, face ao disposto no art.º 123 n.º 2 do CPP, alterando a data marcada para julgamento, de modo a respeitar o prazo que, na sequência da admissão daqueles pedidos, o arguido tinha para os contestar, prazo perentório, que resulta da lei e que o tribunal não pode alterar.
É um direito que ao arguido assiste.
O que está em causa – repete-se - não é a irregularidade resultante da marcação intempestiva da data do julgamento (numa altura em que estavam pendentes dois pedidos de indemnização civil que ainda não tinham sido admitidos), da qual o arguido toma conhecimento com a notificação da admissão daqueles pedidos (em 5.01.2018) e para, no prazo de 20 dias, contestar os mesmos, criando a expetativa – lógica, de acordo com os princípios da confiança e da lealdade - de que aquele prazo (para contestar) iria ser respeitado (doutro modo mal se compreenderia a sua notificação para contestar no prazo de 20 dias, sabendo-se que esse prazo iria para além da data designada para julgamento) e o julgamento não se realizaria; o que está em causa é o início do julgamento numa altura em que estava em curso o prazo para o arguido/demandado contestar os pedidos, obstando a que o arguido, no prazo legal, que então decorria, exercesse o seu direito de defesa, assim violado, assim como o princípio do contraditório, pois que não lhe permitiu apresentar contestação no prazo que a lei lhe concede, antes da produção da prova dos factos que lhe eram imputados e que suportavam também os pedidos de indemnização civil.
O início do julgamento, nestas circunstâncias, violou também o disposto no art.º 78 n.º 1 do CPP e 32 n.ºs 1 e 5 da CRP, violação que, não sendo cominada como nulidade em qualquer norma legal, integra uma irregularidade, ex vi art.º 118 n.º 2 do CPP, que deve ser arguida pelos interessados, estando presentes, no próprio ato, nos termos do art.º 123 n.º 1 do CPP, sob pena de se ter como sanada.
E foi isto o que aconteceu; o arguido invocou-a no início do julgamento, quando teve conhecimento que o mesmo se iria realizar, que não seria adiado e que, em consequência, já não iria dispor do prazo que então decorria para contestar. E este era o momento próprio para a arguir, ex vi art.º 123 n.º 1 do CPP, como também se dá conta no acórdão deste tribunal de 22.09.2015, Proc. 959/13.8TAFAR.E1, in www.dgsi.pt - “o que vem sendo entendido é que se a audiência começar antes de decorrido o prazo de contestação se estará perante o cometimento de uma irregularidade… que deve ser invocada em sede de julgamento…” (sic) – com referência ao acórdão da RP de 25.10.1995, Proc. 9540045, in www.dgsi.pr, e do STP de 28.05.1999.
A existência desta irregularidade (tempestivamente arguida), porque relevante para a decisão da causa, violadora do direito de defesa do arguido - e da norma processual que estabelece o prazo de vinte dias para contestar o pedido (antes da produção de prova) – porque afeta o valor do ato praticado - o julgamento – determina a sua invalidade e todos os termos subsequentes do processo por ela afetados.
De facto – e como se escreveu no citado acórdão deste tribunal, a propósito do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório, fazendo apelo ao entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional (acórdãos n.ºs 118/96 e 1193/96) – “… cada interveniente processual deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras”.
É este direito de defesa que foi vedado ao arguido, ao prosseguir com o julgamento sem respeitar o prazo que então decorria para o arguido poder contestar, violando de modo flagrante – aqui, sim – o princípio do contraditório, da confiança e da lealdade processual.
E nem se diga que o facto do arguido se encontrar detido e se tratar, por isso, de um processo urgente, justificava tal limitação no seu direito de defesa, pois que o princípio constitucional de que todo o arguido deve ser julgado no mais curto prazo (art.º 32 n.º 2 da CRP), está condicionado pelas garantias de defesa do arguido, pois que esse prazo – di-lo aquele preceito – funcionando em benefício do arguido, terá que ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido, não podendo servir, por isso, como justificação para agilizar procedimentos que, em violação das regras processuais, restrinjam os direitos de defesa do arguido.
Procede, por isso este recurso.
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11. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes com compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal:
1) em negar provimento aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido identificados no ponto 10.1., 1.ª e 2.ª questões;
2) em conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido e identificado no ponto 10.1., 3.ª questão, e, em consequência, em declarar a irregularidade da audiência de julgamento que teve lugar em 15.01.2018, com a consequente invalidade de todos os atos subsequentes, que dela dependem necessariamente;
3) em considerar prejudicado, em consequência do decidido, o conhecimento das demais questões suscitadas.
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Custas pelo arguido, no que respeita aos recursos em que decaiu, fixando-se a taxa de justiça a pagar por cada um deles em 3,5UC`s (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 3 e tabela III anexa do RCP).

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado
Évora, 18/10/2018
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma