Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2222/06-3
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENORES
ABUSO SEXUAL
CONFIANÇA PARA ADOPÇÃO
Data do Acordão: 12/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – As medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo visam afastar o perigo em que estes se encontrem, proporcionar--lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso – cfr. art. 34.º da LPCJP.
II – Tendo havido abuso sexual grave e conivência ou desleixo dos progenitores, a medida de institucionalização temporária, apenas seria de manter com esse carácter, caso se verificasse alguma possibilidade dos pais interiorizarem o dano, quer físico, quer psíquico, sofrido pela menor e, a fim de o minorarem, e tudo fizessem para garantir no futuro a segurança e recuperação da menor.
III – Não se verificando tal situação justifica-se o decretamento de medida de possibilite uma alteração radical do quadro familiar em que tem estado inserida e que lhe possibilite a integração numa família onde seja amada e que lhe proporcione um desenvolvimento saudável e harmonioso como todas as crianças têm direito. Essa medida será a confiança da menor a uma instituição, tendo em vista a adopção.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Faro, instaurou o presente processo de Promoção e Protecção com vista à aplicação de uma medida de acolhimento provisório em instituição da menor A............, nascida em ………/1999, filha de B............ e de C............, alegando ter havido relatos de que a criança era vítima de abuso sexual continuado por parte de um terceiro, com a conivência activa da progenitora e passiva do pai.
Em 14/06/2005 foi a menor confiada provisoriamente à guarda e cuidados da instituição “Refúgio Aboim Ascensão”, em Faro.
Foi realizada a instrução, finda a qual se designou data para realização de conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção, tendo-se determinado a prorrogação da medida provisória por mais quatro meses.
Foram juntos relatórios e foram as partes convidadas a produzirem alegações, prévias ao debate judicial, tendo o MP na peça processual que apresentou requerido a aplicação à criança da medida de acolhimento em instituição com vista a futura adopção.
Seguiu-se a fase do debate judicial, o qual teve lugar, com intervenção do Colectivo, tendo sido a final proferido acórdão que no âmbito do seu dispositivo reza:
Pelo exposto, o tribunal delibera:
1. Aplicar à criança A............ a medida de promoção e protecção de acolhimento em instituição, pelo período de seis meses, continuando a mesma colocado no Refúgio Aboim Ascensão;
2. Autorizar os pais e o irmão a visitarem a criança na instituição, nos horários fixados por esta;
3. Ordenar a realização de uma avaliação do estado psicológico da criança, predisposição desta para reatar relacionamento com os pais e qualidade desse relacionamento, devendo solicitar-se a sua realização ao Instituto de Medicina Legal de Lisboa, de forma a que seja efectivada a partir do mês de Agosto, devendo estar concluída até meados de Novembro de 2006.”
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Não se conformando com esta decisão veio O MP interpor o presente recurso de agravo e apresentar as respectivas alegações, terminando, por peticionar o provimento do mesmo e, em consequência, aplicar-se em favor da criança a medida de promoção de confiança em instituição, com vista a futura adopção. Para tal formulou as seguintes conclusões:
1) A criança A………, nascida a ……..1999, foi vítima de abuso sexual (penetração vaginal levada a cabo por indivíduo do sexo masculino, cuja identidade permanece desconhecida), ainda antes de completar 06 anos de idade.
2) Os indicadores probatórios, nomeadamente o verbalizado pela criança, apontam no sentido de agressão sexual ter ocorrido na própria casa, quarto e cama da criança e sido levada a cabo por pessoa das relações familiares ou de amizade do agregado.
3) Durante o acompanhamento psicológico de que beneficiou após o acolhimento institucional, a criança manifestou ao terapeuta a noção de ausência de socorro ou forma de apoio que a livrasse ou salvasse do agressor, quer do pai, quer da mãe.
4) Apesar de alertada, pela Educadora do Infantário que a criança frequentava, para a sintomatologia psico-somática apresentada pela criança e do aconselhamento para o encaminhamento psicológico desta, a progenitora não providenciou por tal acompanhamento e, em consulta médica posterior, não referenciou ao médico qualquer problemática em sede de alterações emocionais.
5) Tal como nada referenciou ao médico relativamente a corrimento vaginal que, veio a verifica-se apresentar a criança, quando foi acolhida em instituição e apresentada à perícia médico-legal.
6) Aliás, por outras razões, havia sido há quase um ano prescrita a realização de exames (análises de sangue, urina e fezes) à criança e, aquando da consulta médica ocorrida em 02/06/2005, ainda não haviam sido realizadas.
7) Não é admissível que uns pais minimamente atentos, perante o carácter tão intrusivo e necessariamente traumático da agressão sexual sofrida por esta criança, não se dessem conta da ocorrência da mesma, pois que só se praticada intra-família é que se compreenderia que a criança a silenciasse, eventualmente confundida entre o seu significado de agressão e afecto.
8) E se este ‘desconhecimento” deixa no ar uma séria suspeita de possíveis cumplicidades, quanto à ocorrência, a verdade é que a verificação da mesma não pode deixar de significar a omissão dos cuidados adequados em relação à filha por parte dos progenitores que, afinal, para além do desleixo em relação à higiene e à saúde (não realização de exames prescritos) da criança, não se deram conta da leucorreia que esta tinha ou da presença de um indivíduo que lhes terá entrado em casa e violado aquela, de 05 anos de idade.
9) Os progenitores, em vez de mostrarem preocupação perante o acontecido à criança e a forma de a protegerem, têm-se limitado a contrariar o evidente abuso sexual e a afirmar a sua incredulidade na ocorrência do mesmo.
10) A reinserção familiar futura, que subjaz à medida de acolhimento institucional aplicada, significará o regresso da criança ao meio em que foi agredida sexualmente e ao potencial convívio com aquele agressor e a nova vitimação, sendo contrária ao seu superior interesse.
11) Do apurado conclui-se não serem os progenitores da criança capazes de assegurar a sua protecção, quer porque incapazes de evitarem o abuso sofrido, quer porque incapazes de removerem o dano, até porque nele não acreditam.
12) A criança vivenciou uma situação de perigo, configurada no art.º 30 n.° 2 al. b) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, pois que foi vítima de abuso sexual, ocorrendo a verificação da situação prevista na alínea d) do n.° 1 do artº 1978° do Código Civil que legitima a confiança judicial com vista a futura adopção da criança e, consequentemente, a aplicação da medida de promoção de confiança a instituição com vista a futura adopção, prevista nos artºs 350 n.° 1 al. g) e 38° -A da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
13) Na verdade, para a aplicação dessa medida, não importa a existência ou não de culpa dos pais, mas apenas verificação objectiva de alguma das situações previstas no n.° 1 do art. 1978° do Código Civil — cfr. corpo deste preceito — devendo o tribunal, na verificação das referidas situações, atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança (cfr. n.° 2 do citado artigo).
14) Estes direitos e interesses (consignados no direito da criança a crescer, de forma saudável, integrada numa família e a não ser exposta a qualquer forma de vitimação, nomeadamente de natureza sexual, situação que a inserção na família natural não afasta) só serão realizados se decretado o encaminhamento adoptivo da criança, pela aplicação, desde já, da medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, pois que existe fundamento legal para tal.
15) Ao não ser decretada tal medida, foram violadas as disposições conjugadas dos artºs, 3° n.° 2 ai. b) 4° ai. a) e g), 35° n.° 1 ai. g) e 38°-A da Lei de Protecção de Crianças e
Jovens em Perigo, aprovada pela Lei 147/99 de 01/09 e 1978°, corpo e n°s 1 ai. d), 2 e 3, do Código Civil.
16) Deve, em consequência, revogar-se a decisão recorrida e aplicar-se a favor da criança a medida de promoção de confiança a instituição com vista a futura adopção.
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Não foram apresentadas contra alegações.
Corridos estão os legais vistos.

Apreciando e decidindo

Como se sabe o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso, tendo por base as disposições combinadas dos artºs 660º n.º 2, 661º, 664º, 684º n.º 3 e 690º todos do Cód. Proc. Civil.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar:
- se, dos factos assentes e da legislação aplicável, se impunha a aplicação à menor de uma medida de acolhimento em instituição com vista a futura adopção, como propugna o recorrente ou, tão só, uma medida temporária de acolhimento como se propugna na decisão sob censura.
Debatido o pleito, foi fixada, com interesse para a decisão da causa, pelo juiz a quo, a seguinte matéria factual:
1. No dia 03/10/1999 nasceu A............, a qual é filha de B............ e de C.............
2. A criança residiu com os seus progenitores e um irmão uterino, Leonardo …………….., nascido a 6-10-96, em Poço Novo, Loulé.
3. O progenitor deste último faleceu dia 12 de Agosto de 2004.
4. Em Agosto de 2004 o agregado passou a residir no Bairro ………….., em Loulé.
5. A habitação é constituída por dois quartos, sala comum, cozinha, casa de banho e marquise.
6. Em meados de Setembro desse ano a criança passou a frequentar o Jardim-de-Infância………… - em Loulé,
7. A menor comia compulsivamente.
8. Até à Páscoa de 2005, a mesma teve uma grande evolução em termos de aprendizagem e desenvolvimento.
9. A partir da Páscoa de 2005, a criança começou a apresentar grande instabilidade e carência de afectos, agarrando-se às pessoas e exigindo beijos e carinho, para além de uma grande regressão ao nível das aprendizagens, tendo deixado de ser capaz de cumprir qualquer tarefa, tal como fazer o nome e desenhar a figura humana – o que já aprendera a fazer – limitando-se os seus desenhos a riscos imperceptíveis.
10. Para além disso, a criança passou a apresentar semblante triste e choro constante, sem aparentes motivos, e a entrar em conflitos com os colegas, deixando de ser capaz de ter uma relação de parceria com os mesmos, tornando-se egocêntrica.
11. Os colegas da menor marginalizavam a mesma dizendo que cheirava mal.
12. A menor apresentava más condições de higiene, com mau odor, sendo excluída pelos colegas, com excepção da colega Ana ………..
13. A par desses comportamentos, a criança aparecia no Infantário com colecção de “batons” com que se pintava no infantário e mostrava aos colegas.
14. A educadora deu conhecimento à mãe da criança da instabilidade e regressão das aprendizagens da mesma, aconselhando-a a diligenciar por acompanhamento psicológico para a mesma.
15. A progenitora referiu então que iria falar com a psicóloga do filho, na Junta de Freguesia de S. Clemente, para efeitos de acompanhamento.
16. No entanto, não beneficiou a menor de qualquer acompanhamento.
17. No jardim-de-infância a menor não fazia referências a casa, nem à família.
18. No dia 2 de Junho de 2005 a progenitora fez comparecer a menor em consulta de vigilância (consulta dos 6 anos) no Centro de Saúde de Loulé, com o pediatra Dr. Vítor Gameiro.
19. Nesse dia a criança apresentava uma constipação ligeira.
20. Até Junho de 2005, a mãe apenas tinha apresentado a criança no Centro de Saúde em 6 consultas de rotina.
21. O programa de saúde infantil prevê a realização de 7 consultas no primeiro ano de vida das crianças.
22. A criança foi amamentada pela mãe até aos 5 anos de idade.
23. Na 6ª consulta de rotina realizada no Centro de Saúde de Loulé no dia 29 de Setembro de 2004, a progenitora da criança referiu ao médico pediatra que aquela tinha fome permanente e tinha engordado muito.
24. Na ocasião este prescreveu a realização de exames complementares (análises ao sangue, urina e fezes).
25. A progenitora da criança não realizou essas análises.
26. Na consulta realizada no dia 2 de Junho de 2005 (7ª consulta), o pediatra voltou a prescrever a realização das aludidas análises.
27. Nessa consulta a progenitora da criança não referenciou ao médico qualquer outra problemática daquela, nomeadamente em sede de alterações emocionais ou existência de corrimento vaginal.
28. Em Junho de 2005 chegou à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Loulé uma denúncia anónima, fazendo relatos, atribuídos à criança, de abuso sexual continuado por parte de um terceiro, com a conivência activa da progenitora e passiva do pai.
29. Por decisão provisória deste Tribunal de 14/06/2005, foi determinado o acolhimento em instituição da criança, o que veio a acontecer em 15/06/2005, dando entrada no Refúgio Aboim Ascensão em Faro.
30. Nessa decisão foi ordenado o acompanhamento da criança por psicólogo e a elaboração de relatório relativo ao manifestado pela mesma.
31. Foram ainda proibidas as visitas dos pais até à realização do relatório psicológico.
32. Aquando do seu acolhimento a menor apresentava corrimento da vagina.
33. Após o seu acolhimento institucional a criança chorou convulsivamente durante três dias, tendo referido que “queria a mãe, ia portar-se bem, já não fazia mais…”.
34. A menor nunca falou do pai e pouco falou no irmão.
35. Nas declarações prestadas em tribunal no dia 20 de Junho de 2005, veio a progenitora dizer que nunca notou nada de estranho nos comportamentos da filha, tendo o pai declarado que a menor inventa muitas histórias e que a mesma não tem o olhar triste.
36. Verbalizou ainda que a criança mexia muito na “rolinha”.
37. Submetida no dia seguinte ao do seu acolhimento (16/06/2005) a exame médico-legal de natureza sexual, concluiu o perito médico que a criança apresentava “hímen com as características compatíveis com penetração vaginal mantida, compatível com abuso sexual”.
38. O hímen da criança apresentava sinais de laceração, não recentes, decorrentes de penetração vaginal.
39. O perito médico verbalizou em audiência que na ocasião da penetração vaginal pode ter ou não havido sangramento.
40. Essa penetração foi perpetrada por indivíduo do sexo masculino, que não o seu progenitor.
41. Não se apurou até à data a identidade da autoria da agressão sexual à criança, no âmbito da investigação criminal aberta (o inquérito crime encontra-se pendente nos Serviços do M.P. de Loulé).
42. Com a colocação da criança na instituição, foi a mesma sujeita a acompanhamento psicológico.
43. A criança manifestava então receio de homens e não queria que lhe tocassem na zona genital.
44. No decurso de tal acompanhamento psico-terapêutico, adquiriu da criança o respectivo técnico que a agressão sexual seria levada a cabo em casa antiga da criança (no seu quarto e na sua cama) por pessoa que frequentava a mesma e com conhecimento de um tio.
45. Perante o terapeuta a menor verbalizou:
- que quando o Ricardo lhe fazia mal “doía muito, e às vezes fazia sangue”;
- que os pais não estavam presentes;
- que tinha muito medo de dizer ao pai porque estava ameaçada pelo Ricardo;
- que às vezes o tio Vitório (filho do avô ………) abria a porta ao Ricardo;
- que quando chorava o tio Vitório nunca acudiu;
- que este tio nunca lhe fez mal;
- que uma vez fez-lhe queixa do “mau” e o tio bateu no agressor;
- que fazia queixa ao pai que ele lhe fazia mal e o pai dava (ao Ricardo) “porrada, com garrafas na cabeça e com o sapato”;
- que mudou de casa e que o Ricardo não sabia onde era a casa;
- que este mora agora na sua casa velha;
- que esse indivíduo terá estatura baixa e compleição física de forte (gordo).
46. Perante o terapeuta a criança manifestou uma noção de ausência, quer do pai, quer da mãe, de socorro ou forma de apoio que a livrasse ou salvasse do agressor.
47. Um primo paterno da menor, de 13 anos de idade, chama-se Vitorino ……….. e reside em ………….., Loulé.
48. O irmão deste chama-se Ricardo ……………, tem 22 anos de idade, é de compleição magra, tem cerca de 1,72m de altura e reside em ………….., Loulé.
49. Os progenitores verbalizaram não acreditar na ocorrência do abuso sexual da filha.
50. O pai verbalizou que era raro a criança não permanecer junto dos pais
51. A mãe verbalizou que a criança tomava banho de cuecas, juntamente com o irmão.
52. Em audiência a mãe verbalizou que lhe contaram que a menor em tempos meteu um berlinde na rolinha.
53. A criança dormia num quarto, juntamente com o irmão, em camas separadas.
54. A criança apresenta um sorriso contido onde se denota tristeza.
55. A tia paterna da criança, Felisbela…………, reside em Loulé.
56. Actualmente encontra-se desempregada, auferindo subsídio de desemprego no valor mensal de €374.
57. Esta é casada e tem dois filhos, de 15 e 26 anos de idade.
58. O seu marido é pedreiro, auferindo a quantia mensal de €674,43.
59. A filha mais velha do casal é empregada numa pastelaria.
60. A habitação é constituída por um quarto destinado ao casal, um pequeno espaço onde dorme o filho mais novo, uma casa de banho, um quarto com casa de banho no exterior destinado à filha mais velha, mas contíguo à casa, uma sala e uma cozinha.
61. A tia disponibiliza-se a acolher a criança, manifestando algum receio da possível intervenção dos progenitores da criança ou outros familiares, que poderão acarretar mau relacionamento entre a família.
62. A tia verbalizou perante a técnica da Seg. Social que sempre que se encontra com o seu irmão (pai da criança) existem atritos, pois que este não acredita que a filha tenha sido vítima de violação sexual, referindo que as informações são infundadas.
63. O progenitor da criança é cantoneiro de limpeza.
64. A criança não tem nenhum tio chamado Vitório ou Vitorino.
65. Na instituição a criança já procurou colegas mais novas, abriu as pernas e apontando para a vagina referiu que “é por aqui que se metem as coisas”.
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O recorrente insurge-se contra a decisão sob recurso por entender que a mesma não atende aos verdadeiros interesses da criança, vitima de abuso sexual (penetração vaginal), sem que os seus progenitores tenham sido capazes, de evitar tal dano ou de o minorar, antes, displicentemente, se comportando como se o mesmo não tivesse ocorrido ou não pudesse continuar a ocorrer.
Desde já, diremos, ser nossa convicção, que decisão recorrida não teve em conta os verdadeiros interesses da criança. A institucionalização desta impõe-se, não com carácter provisório, mas sim, definitivo e com vista a futura adopção.
Ao contrário do que se sustenta na decisão impugnada, pensamos que há responsabilização dos pais pelos abusos sexuais de que foi vítima a menor, uma vez que aos mesmos compete a sua guarda e segurança.
Nos termos do art. 38º A, al. b) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1/9, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2003, está prevista a medida de colocação da criança ou jovem sob a guarda de instituição com vista a futura adopção quando se verifique alguma das situações previstas no art. 1978º do C. Civil, que dispõe no seu n.º 1, que “ com vista a futura adopção, o tribunal pode confiar o menor a casal, a pessoa singular ou a instituição quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:
d) se os pais, por acção ou por omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou desenvolvimento do menor”.
Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, e agora na parte que nos interessa, sofre de maus-tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais – cfr. n.º 2, al. b), do artº 3º da LPCJP.
Qualquer intervenção deve ser norteada pelos princípios enunciados no art. 4.º da LPCJP, de entre os quais salientamos, o do interesse superior da criança e do jovem e os da proporcionalidade e actualidade (cfr. als. a) e e). De acordo com tais princípios orientadores, a intervenção deve atender, prioritariamente, aos interesses e direitos da criança e deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e, só pode interferir na sua vida e na da sua família, na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.
As medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo visam afastar o perigo em que estes se encontrem, proporcionar- -lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso – cfr. art. 34.º da LPCJP.
A medida de institucionalização, decretada temporariamente, apenas seria de manter com esse carácter, caso se verificasse alguma possibilidade destes pais interiorizarem o dano, quer físico, quer psíquico, sofrido pela menor e, a fim de o minorarem, tudo fizessem para que ele com o passar do tempo se desvanecesse. Já, o trauma sofrido, certamente, que permanecerá mesmo com o decorrer dos anos.
Pautando-se a intervenção do Tribunal pelo superior interesse do menor, a medida a adoptar, terá que assegurar da melhor forma o seu crescimento e bem estar, não nos parecendo, no caso em apreço, que uma medida tendente a possibilitar, de novo, a sua reinserção familiar, na família onde se vinha inserindo, seja a mais adequada para a criança, bem como a socialmente exigida, já que, tal reintegração significará o regresso da menor ao meio tormentoso em que foi agredida sexualmente, e conforme, bem salienta o recorrente, potenciando naturalmente o convívio com o agressor e consequente risco de revitimação, uma vez que a sua família demonstra à evidência não ser capaz de assegurar a protecção da mesma, tudo denotando a existência uma inércia indesculpável que roça até a cumplicidade nos actos abusivos.
Com efeito, perante a constatação de que a menor tinha sido vítima de abuso sexual com penetração vaginal e laceração do hímen, perpetrada por indivíduo do sexo masculino, os seus progenitores verbalizaram que não acreditavam na ocorrência de abuso sexual da filha, o que denota da parte destes, até, manifesto desinteresse em se apurar com pormenor o que efectivamente aconteceu, revelando uma personalidade desadequada à exigência que a relação filial impõe. Será que havia da parte dos progenitores interesse em que tudo ficasse por esclarecer? Não se poderá peremptoriamente afirmar que sim, mas de todo o circunstancialismo inerente à sua relação familiar com a menor, tal transparece, já que, apesar de instada para o efeito e de se comprometer a tal, a mãe não diligenciou pelo acompanhamento psicológico da filha; os progenitores, no período de vida da menor, apenas a apresentaram em seis consultas de rotina no Centro de Saúde; os progenitores não realizaram exames complementares (análises ao sangue urina e fezes) prescritos pelo médico, quer em Setembro de 2004, quer em Junho de 2005 (duas últimas consultas), nem referenciaram ao clínico, qualquer situação de alteração emocional ou existência de corrimento vaginal, apesar da mãe verbalizar que a criança mexia muito na “rolinha”.
Esta inércia reiterada de actuação dos progenitores da menor evidencia à saciedade omissão de protecção que lhes era moralmente e socialmente exigível e vai contra os mais elementares sentimentos paternais, mesmo de pessoas desprovidas de meios económicos e de baixa condição social.
Esta criança, que vivia com os pais, exposta, que foi, pelo menos, negligentemente a uma violação, clinicamente documentada, bem como negligenciada no âmbito dos cuidados de saúde primários, deve ser-lhes, irreversivelmente, retirada, [1] pois é o que se coaduna e ajusta aos seus interesses e ás suas legítimas expectativas duma vivência em sociedade, onde os maus-tratos e a indiferença não se façam sentir e onde imperem o amor e o carinho.
A menor no jardim de infância não fazia referências à casa nem à família e na Instituição nunca falou do pai, manifestando, perante o terapeuta, noção de ausência quer do pai quer da mãe apresentando um sorriso contido onde se denota tristeza, o que evidencia que não nutre pelos progenitores intensos laços afectivos, que de algum modo fossem de ponderar perante uma institucionalização com vista a futura adopção, em que se impõe a quebra imediata do exercício do poder paternal.
A confiança institucional com vista a futura adopção tem em vista proteger os interesses do menor de não ver protelada a definição da sua situação face
aos pais biológicos, possibilitando que à posteriori a integração da criança, na nova família, se faça sem incertezas e com a segurança e serenidade aconselhadas, [2] sendo que no caso em apreço, a institucionalização, sem ser com vista a futura adopção, a nosso ver, só iria protelar a definição da situação da menor em ter uma família que lhe garanta o seu bem estar e desenvolvimento integral. As instituições não poderão servir para “depósito de menores” nas quais, devido a comportamento dos pais, são “depositados”, para mais tarde, quando o seu crescimento e educação estiverem assegurados por terceiros, retornarem ao lar dos progenitores a fim destes usufruírem dos seus, eventuais, proventos, sem nada lhes terem dado em troca, nem manifestado qualquer intenção de darem primazia aos interesses dos filhos em detrimento do seu modo de vida e atitude perante estes, como, manifestamente, se apresenta ser a realidade que se nos depara.
A situação que os factos retratam relativamente a este casal de progenitores, não se compadece com concessão de oportunidades para ver se há modificação definitiva do comportamento no sentido da sua adequação ao normal tratamento dos filhos dentro dos valores inerentes e impostos pela sociedade em que vivemos. Pois, poderíamos, para estar a reconhecer a possibilidade futura de uma mudança de mentalidade dos pais, comprometer definitivamente a garantia do desenvolvimento são e integral da menor, que presentemente, precisará de todo o apoio.
Os parcos vínculos de afectividade existente entre menor e pais, não podem ser determinantes para obstaculizarem à determinação de uma medida de internamento com vista a futura adopção, já que tratando-se de uma menor, de 6 anos de idade, os referenciais que ela tem relativamente às figuras parentais conhecidas no universo físico da casa que habitava, são fáceis de se desvanecer, como parece que efectivamente, aconteceu, com o acolhimento na instituição Refúgio Aboim Ascensão.
Assim, não se demonstrando existir, com o afastamento dos pais, uma situação violentadora, em termos afectivos, para a menor, que lhe cause mais prejuízos que vantagens, haverá que ter-se sempre em atenção, como primazia os reais interesses e direitos desta em confronto com invocados direitos dos pais.
Ao concluir-se por esta tomada de posição, perante um conflito entre o interesses da Luísa e os direitos dos pais, pensamos, que relativamente aquela, a decisão exprime um acto de solidariedade e de amizade do qual não se espera reconhecimento, mas com o qual, convictamente, se crê poder contribuir para que a mesma possa usufruir de um desenvolvimento harmonioso e saudável, de molde a catapultá-la, após a fase de crescimento, com afectividade desejada, mesmo em ambiente familiar diverso do biológico, para uma correcta e adequada vivência, cada vez mais exigente, em sociedade.
Nestes termos, entendemos dever conceder provimento ao recurso e revogar a decisão impugnada.
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DECISÂO
Pelo exposto, nos termos supra referidos, decide-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, decretando a aplicação à menor da medida de confiança a instituição com vista à sua futura adopção – cfr. artºs. 35.º, n.º 1, al. g) e 38.º-A, da LPCJP, ficando os pais inibidos do exercício do poder paternal – cfr. art. 1978.º-A, do Cód. Civil.
Não são devidas custas, dada ao isenção de que gozam os agravados – artº 2º n.º 1 al. g) do C. C. Judiciais.

Évora, 07/12/2006


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Mata Ribeiro

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Sílvio Teixeira de Sousa

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Mário Serrano




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[1] - v. Eduardo Sá e Outros in Abandono e Adopção, Almedina, 2005, 227.
[2] - v. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in Curso de Direito de Família, 2ª edição, 2001, 55 a 58.