Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2868/16.0T8FAR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os devedores declarados insolventes não podem, em substituição do Administrador Judicial, propor uma acção cuja consequência seria a integração de um bem na massa insolvente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2868/16.0T8FAR.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) e mulher, (…) instauraram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra:
- (…) e mulher, (…);
- Caixa Geral (…), SA..
- Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL..
Pedem que pela procedência da acção:
“1) seja declarada a nulidade do negócio jurídico de compra e venda celebrado por escritura pública no dia 3/08/2009, no Cartório Notarial de Ponte da Barca, que teve por objecto o seguinte imóvel: prédio misto sito em (…), freguesia da União das Freguesias de Tavira (Santa Maria e Santiago), do concelho de Tavira, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo (…) e na matriz urbana sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º (…) – Tavira (Santa Maria);
2) seja declarado, em consequência, que o Autor (…) goza do direito de propriedade, sobre o imóvel referido em 1) supra deste petitório, determinando o cancelamento da inscrição registral a favor dos dois primeiros Réus: AP (…) de 5/08/2009;
3) seja declarado o cancelamento de quaisquer outras inscrições registrais que incidam sobre tal imóvel, anteriores ao registo da presente acção e que contendam com vertido em 1 e 2 supra, em concreto a AP (…) de 1/09/2009 e a AP (…) de 10/09/2009, quanto à Ré (…), e a AP (…) de 2/06/2015 e a AP (…) de 2/06/2015, quanto à Ré (…)”.
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As RR. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, e Caixa Geral (…), SA contestaram invocando a falta de capacidade judiciária dos Autores, com fundamento na declaração de insolvência dos mesmos.
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Os Réus (…) e mulher, (…), regularmente citados, não contestaram.
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Foi proferido despacho saneador que, decidindo pela ilegitimidade dos AA. por força da declaração da sua insolvência, absolveu os RR. da instância.
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Deste despacho vem interposto o presente recurso que os AA. concluem desta forma:
A) O presente recurso tem como objecto o facto de a Douta sentença ter considerado que os bens e direitos em causa nesta acção integram os bens da Massa Insolvente, razão pela qual foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade activa dos Recorrentes, por um lado e, por outro;
B) Tem ainda como objecto o facto de a Douta Sentença ter considerado que existe o risco de, fruto do menor empenho ou outro motivo, esta acção poder improceder pelo facto de ter sido impetrada pelos Recorrentes e não pelo AI;
C) No relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, apresentado no âmbito do processo de insolvência dos Recorrentes, o AI não relacionou o “direito a arguir a nulidade do acto translativo do direito de propriedade do imóvel integrasse a massa insolvente”, usando a expressão empregue pela Douta Sentença aqui em crise, não obstante a simulação que constitui tal nulidade subsistir desde 2009 conforme brota do alegado na p.i. do presente pleito.
D) Acresce que, para além de não ter relacionado tal direito de arguir a nulidade, o AI não apresentou qualquer acção judicial que consubstanciasse o exercício de tal direito a fim de reivindicar imóvel para a Massa Insolvente, quer antes de emanar o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE – 5/01/2016 –, quer até à data designada para a abertura de propostas para a venda judicial do imóvel – 27/09/2016 – ao abrigo do art.º 840º do CPC, quer depois, designadamente até à presente data.
E) A Douta Sentença admite uma possibilidade que já foi afastada e excluída e que é a de o direito de arguir a nulidade vir a ser considerado pelo AI como integrante da Massa Insolvente e como tal seja relacionado no relatório do art.º 155º CIRE, porquanto tal relatório já foi apresentado e o AI não considerou tal direito como integrante da esfera jurídica da Massa Insolvente.
F) A Douta Sentença admite ainda a possibilidade de o AI exercitar tal direito mediante a apresentação da competente demanda judicial quando, aquilo que se verificou é que o AI não a deduziu tempestivamente qualquer protesto para reivindicação, ao invés do que fizeram aqui Recorrentes com o presente pleito.
G) Donde, e atenta a inacção do AI, aliada ao facto de não terem sido cumpridos os prazos estipulados no art.º 239º CIRE, se não fosse a iniciativa dos Recorrentes em apresentar tempestivamente a presente demanda (art.º 840º do CPC), o imóvel nesta data já poderia ter sido vendido, na execução movida pela Recorrida Caixa de Crédito contra os Recorridos (…) e (…), frustrando os interesses da Massa ou da Fidúcia;
H) Tal facto, só por si, e à luz do art.º 30º, n.º 1 e 2 do CPC torna os Recorrentes parte legítimas para a presente demanda, atendendo à relação material controvertida (declaração de nulidade) e aos interesses que com a mesma pretendem acautelar (a sua casa de morada de família).
I) Se assim não se entender, sempre se dirá que estando perante uma situação em que não foi proferido o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração na data da realização da assembleia na qual se apreciou e votou o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, nem nos dez dias subsequentes, nem tendo sido ainda proferido o despacho de encerramento, nos termos do art.º 230º, n.º 1, al. d) e 232º do CIRE, e tendo já sido apresentado o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE no qual o AI concluiu pelo encerramento do processo por insuficiência dos bens, sob pena de violação injustificada dos direitos dos Recorrentes, designadamente do seu direito constitucional à habitação, é razoável uma interpretação extensiva do art.º 233º, n.º 1, al. a), conjugado com o art.º 239º do CIRE, que permita considerar que podem os Recorrentes, independentemente da prolação do despacho de encerramento e do despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo, em face da inacção do AI, por si só, demandarem terceiros com vista à defesa ou recuperação do seu património.
j) Não se vislumbra qual o risco que existe no presente pleito em que o mesmo tenha sido impetrado pelos Recorrentes, porquanto o AI não tomou qualquer iniciativa com vista a impedir a venda judicial do prédio que está em causa nestes autos;
l) Ao invés, se não fossem os Recorrentes a apresentar esta demanda, cuja eventual procedência pode redundar num benefício para os credores, por passarem a ter um bem imóvel que possa satisfazer os seus créditos, atendendo ao comportamento omissivo do AI (obviamente sem qualquer responsabilidade da sua parte), o aludido imóvel poderia ter sido vendido judicialmente na sequência da abertura das propostas em carta fechada.
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A R. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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O relatório contém os elementos necessários para decisão.
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Podemos resumir o teor das alegações em dois pontos, como faz também a recorrida:
A recusa do AI de incluir o bem em causa (ou o direito de invocar a nulidade do negócio que o teve por objecto) no relatório a que alude o art.º 155.º, CIRE, a par com o facto de não ter sido atempadamente nomeado um fiduciário (art.º 239.º, CIRE), confere aos AA. legitimidade para proporem a presente acção.
Uma vez que o AI, no referido relatório, conclui pelo encerramento do processo por insuficiência de bens e que não foi ainda proferido despacho sobre o pedido de exoneração do passivo restante, deve-se interpretar extensivamente o art.º 233.º, n.º 1, al. a), CIRE, podem os recorrentes, independentemente da prolação do despacho de encerramento e do despacho de admissão liminar do pedido de exoneração, demandar terceiros com vista à defesa ou recuperação do seu património.
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Nos termos do art.º 81.º, n.º 1, CIRE, decretada a insolvência, o devedor fica privado dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente; tais poderes ficam a cargo do administrador de insolvência.
Isto significa que o devedor fica incapaz de exercer, por si só, os seus direitos sobre aqueles bens. O que imediatamente significa também que não será o devedor quem poderá propor qualquer acção sobre aqueles.
A representação do devedor para todos os efeitos patrimoniais que interessem à insolvência, acrescenta o n.º 4, cabe ao AI exclusivamente.
Sendo assim, não temos dúvidas em afirmar que é vedado aos AA. proporem a presente acção.
Mas se o AI não defender todos os interesses da massa insolvente? Poderá, neste caso, o devedor agir pessoalmente, como de uma sub-rogação (nos termos do art.º 606.º, Cód. Civil) se tratasse?
Cremos que não.
A posição do AI não tem por objectivo suprir uma incapacidade mas antes impedir, pelo exercício das suas funções, que o insolvente exerça direitos que podem colidir com os interesses da massa. E estes interesses são definidos pelo AI e não pelo insolvente.
Por outro lado, a actuação do AI está sujeita a fiscalização do juiz, que não à sua direção. Se a sua actividade está, toda ela, sujeita à referida fiscalização, também é certo que os poderes do juiz são bastante limitados cabendo-lhe prioritariamente e quase exclusivamente ao papel de garante da legalidade (Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª ed., QJ, Lisboa, 20115, p. 340).
Daqui resulta que a actividade do AI é bastante autónoma e independente; em função disto, o papel do juiz é o de fiscalizar o exercício das funções e, por causa disto, ele é responsável pelos seus actos, nos termos do art.º 59.º.
O art.º 56.º, n.º 1, CIRE, permite a destituição do AI quando existir justa causa; para assim decidir, o juiz ouve, além da comissão de credores e do próprio AI, o devedor — de onde se retira a conclusão que, mesmo que este não faça um requerimento expresso nesse sentido, pode pronunciar-se a favor da destituição indicado os respectivos fundamentos.
Em conclusão, é por via da destituição ou da responsabilização que o AI pode ser censurado, o que não permite que o devedor se lhe substitua.
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Quanto ao segundo ponto, o que os recorrentes defendem é que, uma vez que o AI já deu parecer no sentido do encerramento do processo por falta de bens, é razoável uma interpretação extensiva do art.º 233º, n.º 1, al. a), conjugado com o art.º 239.º do CIRE, que permita considerar que podem os Recorrentes, independentemente da prolação do despacho de encerramento e do despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo, em face da inacção do AI, por si só, demandarem terceiros com vista à defesa ou recuperação do seu património.
Não concordamos.
O que a lei exige, no art.º 232.º, CIRE, é um acto formal do juiz, uma decisão expressa que não pode ser substituída por uma previsão de que tal decisão irá ser proferida. É que as consequências desta decisão não são em nada destruídas de importância, desde logo a que consta da al. a) do n.º 1 do art.º 233: a recuperação pelo devedor do direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios. Esta recuperação apenas ocorre depois de um despacho formal e expresso nesse sentido, ou seja, não é possível esta recuperação independentemente do dito despacho.
E também não vemos argumento suficiente para entendimento contrário àquele que os recorrentes tiram da figura da cessão do rendimento disponível. Tal cessão verifica-se após o encerramento do processo, sem dúvida, mas em nada contende com a necessidade do já referido despacho; pelo contrário, antes tem como antecedente necessário tal despacho.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 07 de Dezembro de 2017
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho