Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
241/13.0PBSTB.E1
Relator: FILOMENA SOARES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRISÃO EFECTIVA
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: A pena de prisão aplicada por crime de violência doméstica deve ser de execução efetiva, no caso de, e além do mais, o arguido possuir condenação anterior (e recente) pela prática de igual crime.
Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 241/13.0 PBSTB, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, mediante acusação pública, precedendo enxerto cível [por banda do “Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E.”] e sem apresentação de contestação [por parte do arguido/demandado], foi submetido a julgamento o arguido JB(…), e, por sentença proferida e depositada em 27.02.2014, foi decidido:
“(…)
Na parte criminal
Pelo exposto, julgo procedente a acusação e, por consequência:
a) Condeno o arguido JB como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º1, alínea b) e n.º2 do Cód. Penal, na pena de três (3) anos e seis (6) meses de prisão.
a) Aplico ainda ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida JDG, durante o período de três (3) anos e seis (6) meses, nos termos permitidos pelo n.º4 do art. 152.º do Cód. Penal, com base nas razões supra aduzidas a respeito.
b) Mais condeno o arguido no pagamento dos encargos do processo [art.514.º, n.º1 do CPP], fixando-se a taxa de justiça em duas (2) UC – [art. 8.º, n.º9 do RCP e tabela III anexa].
c) Ao abrigo do disposto nos artigos 21.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º112/2009, de 16 de Setembro e 82.º-A, n.º1 do Cód. Proc. Penal, arbitro a favor da ofendida JDG, para compensação dos danos por ela sofridos em consequência da conduta criminosa do arguido, uma quantia no valor de €. 5.000,00, [cinco mil euros], a suportar pelo arguido.
d) Após trânsito:
- Remeta boletim à D.S.I.C. – [cf. art. 5.º, n.ºs 1, al. a) e 3 da Lei n.º57/98, de 18-08];
*
Na parte cível
Pelo exposto e de harmonia com as disposições supra indicadas, julgo procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E. nos termos sobreditos e, por consequência:
a) Condeno o arguido, ora demandado, JB, a pagar-lhe a quantia de €. 112,32 [cento e doze euros e trinta e dois cêntimos], acrescida dos juros contados, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
b) Condeno ainda o demandado no pagamento das custas na acção cível, em taxa fixada em função da condenação – [art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, na redacção dada pela Lei n.º41/2013, de 26 de Junho, aplicável ex vi do art. 523.º do Cód. Proc. Penal].
(…)”.

Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

I- O ora recorrente JB condenado nos presentes autos pela prática como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º1, alínea b) e n.º2 do Cód. Penal, na pena de três (3) anos e seis (6) meses de prisão.
II- Não pode ser dado como provado que existia qualquer relacionamento amoroso entre o ora recorrente e o ofendido, distando 3 anos entre o término do relacionamento amoroso entre ambos e as agressões perpetradas pelo recorrente.
III- Nunca foi mencionado que ambos dividissem as despesas de uma vida em comum.
IV- Não foi dado como provado na audiência de discussão em julgamento que ofendida e recorrente tivessem qualquer relação estável análoga à dos cônjuges.
V- Em suma, os factos constantes do ponto n.º2 da matéria de facto dada como provada e foram incorrectamente julgados, incorrendo a douta decisão no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ao abrigo do artigo 410.º n.º 2 alínea a) do CPP
VI- O ora recorrente deveria ser condenado pela prática de dois crimes de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1 do CP.
VII- O facto de ora recorrente ofendida já não residirem na mesma habitação e de se encontrarem na rua por diversas vezes sem que haja quaisquer agressões ou atritos deveria ser dado como provado para a decisão da causa.
VIII- Tal facto é no entender do recorrente determinante para avaliação da conduta do recorrente posterior à prática do crime
IX- O douto Tribunal não levou em consideração a conduta posterior do recorrente à prática do crime, violando o artigo 50.º n.º 1 do Código Penal.
X- Deverá, não obstante, e caso V/Exas. decidam pela manutenção da condenação do arguido no mesmo tipo legal de crime, ser suspensa a execução da pena de prisão aplicada ao recorrente.
XI- O arguido é socialmente inserido não obstante se encontrar numa situação de desemprego e, não faz uma vida pautada pela criminalidade como atesta o seu registo criminal, sendo que se encontra a frequentar um programa de desabituação do álcool.
Assim se fará a mais lídima
JUSTIÇA”.

Admitido o recurso [cfr. fls. 275], e notificados os devidos sujeitos processuais, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância, respondeu concluindo nos termos seguintes:

a) Não existe qualquer erro na apreciação da prova, particularmente no que concerne ao ponto nº 2 da matéria de facto provada;
b) O próprio recorrente admitiu que viveu em condições análogas às dos cônjuges com a vítima e que esta até 4 meses antes da data em que se realizou a audiência de julgamento partilhou consigo a habitação, tendo a vítima referido que era a titular do contrato de arrendamento e que foi ela quem pagou as rendas;
c) Ainda que assim não fosse, o facto de não dividirem as despesas à data dos factos e de já não manterem o relacionamento conjugal que os uniu não tem como consequência a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
d) O recorrente foi condenado pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo Artº da A fls. 1033 foi decidido não realizar cúmulo jurídico entre a aqui aplicada ao recorrente e aquela º, nº 1, alínea b), por praticado os factos considerados provados na pessoa da mulher com quem viveu em união de facto, estando preenchidos todos os elementos típicos do crime em causa;
e) Resulta das declarações prestadas pela vítima que, depois de dia 15 de Junho 2013 – data da última agressão – passou a viver em casa de uma vizinha e que voltaram a existir conflitos pelo recorrente pelo que o contrário não pode ser considerado provado;
f) Ainda que assim não se entendesse, as circunstâncias em que os factos foram praticados, o facto de o recorrente não admitir a sua prática tendo-o negado frontalmente, o facto de não ter qualquer ocupação profissional persistindo no consumo abusivo de álcool e de já ter sido condenado pela prática de crime de idêntica natureza e contra a mesma pessoa, não permite concluir que nova censura do facto e ameaça de pena de prisão são suficientes para proteger o bem jurídico ofendido nem para dissuadir o recorrente da prática de factos desta natureza.
Face ao exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso.”.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, alegando, em síntese, que “Os factos que deram origem à instauração do presente processo, e que o próprio arguido admite integram, pois, o crime de violência doméstica” e que “bem andou o Tribunal a quo em não suspender a execução da pena concretamente aplicada ao arguido”, concluindo, em consequência, que o recurso interposto não merece provimento, devendo ser mantida nos seus precisos termos a decisão recorrida.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.
Foi realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como claramente decorre do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, importa não olvidar que se o recorrente não retoma nas conclusões da respectiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam das conclusões.
Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes (agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas):
(i) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto dada como provada, nos termos do preceituado no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal;
(ii) - Se a sentença proferida pelo Tribunal a quo padece dos vícios prevenidos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), do mencionado preceito legal;
(iii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no tocante ao crime cujo cometimento deverá ser imputado ao arguido (que, no entendimento do recorrente, na procedência da pretendida alteração da matéria de facto, deve conduzir à imputação ao mesmo de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal);
(iv) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito porquanto a pena imposta (ou a impor) ao arguido deverá ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal.
III

Com vista à apreciação das suscitadas questões, a sentença recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos [que se transcreve apenas na parte pertinente ao conhecimento daquelas questões]:
“(…)
III – FUNDAMENTAÇÃO
a) DE FACTO
Factos Provados
Com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação em especial
1. O arguido vivia em comunhão de mesa e de habitação com a ofendida JDG, com quem partilhou cama e manteve um relacionamento amoroso, durante seis anos.
2. Apesar de já não manterem este relacionamento amoroso desde o ano de 2010, continuavam, como referido, a partilhar a mesma habitação e a dividir as despesas de uma vida em comum.
3. No dia 12 de Fevereiro de 2013, pelas 15h, no interior desta habitação, o arguido desentendeu-se com JDG e atirou-lhe ao chão o computador pessoal que a mesma utilizava. Dirigiu-se-lhe e desferiu-lhe estaladas e socos no rosto, acertando-lhe na zona da boca e do nariz. Agarrou-lhe nas mãos e torceu-lhe os dedos.
4. De seguida, foi buscar um martelo e exibindo este objeto no ar foi na sua direção ao que JDG fugiu de casa e se refugiou em casa de uma vizinha.
5. Em consequência direta e necessária desta atuação do arguido JDG sofreu: Eritema na região zigomática esquerda e dor bilateral à palpação torácica.
6. Tais lesões, determinaram para se curar, um período de sete dias.
7. No dia 15 de Junho de 2013, o arguido entrou nesta residência acompanhado de um amigo, na companhia de quem havia estado e ingerido bebidas de teor alcoólico.
8. Discutiu com JDG e avançou na sua direcção, desferindo-lhe socos no nariz e na boca, determinando a que embatesse com o corpo contra uma parede.
9. Em consequência direta e necessária desta atuação do arguido JDG sofreu: Na face: escoriação na asa do nariz direita, linear, oblíqua para baixo e para a frente, com 1,5 cm de comprimento; edema da pirâmide nasal a nível da metade superior; equimose roxa no lábio superior direito.
10. Tais lesões, determinaram para se curar, um período de cinco dias, sendo os três primeiros com incapacidade para o trabalho.
11. Depois desta data JDG acabou por sair desta habitação.
12. Ao atuar como descrito quis e conseguiu o arguido maltratar a sua ex-companheira, atuando no interior da residência que os dois ainda partilhavam.
13. Para tanto, em duas ocasiões, ofendeu o seu corpo e a sua saúde, atingindo-a e ferindo-a, por esta via, na sua dignidade.
14. O arguido agiu sempre na execução do mesmo propósito, de modo livre, deliberado e consciente, conhecedor da ilicitude das supra descritas condutas.
Do pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar em especial
15. Na sequência da supra referida factualidade empreendida pelo arguido, a ofendida JDG recorreu ao Hospital de São Bernardo, em Setúbal, onde beneficiou da prestação de cuidados de saúde e assistência médica, que importaram despesas para a instituição hospitalar no valor de €.112,32 [cento e doze euros e trinta e dois cêntimos].
Das condições pessoais e económicas do arguido em especial
16. O arguido nasceu a 20-03-1968, e está solteiro.
17. Vive sozinho. Tem duas filhas.
18. Tem a profissão de pedreiro da construção civil, mas está desempregado, beneficiando de um subsídio de desemprego no valor mensal de €. 370,00.
19. Vive em casa arrendada, pagando uma renda mensal no valor de €. 250,00.
20. Suporta a título de despesas correntes com água, luz e gás, em média, a quantia mensal de €. 60,00.
21. Como habilitações literárias, o arguido tem a 3.ª Classe.
22. Encontra-se sujeito a tratamento médico para o desabituar do consumo excessivo de álcool.
23. O arguido regista um antecedente criminal averbado no seu certificado de registo criminal, nos termos seguintes:
● Por sentença datada de 19-12-2012, proferida no âmbito do processo comum singular n.º (….), do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, transitada em julgado em 21-01-2013, por factos cometidos em 07 de Dezembro de 2011, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de se sujeitar a tratamento de desintoxicação alcoólica; demonstrar nos autos, no prazo de 1 mês, que iniciou esse tratamento e comparecer nas consultas de alcoologia e cumprir o que lhe for determinado pela DGRS;
Das condições sócio-económicas da ofendida JDG em especial
24. Está solteira.
25. Vive em casa emprestada.
26. Exerce a actividade de enfermeira, através da qual aufere uma quantia mensal no valor de €. 400,00.

(……….)
IV

Apreciando, agora, a primeira e segunda enunciadas questões [(i) e (ii)], sabido é que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
Assim, impõe-se-lhe (i) a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; impõe-se-lhe (ii) a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. Isto é, impõe-se ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. E, sendo caso, impõe-se-lhe (iii) a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, da peça recursiva em apreço decorre, desde logo, que o recorrente não cumpre os aludidos ónus de especificação a que alude o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.
E não os cumpre porque o seu correcto cumprimento no tocante à especificação dos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” não se basta com a mera, lata e genérica indicação, ou melhor dizendo, invocação a que o recorrente procede “do ponto n. 2 da matéria de facto dada como provada”, sem que, em rigor, se alcance o que pretende porque o que ali se consigna é afinal o que o recorrente parece reclamar. Veja-se: o ponto nº 2. da factualidade dada como provada na sentença recorrida tem o seguinte teor “Apesar de já não manterem este relacionamento amoroso desde o ano de 2010, [sublinhado nosso] continuavam, como referido, a partilhar a mesma habitação e a dividir as despesas de uma vida em comum.” e, no ponto II, das conclusões da peça recursiva alega-se “Não pode ser dado como provado que existia qualquer relacionamento amoroso entre o ora recorrente e o ofendido, distando 3 anos entre o término do relacionamento amoroso entre ambos e as agressões perpetradas pelo recorrente”. Acresce que também é de cerca de três anos o lapso de tempo decorrido entre o termo do relacionamento amoroso entre o recorrente e a ofendida e o das agressões perpetradas por aquele na pessoa desta, como decorre da simples leitura dos factos constantes do mencionado ponto nº 2. e da factualidade constante do ponto nº 3. da sentença recorrida. Por outro, o correcto cumprimento dos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, também não se basta com a invocação daquele ponto de facto sem que se alcance se é do teor daquele ponto de facto in tottum, ou de algum dos segmentos da história de vida que nele se relata e, neste caso, qual ou quais, o fundamento da dissidência do recorrente. E, também não se basta ao correcto cumprimento dos aludidos ónus, designadamente à especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, a dissertação e apreciação por banda do recorrente sobre a prova por declarações e depoimentos produzidos em julgamento na 1ª instância, sem que, em lado algum, se proceda à transcrição, indicação, do conteúdo específico dos meios de prova que, em sua opinião, imporiam decisão diversa. O recorrente não específica nenhuma passagem no sentido de “excerto”, “trecho”, “segmento”, “passo” (v.g. Acórdão de Fixação de Jurisprudência acima citado) das declarações e depoimentos gravados, limitando-se, outrossim, a discorrer, apreciando e interpretando na medida da sua convicção, naturalmente diferente da formada pelo Tribunal a quo, sobre a forma como foi valorada a prova produzida naquela instância.
Da sua peça recursiva afigura-se-nos que o recorrente ainda reclama que deveria ter sido dado como provado pelo Tribunal a quo que “O (…) recorrente ofendida já não residirem na mesma habitação e de se encontrarem na rua por diversas vezes sem que haja quaisquer agressões ou atritos (…)” [cfr. ponto VII das conclusões da peça recursiva]. Repetimos, neste conspecto, mutatis mutandis, o que supra deixamos editado.
Em verdade, em lado algum da sua peça recursiva, o recorrente indica qual a sua decisão de facto alternativa, nem justifica em relação a cada facto alternativo (que ademais, em rigor, não propõe) qual o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, nem o relaciona com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.
Porque assim, porque o recorrente não cumpriu tais ónus de especificação, quer na motivação da peça recursiva, quer em sede de conclusões, não houve lugar a convite ao aperfeiçoamento, nos termos do preceituado no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal - v.g. ainda Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/02, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos -, e não pode este Tribunal ad quem conhecer da impugnação alargada da matéria de facto que se vota, consequentemente, à inconsequência.
Destarte, o que o recorrente pretende e aquilo a que procede, sob o manto de erro de julgamento, é discorrer sobre a forma, a sua, naturalmente divergente da do Tribunal a quo, como a prova produzida na instância foi apreciada ou, melhor dizendo, opor a sua convicção à convicção formada pelo Tribunal a quo, reclamando deste Tribunal ad quem que substitua esta por aquela.
Porém, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, olvida o mesmo o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
De harmonia com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” – cfr. Professor Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211. “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc.
Acresce que, em abono do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o citado artigo 127º, do Código de Processo Penal (e que, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2007, proferido no processo nº 8428/2007-3, disponível em www.dgsi.pté apenas um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de “regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova”, ou seja, o estabelecimento de um sistema legal de prova legal” e que, “não obstante o seu carácter negativo, este princípio pressupõe a adopção de regras ou critérios de valoração da prova” e esta “valoração há-de conceber-se como um actividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.”), o caminho trilhado pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, que o recorrente quer colocar em crise, mostra-se perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável e, nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer. Como constante no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”. Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.
Ora, também nesta vertente, não se vislumbra que o Tribunal a quo haja violado o princípio in dubio pro reo, um vez que pelos motivos expendidos na decisão recorrida a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra o arguido, o que também não ocorre.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal ad quem não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação alargada da matéria de facto por banda do recorrente.
E, porque assim, a alteração da factualidade assente na 1ª instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e (c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe ex officio.
Em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, loc. supra mencionado.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão»”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.
Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício.
Postos estes considerandos, volvendo aos autos, invoca o recorrente o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Porém, invoca-o laborando em manifesta confusão, posto que confunde erro de julgamento (isto é, insuficiência da prova produzida para a factualidade dada como provada) com insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (isto é, vício), com efeitos ademais distintos como se alcança do confronto com o preceituado nos artigos 426º, e 431º, do Código de Processo Penal. É que o argumento trazido de que o Tribunal a quo devia ter julgado em sentido diverso daquele que julgou, configura à luz do thema probandum, a alegação, não de um vício da decisão, mas sim de um erro de julgamento em matéria de facto. Isto é, o recorrente invoca (o vício) da “insuficiência para a decisão da matéria facto provada”, discorrendo sobre a insuficiência da prova para a decisão de facto.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação, no pedido de indemnização civil formulado pelo “Centro Hospital de Setúbal, E.P.E.” e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário. De igual modo, repete-se, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do favor rei, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o Tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida não deixa de expor, de forma muito cuidada, abundante, clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. A decisão recorrida está elaborada de forma assaz equilibrada, lógica e fundamentada. O Tribunal a quo decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se, e sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal a quo, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento ex officio se imponha a este Tribunal ad quem.

Ante o que se deixa expendido, falece, desde logo, a pretendida qualificação jurídica dos factos como integradores do cometimento pelo recorrente de “dois crimes de ofensas à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º.º n.º 1 do CP”, que assentava única e exclusivamente [sublinhado nosso] na pretextada, mas perecida, alteração da matéria de facto dada como provada na 1ª instância e, nessa medida, também, em parte, a pretendida suspensão da execução da pena em que o recorrente foi condenado [cfr. fls. 267 do corpo da motivação e conclusões VI a IX da peça recursiva], questões aportadas pelo recorrente ao conhecimento deste Tribunal ad quem e supra editadas como questões (iii) e (iv) a conhecer nesta instância.
Contudo, perfunctoriamente, dir-se-á que nenhuma censura nos merece a qualificação jurídica da factualidade dada como provada na decisão recorrida, onde ademais se discorre de forma assaz abundante e fundamentada sobre a subsunção dos factos assentes ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea b) e 2, do Código Penal em cuja prática o recorrente se mostra, e bem, incurso, dispensando-nos de outros considerandos que se revelariam, afinal, redundantes.
Acresce que também não vislumbramos outro argumentário para além do expendido na decisão recorrida (e que, aliás, o recorrente também não explícita nem, em rigor, contraria), e ao qual aderimos, para considerar e aplicar in casu a reclamada suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado. Ressalvado o devido respeito por diferente opinião, a cogitação e aplicação ao caso sub judice de um tal instituto sempre seria e será de afastar.
É que a suspensão da execução de pena de prisão, porquanto medida de conteúdo pedagógico e reeducativo que é, só deve ser decretada quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e das outras circunstâncias indicadas no texto do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, ser essa medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade, ou seja, a suspensão da execução da pena terá sempre na base uma prognose favorável ao arguido, a esperança de que este sentirá a condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime, que terá perante ela uma atitude de emenda cívica, de reeducação para o direito.
Vale o exposto por se afirmar que tal medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só fará sentido se for possível concluir que o agente do crime terá capacidade para interiorizar a desvalia da sua conduta e determinar-se, no futuro, de acordo com o direito. A pedagogia e a reeducação apenas podem ser exercidas relativamente a quem for sensível a esse tipo de apelo.
Como decorre da decisão recorrida, que sensibilidade e capacidade para interiorizar a desvalia da sua conduta se pode almejar de alguém, como o recorrente, que nega a prática dos factos por que vinha acusado e foi condenado, que ao nível da personalidade se revela ausente de sentido auto-crítico e que, na pessoa da ofendida JDG, esta é a segunda vez que responde, é julgado e condenado pela prática de crime de violência doméstica? Afigura-se-nos que a resposta é obviamente negativa.
Tanto bastaria, conjugadamente com as (elevadas) exigências de prevenção geral que, em primeira linha, subjazem ao regime de suspensão da execução da pena de prisão, e as sedimentadas circunstâncias do crime e o que elas revelam também da personalidade do arguido, para rejeitar a suspensão da execução da pena de prisão.
Nestes termos, improcede, também neste aspecto, a pretensão do recorrente.

Em consequência de tudo o que se deixa expendido, mantém-se, pois, o decidido pelo Tribunal a quo nos seus precisos termos.
V
Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 (quatro) unidades de conta.

VI

Decisão
Nestes termos acordam em:
A) - Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido JB e, consequentemente, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.
B) - Condenar o recorrente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 03-02-2015
Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

Fernando Paiva Gomes Monteiro Pina