Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2114/20.1T8STR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: PLANO DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Para efeitos de recusa de homologação de plano aprovado em sede de PER, indagar se ocorre violação não negligenciável implica que o juiz faça uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, tutelados pela norma violada, só devendo recusar a homologação quando ocorra uma violação de tal modo grave destes últimos que não possa exigir-se o seu sacrifício, fazendo prevalecer o primeiro.
II. O plano de recuperação conducente à revitalização do devedor há-de observar o princípio da igualdade dos credores, por força do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 194.º do CIRE, ex vi do seu artigo 17.º-F, n.º 5.
III. A observância de tal princípio não obsta, no entanto, ao tratamento desfavorável de um credor em relação ao outro, ainda quando titulares de créditos da mesma natureza – afora as situações de consentimento, tácito ou expresso, do(s) credor(es) afectados – quando o desigual tratamento encontre o seu fundamento em justificadas razões objectivas, posto que o princípio da igualdade deverá ser aplicado na sua dimensão material, do que resulta deverem ser tratadas de modo igual situações idênticas e distintamente situações, também elas, distintas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2114/20.1T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Comércio de Santarém - Juiz 2

I. Relatório
(…) – Indústria e Comércio de Peles, S.A. instaurou o presente PER, apresentando declarações concordantes das suas credoras (…), Unipessoal, Lda. e (…), Lda., titulares de créditos nos valores de, respectivamente, € 1.433.378,24 e € 196.450,24, representantivos de uma percentagem superior a 10% dos créditos não subordinados que os diversos credores detêm sobre a requerente.
No dia 4-11-2020 foi publicada a lista provisória dos credores reconhecidos pelo AJP e o prazo de negociações prorrogado por acordo publicado em 11-1-2021.
Em 22-2-2021 foi depositada a versão final do plano.
Em 12-3-2021 foi junto o resultado da votação, do qual resulta que 91,82% de votos emitidos votou favoravelmente o plano apresentado.
Presentes os autos à Sr.ª Juíza, recusou a homologação do plano, por conter “flagrante violação do princípio da igualdade na sua vertente de discriminação positiva”, assim ocorrendo “violação não negligenciável das regras procedimentais e das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215.º do CIRE”.

Inconformada, apelou a devedora e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com a decisão, formulou a final as seguintes conclusões:
a) Conforme decorre dos autos e consta da douta sentença recorrida, apenas um credor se pronunciou contra o plano invocando a violação do princípio da igualdade, a saber: a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, que representa um crédito no valor de € 23.670,58, correspondente a 0,30% dos créditos globais;
b) Confrontamo-nos, conforme decorre dos autos, com um universo de credores que representam, com o valor dos seus créditos, um montante de € 7.719.712,49;
c) Na decisão recorrida considerou-se que existe diferença de tratamento dos credores (…) e (…) em relação aos outros credores, também comuns, e por isso verificou-se violação do princípio da igualdade ínsito na norma do artigo 194.º do CIRE;
d) Não obstante o plano de recuperação ter sido aprovado pela esmagadora maioria dos credores da Recorrente – 91,82% de votos emitidos foi favorável ao mesmo –, entendeu a Meritíssima Juiz a quo que o mesmo enferma de vício por violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE, alicerçando a sua decisão na manifesta discrepância do pagamento dos créditos no tempo;
e) Estão em causa dois credores, a (…) e a (…), que mereceram tratamento diferenciado;
f) Tais credores corporizam a sua atividade na prestação de serviços essenciais, como o tratamento de resíduos sólidos da indústria e o fornecimento e tratamento de águas residuais, que antes estavam na esfera de competência exclusiva das Autarquias, isto é, no domínio publico, e passaram para empresas detidas por capital público, empresas municipais, ou Associações em que o principal associado e interessado é a Autarquia Local;
g) Tais credores representam créditos no valor € 11.092,97 (correspondente a 0,15% dos créditos globais) no caso da … e no valor de € 60.409,46 no caso da … (correspondente a 0,78% dos créditos globais), num universo de credores que representam, com o valor dos seus créditos, um montante de € 7.719.712,49;
h) Os credores continuam a prestar serviços, caso contrário, a empresa recorrente encerraria, garantindo a recolha e tratamento dos resíduos e fornecimento e tratamento de águas resultantes da produção da Recorrente;
i) A (…) – Empresa Municipal de Águas e Saneamento de (…), E.M., SA e a (…) – Associação de Utilizadores do Sistema de Águas Residuais de (…), prestam serviços públicos, essenciais e indisponíveis para o desenvolvimento da atividade da Requerente não existindo alternativas no mercado, para os mesmos efeitos conforme é facto público e de conhecimento oficioso;
j) Os restantes credores não são absolutamente relevantes para a actividade da Recorrente;
k) Assim, dada a especificidade dos contratos subjacentes à prestação de serviços por parte daquelas entidades e dos créditos daí emergentes, não poderia a Recorrente submeter aqueles credores, até por exigência dos mesmos, a plano de pagamento idêntico aquele que propôs para os restantes credores;
l) O plano de pagamentos estabelecido para os créditos da (…) e pela (…) é consentâneo com as negociações e condições impostas por aquelas entidades para continuarem a prestar serviços essenciais ao funcionamento regular da Recorrente e, no caso da (…), vêm explicitadas no requerimento apresentado nos autos por esta última entidade, após a apresentação da primeira versão do plano;
m) Assim, é facto de evidência notória e pública, imposta por aquelas entidades, que não se pode “deixar de pagar a conta mensal do fornecimento e tratamento de águas e de recolha e tratamento de resíduos” deixando a mesma para liquidar, com um período de quatro anos e três meses de carência, e em oito anos, como prevê o plano para todos os credores.
n) Com efeito, ao invés do que acontece com os restantes credores, decidindo aquelas entidades (… e …) suspender a prestação de serviços, seria o mesmo que condenar, de imediato, a Recorrente, ao seu encerramento o que contraria, desde logo, o espírito que subjaz ao processo de revitalização.
o) Assim, afigura-se-nos ser evidente que os créditos em causa são manifestamente distintos dos demais, pelo que o seu pagamento específico tinha que ser configurado, devidamente justificado, como desvio ao princípio da igualdade;
p) E assim, o plano justifica o tratamento da generalidade dos credores, nomeadamente pela crise económica e financeira consequência da pandemia COVID 19 que justifica o alargado período de carência, propondo-se a Recorrente pagar o valor dos créditos na íntegra, com perdão de juros vencidos e vincendos, condição idêntica imposta à (…) e à (…).
q) No plano trata-se de igual modo os credores iguais e distingue-se os que são diferentes respeitando-se o princípio ínsito na norma do artigo 13.º da CRP;
r) Afigura-se-nos absolutamente necessário proceder a uma ponderação global do caso concreto de modo a aferir que a situação em causa pode ser definida como objetivamente justificável;
s) In casu, o que está em causa não é tanto a necessidade de aprovação do plano, mas a suscetibilidade de recuperação da Recorrente/Devedora e a necessidade absoluta de acautelar os interesses de dois credores que se destacam, pela natureza pública dos serviços que prestam, em relação aos demais, assim se respeitando a máxima do princípio da igualdade (ou seja, tratar o igual como igual o que é igual e diferente o que é diferente).
t) O princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente;
u) Por outro lado, está em causa, também, na decisão recorrida, a violação do princípio da proporcionalidade no âmbito da aplicação do princípio da igualdade entre credores;
v) Com efeito, a decisão também pode ser considerada desproporcional quando leva em consideração a posição de oposição ao plano, por violação do princípio da igualdade, assumida por um único credor que representa 0,30% dos créditos globais;
w) Ponderando que o PER tem como fim primordial a recuperação da empresa, a derrogação do princípio da igualdade dos credores é legítima num quadro de ponderação de interesses – o interesse individual por contraposição ao coletivo – se este se situar num patamar material e fundadamente superior em função dos direitos que devem ser salvaguardados, atendendo à relevância pública dos serviços prestados pelos Credores tratados de modo desigual.
x) Entende-se assim e em face do exposto, que a sentença ao recusar a homologação do plano, violou o disposto no n.º 1 do artigo 194.º do CIRE, na justa medida em que o mesmo obedeceu ao princípio da igualdade com as diferenciações devidamente justificadas por razões objectivas devidamente explicitadas”.
Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida, devendo o plano ser homologado.
Não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão submetida à apreciação deste Tribunal determinar se o plano aprovado deve ser homologado ou, pelo contrário, se verifica, tal como foi entendido na decisão recorrida, violação não negligenciável das regras procedimentais e normas que regulam o seu conteúdo.
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II. Fundamentação
De facto:
São factos relevantes para a decisão os acima relatados e ainda os seguintes:
1. A requerente tem como objecto principal a indústria e comercialização de curtumes, couros e peles para fins industriais, indústria e comércio de couro e de produtos e artigos relacionados com a indústria de curtumes.
2. Foram reconhecidos créditos cujo valor total ascende a € 7.719.712,49, tendo votado desfavoravelmente credores representativos de 8,18% dos votos emitidos, entre os quais a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Vale do (…), CRL, titular de um crédito no valor de € 23.670,58, representativo de 0,30% dos créditos globais, e o Banco (…), SA, cujo crédito representa 0,67% dos créditos globais.
3. Do plano, votado favoravelmente pelos credores que representam 91,82% de votos emitidos, consta, relativamente aos credores comuns (…) e (…):
«Considerando que a (…) – Empresa Municipal de Águas e Saneamento de (…), E.M., SA e a (…) – Associação de Utilizadores do Sistema de Águas Residuais de (…), prestam serviços essenciais e indisponíveis para o desenvolvimento da atividade da Requerente, não existindo alternativas no mercado para os mesmos efeitos, terão um tratamento diferenciado em relação aos outros credores, nos termos que se passam a expor:
a) O pagamento dos valores em dívida (apenas de capital, prevendo-se o perdão de juros vencidos e vincendos) devidamente reconhecidos à (…), será realizado por meio de prestações mensais, iguais e sucessivas de € 2.065,90 (dois mil e sessenta e cinco euros e noventa cêntimos) cada, com início na data da aprovação e homologação do plano e assim, sem qualquer período de carência. O pagamento das referidas prestações mensais não prejudica o dever que impende sobre a Requerente de proceder ao pontual e cumulativo pagamento das faturas que futuramente se vencerem e que constituem contrapartida pelos serviços de saneamento e tratamento de águas residuais industriais prestados à Requerente pela (…).
b) O pagamento dos valores em dívida à (…) será efectuado mediante a entrega de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a acrescer ao valor da factura de cada contentor que for levantado nas instalações, tudo com início após a aprovação e homologação do plano e assim, sem qualquer período de carência.»
4. Quanto aos demais credores consta do mesmo plano o seguinte:
«Instituições financeiras, fornecedores e Outros Credores
Proposta de Regularização:
• Período de Carência de Capital de 4 anos.
• Perdão de Juros Vencidos e Juros Vincendos;
• Pagamento em oito anos conforme demonstração de resultados e balanço previsional que se anexam;
• O pagamento terá início 90 dias após o términus do prazo de carência;
• O pagamento dos créditos será efectuado de modo gradual, em oito anos, nos seguintes termos: nos primeiros sete anos será pago, dividido proporcionalmente por cada um dos anos e em prestações trimestrais, com vencimento no último dia do mês de cada trimestre, o valor de 50 % da dívida e, no último ano, no dia 31/12/2032, será paga a importância equivalente a 50% da dívida.»
5. À (…) foi reconhecido um crédito no montante de € 60.409,46 (correspondente a 0,78% dos créditos globais), sendo o reconhecido à (…) no valor de € 11.092,97 (correspondente a 0,15% dos créditos globais).
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De Direito
Da violação não negligenciável das normas de conteúdo
O processo especial introduzido pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, tal como consagrado no n.º 1 do artigo 17.º-A do CIRE[1], “destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.”.
A solução de evitamento da insolvência é assim suportada pelo acordo dos credores, impondo por isso a lei a respectiva aprovação por uma maioria qualificada dos créditos, em ordem a garantir a eficácia do plano aprovado que, deste modo, se torna vinculativo para os restantes.
Da análise do regime legal resulta estarmos perante um processo de negociação entre credores e devedor, mediado e participado pelo administrador judicial provisório nomeado (cfr. n.º 9 do artigo 17.º-D), cabendo ao juiz, conhecido o resultado das negociações, nas quais não interfere, proferir decisão nos termos previstos no artigo 17.º-F. Ocupa-se este último preceito das diligências subsequentes à aprovação de um plano tendente à recuperação do devedor, distinguindo entre a aprovação unânime e aprovação sem unanimidade, sendo certo que em ambos os casos carece o mesmo de homologação judicial, sendo aplicáveis, por expressa remissão do preceito, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.
Resulta do regime legal que, aprovado embora pela maioria qualificada dos credores exigida pela lei, nem assim está garantida a homologação do plano, deferindo o artigo 215.º ao Tribunal “o cargo de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano”[2], a qual deve ser recusada sempre que ocorra “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”.
Normas procedimentais serão assim todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, ao passo que normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as relativas à parte dispositiva do plano mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”[3]. Mas, atente-se, não é qualquer desvio que implica a recusa de homologação, exigindo a lei que se trate de “violação não negligenciável”, deixando ao intérprete a complexa tarefa de concretização do conceito[4].
Face à literalidade da disposição legal, impõe-se concluir que infracções menores deverão ser desconsideradas. Em contraponto, não negligenciável será, de forma clara, a violação de norma imperativa que acarrete a produção de um resultado vedado por lei, podendo todavia ser menosprezada a infracção que atinja apenas regras de tutela particular, as quais podem ser afastadas com o consentimento do titular do interesse protegido, critério avançado por Carvalho Fernandes e J. Labareda[5]. Em idêntico sentido, considerou-se no acórdão do TRC de 22/1/2019[6] que “a violação não negligenciável corresponde a uma violação grave das normas aplicáveis, ou seja, quando acarrete um resultado que a lei não permite em virtude de o conteúdo do plano violar disposições legais de carácter imperativo ou quando a violação se reporta a regras ou normas legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere e sempre que a violação seja susceptível de afectar/prejudicar a salvaguarda dos seus interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de protecção legal”.
Avançando um pouco mais na densificação do conceito, será “(…) razoável entender que violação não negligenciável é aquela e apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação – uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro, a violação pode ser negligenciada.”[7].
No caso em apreço, tendo-se assinalado na decisão impugnada que a “diferença prevista entre os credores comuns (…) e (…) e os demais credores consiste no facto do pagamento da dívida aos primeiros não ter qualquer período de carência de capital (quando aos demais o período de carência é de 4 anos + 3 meses) ”, a que “acresce o facto dos demais credores serem pagos em oito anos (que se iniciam 4 anos e 3 meses após a homologação do plano), sendo que 50% do capital em dívida será pago durante os primeiros 7 anos, e os outros 50% será pago no último ano”, recusou-se que o motivo indicado para a diferenciação de pagamento entre aqueles credores e os demais – o facto dos primeiros prestarem serviços essenciais para o desenvolvimento da actividade da Requerente, não existindo alternativas disponíveis no mercado- fosse suficiente para justificar tal dupla diferenciação. E assim tendo concluído pela “flagrante violação do princípio da igualdade na sua vertente de discriminação positiva”, que constitui “violação não negligenciável das regras procedimentais e das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215.º do CIRE”, foi meramente consequente a recusa de homologação.
Não cremos, porém, o que se antecipa, que tal decisão deva manter-se.
Antes de mais, faz-se notar que na decisão recorrida não se aponta nenhum vício formal que justifique a afirmação de que ocorreu violação de normas de procedimento, subsistindo apenas a alegada violação não negligenciável das normas atinentes ao conteúdo do plano aprovado.
Feita tal prévia precisão, importa referir que que não se questiona que o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor há-de observar o princípio da igualdade dos credores, por força do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 194.º do CIRE, ex vi do citado artigo 17.º-F, n.º 5. A observância de tal princípio não obsta, no entanto, conforme aliás se reconhece na decisão apelada, ao tratamento desfavorável de um credor em relação ao outro, ainda quando titulares de créditos da mesma natureza – afora as situações de consentimento, tácito ou expresso, do(s) credor(es) afectados – quando o desigual tratamento encontre o seu fundamento em justificadas razões objectivas[8], posto que o princípio da igualdade deverá ser aplicado na sua dimensão material, do que resulta deverem ser tratadas de modo igual situações idênticas e distintamente situações, também elas, distintas.
No caso em apreço, os credores objecto do tratamento mais favorável são a (…) – Empresa Municipal de Águas e Saneamento de (…), E.M., SA, e a (…) – Associação de Utilizadores do Sistema de Águas Residuais de (…), as quais prestam efectivamente serviços essenciais ao desenvolvimento da actividade da Requerente – trata-se do fornecimento e tratamento de águas e da recolha e tratamento de resíduos – inexistindo alternativas no mercado. Estando em causas serviços essenciais, sem os quais a prevista manutenção pela devedora da sua actividade industrial não será possível, o que certamente explica o facto de não ter deixado avolumar a dívida a estas fornecedoras, e delas dependendo para o futuro, dada a ausência de alternativa do mercado, encontra-se objectivamente justificado o tratamento privilegiado que lhes foi dispensado, que encontra ainda fundamento na natureza jurídica das entidades prestadoras e essencialidade dos serviços que prestam.
Por outro lado, e admitindo que, conforme se assinala no aresto do TRC de 17 de Março de 2015[9], o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para, por si só, justificar o tratamento mais favorável que lhes é dispensado, em detrimento de outros da mesma classe sobre quem passa a recair, de forma desproporcionada, o essencial do sacrifício necessário à revitalização da devedora, não se vê que tal ocorra no caso em apreço, porquanto, também a credora (…), titular do crédito mais expressivo, prescinde dos juros, sendo paga de forma faseada, à semelhança do que ocorre com a (…), sendo ainda de assinalar que se trata de prestações mensais de montantes não muito elevados.
Conclui-se, assim, que, ao invés do que se considerou na sentença recorrida, estão contempladas no plano aprovado razões objectivas idóneas a justificar a discriminação positiva de que foram alvo as identificadas credoras, diferenciação que, além do mais, não fere o princípio da proporcionalidade.
Acresce que tendo ambos os credores que deduziram oposição ao plano invocado ainda como fundamento o agravamento da sua situação, quando confrontada com aquela que resultaria da liquidação imediata do património do devedor, também aqui se entende não haver razão para recusar a homologação.
A norma do artigo 216.º impõe ao julgador a realização de um juízo de prognose, fazendo a comparação entre a previsível satisfação do direito do credor com e sem plano.
No que respeita ao Banco (…), SA, justifica este credor o agravamento da sua situação com o facto de, em caso de liquidação do activo e optando o Sr. AI por não cumprir o contrato de locação, poder recuperar de imediato o equipamento e satisfazer o seu crédito pela venda do mesmo. Trata-se, todavia, de afirmação sem respaldo em factos, dependendo da posição que pelo Sr. AI fosse, a tal propósito, assumida (e sendo certo que num primeiro momento o credor refere que o contrato se encontra já resolvido). Acresce que sendo desconhecido o estado do equipamento não pode afirmar-se que pela alienação do mesmo fosse certa a satisfação do crédito pela credora oponente, nada permitindo, portanto, concluir que com a homologação do plano – que prevê a recuperação do seu crédito, ainda que a longo prazo – fique em pior situação.
Quanto à credora CCAM do (…), não alegou quaisquer factos que suportassem a afirmação de que a situação que para si resulta da aplicação do acordo lhe é desfavorável, já que nada aponta, ainda que indiciariamente, para a possibilidade de pela liquidação imediata dos bens da devedora obter a satisfação do seu crédito, o que é suficiente para recusar este fundamento.
Dir-se-á, em todo o caso, que representando os créditos das credoras oponentes pouco mais de 1% do universo dos créditos reconhecidos, os quais ascendem a cerca de € 7.000.000,00, fazendo apelo ao já invocado princípio da proporcionalidade, sempre seria de recusar que eventual situação mais desfavorável que para aquelas resultasse da homologação do plano fosse suficiente para o reprovar.
Procedem assim os fundamentos do recurso, não podendo subsistir a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, em consequência do que vai homologado o plano de recuperação da devedora aprovado pela maioria qualificada dos credores, através da continuidade da sua actividade e satisfação dos seus credores nos termos que dele constam.
Sem custas o recurso.
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Sumário: (…)
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Évora, 14 de Julho de 2021

Maria Domingas Alves Simões

Vítor Sequinho dos Santos

Mário Rodrigues da Silva

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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[2] Carvalho Fernandes/João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, pág. 825.

[3] Idem, pág. 826.

[4] Trata-se de questão, conforme observa Catarina Serra, nas suas “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 474, que “(…) originou discussões acaloradas desde a entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que ainda hoje suscita dúvidas, não obstante as tentativas de densificação desenvolvidas, entretanto, pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas”.

[5] Ob. e loc. citados.

[6] Processo 54/18.3 T8SEI-A.C1, acessível em www.dgsiu.pt

[7] Catarina Serra, ob. e loc. cit.

[8] Neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 24/11/2015, processo 212/14.0TBACN.E1.S,1 e do TRG de 04/03/2013, proferido no processo n.º 3695/12.9TBBRG.G1, acessíveis em www.dgsi.pt.

[9] No processo n.º 338/13.7TBOFR-A.C1, acessível no mesmo sítio.