Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1413/19.0PBSTB-A.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PERSEGUIÇÃO
CONCURSO DE NORMAS
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O crime de violência doméstica pode estar em relação de concurso aparente com o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Código Penal.

2 - A proliferação de novos tipos penais resultantes da nova criminologia activista não significa que possamos afastar as regras consagradas pelo direito penal e, neste campo do concurso de normas, é imperativo que se note que as regras da especialidade e da consunção têm uma clara definição dada pela doutrina que não podemos reverter.

3 - No caso, recordando que a lex generalis é a violência doméstica e que a lex specialis é a perseguição, resulta a exclusão da lei geral pela lei aplicação da lei especial.

4 - A idêntico resultado se chegaria pela regra da consunção, através das “relações de mais e menos” – o que ocorre aqui com os dois citados tipos penais – de forma que “uma norma consome já a protecção que a outra visa” e aqui a lex consumens é o tipo penal de “perseguição”, cujo tipo penal tem como bem jurídico tutelado «tanto a paz pessoal como a liberdade de decisão e ação».

5 - Se numa situação de stalking se pode antecipar ou imaginar um risco de violência futura, há que fazer o mínimo esforço para densificar a natureza das razões da perseguição, pois que esta pode estar assente numa justificação por percepção de legitimidade acertada – injustiça percepcionada no exercício do poder parental com as razões da insatisfação mal direccionadas ou manifestadas de forma errada – ou, pelo contrário, demonstrarem-se ideações assentes em fenómenos psicológicos, psicose, psicopatias ou qualquer perturbação da personalidade, que minimamente indicie o risco futuro de violência.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Inquérito que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Instrução Criminal, 2, a Mmª. Juíza de Instrução lavrou despacho em sede de primeiro interrogatório judicial efectuado a 04 de Março de 2020 a determinar que o arguido (...) - incurso na prática de um crime de perseguição, p. e p. pelo 154º-A do Código Penal e punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa - ficasse sujeito a medida de coacção de apresentações periódicas, todos os dias, em horário de escolha do arguido e no OPC da área da sua residência.


*

Inconformada com aquela decisão a Digna Procuradora-Adjunto do mesmo tribunal interpôs o presente recurso, pedindo a sua procedência pela revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que sujeite o arguido a prisão preventiva, com as seguintes conclusões:

1ª) – A M. ª mª Juiz de Instrução Criminal decidiu aplicar ao arguido as medidas de coacção de TIR já prestado, e de apresentações periódicas, todos os dias, em horário de escolha do arguido e no OPC da área da sua residência, com início no dia de amanhã, nos termos, portanto, se aplica ao arguido a medida supra referenciada, nos termos dos artigos 191, a 193º, 198º, 204º al. c), todos do C.P.P;

2ª)- Decidiu ainda a M. ª m.ª Juiz de Instrução Criminal que “face à limitação dos factos que integram o crime de violência doméstica, parece que os mesmo, salvo melhor opinião e respeito, em contrário, não permitem concluir que o arguido terá incorrido na prática de um crime de violência doméstica, na modalidade de maus tratos psíquicos, mas, a nosso ver, tal conduta reiterada e consubstanciada num conjunto de actos sucessivamente praticados pelo arguido, aptos a provocar na ofendida medo e inquietação e também a limitar a sua liberdade, consubstanciam, a nosso ver, um crime de perseguição p.p. pelo 154ºA do Código Penal e punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa. Trata-se de normativos legais – o de violência doméstica e de perseguição – que se encontram numa situação de concurso aparente”;

3ª)- Ora, salvo melhor entendimento, considera o Min. Público que os factos em investigação nos presentes autos consubstanciam a prática pelo arguido em autoria material, na forma consumada e em concurso real de um crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido nos termos art.º 152º, nº 1 al. b) e, nº 2, al. a) do Código Penal, de doze crimes de violação de proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353 do Cód. Penal e de um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212º do Cód. Penal, pelo que as medidas de coacção aplicadas ao arguido pela Mmª Juiz de Instrução Criminal, não são as mais adequadas para fazer cessar os perigos que considerou verificarem-se no caso concreto em investigação autos.

4ª)-Dispõe o artigo 152.º, n.º1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, é punido com uma pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, sendo que, nos termos do n.º 2, alínea a), do citado preceito, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

5ª)- Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque (em Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015, págs. 592 a 594) que concretiza: “os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coação simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.º, n.º 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.º, n.º 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.º, n.º 2 ou 3, e os crimes contra a honra”.

6ª) E entendemos que esta relação de especialidade, também se verifica quanto ao crime de perseguição p. e p. pelo art.º 154º -A do Cód. Penal, o qual estará consumido pelo crime de violência doméstica, quando em causa estiver uma relação de “garante” ou de “especial proximidade “ entre o agressor e a vitima, como sucede “ in casu “. Isto é, o preceito legal em questão abrange as mais variadas espécies de condutas, que até poderiam sobreviver como crimes autónomos se não estivessem unificadas na unidade de sentido que lhes é conferida pela figura jurídica prevista na norma referida.

7ª) -Não é por acaso que o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coação, sequestro, perseguição, etc , uma vez que, não só o bem jurídico tutelado pela respetiva norma incriminadora é distinto, como a relação de especial proximidade entre a vitima e o arguido implica maior gravidade da conduta, nomeadamente quando ocorre no domicilio da vitima, ou perante filho menor de idade de ambos, aliás, como se verifica no caso em investigação nos presentes autos. O que conta é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos” físicos e /ou psicológicos.

8ª)- A questão que se coloca é, assim, a de saber se tais comportamentos revelam o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime.

9ª)- Ora, olhando para a factualidade que se mostra fortemente indiciada nos autos, melhor descrita do despacho do Min. Pública de apresentação de arguido a primeiro interrogatório judicial, constante de fls. 155 e ss, verificamos que, as condutas reiteradamente adoptadas pelo arguido, manifestam um especial desvalor da acção e particular danosidade social.

10ª) - Atenta a factualidade supra referenciada entende o Min. Público que a única medida adequada e proporcional à gravidade dos crimes imputados ao arguido, para afastar os perigos que se verificam “ in casu “ é a medida de coacção de prisão preventiva, nos termos e para os efeitos nos artigos 191º, 192º, 193º, 196º, 202º, n.º 1 al. c) e e) e 204º al. b) e c), todos do C.P.P.

11ª) -O crime de violência doméstica agravado é punível com pena de prisão de dois a cinco anos, pelo que integra além do mais, o conceito de criminalidade violenta prevista no art.º 1, al. j) do CPP, pelo que admite a aplicação da medida de coacção prisão preventiva, nos termos e para efeitos do disposto no art.º 202º, n.º 1, al. b) também do CPP.

12ª)-Apesar de o arguido ter sido condenado por sentença proferida no âmbito do Processo (…) do 2º juízo Criminal desta Comarca de Setúbal, transitada em Julgado aos 14.05.2018, sobre a ofendida (...), do crime de violência p. e p. pelo art..º 152º n.º s 1 als. b) , n.º 2 e 4 do Cód. Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, e ainda nas penas acessórias de acessória de proibição de contacto com a ofendida, por qualquer forma, onde se inclui o afastamento da residência e do seu local de trabalho a um raio de distancia não inferior a 500 metros, sendo o cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distancia , não cumpriu nenhuma destas penas acessórias.

13ª)-Assim sendo, verificamos que pelo menos desde Março de 2016, o arguido tem persistido na sua conduta delituosa contra a ofendida (...), sua ex-companheira, com que tem um filho em comum, menor de idade, e nem a condenação supra referenciada, o levou a cessar os seus intentos.

14ª)-O arguido manifesta desprezo, elevada desconsideração, desejo de humilhar, de atemorizar, e de colocar em causa a paz e o sossego da ofendida, sendo que com as suas condutas coloca igualmente em causa a estabilidade psicológica da ex-companheira. Estamos perante verdadeiros maus tratos psicológicos.

15ª) -Atenta a personalidade demonstrada pelo arguido, o qual procura reiteradamente a vitima, pessoalmente, ou por SMS, para a ameaçar, injuriar e perseguir, mesmo depois de te sido condenado em pena de prisão suspensa na sua execução por crime idêntico no âmbito do processo supra identificado, mostram-se evidentes os riscos de continuidade da actividade criminosa e de perturbação do inquérito, caso o arguido volte a contactar a ofendida, mostrando-se premente e imprescindível acautelar a protecção dos interesses desta.

16ª)-Verificam-se por isso em concreto perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação do inquérito, caso o arguido continue a poder manter contactos com a ex-companheira, principal testemunha nestes autos, a quem já referiu que tem em seu poder arma de fogo, com o intuito de a fazer recear pela sua vida ( cfr. art.º 204º, als. b) e c) do Código de Processo Penal).

17ª)-O ilícito de violência doméstica é também só por si gerador de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, atendendo a que segundo o relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas, divulgado no passado dia 18.02.2019, entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2018, foram registados 28 homicídios de mulheres por ( ex) maridos, (ex) companheiros e (ex) namorados.

18ª)-Acresce que o casal tem um filho comum menor de idade, e já o relatório referente ao ano de 2018 (último disponível) da CNPCJR (Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens em Risco) refere que foram comunicado às CPCJs 13 905 casos de crianças expostas a comportamentos que as põe em perigo, sendo que em 11,9 % (1.661) dos casos esse perigo resulta de exposição a violência doméstica.

19ª)-O Min. Público não concorda com as medidas de coação aplicadas pela M.ª m.ª Juiz de Instrução Criminal, salvo o devido respeito por opinião contrária, por considerar tais medidas desadequadas e desproporcionais à gravidade dos factos indiciariamente imputados ao arguido, pelo que a referida decisão é desrespeitadora do disposto no art.º 193º n.ºs 1 e 2 do CPP, atendendo a que as condutas ilícitas adoptadas pelo arguido, consubstanciam a prática por este, em concurso real, de um crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido nos termos art.º 152º, nº 1 al. b) e, nº 2, al. a) do Código Penal, de doze crimes de violação de proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353 do Cód. Penal e de um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212º do Cód. Penal.

20ª)-A medida de coacção aplicada pela M. º mª Juiz de Instrução Criminal, apresentações periódicas diárias no OPC da área da sua residência, não é só por si suficientes para impedir que o arguido concretize o plano que iniciou, em Março de 2016, de reiteradamente, dirigir à sua ex-companheira (...), expressões e condutas atemorizadoras e humilhantes, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua vida e integridade física, cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando o seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua dignidade humana e pondo em causa a sua paz e sossego.

21ª)-Com a aplicação da medida de coação determinada pela M. m.ª Juiz de Instrução, o arguido poderá continuar a circulará por esta cidade de Setúbal, sem qualquer controlo, sendo que nesta cidade também reside a vitima, o que potencia a verificação dos perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito.

22ª)-Acresce que, o arguido não cumpriu até ao momento, as penas acessórias aplicadas por sentença, transitada em julgado, no âmbito do supra identificado processo n.º (…), e, portanto, também as medidas de coação de proibição de contactos com a ofendida, não se mostram adequadas a afastar os perigos referidos.

23ª)-O crime de violência doméstica por si só pressupõe a existência de uma relação de proximidade entre o arguido e a ofendida, os quais já estiveram ou ainda estão unidos numa relação de casamento, de união de facto ou mesmo de namoro.

24ª)-Ora, é bem sabido que este tipo de relacionamento, potencia a possibilidade de contactos ocasionais do arguido com a ofendida, seja em casa de familiares ou amigos comuns do “ anterior “ casal, seja em locais públicos existentes na cidade vivem, seja por causa do filho menor de idade que tem em comum, com consequências sempre imprevisíveis, e que por vezes, infelizmente terminam com a morte da vítima, sendo certo que o arguido, por SMS, comunicou à ex-companheira que tem em seu poder uma arma de fogo de calibre 6,35 mm,

25ª)-Esta relação de proximidade que existe ou existiu entre o arguido e a ofendida, leva a que aquele tenha conhecimento das rotinas diárias da vítima, assim como da localização do seu local de trabalho, da sua residência, e dos espaços lúdicos que esta goste de frequentar, o que só por si potencia a possibilidade de contactos indevidos.

26ª)-Por tudo o exposto, entende a recorrente que só impondo ao arguido medida de coacção privativa de liberdade, prisão preventiva, impedirá que o arguido perpetua as suas condutas maltratantes.

27ª)-E sempre nos caberá ainda acrescentar, que o facto de o arguido ter antecedentes criminais pela prática de crime de violência doméstica, praticado sobre a mesma ofendida, sua ex-companheira, mãe do seu filho menor de idade, levou o Min. Público a requerer a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

28ª)-A medida de coacção cuja aplicação foi promovida pelo Min. Público em sede de primeiro interrogatório judicial do arguido, é necessária e proporcional à gravidade dos factos imputados ao arguido, e é a única adequada a garantir que os perigos de continuidade da actividade criminosa, de perturbação do inquérito, assim como de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, não se concretizarão.

Pelo exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que aplique ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, tudo nos termos e para efeitos do disposto nos art.ºs 191º, 192º, 193º, 196º, 202º n.º 1 als. b) e 204º al.s b) e c) todos do CPP.


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O arguido não apresentou resposta.

Nesta Relação o Exm Procurador-geral Adjunto emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, os factos que o Ministério Público considerou indiciados e respectiva qualificação jurídica, assim como o teor do despacho judicial recorrido:

B.1.a) - Factos indiciados e como tal declarados pelo despcho judicial recorrido:


«DESPACHO

“O Tribunal valida a detenção do arguido, realizada fora de flagrante delito, mediante mandados emitidos pelo Magistrado do Ministério Público, no dia de hoje, 04-03-2020, às 08:30, tendo sido cumprido o prazo legal que alude o artigo 141º do CPP., tudo ao abrigo do disposto nos artigos 254º, n.º1, al. a), art.ºs 257º a 260º do C.P.P..

O Tribunal considera fortemente indiciados os factos que ora se descriminam:

1º O arguido (...) e a ofendida (...) iniciaram uma relação de namoro no final do ano de 2010.

2º De 23 de Março de 2015 a 10 de Março de 2016, o arguido e a ofendida mantiveram relação análoga à dos cônjuges, partilhando cama e mesa, primeiro numa casa arrendada situada em Sesimbra, e posteriormente o casal fixou a residência comum em Setúbal, mais precisamente na Rua (…).

3º Deste relacionamento, resultou o nascimento do filho comum do casal, (…).

4º Por Sentença proferida no Processo (…) do 2º juízo Criminal desta Comarca de Setúbal, transitada em Julgado aos 14.05.2018, o arguido foi condenado pela prática, sobre a ofendida (...), de um crime de violência doméstica, agravado, p e p no art. 152º, nº1, al. b) e nº2, 4 e 5 do C. Penal na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.

5º Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, por qualquer forma, onde se inclui o afastamento da residência e do seu local de trabalho a um raio de distância não inferior a 500 metros, sendo o cumprimento fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6º O arguido ficou bem ciente do conteúdo da Sentença em que foi condenado.

7º No entanto, após a data do trânsito da mesma Sentença, o arguido vem persistindo no mesmo comportamento, continuando a procurar a sua ex-companheira, nomeadamente, junto da sua residência e Escola do filho de ambos.

Assim,

8º O arguido aproximou-se da residência de (...) sita na (…), nas seguintes ocasiões:

- dia 04/08/2019;

- dia 12/09/2019

- dia 09/10/2019;

9º No âmbito da pena acessória aplicada por sentença proferida no processo supra referenciado, arguido está proibido de se aproximar da residência de (...) a um raio de distancia não inferior a 500 metros.

10º Nas referidas datas e horas, o arguido entrou na zona de exclusão fixada em torno da residência da ofendida na qual não pode permanecer, nem circular.

11º Em todas essas ocasiões (...) foi contactada pela Policia de Segurança Publica informando que o arguido se encontrava a violar a área de restrição.

13º A partir do mês de Agosto de 2019, o arguido utilizando telemóvel de sua propriedade com o n.º (…), começou a enviar reiteradamente SMS´s para o telemóvel propriedade da ofendida, com o n.º (…), nos quais lhe dirige as expressões constantes dos prints juntos aos autos de fls. 65 e ss, que aqui se dão por reproduzidos.

14º No dia 31 de Outubro de 2019, pelas 16h49m, o arguido que conduzia o veículo, marca Renault, modelo Megane, matrícula (…), avistou o veículo conduzido pela ofendida (...) que seguia acompanhada do filho menor de ambos e se dirigia à sua residência e de imediato foi no encalce da mesma.

15º O arguido seguiu a ofendida, por várias artérias da cidade de Setúbal, efetuando, por diversas vezes, travagens bruscas junta à traseira do veículo conduzido por (...), buzinando reiteradamente.

16º Esta conduta atemorizou a ofendida, que receando pela sua integridade física, assim como pela do seu filho menor de idade, se deslocou até à Loja explorada pela sua progenitora, sita na Rua (…), e refugiou-se no seu interior.

17º Acto contínuo, o arguido sem nunca parar o veículo, passou junto a esta Loja, e reportando-se á ofendida, proferiu em voz alta as seguintes expressões “Filha da Puta…Onde é que está o meu filho“.

18º Apesar da condenação sofrida o arguido continuou a procurar a ofendida, sua ex-companheira, nomeadamente, na sua residência.

19º Entre os dias 29 de Agosto e 2 de Setembro de 2019, o arguido utilizando o seu telemóvel com o n.º (…), enviou diversos SMS´s, para o telemóvel propriedade da progenitora da ofendida, mas dirigindo-se a esta última, nos quais lhe dirige expressões constantes dos prints a fls. 68 e seguintes, referindo nomeadamente que possui arma de fogo de calibre 6,35 que transporta diariamente consigo.

20º No dia 3 de Dezembro de 2019, pelas 20.18 horas, o arguido dirigiu-se ao veículo matricula (…), propriedade da ofendida, o qual se encontrava estacionado junto da residência desta, e perfurou-lhe os quatro pneus, riscando ainda os dois espelhos retrovisores, bem sabendo que com esta conduta agiu contra a vontade da proprietária, provocando danos de valor ainda não apurado.

21º Ao actuar como descrito quis e conseguiu o arguido violar imposição e interdição aplicada por Sentença Criminal a título de pena acessória.

22º Fê-lo, pelo menos, em ocasiões distintas e, em cada uma, de modo voluntário, livre e consciente.

23º Os factos descritos nos art.ºs 14º a 16º ocorreram na presença do filho menor do casal.

24º O arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que, de forma reiterada dirigia à sua ex-companheira (...), expressões e condutas atemorizadoras, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua integridade física, cerceando assim a sua liberdade pessoal, prejudicando o seu bem-estar psicossocial, pondo em causa a sua paz e sossego.

25º Do modo descrito no artigo 20, o arguido causou estragos no veículo da ofendida cujo valor do arranjo não será inferior a 200,00 euros.

26º Sabia o arguido que não podia provocar tais estragos no referido veículo, pois que o mesmo não lhe pertencia, e que agia contra a vontade da respectivo dona.

27º O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedor da ilicitude dos seus actos.

28º O arguido sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.»


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B.1.b) - É o seguinte o teor do despacho recorrido e qualificação jurídica:

«Manifesto é, que o arguido foi condenado no âmbito dos autos (…) que correram termos no juízo 2 da Local Criminal de Setúbal com decisão transitada em julgada em 14/05/2018 pela prática de um crime de violência domestica agravado na pessoa de (...) em pena de prisão suspensa na sua execução com regime de prova e proibição de contactar a ofendida por qualquer forma e meio, incluindo o afastamento do local de trabalho e residência desta, em raio não inferior a 500 metros. Ambos, arguido e ofendido, encontram-se sujeitos a meios de vigilância em tais autos, constando dos presentes autos, relatório de incidente, dando conta que nas 3 datas supra elencadas (agosto, Setembro e Outubro), o arguido violou o espaço de exclusão de 500 metros, ainda que, segundo declarações da própria ofendida, nunca a contactou.

De igual modo, afigura-se-nos patente que o envio de mensagens escritas nomeadamente à ofendida, ainda que, algumas, de teor aparentemente inócuo, consubstancia a violação de tal pena acessória.

De igual modo, podemos considerar fortemente indiciado que terá sido o arguido a danificar o carro da ofendida, que conhecia bem, como o local da sua residência, considerando a conduta persistente e reiterada do arguido no sentido da violação da aludida pena acessória, considerando que existe nos autos relatório de incidente dando conta da sua presença, em tal data, na área de exclusão referenciada na aludida decisão e para qual os meios electrónicos de vigilância se mostram calibrados. Ainda qua não existam testemunhos de tal ocorrência, o contexto dos factos e o comportamento fortemente indiciado do arguido, permite, em termos lógicos e de plausibilidade concluir que terá sido ele, e não terceiros, a praticar tais factos.

Relativamente aos demais factos dados como fortemente indiciários, eles resultam das declarações da aqui ofendia (...), corroborados, no que toca ao episodio de 31/10/2019 pelo testemunho de algumas pessoas, mormente, a sua mãe e clientes da mercearia. Esta, mãe, que afirma até que a filha não se encontrava presente aquando das expressões proferidas pelo arguido reportadas à ofendida.

Relativamente às mensagens, os seus prints resultam dos autos, sendo que algumas aludem a questões relativas ao filho menor do casal, outras reportam-se a assuntos inócuos, como veículos automóveis e, pelo menos uma, contém o que é uma aparente ameaça velada, embora não directamente dirigida a aqui ofendida, isto é, a mensagens reportada à arma 6.35. De qualquer modo, independentemente do conteúdo das mesma sms´s, a verdade é que do seu envio infere-se claramente uma intenção por parte do arguido de não deixar em paz a ofendida, tentando perturba-la e, pelo menos, quanto à expressão supra tentado, até provocar receio e medo.

De igual modo, resulta das declarações da própria ofendida que o arguido, em dois locais distintos se aproximou da sua residência, embora nunca a tenha contactado pessoalmente. Das declarações desta de fls. 61 e seguintes, retira-se, igualmente, que a partir de agosto de 2019 (após toques iniciais) o arguido lhe envia sms's com periocidade que diz ser de 4 a 5 chamadas por semana, chamadas de que não há prova nos autos e quanto aos sms's, os mesmos reportam-se às seguintes datas: 21/08/, 06/09, 09/10, 16/10, 01/11, 12/11, 14/11, e 15/11 (as dirigidas à ofendida) e as dirigidas à sua progenitora, de 02/09, 29/08, (várias).

Daqui resulta, de forma manifesta, que tais sms's não podem ser consideradas como uma periocidade de forma diária.

Analisado o seu teor, de igual modo, não as podemos considerar humilhantes, nem, com ressalva à referida arma, atemorizadoras.

Temos, pois, que as condutas que integrarão o invocado crime de violência doméstica se reportam essencialmente aos dois conjuntos de sms´s, constantes dos artigos 13º e 19º e à situação ocorrida no dia 31 de Outubro, porquanto, os demais factos, reportar-se-ão ao crime de dano e aos crimes de violação de proibições e interdições.

Temos que, igualmente, frisar que não se vislumbra de onde resultaram as demais perseguições na via pública elencadas no artigo 18º, com ressalva ao dia 31 de Outubro, nem se logra perceber de onde resulta o teor do artigo 12º, com ressalva do acontecido nesse mesmo dia 31 de Outubro. Tal factualidade não resultará, parece-nos, nomeadamente das declarações da ofendida de fls. 61 e seguintes.

Desta forma e pelas razões supra exposta, afigura-se-nos fortemente indicado os factos supra, nos termos em que o tribunal tal o considerou.

Como se estava a dizer, face à limitação dos factos que integram os crime de violência doméstica, parece-nos que os mesmo, salvo melhor opinião e respeito, em contrário, não permitem concluir que o arguido terá incorrido na prática de um crime de violência doméstica, na modalidade de maus tratos psíquicos, mas, a nosso ver, tal conduta reiterada e consubstanciada num conjunto de actos sucessivamente praticados pelo arguido, aptos a provocar na ofendida medo e inquietação e também a limitar a sua liberdade, consubstanciam, a nosso ver, um crime de perseguição, p. e p. pelo 154ºA do Código Penal e punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.

Os demais crimes de dano e violação de proibição e interdição são puníveis, por seu turno, com penas de prisão ou multa de, respectivamente, até 3 anos ou até 2 anos.

Tratam-se de normativos legais - o de violência doméstica e de perseguição - que se encontram numa situação de concurso aparente.

O arguido já foi condenado pelo crime de violência doméstica na pessoa da aqui ofendida, em pena suspensa na sua execução e na aludida pena acessória, tendo os factos presente sido praticado no período da suspensão.

Tal decisão, com tal teor, não obstou a que o arguido reincidisse em condutas delituosas, podendo-lhe ser revogada tal pena suspensa, de que está perfeitamente ciente. A conflituosidade e litigiosidade entre arguido e ofendida, patentes, nomeadamente, agora, por reporte ao filho menor e a regime de visitas, a par da personalidade do arguido plasmada nos factos indiciariamente praticados, são tudo factores que permite, de forma clara, afirmar no caso presente, quer o perigo da continuação da actividade criminosa quer o perigo da perturbação e tranquilidade pública.

É verdade, que a nosso ver, tais perigos estão, de alguma maneira mitigados, pelo facto de ambos estarem sujeitos a meios electrónicos de vigilância, o que pelo menos permite detectar incumprimentos, quer pelo facto de actualmente o arguido não conhecer o local da residência da ofendida.

Desta forma e por tal razão, os factos aqui em apreço vão até Dezembro do ano passado.

Assim sendo, tudo ponderado e sopesado, considerando que os critérios norteadores de aplicação de medidas de coacção se reportam aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, erigindo-se a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva como "ultima ratio", e sendo que no caso presente, apesar de tais critérios, não é possível essa aplicação, o tribunal entende, como necessária, suficiente e adequada, a medida de coacção de apresentações periódicas, todos os dias, em horário de escolha do arguido e no OPC da área da sua residência, com início no dia de amanhã.

Não obstante, o crime de perseguição admitir, até, a imposição de condutas ou proibições do artigo 200º do CP, a verdade é que o nº 4 estatui a sua aplicação em 48 horas e, no caso presente, afigura-se-nos despicienda de aplicar, uma vez que o arguido se encontra sujeito a pena acessória de natureza similar (proibição de contactos e proibição de se aproximar do local de trabalho da ofendida).

Nestes termos, portanto, se aplica ao arguido a medida supra referenciada, nos termos dos artigos 191, a 193º, 198º, 204º al, c), todos do CP.P.

Cumpra o disposto no art.s 194º, nº 9 do CP.P.

Proceda à libertação do arguido, com menção da hora dessa libertação.

Remeta os autos aos serviços do Ministério Público, oportunamente.

Comunique a decisão ao ope da área de residência do arguido, solicitando informação quanto ao seu eventual incumprimento.

Remeta certidão da presente decisão ao processo (…), para os fins tidos por convenientes.

Comunique a presente decisão à ofendida, solicitando informação nos autos quanto ao seu eventual incumprimento.

Igualmente, comunique aos autos de regulação das responsabilidades parentais do filho comum do casal, que correram termos no Juízo de Família e Menores de Setúbal, com cópia de fls. 19/verso, para os fins tidos por convenientes.»


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Cumpre conhecer

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal. A questão abordada no recurso reconduz-se a apurar, unicamente, se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que sujeite o arguido a diferente medida de coacção. Essa decisão implica a prévia análise sobre a qualificação juridico-criminal dos factos indiciariamente imputados ao arguido.


***

B.2 – A recorrente centra a sua atenção num dos crimes cometidos qualificando-o de forma mais gravosa – como crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152º, n. 1 do Código Penal – ao invés de crime de perseguição tal como configurado pela Mmª Juíza de Instrução no despacho recorrido. E esta é a questão determinante!

A pretensão da recorrente é clara e clássica, o pretender requerer a prisão preventiva do arguido, o que só é possível se tiver, de facto, ocorrido um crime de violência doméstica por este ser punido pelo artigo 152º Código Penal com pena de prisão até 5 anos e isso permitir a aplicação da al. b) do nº 1, do artigo 203º do Código de Processo Penal.

Se assim não for, se o crime praticado for o de “perseguição” e como este só é punido com pena com o máximo de três anos de prisão, a prisão preventiva não é possível nem será viável o agravamento das medidas de coacção já impostas.

É claro que hoje o crime de violência doméstica pode estar em relação de concurso aparente com o crime de perseguição previsto no artigo 154º-A do Código Penal. Nem sempre foi assim, já que o segundo tipo penal só recentemente foi criado.

Antes da vigência da Lei n.º 83/2015, de 05 de Agosto, diploma que introduziu o crime de “perseguição” previsto no artigo 154º-A do C.P., não existia enquadramento normativo para as condutas – como a dos presentes autos – que se enquadravam então no tipo penal de “violência doméstica” caso o acervo factual o permitisse, como aliás já ocorreu em caso de nosso relato em acórdão desta Relação de 08-01-2013 (proc. 113/10.0TAVVC.E1) - assim como em outros arestos - mas aí com um acervo factual muito mais intenso e extenso, que permitia com extrema facilidade a inserção de actos de “stalking” - entre muitos outros actos - no referido tipo penal. [1]

Hoje o cenário juridico-penal é distinto pois o regime vigente a partir de 2013 surge precisamente para permitir a punibilidade de condutas que só com dificuldade se poderiam inserir no tipo penal de violência doméstica. Ou seja, com a criação do crime de “perseguição” houve um alargamento da criminalização para situações que anteriormente não caberiam no crime de violência doméstica nem noutros, casos dos crimes de ameaça (artigo 153º do C.P.), coacção (artigo 154º), perturbação da vida privada (artigo 190º, nº 2), devassa da vida privada (artigo 192º), devassa por meio de informática (artigo 193º) ou violação de correspondência e telecomunicações (artigo 194º),

Com um correspondente alargamento das medidas coactivas permitidas perante a prática de tal crime, assim como a criação de novas penas acessórias.

E não se suscita qualquer dúvida séria sobre a possibilidade de existência de um concurso aparente entre o crime de “perseguição” previsto no artigo 154º-A e o crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal. E a existência de uma relação de especialidade ou de consunção entre eles é séria e natural.

No caso parece-nos evidente a existência de uma regra de especialidade e a própria sequência cronológica de criação normativa dos tipos nos inculca essa ideia. Mas não se afasta a possibilidade de ocorrência de uma regra de consunção pura.

Mas com a proliferação de novos tipos penais resultantes da nova criminologia activista não significa que possamos afastar as regras consagradas pelo direito penal e, neste campo do concurso de normas, é imperativo que se note que a regra da especialidade tem uma clara definição dada pela doutrina que não podemos reverter. Aqui, recordando que a lex generalis seria a violência doméstica, lex specialis seria a perseguição e, segundo Eduardo Correia, a “relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na «lex specialis» se contêm já todos os elementos duma «lex generalis», isto é, daquilo a que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda, certos elementos especializadores”, essa “relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: «lex specialis derogat legi generali» (…). Ponto será só que a realização de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação; sob pena, de outra forma, de se violar o princípio «ne bis in idem»”. [2]

A idêntico resultado se chegaria pela regra da consunção, através das “relações de mais e menos” – o que ocorre aqui com os dois citados tipos penais – de forma que “uma norma consome já a protecção que a outra visa” e aqui a lex consumens é o tipo penal de “perseguição” [3], cujo tipo penal tem como bem jurídico tutelado «tanto a paz pessoal como a liberdade de decisão e ação» - Mário Ferreira Monte, in «Mutilação genital, perseguição (stalking) e casamento forçado: novos tempos, novos crimes… - Comentários à margem da Lei nº 83/2015, de 5 ede Agosto» - Julgar nº 28, 2016, pp. 78.

O que torna desnecessário o recurso a um tipo penal de uma abrangência tal – enquanto tipo “principal” – com um bem jurídico extremamente complexo “incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela” – de nosso relato no acórdão desta Relação de Évora, de 08-01-2013. Ou, na formulação do acórdão do TRCoimbra de 04/24/2012 (Processo 632/10.9PBAVR.C1, rel. Orlando Gonçalves), «O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação»

E aquilo para que a recorrente parece apontar é para uma espécie de regra de “alternatividade” automática com aplicação exclusiva e sistemática do crime que considera básico e de punibilidade mais gravosa sempre que tenha existido uma relação entre arguido e ofendida. Redutor, a nosso ver. Nem alternatividade nem subsidariedade tácita.

Mas essa é questão que o tribunal de julgamento resolverá após julgamento e no momento da decisão, pois que aqui não estamos a apurar factos provados após julgamento nem queremos antecipar qualquer juízo que possa ser entendido como uma forma de antecipação da futura decisão ou um meio de permitir a pretensão do Ministério Público do tribunal recorrido a um posicionamento antecipado sobre o objecto do futuro julgamento.

Aqui tratamos únicamente de um recurso de despacho lavrado em primeiro interrogatório judicial, com factos apenas indiciados e tal como eles foram apreciados pela Mmª Juíza autora do despacho recorrido. Os que passaram a constar da acusação – e pouco diversos são dos que constavam do despacho incial do Ministério Público antes do primeiro interrogatório judicial – ainda não foram judicialmente aceites pelo que se trata de mera pretensão probatória não concretizada.

Aqui apenas se nos impõe verificar se os elementos do tipo penal de perseguição se mostram indiciariamente apurados, claros, incontornáveis ou se já era manifesto que se deveria ter ido além disso.

Tal como os factos se nos apresentam em 13) a 17 e 19) não temos dúvida em secundar a posição da Mmª Juíza e considerar que os mesmos apenas permitem a qualificação pelo crime p. e p. pelo artigo 154º-A do C.P, um crime de “perseguição”.

A partir deste posicionamento substantivo podemos então partir para uma análise das necessidades cautelares, pois que assim se deve raciocinar e não seguir o caminho inverso.

E se é certo que a situação de “stalking” é indubitável e na realidade o arguido se comporta como um stalker ressentido [4] [ou um stalker rejeitado, seguindo sempre a qualificação de Mullen, Pathé, Purcell and Stuart (1999)], certo é que ninguém demonstrou nos autos o que a propósito do filho de arguido e da perseguida se sabe. E isso deveria ter sido apurado e junto a estes autos para demonstrar da razão ou sem razão das “queixas” verbalizadas pelo arguido quanto à regulação e exercício do poder parental. É que se as manifestações do arguido se referem e dizem respeito à circunstância de não poder ver o filho, por aí também deveriam ter passado as preocupações de investigação e instrução dos autos.

Porque só depois disso seria possível ter a certeza da sua falta de razão e, principalmente, da sua perigosidade e proceder, então, a uma avaliação de risco do “perseguidor” no caso concreto. Aliás, até em momento posterior ao do despacho inicial com pedido subsequente – se fosse caso disso – de alteração das medidas impostas.

É que se numa situação de stalking se pode antecipar ou imaginar um risco de violência futura, há que fazer o mínimo esforço para densificar a natureza das razões da perseguição, pois que esta pode estar assente numa justificação por percepção de legitimidade acertada – injustiça percepcionada no exercício do poder parental com as razões da insatisfação mal direccionadas ou manifestadas de forma errada – ou, pelo contrário, demonstrarem-se ideações assentes em fenómenos psicológicos agora apenas evidenciados na anterior condenação, psicose, psicopatias ou qualquer perturbação da personalidade, que minimamente indicie o risco futuro de violência.

Ora isto não mereceu qualquer esforço por parte da recorrente e é certo que os factos indiciados não vêm acompanhados de demonstração mínima de qualquer perigosidade acrescida. Essa perigosidade só se mostra evidente no processo nº (…) e numa situação diversa, a vivência em comum que já não existe.

É claro que neste momento é extremamente difícil, impossível a qualquer juiz, fazer um juízo prospectivo com certeza de acertar no futuro, risco que é o de qualquer juiz porque todos assediados hoje pelas pretensões securitárias extremas, que exigem que todos os suspeitos sejam presos, sob pena de actuação activista e/ou jornalistica gramsciana no caso de erro do dito juízo de antecipação. Ossos de ofício hoje pouco compreendido.

Com a certeza porém de que a Constituição da República Portuguesa ainda é vigente e o Código de Processo Penal, no caso, não permite que as medidas cautelares já impostas pela Mmª Juíza sejam agravadas. A pena máxima do crime indiciariamente praticado não o permite.

Haverá, no entanto, que recordar que o arguido em resultado da sua condenação no processo nº (…) está sob o efeito condenatório da pena acessória de “afastamento da residência e do local de trabalho da ofendida a um raio de distância não inferior a 500 metros”, com efetiva fiscalização de meios técnicos à distância, que se tem mostrado efectivo. Essa pena acessória está vigente e tem sido seguida e vigiada desde que a sentença transitou em julgado em 14-05-2018 e – entende-se - pelo período de suspensão da pena de prisão, que foi de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, isto é, até 14-11-2020, o que permite um julgamento e/ou assessoria de análise de risco atempados.

Em função do que se expôs o recurso não merece provimento.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o despacho recorrido.

Notifique. Sem tributação.

Évora, 08 de Setembro de 2020

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Nuno Garcia

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[1] - Ver a propósito «O stalking nos acórdãos da Relação de Portugal: a compreensão do fenómeno antes da tipificação», de Sephora Marchesini, in Configurações - Revista de sociologia, Número 16–2015, pp. 55-74 - https://journals.openedition.org/configuracoes/2847

[2] - Direito Criminal, II, Coimbra, Almedina, 1971, pag. 205.

[3] - Idem, ibidem.

[4] - «Resentful stalking arises when the stalker feels as though they have been mistreated or that they are the victim of some form of injustice or humiliation. Victims are strangers or acquaintances who are seen to have mistreated the stalker. Resentful stalking can arise out of a severe mental illness when the perpetrator develops paranoid beliefs about the victim and uses stalking as a way of ‘getting back’ at the victim. The initial motivation for stalking is the desire for revenge or to ‘even the score’ and the stalking is maintained by the sense of power and control that the stalker derives from inducing fear in the victim. Often Resentful stalkers present themselves as a victim who is justified in using stalking to fight back against an oppressing person or organisation.» - in https://www.stalkingriskprofile.com/what-is-stalking/types-of-stalking