Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
674/18.6JALRA.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
MOTIVO FÚTIL
ESPECIAL CENSURABILIDADE
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
“Motivo fútil” é o motivo de importância mínima, a ninharia que leva o agente à prática do grave crime de homicídio, existindo inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida.

Por outro lado, a existência, num concreto caso, de alguma das circunstâncias referidas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal não conduz, necessariamente, à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do nº 1 do mesmo artigo.

Para poder ser afirmada a especial censurabilidade ou perversidade do agente é ainda necessário que se conclua existir uma especial culpa, por referência à que é pressuposta na moldura penal do homicídio simples (artigo 131º do Código Penal).

Esse especial grau de culpa, subjacente à “especial censurabilidade ou perversidade” que o agente manifesta, é quilo que motiva a agravação do homicídio.

A “especial censurabilidade” revela-se quando as circunstâncias em que a morte foi perpetrada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.

Indo ao caso destes autos, no acórdão recorrido considerou-se que o arguido, além de ter agido por “motivo fútil”, atuou manifestando “especial censurabilidade”.

Na situação dos autos ficou demonstrado que, perante um pequeno desentendimento anterior, causado por o assistente dizer que o arguido tinha em sua posse uma bicicleta pertencente a terceira pessoa, e já depois de cessado esse desentendimento e de ambos terem abandonado o local do mesmo, o arguido, passados cerca de 20 minutos, e quando o assistente se encontrava sem hipótese de se defender, desferiu-lhe um tiro com uma arma caçadeira.

Para o efeito, e previamente ao disparo, o arguido deslocou-se para a sua casa, onde se muniu da espingarda caçadeira em questão, municiou-a, e, de seguida, foi à procura do assistente, com intenção de o atingir com um tiro de tal arma.

Quando avistou o assistente a sair do interior da habitação onde se encontrava, o arguido, de imediato, premiu o gatilho da espingarda, efetuando um disparo na direção do corpo do assistente.

Ora, o emprego de tal arma, nessas circunstâncias, revela uma especial censurabilidade da conduta do arguido, ou seja, um especial grau de culpa - que excede manifestamente o que está pressuposto na moldura penal do crime de homicídio previsto no artigo 131º do Código Penal -, pelo que o crime de homicídio cometido pelo arguido é um crime de homicídio qualificado (mostrando-se, assim, inteiramente correta a qualificação jurídica dos factos feita pelo tribunal a quo).

As concretas circunstâncias da conduta do arguido mostram-nos que este se determinou a matar o assistente por motivo fútil, baixo e gratuito, revelando o arguido um profundo desprezo pelo valor da vida humana, e tendo o arguido, ao atuar como atuou, revelado um especial grau de culpa (uma “especial censurabilidade”).

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO.

Nos autos de processo comum (tribunal coletivo) nº 674/18.6JALRA, do Juízo Central Criminal de Santarém (Juiz 3), em que é arguido AA e em que é assistente BB, foi proferido pertinente acórdão, no qual o tribunal decidiu nos seguintes termos (em transcrição):

“4. Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Tribunal Coletivo em julgar procedente, por provada, a acusação e, assim:

4.1. Da acusação:

4.1.1. CONDENAM o arguido AA como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23.02, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

4.1.2. Condenam ainda o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 Unidades de Conta (artigos 374.º n.º 4, 513.º n.º 1, 514.º, do CPP, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais).

4.1.3. Declaram perdida a favor do Estado a bucha apreendida;

4.1.4. Determinam que, após trânsito em julgado deste acórdão, se notifique o arguido e o assistente para procederem ao levantamento das suas peças de vestuário ou calçado que se encontram apreendidas (do assistente: uma t-shirt e chinelos; do arguido: uma camisa de manga curta e umas calças de ganga), no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizerem, se consideram perdidas a favor do Estado.

4.1.5. Determinam que, até ao trânsito em julgado do acórdão, o arguido seja proibido de contactar com o ofendido, por qualquer meio, e, bem assim, de utilizar armas.

Determina-se, após trânsito em julgado deste acórdão, a extinção destas medidas de coação agora aplicadas ao arguido.

Consigna-se que o termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena – art. 214º, nº 1, al. e), do CPP.

4.1.6. Após trânsito em julgado do presente acórdão, remeta Boletins ao Registo Criminal.

4.2. Dos pedidos de indemnização civil:

4.2.1. Julgar integralmente procedente, por integralmente provado, o pedido de indemnização formulado pelo Centro Hospitalar …, contra AA e, consequentemente:

4.2.1.1. Condenam o arguido AA a pagar ao Centro Hospitalar …, a quantia de € 113,41, acrescido de juros vincendos, desde a notificação e até integral pagamento;

4.2.1.2. Condenam o demandado nas custas processuais.

4.2.2. Julgar parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido de indemnização civil deduzido por BB contra AA e, consequentemente:

4.2.1.1. condenam o demandado a pagar ao demandante:

- A quantia de € 50,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal que é atualmente de 4%, vencidos desde a notificação para contestar e vincendos até integral pagamento; e

- A quantia de € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal que é atualmente de 4%, vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento;

4.2.1.2. Absolvem o demandado do que, no mais, foi contra si peticionado.

4.2.1.3. Condenam o demandado e o demandante nas custas processuais, na proporção do respetivo decaimento”.

*

Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“Da nulidade:

1ª - Deu o Tribunal por provado, no ponto 5 da matéria de facto provada: “assim que BB saiu do interior da habitação, ainda junto à porta, o arguido, que se encontrava a distância não exatamente apurada, mas certamente situada entre 5, 6 metros e 20 metros de distância, voltou-se rapidamente e, de imediato, premiu o gatilho da espingarda e efetuou um disparo na direção do corpo do BB”.

2ª - Na motivação de facto deste segmento da matéria de facto provada o Tribunal limitou-se a aludir às versões do arguido e do ofendido e ao depoimento da testemunha N, inspetor da polícia judiciária, até porque sobre tal matéria mais nada foi referido no julgamento, nem nada mais consta dos autos.

3ª - Ou seja, face à própria motivação de facto contante dos autos - o arguido “quando se apercebeu que o Assistente estava a sair de casa, disparou para a frente e para o chão, a cerca de 40 metros de distância”; - o ofendido “concretizou que o disparo se deu a 5, 6 metros de distância”; - e a testemunha “os seus colegas falaram que o disparo tinha sido a 20 metros, considerando o depoente que, a 40 metros, a dispersão dos chumbos seria maior e perdiam força”, não se entende qual o caminho percorrido pelo Tribunal para ter concluído, como concluiu, acerca da distância do disparo.

4ª - Não existe fundamentação para a decisão da matéria de facto relativa à distância do disparo.

5ª - Salvo o devido respeito, o Acórdão, quanto ao julgamento do ponto 5 da matéria de facto provada, padece de nulidade, conforme dispõe a al. a) do nº 1 do artigo 379º do C. P. Penal.

Da impugnação da matéria de facto dada por provada:

6ª - No próprio acórdão faz-se constar os meios probatórios em que o Tribunal estribou o seu julgamento quanto a tal segmento da matéria de facto, a saber, nas declarações do arguido e do ofendido e no depoimento da testemunha N, inspetor da polícia judiciária.

7ª - Ora do testemunho do Sr. Inspetor N não se pode apurar - por maior credibilidade que se pretenda dar-lhe - a distância do disparo porque ele, quanto a isso, apenas ouviu dizer aos colegas.

8ª - Já as versões do ofendido e do arguido, por tão dispares, não contribuem para a descoberta da verdade quanto a esse ponto.

9ª - Ou seja, o Tribunal apreciou erradamente a prova feita no julgamento, ao considerar provado o referido ponto 5 da matéria de facto provada.

10ª - Mas o Recorrente indica para preencher o requisito da al. a) do nº 2 do artigo 640º do C. P. C. as passagens da gravação das declarações do arguido e do ofendido e do depoimento da testemunha N:

Arguido:

Ficheiro 202110026101311 5,40 a 5,49

Ofendido

Ficheiro 20211026103642 14,55 a 15,38

Testemunha N

Ficheiro 20211026110152

4,00 a 4,55

11ª - Face à prova produzida, o ponto 5 da matéria de facto provada devia ter sido assim julgado: “assim que BB saiu do interior da habitação, ainda junto à porta, o arguido, que se encontrava a distância não apurada voltou-se rapidamente e, de imediato, premiu o gatilho da espingarda e efetuou um disparo na direção do corpo do BB”.

Da subsunção da conduta do arguido ao crime de homicídio qualificado previsto no artigo 132º, nºs 1 e 2, al. e), do CP:

12ª - O arguido fez o disparo a uma distância tal que, tendo os chumbos atingido praticamente todo o corpo do ofendido, apenas lhe causaram lesões que lhe causaram um período de 27 dias de doença sem afetação do trabalho geral e do trabalho profissional.

13ª - Arguido e ofendido deram conta que ambos tinham estado a ingerir álcool conjuntamente.

14ª - Tais circunstâncias, só por si, devem fazer afastar a qualificação do crime de homicídio.

15ª - Há todo um quadro que esbate, desde logo, a intencionalidade e a própria culpa.

16ª - Assim, deve o arguido ser condenado pela prática de homicídio simples.

Da graduação da pena:

17ª - Ponderando as circunstâncias, designadamente a ausência de gravidade das lesões, a distância do disparo - que foi tal que, embora acertando no alvo, praticamente não o molestou -, e o facto de momentos antes ofendido e arguido terem estado a beber conjuntamente, sugerem, face à moldura penal em abstrato, a aplicação de pena de prisão inferior a 5 anos.

18ª - E a ameaça do cumprimento de tal pena de prisão é sanção bastante, devendo ser declarada suspensa a pena de prisão aplicada.

Da indemnização:

19ª - O disparo apenas provocou no ofendido as lesões que causaram um período de 27 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e do trabalho profissional,

20ª - E a situação de vida do arguido, decorrente dos pontos 26 e 27 da matéria de facto provada,

21ª - Sugerem que a indemnização para ressarcimento dos danos morais peca por excessiva, impondo-se a sua redução, para que seja razoável e proporcional.

22ª - A indemnização por danos não patrimoniais não deve ultrapassar o montante de € 10.000,00.

Pelo exposto, deve esse Venerando Tribunal declarar a nulidade do Acórdão recorrido.

A não ser assim entendido:

- Deve ser alterada a matéria de facto dada por provada, no que tange ao ponto 5.

- Deve ser o homicídio considerado simples.

- Deve a pena de prisão aplicada ser inferior a 5 anos e decretada a suspensão da sua execução.

E no que tange à indemnização cível:

- Deve a indemnização pelos danos não patrimoniais ser fixada na quantia de € 10.000,00”.

*

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

”1ª - O arguido recorreu, pois, no seu entender considera que a decisão recorrida é nula em virtude de não existir fundamentação para a decisão da matéria de facto no que respeita à distância do disparo.

2ª - Considera que o Tribunal a quo, ao dar como provados os factos do ponto 5 da matéria de facto provada, apreciou erradamente a prova feita no julgamento.

3ª - Sustenta que a sua conduta e circunstâncias do crime deveriam afastar a qualificação do crime de homicídio, na forma tentada, bem como, podiam determinar que a pena de prisão que foi aplicada fosse inferior a 5 anos, e suspensa na sua execução, pois a simples ameaça do cumprimento é sanção bastante.

4ª - Nos termos do disposto no art.º 379º, n.º 1, alínea a), do CPP, a sentença é nula quando não contiver as menções referidas no n.º 2, do art.º 374º, do mesmo diploma legal. Ou seja, quando não contém ou é deficiente a sua fundamentação, pois não indica os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, e não faz um exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

5ª - O exame da prova deverá passar pela análise de todas as provas, incluindo a prova irrelevante, pois só assim a sentença revela que foram apreciadas todas as provas (neste sentido v. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-11-2012 [processo n.º 220/09.2GAGLG.E1], acessível em www.dgsi.pt.

6ª - No caso dos autos o Tribunal a quo deu como provado o ponto 5 da matéria de facto provada, ou seja - que o arguido se encontrava a distância não exatamente apurada, mas certamente situada entre 5, 6 metros e 20 metros de distância, quando premiu o gatilho da espingarda e efetuou um disparo da direção do corpo do ofendido -, com base nas declarações do arguido, do ofendido, das testemunhas N e M, ambos Inspetor da Polícia Judiciária, e outros elementos de prova.

7ª - Nesta matéria, se atendermos ao que consta do segmento da decisão recorrida respeitante à motivação de facto, logo percebemos como o Tribunal a quo formou a sua convicção.

8ª - No essencial considerou que quanto aos factos que relataram ter conhecimento direito, as testemunhas depuseram com credibilidade e isenção, tendo os seus depoimentos sido considerados coerentes e lógicos.

9ª - Por isso mesmo, concluiu e deu como provado que o arguido se encontrava certamente situado entre 5, 6 metros e 20 metros de distância quando efetuou o disparo na direção do corpo do ofendido.

10ª - Não se vislumbra assim existir qualquer falta ou deficiência na fundamentação da matéria de facto que possa levar à nulidade da decisão recorrida.

11ª - Aliás, basta analisar o ter do segmento da motivação de facto, nomeadamente o que acima se referiu, para percebemos como é que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, formou a sua convicção, no sentido que formou e não noutro, nomeadamente para dar como provado o ponto 5 da matéria de facto provada.

12ª - Donde, é de concluir que a decisão recorrida não é nula.

13ª - Para além do já referido, importa notar que quando o recorrente sustenta que o Tribunal a quo considerou as declarações da testemunha N para dar como provado o ponto 5 da matéria de facto provada, o que na sua opinião não poderia ter acontecido, está a alegar que existiu um erro de julgamento e, no fundo, um erro na aquisição da prova.

14ª - Mas ao fazê-lo, está a sindicar a forma como o Tribunal a quo valorou o referido depoimento, bem como os outros depoimentos e restante prova. Ou seja, está a sindicar como foi valorada a matéria de facto produzida em audiência de julgamento.

15ª - Entendemos, porém, que o arguido não pode substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, sendo certo que o mesmo é o próprio destinatário da decisão que tem por base uma determinada convicção que pretende colocar em causa.

16ª - O recorrente pode sempre sindicar a valoração da prova por via da violação do disposto no art.º 127º, do CPP. Todavia, terá que demostrar e justificar que a descoberta da verdade processual não assentou em critérios marcados pela razão, lógica e resultantes da experiência comum.

17ª - Ora, entendemos que o recorrente não demostrou que a descoberta da verdade processual não assentou nos referidos critérios, pois limitou-se a alegar que a testemunha N, quanto à referida matéria, apenas ouviu dizer aos colegas, e que a sua versão e a versão do ofendido são tão dispares que não contribuem para a descoberta da verdade quanto ao referido ponto 5.

18ª - Ao invés, basta analisar de forma cuidada o segmento de decisão recorrida respeitante à motivação da matéria de facto, para percebemos como é que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, formou a sua convicção, no sentido que formou e não noutro, nomeadamente para ter dado como provado os factos constantes do ponto 5.

19ª - Nessa matéria o Tribunal a quo teve em conta vários depoimentos e outros elementos de prova para ter dado como provado o ponto 5 da matéria de facto provada, e não só a prova referida pelo arguido, com a interpretação que o mesmo dela faz.

20ª - Assim, não descortinamos a existência de motivos que nos levem a concluir que tenha sido violado o disposto no art.º 127º, do CPP na apreciação da prova, pois não encontramos qualquer incoerência, falta de percurso lógica ou violação das regras da experiência comum que possam justificar qualquer alteração à matéria de facto dada como provada.

21ª - Se atendermos aos factos que foram dados como provados, nomeadamente que após a cessação das agressões físicas mutuas entre o arguido e o ofendido, aquele deslocou-se para sua casa, onde se muniu de uma espingarda caçadeira que municiou, e que de seguida foi à procura do ofendido e quando o viu sair do interior da habitação onde se encontrava, de imediato premiu o gatilho da espingarda e efetuou um disparo na direção do corpo do ofendido, os mesmos revelam que o arguido se determinou a matar o ofendido por motivo fútil, baixo e gratuito, demonstrando um profundo desprezo pelo valor da vida humana.

22ª - Ora, a descrita conduta é completamente desproporcional, pois as agressões mútuas e o desentendimento ocorrido nunca poderiam justificar que o arguido quisesse matar o ofendido.

23ª - Assim, conforme bem se refere na douta decisão recorrida, “a conduta do arguido é gratuita, desprezando a vida humana, é inadequada e mesquinha”, e, por isso mesmo, não temos grandes dúvidas em afirmar que as descritas circunstâncias revelam uma especial censurabilidade e perversidade.

24ª - E também pelos fundamentos que constam do segmento Da Ação Penal da decisão recorrida, e com os quais concordamos, a conduta do arguido preenche o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e não o crime de homicídio simples, como o mesmo pretende.

25ª - No que respeita à determinação da medida concreta da pena, deve-se atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente - artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

26ª - Por sua vez, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa - artigo 40º, n.º 2, do Código Penal.

27ª - As finalidades das penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme determina o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal.

28ª - Assim, a medida da pena há de ser dada tendo por base a necessidade de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias (prevenção geral positiva), sem, contudo, poder ultrapassar a medida da culpa, atuando depois e em última instância a prevenção especial de socialização como forma de determinar a medida da pena.

29ª - Na determinação da medida da pena, deverá atender-se às exigências de prevenção que satisfazem a necessidade comunitária de se punir o crime e, bem assim, de se realizarem as finalidades das penas.

30ª - Atendendo ao já citado no segmento da Ação Penal da decisão recorrida e a toda a fundamentação que ali é vertida, e com a qual se concorda, teremos que concluir que a pena que foi aplicada ao arguido, tendo como ponto de partida o tipo legal do crime em causa, se mostra justa e adequada a prevenir a prática de crimes de igual natureza, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral.

31ª - Como ali se refere, entre o mais, não estamos perante um caso de mero dolo eventual, mas de dolo direto, o que se traduz num maior desvalor da conduta do arguido.

32ª - O arguido não relevou qualquer arrependimento sincero e o crime em causa provoca grande intranquilidade e alarme social.

33ª - Por sua vez, o arguido já tem averbadas sete condenações, onde se incluem um crime de roubo e um crime de roubo qualificado, e um crime de ofensa à integridade física qualificada.

34ª - É assim de concluir que a pena aplicada ao arguido não ultrapassa a medida da culpa, a sua medida concreta mostra-se imprescindível à tutela dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora e às expetativas comunitárias, e mostra-se adequada a satisfazer a sua função de ressocialização, não se descortinado fundamentos para a sua redução.

35ª - No que respeita a uma eventual suspensão da execução da pena de prisão, é certo que em sede de alegações se equacionou essa hipótese. Contudo, quando atendemos a todos os fundamentos que constam da decisão recorrida, mesmo que a pena aplicada fosse igual ou inferior a 5 anos de prisão, concluímos, nesse enquadramento, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - art.º 50º do Código Penal.

36ª - Por tudo o que vai exposto, a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pelo recorrente.

37ª - Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida”.

*

O assistente (e demandante) BB apresentou também resposta ao recurso, concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“A) A decisão recorrida é proferida com recurso a fundamentação consistente e inatacável, em respeito do que ensinam os artigos 374º e 379º do CPP, fazendo um exame critico das provas que conduzem à convicção do Tribunal manifestada na decisão.

B) A decisão não padece de falta ou deficiência na fundamentação que possa reconduzir-se à nulidade.

C) Acresce que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, concebeu a sua convicção, no sentido que formou e não noutro, principalmente para dar como provado o ponto 5 dos factos provados.

D) Não pode o recorrente fazer menção à prova gravada sem extrair os concretos pontos que entende fundamentar a sua versão. Facto que inquina toda a sua argumentação.

E) Com efeito, da prova produzida, seja da prova testemunhal, declarações do arguido e assistente, extrai o Tribunal a conclusões lógicas a extrair. A apreciação da prova, conjugada com a experiência comum, e a ausência de fundamentação por parte do recorrido que conduza à violação do artigo 127º do CPP, leva-nos a concluir pela correta apreciação da prova produzida, quer pela sua coerência, quer pelo seu respeito das regras da experiência comum, nomeadamente quanto ao concreto facto nº 5.

F) As circunstâncias da prática do crime descritas na decisão não esbatem a culpa nem a intencionalidade, na realidade intensificam esses dois elementos, porquanto revelam especial perversidade.

G) O motivo fútil que levou a tal atuação, conjugado com as características da personalidade do arguido, bem como o que reflete o seu registo criminal, não podem servir para desagravar a sua culpa.

H) Acresce que, dando como reproduzidos os argumentos expendidos na rúbrica “Da Ação Penal” constante da decisão, e com os quais concordamos integralmente, concluímos que a conduta do arguido, bem como as concretas circunstâncias da sua prática, ao contrário do que defende o arguido, preenchem o crime de homicídio qualificado, na forma tentada.

I) No que se reporta à medida da pena, considerando a especial perversidade do crime praticado, o alarme social provocado na comunidade, as lesões provocadas ao assistente e a falta de arrependimento, apenas podiam conduzir à aplicação da pena nos exatos termos em que foi: na exata medida da culpa!

J) Ponderadas todas as circunstâncias mencionadas no Acórdão recorrido, especialmente as constantes dos factos provados, é de concluir pela manutenção da pena de prisão efetiva, pelo período de 5 anos, aplicada ao arguido, pois a sua aplicação é justa e conforme a exigências do caso concreto.

K) No que se reporta aos danos não patrimoniais, também é entendimento do ofendido que não devera proceder-se a qualquer alteração, conforme se expõe infra. É certo que o seu pedido decaiu em certa medida, no entanto dúvidas não restam que o assistente deve ser ressarcido pelos danos não patrimoniais provocados, nos termos do artigo 496º, nº 1, do CC.

L) Deste modo, apesar do decaimento, cremos que é adequada a manutenção da indemnização, fixada em € 20.000,00, pela reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante, na sequência dos factos praticados pelo arguido. Montante ao qual acrescem juros desde a data da decisão.

Termos em que se requer a V. Exas que a decisão recorrida seja integralmente mantida nos factos provados, na sua qualificação, na pena aplicada, bem como no modo da sua execução, e ainda nos montantes indemnizatórios”.

*

Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, face às conclusões retiradas pelo recorrente da motivação do recurso, e em muito breve resumo, são cinco as questões a conhecer:

1ª - Nulidade do acórdão, por falta de fundamentação (no acórdão em causa não existe fundamentação para a decisão da matéria de facto relativa à distância do disparo - ponto 5 da matéria de facto dada como provada -).

2ª - Impugnação alargada da matéria de facto (questionando-se o facto dado como provado no acórdão revidendo sob o nº 5 - ou seja, a distância do disparo -).

3ª - Qualificação jurídica dos factos (o crime cometido é o crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, e não o crime de homicídio qualificado).

4ª - Determinação da medida concreta da pena (o recorrente considera a pena fixada manifestamente excessiva, pugnando pela aplicação de uma pena inferior a 5 anos de prisão), e suspensão da execução da pena.

5ª - Montante estabelecido a título de ressarcimento por danos não patrimoniais (o recorrente entende que essa indemnização deve ser fixada em 10.000 euros).

2 - A decisão recorrida.

O acórdão sub judice é do seguinte teor (quanto aos factos e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Matéria de facto provada

Discutida que foi a causa, e com relevo para a sua boa decisão, resultou provado:

1. No dia 17.08.2018, pelas 03h30m, o arguido AA e o assistente BB desentenderam-se por este dizer que aquele tinha na sua posse uma bicicleta, pertença de MC, que havia desaparecido, e envolveram-se em agressões físicas mútuas na localidade da …, defronte do estabelecimento de restauração denominado de “…”.

2. Após as mesmas cessarem, AA disse a BB que o mataria e, logo após, ambos abandonaram o local, tendo BB ido até à casa do seu pai, sita na Rua …, na localidade da ….

3. Por seu lado, o arguido, com o propósito de tirar a vida a BB, deslocou-se até sua casa, onde se muniu de uma espingarda caçadeira que então municiou e, de seguida, foi à procura deste, sendo acompanhado do seu filho S, ao tempo com 16 anos de idade.

4. Pelas 03h50m, o arguido chegou próximo da casa do pai de BB. Este, ao ver dois vultos a passarem na rua e ao se ter apercebido que se tratava de AA e do filho deste, saiu do interior da habitação para ver para onde estes se dirigiam.

5. Assim que BB saiu do interior da habitação, ainda junto à porta, o arguido, que se encontrava a distância não exatamente apurada, mas certamente situada entre 5, 6 metros e 20 metros de distância, voltou-se rapidamente e, de imediato, premiu o gatilho da espingarda e efetuou um disparo na direção do corpo de BB.

6. Os chumbos provenientes do disparo atingiram BB no lado direito do corpo, causando diversas perfurações entre a zona das pernas e a zona da cabeça, onde ficaram alojados, tendo o ofendido ficado com dores nas zonas atingidas.

7. De seguida, o arguido abandonou o local.

8. Por seu lado, BB foi transportado para o Hospital de …, onde deu entrada pelas 06h31m e de onde teve alta pelas 09h05m do dia 17-08-2018.

9. Como consequência direta e necessária do disparo desferido pelo arguido, BB sofreu as seguintes lesões:

- Na face: lesão deprimida avermelhada ao nível da porção inferior da região malar direita, medindo 2 x 1 mm; crosta acastanhada na região bocal direita, medindo 2 mm, com aspeto edemaciado;

- No pescoço: área acastanhada oblíqua inferoanteriormente na porção média da região cervical lateral direita medindo 4 x 1 cm; inferiormente, outra área idêntica medindo 1 x 0,5 cm;

- No tórax: lesão com crosta de 2mm de diâmetro na porção superior da região mamária direita, rodeada por extenso halo equimótico esverdeado; escoriação com crosta em evolução, transversal, no terço médio da face lateral do hemitórax esquerdo, inferiormente à região axilar, medindo 1 x 0,2 cm;

- No abdómen: área com crosta medindo 3 mm no hipocôndrio esquerdo com halo arroxeado perilesional;

- No membro superior direito: lesão com crosta de 2mm de diâmetro na face anterior do ombro esquerdo rodeada por extenso halo equimótico esverdeado; escoriação com crosta no terço inferior da face medial do braço, medindo 1 cm; inferiormente, ao nível do antebraço, outras três escoriações, a maior medindo 3mm; vários vestígios de crosta dispersos na face posterior do antebraço;

- No membro superior esquerdo: vários vestígios de escoriações milimétricas com crosta dispersas pelo antebraço;

- No membro inferior direito: lesão com crosta no terço superior da face anterior da coxa medindo 2 mm com halo eritematoso; lesão com crosta hemorrágica inferiormente à qual se equimose arroxeada medindo 4 x 4 cm com halo amarelado.

10. Tais lesões causaram ao ofendido um período de doença de 27 dias, sem afetação do trabalho geral e do trabalho profissional.

11. O arguido, ao efetuar um disparo com arma de fogo apontada, à mencionada distância, a zonas vitais do corpo de BB, sabia que utilizava um meio idóneo a causar a morte a qualquer pessoa que fosse perfurada por projéteis de arma de fogo nessas zonas corporais.

12. O arguido representou e quis causar a morte a BB por motivo frívolo, devido ao acima descrito desentendimento anterior entre ambos, não se coibindo de utilizar uma arma de fogo contra uma pessoa indefesa.

13. O arguido agiu com a intenção, integralmente representada, de tirar a vida a BB, tendo utilizado, para o efeito, um instrumento adequado a provocar a sua morte, o que só não conseguiu por circunstâncias alheias à sua vontade, devido aos chumbos não terem tido o impulso suficiente para atingirem órgãos ou artérias vitais.

14. O arguido conhecia as caraterísticas da arma de fogo que trazia consigo e sabia que não a podia deter, pois não era titular de qualquer licença de uso ou de porte de arma, também bem sabendo que não a podia utilizar nos termos em que o fez.

15. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e especialmente perversa e censurável.

16. Em consequência direta e necessária dos descritos factos perpetrados pelo arguido, o Centro Hospitalar …, prestou a BB os cuidados de saúde a que se reporta a fatura junta a fls. 280, no valor de € 113,41 (consulta de urgência e serviços de radiologia).

17. Ainda em consequência direta e necessária dos descritos factos praticados pelo arguido, as calças e os boxers que BB vestia ficaram com as marcas dos chumbos e, assim, inutilizadas, sendo o seu valor não inferior a € 50,00.

18. Sempre em consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido, BB sentiu e ainda sente medo do arguido.

19. Dorme um pouco mal e sente-se nervoso, ansioso, assustado e envergonhado.

20. Deixou de frequentar com a mesma intensidade os sítios que habitualmente frequentava, com medo de se cruzar com o arguido, passando mais tempo em casa com a companheira.

21. Deixou de fazer determinadas atividades por sentir desconforto e dor.

22. Apresenta cicatrizes / áreas hiperpigmentadas nas áreas referidas em 9., as quais não são gravemente desfigurantes ou causa de incapacidade para o trabalho.

22. Sente medo de ter que se submeter a cirurgias para extração dos chumbos.

23. Quando tem dores no ombro, toma medicação.

24. Aquando da prática dos factos acima descritos, o assistente BB receou pela sua vida.

25. Do Certificado de Registo Criminal do arguido, datado de 15.10.2021, constam averbadas as seguintes condenações:

- Por sentença de 03.11.2004, foi condenado pela prática, em 26.10.2004, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº 3º, nº 2, do DL nº 2/98, de 03.01, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo a multa de € 240,00;

- Por sentença de 16.06.2010, foi condenado pela prática, em 29.09.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº 3º,, do DL nº 2/98, de 03.01, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, perfazendo a multa de € 1.300,00;

- Por sentença de 24.05.2011, foi condenado pela prática, em 11.05.2011, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº 3º, do DL nº 2/98, de 03.01, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo a multa de € 1.440,00;

- Por sentença de 30.10.2013, foi condenado pela prática, em 17.05.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº 3º, do DL nº 2/98, de 03.01, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 horas de trabalho a favor da comunidade;

- Por acórdão de 07.01.2016, foi condenado pela prática, em 10.2004, de um crime de roubo, p. e p. pelo artº 210º, nº 1 do CP, e de um crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artº 210º, nº 2, do CP, na pena única de 5 anos de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período, com regime de prova. Por despacho de 22.03.2021, tal pena foi declarada extinta nos termos do artº 57º do CP;

- Por sentença de 09.11.2020, foi condenado pela prática, em 25.05.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº 3º, nº 1, do DL nº 2/98, de 03.01, na pena de 8 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por um ano, com a obrigação de se inscrever em escola de condução, frequentar as aulas e submeter-se aos exames com vista à obtenção de carta de condução;

- Por sentença de 15.04.2021, foi condenado pela prática, em 08.03.2019, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artsº 145º, nº 1, al. a), e nº 2, 143º, nº 1, 132º, nº 2, als. h) e i), do CP, na pena de 2 anos de prisão, cuja execução foi suspensa por 2 anos, com regime de prova com a obrigação de se submeter a consulta de despiste de eventual problema psiquiátrico e, se necessário, tratamento médico adequado.

26. O arguido exerce a atividade profissional de …, auferindo o vencimento mensal de € 700,00.

27. Vive com uma filha, de 6 anos de idade.

28. Reside em habitação social, não pagando qualquer contrapartida.

29. O percurso de vida do arguido e o processo de desenvolvimento do mesmo ocorreram num contexto familiar significativamente marcado por disfuncionalidade, com ausência de práticas parentais consistentes. O arguido e uma irmã mais nova são fruto de um segundo relacionamento da progenitora, tendo aquela mais dois filhos do seu primeiro casamento e outro fruto da terceira relação afetiva. Até aos 9 anos de idade, AA viveu com ambos os progenitores, tendo nessa idade e, após a separação destes, passado a viver com a mãe e dois dos irmãos, numa localidade próxima de …, onde aquela explorava um estabelecimento comercial.

30. As dificuldades económicas do agregado e o facto da progenitora se encontrar numa situação de expressiva vulnerabilidade em termos pessoais e socias levou a que lhe fosse cedida a habitação onde atualmente AA reside.

31. O arguido iniciou o seu trajeto escolar em idade normativa, tendo este sido marcado por falta de motivação, absentismo e dificuldades de aprendizagem, com várias retenções.

32. Neste contexto de desmotivação e, como forma de se autonomizar, abandonou o ensino por volta dos 16 anos, possuindo apenas o 6º ano de escolaridade.

33. Após o abandono escolar, o arguido iniciou o seu percurso laboral no ramo da construção civil e, posteriormente, como operário fabril, condição que se manteve após o cumprimento do serviço militar.

34. Atualmente exerce a sua atividade profissional na …, numa localidade próxima da sua área de residência. Não possui vínculo laboral efetivo, mas considera não existirem motivos para despedimento, pelo que é sua intenção manter a atual atividade profissional.

35. Como caraterísticas da personalidade, o arguido é uma pessoa com visíveis fragilidades emocionais, com dificuldade para o reconhecimento das mesmas, com forte tendência para o isolamento e, quando confrontado com situações de conflito, revela parca tolerância à frustração com impulsividade latente o que tendencialmente contribui para o seu envolvimento em situações ilícitas.

Matéria de facto não provada

De entre os factos alegados nas doutas acusação e pedidos de indemnização, não se provaram os factos acima não descritos e os factos contrários aos factos que se deram como provados, sendo cerro que o Tribunal se debruçou especificadamente sobre cada um deles.

Designadamente, não se provou que:

- Também a camisola do assistente foi rasgada pelos chumbos;

- As calças e os boxers do assistente foram adquiridos por não menos de € 100,00;

- À data dos factos, o arguido e o assistente eram colegas de trabalho na empresa …, em …;

- O assistente teve um período de depressão, com ataques de ansiedade;

- Como consequência direta e necessária dos factos praticados pelo arguido, o assistente cessou o vínculo laboral com a citada empresa, para não ter que contactar o arguido, sendo por isso que, no ano 2019, não teve rendimentos;

- As dores sofridas pelo assistente são ou foram avaliáveis em 7/8, numa escala de 0 a 10, mesmo no período de 27 dias de doença.

Motivação de Facto

A convicção do Tribunal Coletivo para considerar provados e não provados os factos acima descritos teve por base a análise crítica e conjugada da prova produzida em julgamento.

1. O arguido dispôs-se a prestar declarações.

Admitiu que ele e o assistente trocaram agressões entre si, porquanto este disse que ele tinha tirado a bicicleta de um rapaz.

Tinham estado a beber.

Admitiu ter ido a casa buscar uma caçadeira (que às vezes usava para ir apanhar um coelho), que então carregou, tendo ido, com o seu filho, até perto da casa do pai do assistente.

Quando se apercebeu que o assistente estava a sair de casa, disparou para a frente e para o chão, a cerca de 40 metros de distância.

Não o quis matar, mas apenas assustar.

Depois do disparo, não prestou assistência ao ofendido, tendo ido para um barracão.

Admite que, ainda assim, o disparo podia matar.

Perguntado sobre o que acha dos factos, disse achar mal porque era amigo do assistente, tendo perdido essa amizade.

2. O assistente confirmou o desentendimento e as agressões iniciais, que se deveram ao facto de ter dito ao arguido para ir entregar a bicicleta do C. O arguido agarrou-o pelo pescoço e as agressões terminaram quando o assistente lhe atirou um vaso à cabeça, sendo que o arguido disse, várias vezes, que o matava.

Antes dos factos, tinham estado a beber, o assistente duas ou três cervejas e o arguido dois ou três copos de vinho branco, não estando qualquer deles embriagado.

Aquando dessas agressões, o arguido levou os chinelos e a t-shirt do assistente.

Depois, foi embora com o MC para casa do seu pai, onde ligou ao 112 para apresentar queixa de agressão.

Estava em tronco nu.

Entretanto ouviu um tiro ao longe.

Viu passar o arguido com o filho e veio à porta, saindo para fora.

Nessa altura, o arguido voltou-se e o assistente levou um tiro e fechou-se em casa, ligando de novo ao 112, denunciando o facto de ter sido atingido a tiro.

Quando foi atingido, gritou.

Entre ter ouvido o tal tiro ao longe e ter sido atingido, decorreram uns cinco minutos.

O arguido não mais o procurou.

Ficou com buracos nas calças e nos boxers, não sabendo quanto valiam.

Descreveu o que sentiu, o que ainda sente e as mudanças na sua vida e rotinas.

Com interesse, referiu que não foi trabalhar por causa das lesões no ombro, que ainda lhe dói quando faz esforços, só tomando medicação se tiver dores.

Concretizou que o disparo se deu a 5, 6 metros de distância.

Foi despedido da empresa, não sabe a razão, mas sabe que não foi a única pessoa a ser despedida.

Confirmou ter sido assistido no hospital demandante, a quem não pagou os serviços prestados.

3. N, Inspetor da Polícia Judiciária.

Foi ao local dias depois, tendo participado na investigação. Foi recolhida uma bucha, que se apurou ser de um cartucho que pertencia a uma caçadeira de calibre 12. Enviaram-se para o laboratório peças com vestígios de disparos.

Os seus colegas falaram que o disparo tinha sido a 20 metros, considerando o depoente que, a 40 metros, a dispersão dos chumbos seria muito maior e perdiam força.

Segundo o que apurou, o disparo é direto, não sendo um disparo que bate no chão e que dispersa.

Foi recolhida roupa da vítima na posse do arguido.

4. M, Inspetora da Polícia Judiciária que estava de piquete e foi ao local.

Viu impactos na habitação do pai da vítima.

Recolheram uma bucha de plástico.

Fizeram busca à casa e à viatura do arguido, tendo recolhido uma camisola e uns chinelos da vítima que o arguido levara.

Não localizaram a arma.

5. R, companheira do assistente há cerca de 10 anos.

Descreveu o que viu nessa noite, designadamente as agressões mútuas e instantâneas entre o arguido e o assistente por causa da bicicleta do M que havia desaparecido.

Tentou separá-los.

Viu o arguido apertar o pescoço ao assistente enquanto dizia “vou-te matar”.

O arguido, que perdera uns anéis durante o confronto físico, andou à procura deles dizendo “vou-te matar se não encontrar os anéis”. Encontrou os anéis e foi embora.

A depoente saiu com a sua viatura para desanuviar e, quando chegou a casa, perto da do “sogro”, viu o BB chumbado, amedrontado.

Descreveu os sentimentos do assistente e consequências na sua vida.

6. MC, conhecido do arguido e amigo do assistente. Viu que ambos andaram “à porrada” por causa da sua bicicleta, que desapareceu.

No final das agressões, foram todos embora, tendo acompanhado o BB até casa do pai.

Ouviu disparar. Viu o BB atingido.

No essencial, quanto aos factos que relataram ter conhecimento direto, as testemunhas depuseram com credibilidade e isenção, tendo os seus depoimentos sido coerentes e lógicos.

Também as declarações do assistente revelaram idoneidade, sendo alicerçadas pela demais prova produzida.

E, da prova produzida, dúvidas não restaram ao Tribunal que o arguido atuou com o propósito de retirar a vida ao assistente:

- Durante as agressões em frente ao estabelecimento “…”, o arguido diz ao assistente que o mata;

- Depois de terminadas as agressões, cada um vai à sua vida e o que o arguido faz é ir a casa buscar uma caçadeira, que então carrega e municia, indo no encalce do ofendido;

- Quando se depara com o ofendido, o arguido efetua um disparo que o atinge entre a zona das pernas e a zona da cabeça.

O arguido conhecia as características da caçadeira, que usava para ir apanhar/matar um coelho de vez em quando. Sabia, portanto, que era idónea a causar o resultado morte.

Quem apenas quer assustar outra pessoa, ainda que com a exibição de uma arma de fogo, não a carrega.

Quem apenas quer assustar outra pessoa, ainda que com a exibição de uma arma de fogo, não dispara de modo a que o corpo desta seja atingido. Dispara para o ar ou para outra direção.

E se a intenção do arguido era apenas assustar o ofendido, de quem então até era amigo, não se percebe a razão pela qual, apercebendo-se de que, afinal, o atingiu, não o socorreu ou auxiliou no seu socorro. O arguido atinge a tiro o assistente, que apenas - como disse - queria assustar, e vai embora. A experiência comum diz-nos que este modo de atuação não tem lógica, não convence.

E não tem lógica porque, na verdade, o arguido queria mesmo tirar a vida do assistente: estava desagradado com o antecedente desentendimento por causa do desaparecimento da bicicleta e com as inerentes agressões, no decurso das quais já dissera ao assistente que o matava. Findas as agressões, por causa delas e do desentendimento que esteve na sua génese, o arguido vai a casa buscar a caçadeira, que carregou e que disparou na direção do assistente, atingindo-o também no abdómem, no tórax, no pescoço e na face. No abdómen e no tórax situam-se órgãos vitais. No pescoço situam-se as carótidas. Efetuar-se um disparo que atinge esses locais pode desencadear a morte. No caso, essa morte não ocorreu porque os chumbos não tiveram o impulso suficiente para atingirem órgãos ou artérias vitais.

Como referiu e descreveu o Inspetor N, trata-se de um disparo direto, não é um disparo que bate no chão e que dispersa. Mas, ainda que não fosse, também os disparos para o chão podem dispersar, atingir pessoas e matá-las, como, aliás, o arguido reconheceu.

A intenção do arguido em matar o assistente é, assim, direta e não meramente eventual. Toda a atuação do arguido, antes e depois dos factos, assim o demonstra.

O Tribunal Coletivo teve ainda em conta a seguinte prova documental, que analisou:

- Comunicação de notícia de crime - folhas 21 a 23;

- Auto de notícia - folhas 29 a 31;

- Autos de diligências- folhas 35 a 36 e 49;

- Relatório de diligências iniciais - folhas 31 a 36;

- Autos de apreensão - folhas 37 a 38 e 47 (roupas e chinelos do assistente e do arguido, bucha);

- Reportagem fotográfica - folhas 39 a 46;

- Informação da PSP - folhas 76 (inexistência de registos ou manifestos de armas de fogo em nome do arguido);

- Documentação clínica e relatórios periciais – folhas 100, 138-146;

- Fotografias - folhas 110 a 115 (bucha, roupas e chinelos);

- Relatório de exame pericial às roupas do arguido – folhas 168 a 170 (detetados resíduos de disparo de arma de fogo);

- Relatório - folhas 172 a 174;

- Admissão à urgência do assistente e fatura dos serviços hospitalares – folhas 279-280;

- Documentação fiscal do assistente – folhas 302vº-303 e 306-308.

Ponderou-se o teor do Certificado de Registo Criminal do arguido junto em 15.10.2021.

A situação pessoal, familiar, social e económica do arguido resultou das declarações que ele prestou, conjugadas com o teor do relatório social que foi junto em 10.05.2021.

O valor das roupas do assistente danificadas pelos chumbos resultou de ponderação feita com recurso à equidade e à experiência comum, que nos dizem que o valor de € 50,00 é ajustado e conforme à normalidade.

As sequelas do assistente que não se deram como provadas resultaram da espontaneidade das suas declarações, não as admitindo (por exemplo, a “depressão” ou o facto de não dormir - diz que dorme um pouco mal), ou da falta da competente prova pericial (os relatórios não se pronunciaram sobre o quantum doloris, sendo que o assistente foi sincero quanto à intensidade das dores, não as exagerando)”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da nulidade por falta de fundamentação.

Na motivação do recurso argui-se a nulidade do acórdão, ao abrigo do disposto nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, por falta de fundamentação da decisão fáctica relativa à distância do disparo (facto dado como assente no acórdão revidendo sob o nº 5).

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “nulidade da sentença”, dispõe o artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal:

“É nula a sentença:

a) que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º (…)”.

Por sua vez, o artigo 374º do C. P. Penal, sobre os “requisitos da sentença”, estabelece:

“1. A sentença começa por um relatório, que contém:

(…).

2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Como bem salienta Marques Ferreira (in “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, Livraria Almedina, 1988, pág. 228), este regime legal, quanto à fundamentação da decisão de facto, consagra “um sistema que obriga a uma correta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do processo, de modo a permitir-se um efetivo controle da sua motivação”.

A razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova, consiste, no essencial, em permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do julgador.

É na motivação da decisão fáctica que se dá a conhecer e a compreender aos outros o processo lógico do julgamento, da apreciação e da valoração da prova. E é ainda esta motivação que permite a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, foi seguido um processo lógico e racional de apreciação da prova.

No dizer de Sérgio Gonçalves Poças (in “Da sentença penal - Fundamentação de facto”, Revista Julgar, ed. da ASJP, nº 3, pág. 37), o tribunal dará cumprimento ao disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, com indicação e exame crítico das provas, “ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões, de forma objetiva e precisa, por que é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e por que é que outras não serviram”.

Postos os antecedentes considerandos, e indo à fundamentação da decisão fáctica constante do acórdão em causa, na parte em apreço (distância do disparo), verifica-se que ficou consignado o seguinte:

- O arguido disse que “disparou para a frente e para o chão, a cerca de 40 metros de distância”.

- O assistente declarou “que o disparo se deu a 5, 6 metros de distância”.

- A testemunha N (Inspetor da Polícia Judiciária), depois de ponderar as características do evento, após conversas com os colegas, e pela sua experiência profissional, afirmou que “o disparo tinha sido a 20 metros”, considerando o depoente que, “a 40 metros, a dispersão dos chumbos seria muito maior e perdiam força”.

Com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, dizer isto, para fundamentar a opção fáctica tomada relativamente à distância do disparo, é suficiente, para os efeitos pretendidos pela lei.

Com efeito, na matéria em causa (distância do disparo) foi descrita toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento, e, além disso, com base nessa prova o Tribunal chegou a uma conclusão apreensível (quer pelos sujeitos processuais, quer pelo público em geral): o arguido situa o disparo a 40 metros de distância da vítima; a vítima situa-o a 5-6 metros; a testemunha N, habituado a tratar casos como o destes autos (ou seja, possuindo experiência profissional), situa tal distância a 20 metros. Por conseguinte, e dando maior credibilidade à versão do assistente (o que também ficou expressamente referido no acórdão revidendo), o Tribunal deu como provado que, na altura do disparo, o arguido “se encontrava a distância não exatamente apurada, mas certamente situada entre 5, 6 metros e 20 metros de distância” (facto provado nº 5).

Acresce que, a nosso ver, a distância do disparo releva, sobretudo, para apurar a “intenção de matar” com que o arguido atuou, sendo certo que essa “intenção de matar” não foi questionada no presente recurso (constitui, pois, factualidade não impugnada pelo recorrente).

A posição expressa pelo tribunal a quo neste ponto (distância do disparo) é, face ao predito, perfeitamente apreensível e foi suficientemente explicitada.

Na verdade, fez-se um normal silogismo: concluiu-se a distância do disparo a partir da valoração das declarações do assistente e do depoimento de uma testemunha, com exclusão da versão do arguido.

Ou seja, a decisão recorrida não contém qualquer salto lógico, de tal modo que seja incompreensível, tendo sido efetuadas a análise e a valoração da globalidade dos meios concretos de prova no tocante à distância a que o arguido disparou sobre o corpo do assistente.

Em suma: o tribunal a quo não se absteve de se pronunciar acerca das provas relativas à distância do disparo, sendo possível apreender o raciocínio lógico-dedutivo seguido para, em concreto, se dar por assente que o arguido disparou sobre o assistente “a distância não exatamente apurada, mas certamente situada entre 5, 6 metros e 20 metros de distância”.

Aliás, sinal disso mesmo é a circunstância de, na motivação do recurso, vir questionada essa factualidade e as provas em que a mesma está estribada, sendo certo que, no ponto seguinte do presente acórdão, este Tribunal ad quem irá apreciar se os juízos probatórios emitidos pelo tribunal de primeira instância (a propósito da distância do disparo) são ou não corretos.

Dito de outro modo: a fundamentação fáctica constante do acórdão revidendo, nesta matéria (distância do disparo), é apreensível pelos sujeitos processuais (entre eles o arguido), e é passível de ser escrutinada em sede de recurso (como o será de seguida), pelo que, assim sendo, cumpriu-se o dever legal de fundamentação da decisão fáctica, com exame crítico das provas, incluindo indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios de lógica, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formasse em determinado sentido.

Por tudo o que ficou dito, verifica-se que o acórdão recorrido satisfaz o disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal.

Tendo o acórdão em causa dado cumprimento a esse preceito legal, o mesmo não enferma da nulidade que lhe vem assacada na motivação do recurso.

Por isso, e nesta primeira vertente, o recurso interposto pelo arguido é de improceder.

b) Da impugnação alargada da matéria de facto.

Alega-se na motivação do recurso, em muito breve síntese, que a prova produzida na audiência de discussão e julgamento impõe uma decisão diversa relativamente ao facto dado como provado no acórdão revidendo sob o nº 5 (na parte relativa à distância a que o arguido disparou sobre o corpo do assistente).

Há que decidir.

A opção decisória tomada em primeira instância, face aos argumentos vertidos na motivação do recurso e perante as provas indicadas no acórdão sub judice, mostra-se inteiramente correta.

Com efeito, também para nós os elementos probatórios conduzem, de forma inequívoca (isenta de qualquer dúvida razoável), à conclusão de que o arguido disparou sobre o corpo do assistente a uma distância não superior a 20 metros, nos precisos termos dados como provados no acórdão recorrido.

Em primeiro lugar, não existe nenhum elemento probatório, constante de qualquer “perícia”, que contrarie, minimamente, a apontada distância do disparo.

Ou seja, a distância do disparo dada por assente em primeira instância não é colocada em crise pelas concretas lesões físicas apresentadas pelo assistente e causadas pelo disparo (lesões explicitadas nos “exames periciais” efetuados - o disparo apenas causou lesões que determinaram 27 dias de doença, sem afetação do trabalho geral e do trabalho profissional -), bem como não é contrariada por qualquer outro elemento de prova pericial.

Em segundo lugar, a versão do arguido, segundo a qual “disparou para a frente e para o chão, a cerca de 40 metros de distância”, não possui qualquer consistência ou verosimilhança.

Se alguém dispara para o chão, a cerca de 40 metros de distância da vítima, e conforme decorre das regras da lógica comumente aceite, não causa lesões do tipo e da gravidade das causadas no corpo do assistente.

Em terceiro lugar, o assistente, numa versão, essa sim, com maior adesão à realidade das coisas (às regras da experiência comum), afirmou, perentoriamente, que o disparo se deu a 5/6 metros de distância de si.

Em quarto lugar, a testemunha N (Inspetor da Polícia Judiciária), e ao contrário do alegado na motivação do recurso, não esclareceu apenas aquilo que “os colegas lhe contaram”.

Na verdade, a testemunha N foi ao local dos factos, dias depois dos mesmos terem ocorrido, participou na investigação, e, além disso, esclareceu, com conhecimento próprio, que, se o disparo tivesse sido feito a uma distância de 40 metros, a dispersão dos chumbos seria muito maior e perdiam força. Além disso, a testemunha F (também elemento da Polícia Judiciária) “apurou”, na investigação levada a cabo, que o disparo foi “direto”, isto é, não foi um disparo que bateu no chão e se dispersou (note-se que a testemunha F foi ao local dos factos e, aí, observou impactos de chumbos na habitação do pai da vítima, impactos que lhe permitiram afirmar que o disparo foi realizado “diretamente” - em frente -, e não para o chão).

Por último, a circunstância de as versões do arguido e do assistente serem tão díspares não significa que esteja impossibilitada a descoberta da verdade quanto à distância do disparo, ou que, pura e simplesmente, tenhamos de acolher a versão do arguido.

É que, devemos sopesar a globalidade da prova produzida, de acordo com as regras da experiência comum (da lógica comumente aceite), e, nomeadamente, devemos ter em conta os depoimentos das testemunhas acima analisados.

A esta luz, numa visão integral e complexiva da prova, nenhum reparo ou censura nos merece o ponto 5 da matéria de facto dada como provada no acórdão revidendo.

Posto o que precede, é de improceder esta segunda vertente do recurso interposto pelo arguido, considerando-se, em consequência, definitivamente fixada a matéria de facto dada como provada em primeira instância.

c) Da qualificação jurídica dos factos.

Alega-se na motivação do recurso, e em breve resumo, que o crime cometido é o crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, e não o crime de homicídio qualificado.

Cumpre decidir.

O arguido vem condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. e), do Código Penal (por a sua conduta ter ficado a dever-se a “motivo fútil”, revelando “especial censurabilidade”).

Como esclarece o Prof. Figueiredo Dias (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, págs. 32 e 33), “motivo torpe ou fútil” é aquele que, “avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.

Na significação corrente do termo, “motivo fútil” é aquele que tem pouca ou nenhuma importância, nulo, vão, inútil.

No dizer de Nélson Hungria, o “motivo fútil” traduz “o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral”, e, no entendimento de Bettiol, ocorre “motivo fútil” “sempre que seja possível estabelecer uma desproporção manifesta entre a gravidade do facto e a intensidade ou a natureza do motivo que impeliu à ação” (ambos os autores citados por Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, Editora Rei dos Livros, 2ª ed., Vol. II, pág. 43).

Dito de outro modo (talvez mais simples): “motivo fútil” é o motivo de importância mínima, a ninharia que leva o agente à prática do grave crime de homicídio, existindo inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida.

Por outro lado, a existência, num concreto caso, de alguma das circunstâncias referidas no nº 2 do artigo 132º do Código Penal não conduz, necessariamente, à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do nº 1 do mesmo artigo.

Para poder ser afirmada a especial censurabilidade ou perversidade do agente é ainda necessário que se conclua existir uma especial culpa, por referência à que é pressuposta na moldura penal do homicídio simples (artigo 131º do Código Penal).

Esse especial grau de culpa, subjacente à “especial censurabilidade ou perversidade” que o agente manifesta, é quilo que motiva a agravação do homicídio.

A “especial censurabilidade” revela-se quando as circunstâncias em que a morte foi perpetrada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.

Indo ao caso destes autos, e repetindo o acima já sumariamente dito, no acórdão recorrido considerou-se que o arguido, além de ter agido por “motivo fútil”, atuou manifestando “especial censurabilidade”.

Em nosso entender, o Tribunal de primeira instância decidiu bem (ao considerar que o arguido agiu por “motivo fútil” e revelou, com a sua conduta, “especial censurabilidade”).

Com efeito, na situação dos autos ficou demonstrado que, perante um pequeno desentendimento anterior, causado por o assistente dizer que o arguido tinha em sua posse uma bicicleta pertencente a terceira pessoa, e já depois de cessado esse desentendimento e de ambos terem abandonado o local do mesmo, o arguido, passados cerca de 20 minutos, e quando o assistente se encontrava sem hipótese de se defender, desferiu-lhe um tiro com uma arma caçadeira.

Para o efeito, e previamente ao disparo, o arguido deslocou-se para a sua casa, onde se muniu da espingarda caçadeira em questão, municiou-a, e, de seguida, foi à procura do assistente, com intenção de o atingir com um tiro de tal arma.

Quando avistou o assistente a sair do interior da habitação onde se encontrava, o arguido, de imediato, premiu o gatilho da espingarda, efetuando um disparo na direção do corpo do assistente.

Ora, o emprego de tal arma, nessas circunstâncias, revela, a nosso ver, uma especial censurabilidade da conduta do arguido, ou seja, um especial grau de culpa - que excede manifestamente o que está pressuposto na moldura penal do crime de homicídio previsto no artigo 131º do Código Penal -, pelo que o crime de homicídio cometido pelo arguido é um crime de homicídio qualificado (mostrando-se, assim, inteiramente correta a qualificação jurídica dos factos feita pelo tribunal a quo).

As concretas circunstâncias da conduta do arguido mostram-nos que este se determinou a matar o assistente por motivo fútil, baixo e gratuito, revelando o arguido um profundo desprezo pelo valor da vida humana, e tendo o arguido, ao atuar como atuou, revelado um especial grau de culpa (uma “especial censurabilidade”).

Subscrevemos, pois, o que ficou escrito no acórdão recorrido a este propósito (na parte aqui relevante): “o arguido e o assistente desentenderam-se pelas 03H30M e trocaram agressões mútuas, durante as quais o arguido diz que mata o assistente. E arguido e assistente desentenderam-se por este dizer que aquele tinha uma bicicleta, pertença de MC, que havia desaparecido. Depois de cessar esse desentendimento e essas agressões, ambos abandonaram o local, tendo BB ido até à casa do seu pai, sita na Rua …, nº …, na localidade da …. Por seu lado, o arguido, com o propósito de tirar a vida a BB, deslocou-se até sua casa, onde se muniu de uma espingarda caçadeira devidamente municiada e, de seguida, foi à procura deste, sendo acompanhado do seu filho S, ao tempo com 16 anos de idade. Pelas 03h50m, o arguido chegou próximo da casa do pai de BB. Este, ao ver dois vultos a passarem na rua e ao se ter apercebido que se tratava de AA e do filho deste, saiu do interior da habitação para ver para onde estes se dirigiam. Assim que BB saiu do interior da habitação, ainda junto à porta, o arguido, que se encontrava a distância não exatamente apurada, mas certamente situada entre 5, 6 metros e 20 metros de distância, voltou-se rapidamente e, de imediato, premiu o gatilho da espingarda e efetuou um disparo na direção do corpo do BB. Os chumbos provenientes do disparo atingiram BB no lado direito do corpo, causando diversas perfurações entre a zona das pernas e a zona da cabeça, onde ficaram alojadas, tendo o ofendido ficado com dores nas zonas atingidas. De seguida, o arguido abandonou o local. As razões que estão na base do disparo da caçadeira (agressões e desentendimento ocorridos cerca de 20 minutos antes, por causa do desaparecimento de uma bicicleta de um terceiro, dizendo o assistente ao arguido que a mesma estava na posse deste) e o disparo que atingiu o assistente são claramente desproporcionadas”.

Em jeito de síntese: nenhuma censura ou reparo nos merece a decisão do Tribunal de primeira instância, quando entendeu que o arguido cometeu um crime de homicídio qualificado (na forma tentada), p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. e), do Código Penal, porquanto o arguido agiu por “motivo fútil” e em circunstâncias que revelam “especial censurabilidade”.

Pelo exposto, encontram-se reunidos todos os elementos necessários à punição do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. e), do Código Penal (crime pelo qual o arguido vem condenado no acórdão sub judice).

Por conseguinte, e também nesta vertente (qualificação jurídica dos factos), o recurso do arguido é de improceder.

d) Da determinação da medida concreta da pena e da suspensão da execução da pena.

Alega-se na motivação do recurso que a pena aplicada pelo tribunal a quo é manifestamente excessiva, devendo operar-se uma redução da mesma para medida inferior a 5 anos.

Mais se alega que a pena de prisão a aplicar dever ser suspensa na respetiva execução.

Cabe decidir.

O crime de homicídio qualificado (na forma tentada) praticado pelo arguido é punido, em abstrato, com pena de prisão situada entre 2 anos, 4 meses e 24 dias (limite mínimo) e 16 anos e 8 meses (limite máximo da moldura penal abstrata).

Como o arguido praticou os factos através do uso de uma arma, e face ao disposto no artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23/02, a pena aplicável ao crime cometido é agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo.

Assim, perante esta agravação (de um terço nos seus limites mínimo e máximo), o crime cometido pelo arguido passa a ser punido, em abstrato, com pena de prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias (limite mínimo) até 22 anos, 2 meses e 20 dias (limite máximo).

Dentro desta moldura penal abstrata, o arguido foi condenado, no acórdão revidendo, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

Cabe-nos averiguar e decidir da correção desta fixação da medida concreta da pena.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim o delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, tradução da 2ª edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), em asserção perfeitamente consonante com os princípios basilares do direito penal português, “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada”.

Mais refere o mesmo autor (ob. citada, pág. 101) que “a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, escreve ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103): “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

À luz dos anteriores considerandos, e retomando o caso concreto destes autos, há que atender aos seguintes elementos essenciais:

- O grau de culpa, sendo que o arguido agiu com dolo direto e intenso.

- O grau de ilicitude, que é muito elevado, olhando ao modo de execução dos factos (revelador de grande frieza e de especial insensibilidade do arguido).

- As exigências de prevenção geral, que são aqui muito relevantes, face à natureza e aos concretos contornos do crime cometido, crime que é, claramente, gerador de justificado alarme social e de compreensível sentimento de insegurança na população.

- Os sentimentos manifestados pelo arguido no cometimento do crime, sentimentos que, a nosso ver, configuram a existência de uma deformação da personalidade do arguido, porquanto o arguido, sem motivação relevante e com total desprezo pela vida da vítima, desferiu-lhe um tiro com uma arma caçadeira.

- Contra o arguido temos ainda as suas anteriores condenações criminais (sete condenações: quatro por crimes de condução sem habilitação legal, uma por um crime de roubo, uma por um crime de roubo qualificado e outra por um crime de ofensa à integridade física qualificada).

- A favor do arguido, há que ponderar que o mesmo possui hábitos de trabalho e vive com uma filha menor.

Ponderados todos os apontados elementos, na sua globalidade complexiva, entendemos que a pena aplicada em primeira instância (5 anos e 6 meses de prisão) se mostra totalmente ajustada, adequada e proporcional.

Ou seja, nenhum elemento, isoladamente considerado ou em conjugação com outros, impõe, justifica ou aconselha uma qualquer compressão da pena fixada no acórdão revidendo (5 anos e 6 meses de prisão), a qual, por um lado, não ultrapassa o limite da culpa do arguido, e, por outro lado, é inteiramente idónea a satisfazer as necessidades de prevenção (geral e especial) que no caso se fazem sentir.

*

Alega o recorrente que a pena estabelecida nestes autos deve ser suspensa na sua execução.

Nos termos do disposto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Uma vez que a pena aplicada ao arguido é de 5 anos e 6 meses de prisão, e face ao preceituado no transcrito preceito legal, não é legalmente possível, na presente situação, a ponderação da suspensão da execução da pena (porquanto a pena de prisão foi aplicada “em medida superior a 5 anos”).

Face ao predito, e em toda esta vertente, é de improceder o recurso interposto pelo arguido (sendo, pois, de manter a pena aplicada pelo Tribunal de primeira instância).

e) Da indemnização por danos não patrimoniais.

Alega-se na motivação do recurso que o montante estabelecido a título de ressarcimento por danos não patrimoniais (20.000 euros) é excessivo, devendo essa indemnização ser fixada em 10.000 euros.

Há que decidir.

O demandante pediu a condenação do arguido no pagamento da quantia de 40.000 euros a título de ressarcimento pelos danos não patrimoniais sofridos.

O Tribunal a quo fixou tal indemnização (por danos não patrimoniais) em 20.000 euros.

Conceitualmente, o dano pode definir-se como sendo toda a desvantagem ou perda que é causada nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não.

Como é sabido, os danos podem ter duas naturezas: patrimoniais e não patrimoniais.

O dano não patrimonial (o único que está em discussão no presente recurso) é regulado pelo disposto no artigo 496º do Código Civil, o qual preceitua:

“1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 - (....).

3 - O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com o direito a indemnização nos termos do número anterior”.

Assim, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, releva a gravidade do dano causado, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

É necessário considerar, desde logo, que estes elementos têm, no seu todo, uma dupla finalidade: a da reparação dos danos causados e a da sanção ou reprovação do agente no plano civilístico, com os meios adequados do direito privado (cfr., neste sentido, Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 9ª edição, Vol. I, pág. 630).

Por outro lado, e a nosso ver, na fixação equitativa do valor da indemnização deve ter-se sempre presente que os montantes não devem ser tão escassos que possam ser vistos como miserabilistas, nem tão elevados que possam assumir-se como enriquecimento indevido.

Na fixação do montante da indemnização em análise deve o tribunal orientar-se por um critério de equidade, que não pode fazer corresponder a indemnização a um enriquecimento despropositado do lesado, nem a uma simples esmola, a um valor meramente simbólico.

Nesta perspetiva, tem existido uma acentuada tendência para a elevação das indemnizações a arbitrar em casos como o dos autos, de maneira a ultrapassar uma certa timidez que se tinha instalado na prática dos nossos tribunais e a acompanhar a evolução positiva dos padrões económicos da nossa sociedade, geradora de maiores hábitos de consumo por parte das famílias, pretendendo-se que o lesado atinja prazeres e bem estar que de algum modo lhe façam esquecer ou mitigar o sofrimento causado pela lesão.

Devem incluir-se entre os danos não patrimoniais indemnizáveis as dores físicas e psíquicas, a perturbação da pessoa, os sofrimentos morais, e os prejuízos na vida e relação sociais, sobretudo os provenientes de deformações estéticas.

A este respeito, escreve o Prof. Antunes Varela (ob. citada, págs. 599 e 600) que “o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (...)”.

Como lucidamente refere Dario Martins de Almeida (in “Manual de Acidentes de Viação”, 2ª ed., Coimbra, 1980, págs. 103 e 104), “quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa. A equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo”.

Do exposto decorre que o tribunal, para a fixação dos danos não patrimoniais, no cumprimento da disposição legal acima transcrita que determina que se julgue de acordo com a equidade (artigo 496º do Código Civil), deverá atender aos elementos expressamente previstos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que derivam da matéria de facto provada. Isto com a finalidade de, após a adequada ponderação, poder concluir sobre o valor pecuniário que no caso concreto se mostra justo e adequado.

Nesta perspetiva, ficou provado no acórdão recorrido, na parte aqui relevante, que, em consequência direta e necessária do disparo desferido pelo arguido, o demandante sofreu as seguintes lesões:

- Na face: lesão deprimida avermelhada ao nível da porção inferior da região malar direita, medindo 2 x 1 mm; crosta acastanhada na região bocal direita, medindo 2 mm, com aspeto edemaciado;

- No pescoço: área acastanhada oblíqua inferoanteriormente na porção média da região cervical lateral direita medindo 4 x 1 cm; inferiormente, outra área idêntica medindo 1 x 0,5 cm;

- No tórax: lesão com crosta de 2mm de diâmetro na porção superior da região mamária direita, rodeada por extenso halo equimótico esverdeado; escoriação com crosta em evolução, transversal, no terço médio da face lateral do hemitórax esquerdo, inferiormente à região axilar, medindo 1 x 0,2 cm;

- No abdómen: área com crosta medindo 3 mm no hipocôndrio esquerdo com halo arroxeado perilesional;

- No membro superior direito: lesão com crosta de 2mm de diâmetro na face anterior do ombro esquerdo rodeada por extenso halo equimótico esverdeado; escoriação com crosta no terço inferior da face medial do braço, medindo 1 cm; inferiormente, ao nível do antebraço, outras três escoriações, a maior medindo 3mm; vários vestígios de crosta dispersos na face posterior do antebraço;

- No membro superior esquerdo: vários vestígios de escoriações milimétricas com crosta dispersas pelo antebraço;

- No membro inferior direito: lesão com crosta no terço superior da face anterior da coxa medindo 2 mm com halo eritematoso; lesão com crosta hemorrágica inferiormente à qual se equimose arroxeada medindo 4 x 4 cm com halo amarelado.

- Tais lesões causaram ao demandante um período de doença de 27 dias, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e para o trabalho profissional.

- Em consequência direta e necessária da conduta delitiva do arguido, o demandante sentiu (e sente) medo do arguido.

- Dorme um pouco mal e sente-se nervoso, ansioso, assustado e envergonhado.

- Deixou de frequentar com a mesma intensidade os sítios que habitualmente frequentava, com medo de se cruzar com o arguido, passando mais tempo em casa com a companheira.

- Deixou de fazer determinadas atividades, por sentir desconforto e dor.

- Apresenta cicatrizes/áreas hiperpigmentadas em certas zonas do corpo, as quais não são gravemente desfigurantes ou causa de incapacidade para o trabalho.

- Sente medo de ter que se submeter a cirurgias para extração dos chumbos.

Ora, vista a relativamente grande gravidade dos danos físicos e psíquicos causados ao demandante, e tendo em conta todo o demais circunstancialismo que o acervo factológico provado nos dá a conhecer, com particular destaque para a humilde condição económica do arguido e para as concretas circunstâncias em que ocorreu o disparo efetuado sobre o corpo do demandante (tendo o arguido atuado sem qualquer motivo minimamente compreensível de um ponto de vista humano - disparando um tiro de caçadeira sobre o demandante por motivo fútil -), temos como justo e equilibrado o quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, afigurando-se-nos este perfeitamente consentâneo com a apreciação global e complexiva de todos os elementos relevantes para o efeito (e antes enunciados).

Em conclusão: é de manter inalterado o montante de 20.000 euros fixado no acórdão recorrido a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante.

Assim sendo, e também neste último segmento (relativo ao pedido de indemnização civil), o recurso do arguido não merece provimento.

Olhando a tudo o que ficou dito, o recurso interposto pelo arguido é totalmente de improceder.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 10 de maio de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Gilberto da Cunha