Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
34/21.1YREVR
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
CIDADÃO NACIONAL
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não é, ao contrário do que às vezes se supõe, a mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.

2 - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento, pois implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia, assim se justificando que a execução do respectivo mandado possa ficar dependente da prestação da dita garantia por parte do Estado emitente, nos termos do artº 13º, al. b), da L. 65/2003 de 23/8.

3 - Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM AUDIÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO

O MP junto deste Tribunal veio, nos termos dos Artº 16 nº1 da Lei nº 65/2003 de 23/08, promover a execução, na modalidade de entrega para procedimento criminal, do mandado de detenção europeu, emitido pelas autoridades judiciárias de Espanha, contra o cidadão de nacionalidade portuguesa, (…).
O requerimento mostra-se instruído com os elementos necessários a que alude o Artº 16 da Lei 63/03, de 23/08.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o condenado foi ouvido pessoalmente sobre o pedido de entrega, de harmonia com o estatuído no Artº 18 nº2 da citada Lei, tendo declarado que renuncia à regra da especialidade e não consente na sua entrega ao Estado requerente.

Nos termos do Artº 21 da dita Lei, pelo arguido foi apresentada oposição escrita, em que solicita a recusa da execução do Mandado de Detenção Europeu (MDE), pois os factos em causa, a terem ocorrido, terão sido praticados a partir do território português, o que faz com que a competência territorial para a acção penal pela matéria em causa caiba aos tribunais portugueses, consubstanciando motivo de não execução facultativa do MDE, nos termos do Artº 12 nº1 al. h) ponto ii).
Mais invocou, que sendo o detido português, residente em Portugal e destinando-se o MDE à sua apresentação à justiça espanhola para procedimento criminal, o mesmo só pode ter lugar se o Estado emitente tiver dado a garantia prevista na al. b) do nº1 do Artº 13 da citada Lei 65/03, o que, no caso, não sucedeu.

Notificado desta oposição, o MP pronunciou-se pelo desatendimento das pretensões de recusa formuladas pelo arguido e consequentemente, pelo cumprimento do MDE.

Não havendo prova a produzir, cumpre apreciar da bondade do peticionado.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A - Dos autos

O presente mandado de detenção europeu, emitido pelas autoridades espanholas, reporta-se à entrega do arguido, para procedimento criminal, no âmbito do Processo nº 294/2020 emitido pelo Juzgado de Instrucción nº1 de Ejea de Los Caballeros, Zaragoza, Espanha. na medida em que aquele é suspeito da autoria, entre Maio de 2020 e 01/06/2020, de factos susceptíveis de integrarem a prática de crimes de burla, branqueamento de capitais e pertença a associação criminosa e punidos pelos Artsº 248, 249 e 301, todos do Código Penal espanhol.
Tais, factos, apesar puníveis pelo ordenamento jurídico português, enquadram a previsão normativa do Artº 2 nº2 als. a), i) e u)) da Lei 65/2003 de 23/08, pela qual se dispensa o controlo da dupla incriminação, sendo puníveis com uma pena não inferior a 3 anos de prisão e, correspondendo à infracção mais grave, com uma pena máxima de 15 anos de prisão.
O procedimento criminal não se encontra prescrito e os factos em causa não são objecto de procedimento criminal em Portugal.

O requerido manifestou a sua oposição à pretendida entrega com dois argumentos: os factos em causa foram praticados no território português, pelo que a competência para a acção penal é o Estado português e a execução do MDE deve ser recusada por não estar prestada a garantia a que alude o Artº 13 nº1 al. b).

BDo Direito

Ao abrigo do estatuído no Artº 21 nº2 da Lei 65/2003 de 23/08, a oposição do requerido ao mandado de detenção europeu apenas pode ter como fundamento o erro na identidade do detido, ou a existência de uma causa de recusa de execução do mandado em causa.
Esta segunda hipótese é a invocada pelo requerente, porquanto, em seu entender, por um lado, a competência para a acção penal compete ao Estado português e por outro lado, as autoridades espanholas não asseguraram nos autos a concessão da garantia aludida no nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI e a que também se reporta a al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08.

Em relação ao primeiro dos argumentos aduzidos, é claro, pela leitura do presente MDE e do despacho que determinou a sua emissão, que nada consta em relação ao local onde, em concreto, foram praticados os factos criminosos, não se compreendendo como é que, dessa omissão, o arguido retira, sem margem para dúvidas, a conclusão que os mesmos teriam sido cometidos em Portugal.
A verdade é que a notícia do crime foi adquirida em Espanha, as vítimas são empresas espanholas, foi neste país que se consumaram os resultados típicos dos ilícitos em causa, pelo que se aceitará, de bom grado, que a competência para a investigação criminal e julgamento dos factos caiba ao país vizinho.
Em qualquer caso e independentemente destas considerações, a verdade é que esta matéria, tal como é colocada – ou seja, por mera adivinhação e numa base exclusivamente opinativa, sem qualquer elemento probatório que a suporte – é irrelevante para o destino do presente MDE, cujo objecto e fim não se confundem com o julgamento do mérito da causa, de facto e de direito, que lhe subjaz, mas apenas, com a regularidade formal do que lhe é pedido pelo Estado emitente.
Nesta medida, ao Estado de execução de um mandado de detenção europeu, cabe apenas indagar dessa consonância formal e executá-lo de acordo com o princípio da confiança e reconhecimento mútuo entre os Estados membros, sendo certo que todas as demais questões, como a que é trazida pelo recorrente, terão se ser dilucidadas no Estado emitente e dentro do processo que origina o MDE.
Como se diz nos Acórdãos do STJ de 21/02/07, Proc. 250/07, 3ª Secção e de 18/06/08, Proc. 2159/08, 3ª Secção:
O reconhecimento de tal princípio passa, em primeira mão, pela confiança e respeito recíproco entre os Estado membros, seja a nível dos respectivos ordenamentos jurídicos, seja a nível dos respectivos procedimentos e processos, confiança e respeito que assentam na garantia de que a lei e os procedimentos de cada Estado membro são o garante dos princípios fundamentais, bem como na confiança em que as decisão proferidas por um Estado membro serão rigorosamente respeitadas e cumpridas pelos restantes Estado membros, isto é, executadas nos precisos termos em que são proferidas.

Desde que uma decisão seja tomada por uma autoridade judiciária competente à luz do direito interno do Estado membro de emissão, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, o que significa que as autoridades do Estado membro de execução devem causar-lhe o mínimo de embaraço, a que subjaz uma ideia de confiança mútua, sem prejuízo do respeito pelos direitos fundamentais e princípios de direito de validade perene e afirmação universal. Nessa medida, a sindicância judicial a exercer pelo Estado de execução é muito limitada, restrita ao controlo daqueles direitos fundamentais, produzindo a decisão da autoridade judiciária do Estado de emissão efeitos pelo menos equivalente a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária do Estado de execução.
As causas de recusa facultativa da execução de um MDE, consagradas nas várias als. do nº1 do Artº 12 da Lei 65/03 estão ligadas à soberania penal do Estado de execução, à efectividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo de protecção dos seus nacionais ou de pessoas que relevam da sua jurisdição (Cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 10/09/09, Proc. 134/09, 3ª Secção).
In casu, dos elementos decorrentes dos autos, nada autoriza o Estado Português a recusar a execução do presente MDE apenas porquanto no entender do recorrente os factos criminosos terão ocorrido em solo português, questão que terá de ser colocada e dirimida no próprio processo em que as autoridades espanholas emitiram a presente decisão de detenção e entrega do arguido para efeitos de procedimento criminal.
Improcede, pois, o primeiro dos argumentos invocados pelo arguido no sentido de obstaculizar a execução do MDE, bem como, adiante-se desde já, assim sucede com o segundo fundamento por si exposto e que se prende com a não prestação da garantia a que alude o Artº 13 nº1 al. b) da Lei 65/03.
Na verdade, esta norma, sob a epígrafe “Garantias a fornecer pelo estado membro de emissão em casos especiais” dispõe:
1 – A execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das seguintes garantias.
(…)
b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro da execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.”
O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não é, ao contrário do que às vezes se supõe, a mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.
O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento, pois implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia, assim se justificando que a execução do respectivo mandado possa ficar dependente da prestação da dita garantia por parte do Estado emitente (Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S).
Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele. (Cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Grande Secção, de 17/07/08, Proc. C-66/08)
Ora, nos autos, nada mais se sabe do arguido, a não ser que o mesmo é português e tem residência em Portugal, o mesmo é dizer, como muito bem assinala o MP junto deste Tribunal na sua resposta à oposição deduzida “…não vem aportado nem documento nenhum facto que permita fundadamente concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, isto é, não está demonstrada nem documentada nenhuma circunstância relevante que evidencie a ligação com aquela profundidade, da pessoa procurada, o oponente, ao Estado de execução e que, por isso mesmo, seja suscetível de conduzir à exigência de prestação da garantia de que a este será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão.

A nacionalidade e a residência, só por si e sem mais, não permite, sem outros elementos que demonstrem a centralidade da vida profissional, social e familiar do oponente em Portugal, concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, e por isso mesmo, conduzir à exigência da prestação da garantia de que a este Estado de execução será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão do MDE.
Assim sendo, inexiste nos autos fundamento que justifique à autoridade judiciária do Estado de execução exigir, do Estado emitente, a prestação da garantia em causa, na medida em que não foi sequer alegado e, muito menos demonstrado, suporte factual que justificasse que aquela fosse uma condição para a entrega do arguido às autoridades espanholas.
Nesta medida, improcedendo, por inteiro, a oposição aduzida pelo arguido, por não consubstanciar qualquer causa de recusa do presente MDE, não resta outra decisão que não seja autorizar a execução do mesmo.

3. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se, ao abrigo do disposto nos Artsº 3, 6 nº1 al. b), 15 nº1, 16 nº1 e 31 nº1, todos da Lei 65/2003, autorizar a entrega do cidadão de nacionalidade portuguesa, (…), às autoridades espanholas, Juzgado de Instruccion nº1 de Ejea de Los Cabaleros, Zaragoza, para procedimento criminal no Processo nº 294/2020.
Sem tributação.
Notifique-se.
Oportunamente, remetam-se certidões da presente decisão, com nota de trânsito em julgado, à Procuradoria-Geral da República e à Embaixada da Espanha em Portugal.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 23 de Março de 2021
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
Fernando Pina (Adjunto)
(Assinaturas digitais)