Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
704/09.2GDSTB.E1
Relator: PROENÇA DA COSTA
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
I - A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.

II - Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.

III - No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…

IV - Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

R, com os sinais nos autos, apresentou queixa contra JF, casado, médico, filho de..., nascido em Almada a 05 de Setembro de 1960, residente na Avenida ..., Setúbal.

Procedeu-se á realização de inquérito, findo o qual o M. P. veio proferir despacho de arquivamento, como decorre de fls. 89 e 90 dos autos.

Não se conformando com o mesmo, R, queixosa, requereu intervenção hierárquica de fls. 96 a 196, pedindo a continuação da investigação, prolação de despacho de acusação pela prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 e 2 do Código Penal.

Nesse seguimento, veio a ser proferido despacho de reabertura do inquérito para investigação de factualidade imputada ao arguido por parte da queixosa, tendo sido ordenadas diligências de prova, cfr. fls. 200 a 204 dos autos.

Foram realizadas as diligências ordenadas, tendo sido proferido novo despacho de arquivamento, conforme decorre de fls. 341 a 349 dos autos.

Não se conformando com o despacho de arquivamento, R e JM, menor, filho da queixosa, requereram a fls. 360 a 418 a constituição de ambos como assistentes, bem como a abertura da instrução, pedindo a pronúncia do arguido pela prática de factos que, no seu entender, consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica contra a pessoa da assistente R, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal, de um crime de violação de domicílio p. e p. pelo artigo 190.º n.º 1 e 2 do Código Penal e de um crime de violência doméstica contra a pessoa do assistente JM, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 2 do Código Penal.

Por despacho de fls. 509 e 520 a 525, foram admitidas as requeridas constituições de assistentes e rejeitada parcialmente a abertura de instrução.

Não se conformando com o despacho que rejeitou parcialmente a abertura da instrução, os assistentes interpuseram recurso a fls. 531 a 592 para o tribunal da Relação de Évora.

Foi proferido acórdão a conceder provimento ao recurso interposto pelos assistentes que, revogando o despacho recorrido, ordenou a prolação de despacho a admitir a abertura da instrução quanto aos factos no mesmo rejeitados.

Tal despacho foi proferido a fls. 633 a 635 dos autos.

Foi ouvido o assistente JM e a testemunha I, irmã do assistente e filha da assistente R e, a final, realizou-se o debate instrutório, com observância de todas as formalidades legais, conforme se alcança da respectiva acta.

Finda a instrução veio o Mmo. Juiz de Instrução (2.º Juízo Criminal de Setúbal-JIC) a não Pronunciar o arguido JF pela prática dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, os quais no entender dos assistentes, configuram a prática de dois crimes de violência doméstica e um crime de violação de domicílio.

Inconformados com o assim decidido, trazem os assistentes o presente recurso onde formulam as seguintes conclusões (transcrição):

A) O objecto das presentes alegações cinge-se à comprovação da existência nos autos de indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, consubstanciados na vasta prova testemunhal e documental produzida e, por conseguinte, efectuando um juízo de prognose, o elevado o grau de probabilidade de o arguido vir a ser condenado em sede de julgamento, uma vez cumpridos os pressupostos da instrução.

B) Do crime de violência doméstica sobre menores, particularmente sobre o menor JM:

.Compulsados os autos e no que a este particular crime respeita ficaram suficientemente indiciados os seguintes factos:

• Ponto 2 da decisão instrutória: Em data não concretamente apurada mas situada entre Julho de 2005 e Junho de 2009, o arguido, dirigindo-se ao assistente JM, proferiu por diversas vezes, em número não concretamente determinado, as expressões “burro” e “anormal”.

• Ponto 3 da decisão instrutória: Em data não concretamente apurada, mas situada no lapso temporal indicado em 2, o arguido foi com o assistente levantar as notas escolares de final de período e, tendo considerado que as mesmas não eram satisfatórias, deslocou-se pela cidade de Setúbal proferindo junto das pessoas por quem passava e conhecia a seguinte expressão: “Já viram o burro que eu aqui levo”.

• Ponto 4 da decisão instrutória: No mesmo lapso temporal e, por ocasião de uma visita de estudo, o arguido em voz audível, dirigindo-se para a professora do assistente na presença dos seus colegas, proferiu a seguinte expressão: “Não pago visitas de estudo a quem não estuda”.

• Ponto 5 da decisão instrutória: No mesmo lapso temporal, encontrando-se o assistente na casa de banho, o arguido abriu a porta e fotografou o assistente sentado na sanita, tendo afirmado que iria mostrar as fotografias “a toda a gente”.

• Ponto 6 da decisão instrutória: No mesmo lapso temporal, o arguido após ir buscar o assistente à escola ao final da tarde, dirigiu-se para o consultório onde exercia funções, tendo proibido o assistente de esperar no consultório, bem como no interior da sua viatura.

• Ponto 7 da decisão instrutória: Por essa razão, o assistente esperou cerca de duas horas, na rua, período durante o qual choveu.

• Ponto 8 da decisão instrutória: No mesmo lapso temporal, pedindo o assistente para ir à piscina, o arguido impôs que o mesmo dedicasse três horas à leitura, contudo, após cumprir o ordenado, o arguido, ainda assim, proibiu o assistente de ir à piscina;

L) O Tribunal “a quo” alicerçou a sua convicção para dar como provados os factos supra narrados, nos depoimentos prestados em sede de instrução, pelo próprio assistente JM, conforme se retira da própria decisão.

M) Pese embora, ter dado como provados os factos supra elencados, veio o Tribunal “a quo” decidir pela não pronúncia do arguido quanto ao crime de violência doméstica perpetrado contra o assistente JM, por considerar que:

Compulsados os mesmos, constata-se que poderemos estar perante um crime de violência doméstica na modalidade de maus tratos psíquicos, com ofensas verbais. Tendo em conta que o assistente é menor e que alguns dos factos terão ocorrido na residência deste – veja-se o facto suficientemente indiciado nº5 – poderíamos em abstracto estar perante uma situação prevista na alínea d) do nº 1 e nº 2 do artigo 152º do Código Penal. Contudo, somos da opinião que a matéria indiciada não é suficientemente grave para levar o arguido a julgamento”.

N) Concluindo o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” na decisão instrutória e como tentativa de justificação para a não pronuncia do arguido no que a este crime respeita que: pese embora o tribunal tenha tentado, moto próprio, instar o assistente a descrever e identificar essa transformação física que ele, melhor que ninguém terá sentido, o mesmo acabou por descrever um resultado que, pese embora possa ter sido alcançado de forma negativa, não prejudicou de forma grave e visível o seu percurso de formação pessoal, daí que se tenha tornado mais atento, desconfiado, cauteloso e adulto”.

O) Ora é desta posição que os ora recorrentes discordam veemente, tanto mais quanto do depoimento do assistente que em abono da verdade diga-se ser um depoimento claro, genuíno e prestado com um enorme sentido de humildade e responsabilidade, não obstante, as dificuldades óbvias em relembrar momentos tão marcadamente negativos, resulta notório que todas as situações narradas no requerimento de abertura de instrução lhe acarretaram marcas profundas e sentidas de um desespero que o levou ao limite de questionar a sua própria existência e admitir o suicídio.

P) Passando à transcrição do depoimento do assistente que contraria de forma impressionante a posição seguida pelo Tribunal “a quo” de que os maus tratos de que foi vitima não prejudicaram de forma grave e visível o seu percurso de formação pessoal:

Pelo assistente JM, cujo depoimento se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Setúbal, com início às 00:00:00 e término às 01:06:55 horas (sessão de 24.01.2012) foi dito o seguinte:

“Ao longo dos tempos eu vou pensando nas coisas e sei perfeitamente que no 7º ano chumbei porque estava constantemente a ouvir em casa que nunca seria ninguém e desisti, desliguei-me completamente da escola, não estudava, não ouvia os professores, não queria saber, faltei às aulas propositadamente (…) e percebi que depois de ir para casa do meu pai acalmei substancialmente, comecei a ter mais atenção nas aulas, nunca pensei sequer em faltar,

(…)eu sentia-me bem na escola, eu sentia-me melhor na escola do que em casa, por estar com os meus amigos e não estar com alguém que estava constantemente a insultar-me ou a ver se eu fazia mal uma coisa ou outra…

Como é óbvio eu não gostava de estar sempre a ouvir que era um burro e que não merecia isto ou aquilo…

“ Eu sempre fui muito ligado às pessoas, eu qualquer pessoa que viesse eu dava-me a essa pessoa e estava muito bem, eu neste momento se vejo uma pessoa a primeira coisa que eu faço é tirar o perfil psicológico da pessoa, ver o que a pessoa é o que a pessoa não é, se posso ou não estar com essa pessoa”.

Tendo o Meritíssimo Juiz de Instrução referido:
“Isso pode ser bom”
Sendo que o assistente respondeu:
Não é porque eu nunca fui assim, acabo por dizer às pessoas para não se chegarem, estou muito mais cauteloso quanto às pessoas e nunca fui assim, pode ser uma coisa boa, mas eu não vejo uma coisa boa nisso.
E em face da resposta do Meritíssimo Juiz de Instrução:
“Tudo tem o reverso da medalha…”
Pelo assistente foi dito:
“Pois, mas não considero que tenha sido uma coisa boa, a maneira como aconteceu não foi boa, podia ter sido de outra forma e com esta situação toda cresci mais depressa do que devia, os meus professores dizem que eu sou mais adulto, pedem-me ajuda e eu às vezes preferia que não fosse assim, preferia ser uma criança…
“Na altura, preferia não saber certas coisas… No meu quinto e sexto ano deviam ser anos em que uma pessoa fazia disparates e não estar com as coisas com que eu me preocupava.
Cheguei a um ponto em que fazia coisas e estava era mais preocupado com aquilo que ia acontecer aos meus familiares. Deixei de ligar um pouco à minha vida porque se ligasse isso não acabaria bem. Com esta situação toda acabava por escrever, escrever coisas horrendas, que nem dava bem para ler…
Quando isto tudo acabou o título que eu dei àquilo foi desespero porque de facto eu estava… uma criança que escreve essas coisas e dá o título de desespero a essas coisas de certeza que não está bem”.

Q) Só desta parte do depoimento, desde logo, resulta por demais evidente que a conduta criminosa do arguido feriu profundamente a inocência de uma criança de onze anos que apenas desejava ter um crescimento sadio conducente com a sua idade, brincar e ter uma vida normal como qualquer outra criança, afectou decisivamente o seu harmonioso desenvolvimento, prejudicou o seu percurso escolar normal, alterou a sua personalidade, levou-o ao desespero.

R) Porque o que o próprio tribunal “a quo” considerou provado são apenas os episódios mais chocantes de um comportamento diário de destruição da auto estima de uma criança, a quem foi deliberadamente retirada a capacidade de brincar, a possibilidade de ser apenas feliz, a esperança em ter futuro.

S) E bastaria ter complementado as declarações do assistente com as dos que o conheceram antes (pai, madrasta, irmãos) para se perceber que se está perante uma criança especialmente vulnerável a este tipo e comportamento, por ter sido uma criança meiga, afectuosa, que se entregava confiadamente aos adultos com quem se relacionava.

T) Assim, no seguimento do depoimento prestado pelo assistente pelo Meritíssimo Juiz de Instrução do Tribunal “a quo” foi dito:

Olha e já disseste que das coisas que te aconteceram e a forma de defesa que tiveste até acabou por ser bom. Não quer dizer que tenha sido bom aquilo que te fizeram, mas acabou por ter reacções boas. O que eu te perguntava agora é se há alguma que tu queiras descrever que tenhas sentido que tenha sido má.

U) E neste ponto o assistente faz uma revelação que seria, por si só, a comprovação dos efeitos devastadores que a conduta do arguido teve nesta jovem vida, para além de demonstrar que o assistente uma vez mais se entregou confiadamente a quem pensava merecer confiança e que o defraudou:

Há uma coisa que eu nunca disse a ninguém porque eu sinceramente, não queria preocupar ninguém, mas comecei a pensar o que é que havia depois da vida, o que é que havia e o que é que não havia, mas depois pensei que se eu morresse não podia voltar e lembro-me perfeitamente disto… E eu lembro-me de ir para o meu quarto escrever, olhar para a janela e pensava qual é que é a melhor maneira de me atirar daqui e acabar com isto e porque ele dizia que havia pessoas que vinham para trabalhar e outras para estorvar e eu começava a pensar porque é que eu nasci?

O que é que eu vim aqui fazer? Só vim chatear toda a gente

Até houve um dia que eu já não sabia o que havia de fazer e peguei na roupa, no que tinha e o que não tinha e pus dentro da minha mala para fugir de casa, só que entretanto chegou a minha irmã S e disse para fazer as malas que ia para casa do meu pai”…

V) Em face de todo o exposto, entendemos que errou, grosseiramente, o Meritíssimo Juiz de Instrução do Tribunal “a quo” ao considerar que a conduta do arguido não prejudicou o desenvolvimento do assistente.

W) Mas não é só do depoimento do assistente que se retira que os maus tratos que lhe foram infligidos pelo arguido o tenham prejudicado gravemente no seu desenvolvimento pessoal e social, todas as demais testemunhas inquiridas, desde a sua mãe, a assistente R, ao seu pai, JA, aos seus irmãos, T, G, S e I cujos depoimentos constam dos autos e que devem merecer toda a credibilidade do Tribunal porque que detém conhecimento directo dos mesmos uma vez que coabitaram com o arguido durante o período em que este esteve casado com a sua mãe.

X) Todas as testemunhas relataram em uníssono os comportamentos perversos e humilhantes que o arguido perpetrava sobre o assistente, apelidando-o de “burro”, “anormal”, “gordo”, referindo que ele era um peso para toda a gente e que nunca seria ninguém na vida, humilhando-o à frente da família e de desconhecidos, como de resto ficou demonstrado na decisão instrutória.

Y) Da prova carreada para os autos resulta, inequivocamente, que os factos infra discriminados e considerados não suficientemente indiciados é verdadeiramente questionada, como passará a demonstrar-se.

“Por causa da conduta do arguido, o assistente tenha começado a rejeitar quaisquer manifestações de afecto, evitando o contacto com outras pessoas, isolando-se, escondendo-se e alheando-se da realidade que o rodeava”.

Z) Em face da prova constante dos autos, impunha-se ao Tribunal “a quo” ter considerado suficientemente indiciado este facto, desde logo, pelo depoimento da testemunha I, cujo depoimento consta dos autos a fls. 288 a 290 e da testemunha JA, constante dos autos a fls.291 a 291

AA) Salienta-se no que respeita a este facto o depoimento da testemunha T, cujo depoimento se encontra junto aos autos a fls. 284 a 287, onde o mesmo refere:

Em resultado da actuação do arguido o comportamento do seu irmão JM alterou-se por completo. Deixou de ser uma criança alegre e afável, para adoptar comportamentos de reserva e isolamento. Não conversava sequer com os irmãos e comia de cabeça baixa. Às vezes por não aguentar, levantava-se da mesa e ia a correr para o quarto”.

BB) Em face da prova constante dos autos jamais poderia o Tribunal “a quo” considerar que os maus tratos infligidos pelo arguido não o prejudicaram gravemente no seu desenvolvimento e, por conseguinte, deixar de pronunciar o arguido pela prática de maus tratos ao menor JM, violando a decisão instrutória a norma constante do nº2 do artigo 152º do Código Penal.

CC) Quanto à imputação de um crime de violação de domicílio, considerou a douta decisão instrutória provado apenas o seguinte facto: Ponto 9 da decisão instrutória: No dia 17 de Junho de 2009, o arguido entrou no interior da habitação sita na ...., Setúbal;

Por seu turno considerou o Tribunal “a quo” não provado que:

Que no dia 17 de Junho de 2009 pelas 21:30 a assistente não tenha permitido a entrada do arguido na sua residência e que, ainda assim, este ter entrado, a assistente lhe tenha ordenado que abandonasse a casa e o arguido não o tenha feito;

DD) Alicerçou o Meritíssimo Juiz de Instrução do Tribunal “a quo” tal entendimento no seguinte facto e passa a citar-se: resulta evidente que o arguido lá entrou, o que é credível, tendo em conta que à data dos factos era marido da assistente, contudo o tribunal não deu como suficientemente indiciado que a assistente não tenha permitido a sua entrada, lhe tenha ordenado que se fosse embora e que o mesmo não o tenha feito, porque tanto o assistente como a testemunha I não ouviram o diálogo travado entre arguido e assistente, só se recordando que o mesmo bateu nas janelas e que ambos discutiram em voz alta”.

EE) Não é admissível, a decisão de primeira instância quanto a este crime na medida em que todas as pessoas inquiridas e que, quer de forma presencial – como os filhos G e S – assistiram a tal episódio, quer de forma não presencial – como o filho T e JA – que nele tiveram uma participação, foram uníssonos na afirmação de que o Arguido naquele final do dia entrou à força na casa que havia sido morada de família, que ali permaneceu contra a vontade da Assistente e que se recusava a sair ainda que directamente instado a fazê-lo, o que levou a que a própria Assistente, por intermédio do seu filho G tivesse chamado a GNR ao local, e tivesse tomado providências junto do corpo de Segurança do Condomínio onde se situa a habitação, com o intuito de proibir as futuras entradas do Arguido naquele espaço.

FF) Concretizando: de todas as declarações prestadas pela Assistente, em sede de Auto de Noticia lavrado no dia dos factos a 17 de Junho de 2009, pelas 23h e 36m pela GNR de Palmela, que consta dos autos às folhas 3 e 4, acerca deste episódio em concreto e no que a este crime em particular respeita, no dia seguinte 18 de Junho de 2009, constantes dos autos às folhas 56 a 58 e ainda das declarações prestadas na presença da Digna Magistrada do Ministério Publico competente, a 21 de Outubro de 2009 pelas 10 horas constantes dos autos às folhas 20 e 21, resulta que entrou e permaneceu na casa da assistente sem autorização e contra a sua vontade.

GG) A testemunha G, cujo depoimento se encontra exarado às folhas 61 e ss.e a folhas 281 e seguintes, onde pelo mesmo dito em esclarecimento que:

“Após a separação ocorreu um episódio ocorrido no mês de Junho de 2009, não se lembra em que dia. Pelo final da tarde a sua mãe entrou em casa com o Tomás ao colo e muito exaltada. Pediu-lhe a si e à sua irmã S que subissem para o quarto do depoente (…) porque o arguido se dirigia para casa contra a vontade dela.

O Depoente foi de imediato para o exterior para fechar os portões e quando se preparava para fechar o segundo portão chamaram-no para entrar em casa porque o Arguido estava a chegar. Levou o irmão Tomás para o seu quarto e telefonou para a GNR conforme a mãe lhe tinha pedido. Nessa altura, a mãe encontrava-se na sala de estar, e deu conta do Arguido ter entrado na residência porque passou a ouvir os seus gritos bem como os da sua mãe – vindos da sala de estar. Recorda-se que a mãe dizia “Larga-me! Sai da minha casa”. (…) Tem a certeza de que o arguido entrou em sua casa e que se encontrava na sala de estar (…). Também tem a certeza de que entrou na habitação contra a vontade da sua mãe porque a viu trancar todas as portas por forma a impedir a entrada do arguido. (…) Depois de ouvir os gritos, a sua irmã S dirigiu-se à sala de estar enquanto o depoente se refugiou com o irmão Tomás na casa de banho do quarto. Voltou a ligar à GNR pedindo que se deslocassem ao local com urgência, pois tratava-se de uma situação de violência doméstica. Esclarece que se refugiou na casa de banho com o irmão Tomás porque tinha medo que o Arguido conseguisse entrar no seu quarto e lavar consigo o irmão contra a vontade da sua mãe. (…) Soube pela irmã e mãe que o mesmo só se convenceu a sair quando lhe disseram que vinha ali a GNR”.

HH) Decorre ainda do auto de inquirição lavrado a folhas 284 a 287, exarado em 20 de Julho de 2010 do filho, T, que ele próprio intimou telefonicamente o arguido a sair e ligou para a segurança do condomínio pedindo que fossem à residência.

II) Ora de toda esta prova decorre inequivocamente ter o Arguido entrado contra a vontade da Assistente na residência, e de ali ter permanecido a despeito de ter sido mandado sair.

JJ) E este dois factos são por si só suficientes para comportarem uma pronúncia da prática por parte do Arguido de um crime de violação de domicílio. Pois que, comete o crime de violação de domicílio quem, sem o consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se. O bem jurídico aqui protegido é a privacidade/ intimidade, pelo que a decisão doutamente alcançada e que optou pela inexistência de indícios da prática por parte do Arguido de um crime de violação de domicílio previsto e punível pelo artigo 190º, nº 1 e 2 do C P, enferma de vício interpretativo.-

KK) Do crime de violência doméstica contra a assistente R: das agressões físicas, concretamente, dos factos ocorridos em 17 de Junho de 2009 no Parque do Bonfim em Setúbal:

Entendem os ora recorrentes, que foram incorrectamente julgados os factos que infra se discrimina, matéria fáctica essa e respectiva prova produzida nos autos, como as declarações da própria assistente, o depoimento das testemunhas S e I, constantes dos autos que aqui se submetem à sempre douta e criteriosa reapreciação de Vossas Excelências.

LL) Em concretização foram considerados insuficientemente indiciados os seguintes factos:

• Que acto contínuo, o arguido tenha agarrado violentamente a assistente pelos braços, apertando-os e abanando-a, ao mesmo tempo que lhe retirava o filho Tomás do colo.

• Que tal comportamento tenha causado equimoses nos antebraços da assistente:

MM) Há, igualmente que atender à prova documental constante dos autos, para uma correcta e válida apreciação da prova, exarada por entidade idónea, como sejam, a Declaração Médica junta aos autos, elaborada logo no dia seguinte às ocorrências, 18 de Junho de 2009, donde resulta que “a doente acima citada diz ter sido agredida no dia 17.06.2009 pelo seu marido e apresenta equimoses nos braços na face interna”.

Mais, resulta da referida Declaração, que a Assistente identificou desde logo o agressor como tendo sido o seu marido e que o médico reconhece como compatível com a descrição dos factos que lhe são relatados e as lesões que observa, patentes nos braços da requerente. Semelhante entendimento, foi ainda mantido, em declaração exarada em 12 de Fevereiro de 2010, e constante dos autos às folhas 69, subscrita pelo mesmo médico, Dr. FG, Médico da Família ..., por força do ofício remetido ao Centro de Saúde do Seixal. Da mesma resulta que: “Declaro para os devidos efeitos que a utente supra citada foi por mim atendida na consulta do dia 18.06.2009 dizendo ter sido agredida pelo seu marido apresentado equimoses nos braços (face interna) ”.

NN) Do mesmo modo, incitada a comparecer em exame médico, a 9 de Março de 2010, realizado pelo Dr. JC, constante dos autos às folhas 79 e ss., o mesmo conclui que: “As lesões descritas na examinada denotam ter sido produzidas por instrumento contundente ou com situação actuando como tal sendo compatível com a informação fornecida”. Donde, face à prova documental inserta nas declarações médicas referidas, não se compreende de que forma é que a douta decisão instrutória conclui que não foi possível considerar suficientemente indiciado que o arguido no dia 17 de Junho de 2009 tenha provocado o aparecimento de equimoses nos braços da assistente

OO) Desde o primeiro momento, que a Denunciante, descreve os factos, as circunstâncias de tempo, de modo e de lugar, bem como a autoria das lesões de que foi vitima perpetradas pelo Arguido.

Efectivamente, a primeira participação criminal exarada junto da GNR de Palmela, data precisamente do próprio dia da ocorrência dos factos narrados – 17 de Junho de 2009 – pelas 23h e 36m, por força da deslocação daquela força policial à casa de morada de família, em resposta a um pedido de intervenção policial, feito pelo filho da Requerente, G, que consta dos autos às folhas 3 e 4.

A mesma versão, por ser verdade, mantém-se ainda inalterada nas declarações que vem por sua vez a prestar a 18 de Junho de 2009, perante a GNR de Palmela, constantes dos autos às folhas 56 a 58, bem como das declarações prestadas desta feita, na presença da Digna Magistrada do Ministério Publico competente, a 21 de Outubro de 2009 pelas 10 horas constantes dos autos às folhas 20 e 21.

PP) Pelo que errou, manifestamente o Tribunal “a quo” na análise que faz dos factos ocorridos, na medida em que não reconhece a existência de agressão, nem a existência de lesões, pese embora, as mesmas se encontrem exaradas em vários relatórios médicos, donde consta a compatibilidade das lesões apresentadas com tipo de agressão que a Assistente diz ter sido vitima por parte do arguido, que este aliás nem sequer negou.

QQ) Pelo que no mínimo terá praticado o arguido um crime de ofensa corporal simples p. e p. pelo artº142º do C. Penal pelo qual deverá ser pronunciado.

RR) Em face da prova constante dos autos consideram os recorrentes que foram incorrectamente valorados os seguintes factos por considerados não suficientemente indiciados relativamente aos maus tratos perpetrados pelo arguido à assistente:

• Desde que o arguido passou a residir com a assistente tenha manifestado uma personalidade violenta e agressiva perante a sua própria pessoa e os seus filhos, utilizando expressões como merda, caralho, foda-se aquela puta, que ninguém gostava dela, que era uma burra;

• Por causa da conduta do arguido nos quatro anos de vivência comum, a assistente tenha sofrido uma depressão nervosa e se tornado uma pessoa triste, ausente, que se isolava sem amor-próprio nem auto-estima;

• Que o arguido tenha agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e que ao agir como descrito provocaria na assistente as lesões supra descritas;

SS) Veja-se o depoimento da testemunha I gravado em cd desde 00:00:00 a 00:21:18 (sessão de 24 de Janeiro de 2012) em que a mesma referiu que a assistente e o arguido tinham discussões feias e que o arguido estava sempre a insultar a assistente.

TT) Já a testemunha S, a 16 de Outubro de 2009, nos termos do auto de declarações constante às folhas 60 e seguintes que afirmou peremptoriamente que:

• A sua mãe – aqui Denunciante – sempre foi uma pessoa que tinha vontade em estar com amigos, de sair, de jantar com aqueles, bem como, que se dedicava a imensas actividades lúdicas;

• Desde que, porém, iniciou o relacionamento com o Arguido deixou de sentir na sua mãe essa vontade, evidenciando, perturbações ao nível psicológico devido à coacção exercida pelo Arguido.

• O arguido controlava todos os passos da Denunciante, limitava as quantias monetárias que a mesma podia gastar e tratava os filhos da Denunciante com enorme desprezo.

• Mais referiu a testemunha que era notória a tristeza da sua mãe perante esta situação mas que a mesma nada podia fazer, pois não tinha capacidade para fazer frente ao Arguido.

UU) Por outro lado, ouvido igualmente o filho da Assistente G em declarações a folhas 61 do processo, refere que “o Arguido tinha por hábito humilhar os restantes membros da família, especialmente a sua mãe, relativamente a quem se sobrevalorizava e o seu irmão, JM. O Arguido demonstrava um completo desprezo pelos filhos da Denunciante incitando-os à competição.

VV) Acerca desta matéria foi ainda ouvido T encontrando-se o seu depoimento exarado em auto a folhas 284 a 287, donde resulta que:

“(…) Recorda que estranhava o facto de o mesmo dizer asneiras tais como “merda”, “aquela puta”, “foda-se”, “caralho”, proferindo estas expressões em qualquer local mesmo à mesa e logo que se aborrecia. Decorrido este período o arguido passou a evidenciar uma relação de poder com os restantes membros da família e que se traduzia: dava ordens à sua mãe e se esta desobedecia chamava-lhe burra, ignorante e irresponsável. Fazia-o à frente do depoente.

No ano de 2007, fruto de todos estes episódios a sua mãe sofreu uma depressão que a levou a auxílio médico. Passou a comer muito pouco depois de ter nascido o Tomás, chegando a pesar 43kg. Não revelava qualquer capacidade de reacção face as actuações do arguido”.

WW) Mais referiu que o arguido mandava SMS à Assistente, que viu, em que dizia que os seus filhos eram uns anormais, que ela não tinha quem gostasse de si e que sem o Arguido ela ia ficar na miséria, escritos que constam aliás dos autos.

XX) Nestes termos e em face do exposto ponderado todo o acervo probatório produzido, não poderia o Tribunal “a quo” deixar de pronunciar o Arguido pela prática de um crime contra a Cônjuge, no sentido do nº 1 do artigo 152º do C P.
Desta forma, a douta Decisão instrutória sob sindicância violou, entre outros, o disposto nos artigos 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 190º do Código Penal, bem como, o disposto nos artigos 308º, nº1 (primeira parte) e 283º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V/Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a decisão instrutória proferida em primeira instância e, por via disso, ser o arguido pronunciado pela prática de dois crimes de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 e ainda pela prática de um crime de violação de domicílio, p.p. pelo artigo 190º por existirem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, consubstanciados na vasta prova testemunhal e documental produzida e, por conseguinte, efectuando um juízo de prognose, o elevado o grau de probabilidade de o arguido vir a ser condenado em sede de julgamento.

Respondeu ao recurso a Magistrada do M.P., dizendo dever ao recurso ser negado provimento e, em consequência, mantida, na íntegra, a Decisão recorrida.

Nesta Instância, o Ex.mo Procurado Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ao recurso dever ser negado provimento.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O Despacho recorrido considerou suficientemente indiciados os seguintes factos:

1. O arguido e a assistente viveram em economia comum de Julho de 2005 a Junho de 2009, sendo que de Julho de 2005 a Junho de 2007 em união de factos e, de Julho de 2007 a Junho de 2009 no estado de casados.

2. Em data não concretamente apurada mas situada entre Julho de 2005 e Junho de 2009, o arguido, dirigindo-se ao assistente JM, proferiu por diversas vezes, em número não concretamente determinado, as expressões “burro” e “anormal”.

3. Em data não concretamente apurada, mas situada no lapso temporal indicado em 2, o arguido foi com o assistente levantar as notas escolares de final de período e, tendo considerado que as mesmas não eram satisfatórias, deslocou-se pela cidade de Setúbal proferindo junto das pessoas por quem passava e conhecia a seguinte expressão: “Já viram o burro que eu aqui levo.”

4. No mesmo lapso temporal e, por ocasião de uma visita de estudo, o arguido em voz audível, dirigindo-se para a professora do assistente na presença dos seus colegas, proferiu a seguinte expressão: “Não pago visitas de estudo a quem não estuda”.

5. No mesmo lapso temporal, encontrando-se o assistente na casa de banho, o arguido abriu a porta e fotografou o assistente sentado na sanita, tendo afirmado que iria mostrar as fotografias “a toda a gente”.

6. No mesmo lapso temporal, o arguido após ir buscar o assistente à escola ao final da tarde, dirigiu-se para o consultório onde exercia funções, tendo proibido o assistente de esperar no consultório, bem como no interior da sua viatura.

7. Por essa razão, o assistente esperou cerca de duas horas, na rua, período durante o qual choveu.

8. No mesmo lapso temporal, pedindo o assistente para ir à piscina, o arguido impôs que o mesmo dedicasse três horas à leitura, contudo, após cumprir o ordenado, o arguido, ainda assim, proibiu o assistente de ir à piscina.

9. No dia 17 de Junho de 2009, o arguido entrou no interior da habitação sita na ...,Setúbal.

Não resultou suficientemente indiciado que:

• Desde que o arguido passou a residir com a assistente tenha manifestado uma personalidade violenta e agressiva perante a sua própria pessoa e os seus filhos, utilizando expressões como merda, caralho, foda-se aquela puta, que ninguém gostava dela, que era uma burra.

• O arguido escondesse os bens do assistente, atirando-os para um terreno nas imediações da residência, onde existiam urtigas.

• O arguido tenha depositado comida estragada, putrefacta e em decomposição, numa cabana que o assistente e irmãos haviam construído e onde brincavam com amigos, tudo no intuito de os impedir de ali brincar.

• O arguido tenha ido frequentemente buscar o assistente à escola para almoçar entre as 14H00 e as 15H00, ficando este sem comer até essa hora.

• O arguido, no período em que R esteve de baixa médica, não desse dinheiro ao assistente para almoçar na escola.

• O assistente tenha deixado de residir com a mãe e passado a residir com o pai, por causa da conduta do arguido para consigo.

• Por causa da conduta do arguido, o assistente tenha começado a rejeitar quaisquer manifestações de afecto, evitando o contacto com outras pessoas, isolando-se, escondendo-se e alheando-se da realidade que o rodeava.

• Que no dia 17 de Junho de 2009, o arguido, por volta das 19H30m, no Jardim do Bonfim em Setúbal, quando a assistente R tinha o filho de ambos de nome Tomás ao colo, tenha começado aos gritos, acusando-a de querer fazer negócios com a pensão de alimentos do filho.

• Que acto contínuo, o arguido tenha agarrado violentamente a assistente pelos braços, apertando-os e abanando-a, ao mesmo tempo que lhe retirava o filho Tomás do colo.

• Que tal comportamento tenha causado equimoses nos antebraços da assistente.

• Que no dia 17 de Junho de 2009 pelas 21:30 a assistente não tenha permitido a entrada do arguido na sua residência e que, ainda assim, este ter entrado, a assistente lhe tenha ordenado que abandonasse a casa e o arguido não o tenha feito.

• Por causa da conduta do arguido nos quatro anos de vivência comum, a assistente tenha sofrido uma depressão nervosa e se tornado numa pessoa triste, ausente, que se isolava sem amor-próprio nem auto-estima.

• Que o arguido tenha agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e que ao agir como descrito provocaria na assistente as lesões supra descritas.

O tribunal recorrido veio fundamentar a sua convicção nos seguintes termos:

O tribunal formou a sua convicção com base, essencialmente, nos depoimentos prestados em sede de instrução, designadamente, do próprio assistente JM e sua irmã I.

Com efeito, das inquirições efectuadas em sede de inquérito, a razão de ciência dos depoentes, designadamente do pai do assistente JA e companheira IG, funda-se no que ouviram dizer e na observação de reacções do assistente e irmãos que, no entender de ambos, seriam estranhos, tais como grande agitação e acusações mútuas sobre a responsabilidade por factos pelos quais teriam sido castigados pelo arguido.

Ora, uma vez que quem lhes terá relatado os acontecimentos terão sido exactamente o assistente e a testemunha S, depoentes em sede de instrução, o tribunal alicerçou a sua convicção com base nesses mesmos depoimentos.

Dos referidos depoimentos, não foi possível considerar suficientemente indiciados os factos constantes do requerimento de abertura de instrução respeitantes à assistente R.

Efectivamente nenhum dos depoentes ouviu o diálogo entre o arguido e a assistente R ocorrido no dia 17 de Junho de 2009, quer no jardim do Bonfim às 19:30, quer em casa da assistente às 21.30. Os factos alegadamente ocorridos no jardim do Bonfim não foram presenciados pelos depoentes, não tendo a assistente apresentado qualquer testemunha presencial, não obstante os factos terem ocorrido em local público e em hora de grande movimento de pessoas.

Neste contexto, negando o arguido os factos, surge a dúvida quanto a quem poderá estar a falar verdade, sendo que na dúvida, a matéria de facto deverá sempre ser decidida em favor do arguido, ao abrigo do princípio do in dubio pro reo, razão pela qual o tribunal deu a mesma como não suficientemente indiciada. De referir apenas que, pese embora a testemunha S tenha afirmado ter visto marcas nos braços da mãe, teve alguma dificuldade em descrever as referidas marcas, indicando apenas, situarem-se as mesmas na zona do antebraço. Não situou minimamente no tempo essa constatação e desconhece as circunstâncias em que as mesmas foram feitas. Assim, não foi possível considerar suficientemente indiciado que o arguido no dia 17 de Junho de 2009 tenha provocado o aparecimento de equimoses nos braços da assistente.

No que concerne às expressões “merda, caralho, foda-se aquela puta, burra”, alegadamente dirigidas contra a assistente, o tribunal não as deu como suficientemente indiciadas, uma vez que as mesmas apenas constam dos articulados apresentados pelos assistentes, não tendo suporte em depoimentos prestado nos autos.

O assistente e Inês Almeida apenas conseguiram de forma genérica concluir que o arguido e a assistente tinham discussões feias e que o arguido estava sempre a insultar a assistente. Tal descrição genérica, insusceptível de indiciar qualquer facto em concreto, em conjugação com o facto da assistente ter sofrido estados depressivos anteriores à relação com o arguido, impossibilitou igualmente de indiciar que a assistente tenha sofrido, por causa do arguido, uma depressão nervosa, tornando-se numa pessoa triste.

No que concerne à entrada no domicílio, resulta evidente que o arguido lá entrou, o que é credível, tendo em conta que à data dos factos era marido da assistente. Contudo, o tribunal não deu como suficientemente indiciado que a assistente não tenha permitido a sua entrada, lhe tenha ordenado que se fosse embora e que o mesmo não o tenha feito, porque tanto o assistente como a testemunha Inês não ouviram o diálogo travado entre arguido e assistente, só se recordando que o mesmo bateu nas janelas e que ambos discutiram em voz alta.

Quanto aos factos respeitantes ao assistente JM, o tribunal, considerando o depoimento do próprio e da testemunha I, considerou suficientemente indiciados alguns dos factos descritos.

Assistente e testemunha não conseguiram situar com precisão no tempo os referidos episódios, dizendo apenas que foi durante a vivência em comum do arguido com a mãe de ambos. O depoimento, revelou-se sincero e credível na globalidade (salvo no que concerne a dois factos sobre os quais nos pronunciaremos mais adiante), pese embora tenha sido notório que ambos demonstram ressentimento para com o arguido.

Assim, o tribunal considerou suficientemente indiciado que o arguido por diversas vezes tenha chamado o assistente de “burro” e “anormal”. Este facto foi notório em ambos os depoimentos. Repare-se que tanto o assistente como a testemunha, revelaram alguma dificuldade em concretizar expressões proferidas pelo arguido – o que foi evidente nos factos referentes à assistente – mas, neste caso, as expressões revelaram-se bem presentes na memória de ambos, sendo evidente que de todos os factos suficientemente indiciados, este terá sido o mais marcante para ambos.

Quanto aos restantes factos, o assistente descreveu-os de uma forma credível e espontânea, revelando pormenores que conferiram credibilidade ao depoimento. Por exemplo, na descrição do facto indicado em 7, o assistente, após referir que esperou na rua com o irmão, em tom de desabafo contou que quando o arguido saiu da clínica e finalmente entraram no carro, o irmão terá comentado consigo que só ficou contente porque teve a oportunidade de se sentar todo molhado nos estofos do carro do arguido. Este comentário, para além de indiciar alguma inimizade latente para com o arguido, confere credibilidade pela espontaneidade com que foi proferido e porque, atendendo a regras de experiência comum, dificilmente seria relatado num contexto de ficção.

Por outro lado, o assistente acabou por referir que também houve momentos bons em que passearam em família, onde “as coisas correram bem”, e que o arguido a determinada altura, assumiu os encargos com o agregado familiar. Assim, para além de descrever, os factos que, no seu entender justificam a presença do arguido em tribunal, também indicou factos que o favorecem, o que, conferiu credibilidade, consistência e a isenção possível neste contexto ao seu depoimento.

Acresce que o depoimento da testemunha I foi, na parte prestada, coincidente com o do assistente.

A matéria indicada como não suficientemente indiciada, reporta-se a matéria vertida na parte do requerimento de abertura de instrução designada de “DA ACUSAÇÃO” e que não foi mencionada, quer no depoimento do assistente, quer no depoimento da testemunha I – isto no que concerne à maioria dos factos imputados ao arguido, com excepção de dois. O facto de o arguido ir buscar o assistente para almoçar entre as 14H e 15H, obrigando-o a esperar sem comer, não foi relatado de forma consistente, sendo uma das duas excepções a que supra se fez referência. Com efeito, o assistente não conseguiu concretizar em que dias da semana é que tal ocorria, ou seja, em que dias da semana é que saía à hora de almoço e não tinha aulas à tarde, o que justificava que fosse almoçar a casa. O horário escolar é igual todas as semanas. O facto de não ter aulas no período da manhã ou da tarde é algo que, em regra, os jovens estudantes memorizam, pois é um período de tempo livre relevante pela sua extensão temporal. É normal que um aluno saiba por exemplo que tal ocorre às 2.ªs e às 6.ªs feiras, tendo aulas todo o dia nos restantes dias. Não é normal que um aluno não se lembre quando não tem aulas à tarde e, em especial, em quantos dias da semana isso ocorre, ainda que não se lembre em quais.

A testemunha I, também não apresentou um depoimento seguro nesta parte, pois que afirmou que a espera prolongada só acontecia com o J, justificando que ela costumava almoçar na escola porque saía mais tarde, contudo também almoçava em casa por vezes. Por outro lado, foram incapazes, de concretizar minimamente o número de vezes em que isso ocorreu e durante quanto tempo. Assim, face à fragilidade do depoimento, aplicando o princípio do in dubio pro reo, o tribunal deu o facto como não suficientemente indiciado.

O mesmo se diga quanto ao facto do arguido não dar dinheiro ao assistente para almoçar na escola – a segunda excepção a que supra se aludiu. Por um lado, entra em contradição com o facto anterior, na medida em que se o assistente ia almoçar a casa, era normal que não carecesse de dinheiro para almoçar na escola. Por outro lado, o assistente referiu que o arguido dava umas vezes e outras não dava e que o próprio assistente é muito esquecido e, por vezes esquecia-se de lho pedir, ou não pedia para evitar comentários desagradáveis proferidos pelo arguido. Admite inclusive que o arguido também se pudesse ter esquecido alguns dias. Por fim, não concretizou minimamente o número de vezes em que isso ocorreu. Assim sendo, face mais uma vez à fragilidade do depoimento nesta parte, o tribunal deu o facto como não suficientemente indiciado.

No que respeita às consequências dos factos praticados pelo arguido, o tribunal formou uma convicção indiciária com base nas regras de experiência comum. Assim, não se considera suficientemente indiciado que o assistente tenha deixado de residir com a mãe por causa do arguido, porque foi o próprio a afirmar que tomou a decisão a meio do ano lectivo, quando o arguido ainda vivia com a sua mãe, mas só concretizou a mudança posteriormente, não tendo sido capaz de precisar se foi residir para casa do pai antes ou depois da saída do arguido da casa da mãe. Não é lógico que se o arguido fosse a razão da mudança de residência, o assistente não se recordasse se quando foi viver para casa do pai, aquele ainda morava com a mãe. Isto porque, caso o arguido já não residisse com a mãe, inexistia fundamento para concretizar a mudança, a não ser que existissem outros motivos, fossem eles quais fossem. É esta possibilidade que levanta uma dúvida que obrigou o tribunal a não considerar o facto como suficientemente indiciado.

Por fim, também não se considerou suficientemente indiciado que por causa da conduta do arguido, o assistente tenha começado a rejeitar quaisquer manifestações de afecto, evitando o contacto com outras pessoas, isolando-se, escondendo-se e alheando-se da realidade que o rodeava. Isto porque, instado pelo tribunal sobre as consequências da conduta do arguido, foi o próprio assistente a afirmar que passou a escrever poesia onde plasmou no papel o que, no seu entender, foram os horrores vividos com o arguido, tornou-se mais atento, desconfiado, passou a traçar o perfil psicológico às pessoas que com ele convivem e, acredita ter “crescido depressa demais”, dando o exemplo que os professores o procuram quando precisam de tratar de problemas relacionados com a turma onde está inserido. Ora, este tipo de reacções não são próprias de quem se afasta da sociedade alheando-se da realidade, mas sim de quem está atento à realidade e de quem procura enfrentar e ultrapassar os problemas com que se depara.

Como consabido, são as conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.

Os assistentes R e JM vieram reagir ao despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido interpondo o presente recurso.

E por via dele, pretendem seja revogado aquele despacho e, em consequência, pronunciado o arguido JF pela prática de dois crimes de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152º, nºs 1, alínea a) e nº 2 e ainda pela prática de um crime de violação de domicílio, p.p. pelo art.º 190º, ambos do Cód. Pen.

Tudo, por em seu entender, existirem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, consubstanciados na vasta prova testemunhal e documental produzida e, por conseguinte, efectuando um juízo de prognose, elevado o grau de probabilidade de o arguido vir a ser condenado em sede de julgamento.

Como consabido, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução (art.º 289.º,n.º1, do Cód. Proc. Pen.) tendentes á comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, conforme decorre do disposto no art.º 268.º, do mesmo diploma adjectivo.

Só sendo de proferir despacho de pronúncia caso se tenham recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, cfr. art.º 308.ºn.º1, do Cód. Proc. Pen.

A lei define o que se deve considerar por indícios suficientes, considerando-se, como tal, aqueles de que resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, ver art.º 283.º, n.º2, do Cód. Proc. Pen.

No ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, a respeito, refere-se que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos e antes e tão só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.

Na pronúncia o Juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, que o arguido seja submetido a julgamento (…).

A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283.º, n.º2), não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgador a final[1].

No mesmo sentido, vemos o Ac. Relação do Porto[2], de 20.01.1993, onde se escreveu que para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido de certeza moral, da existência do crime, bastando-se com a exigência de indícios, de sinais, dessa ocorrência.

Isto, porém, não significa que a lei confira aos mencionados despachos um estatuto de ligeireza.

E prossegue o dito aresto, a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências, morais, quer jurídicas; submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo se não mesmo um vexame.

É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de “condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”: o Juiz só deve pronunciar quando, por elementos de prova recolhidos nos autos, forma a convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido ou “os indícios são suficientes quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.

Como refere a Prof. Fernanda Palma, a relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é que caracteriza os indícios.

Com efeito, os indícios de que resulta a possibilidade de condenação são indícios suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere directamente á natureza dos indícios, nomeadamente a sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade. Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação (ou a pronúncia) são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma inferência do tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável.

E é, assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável” da condenação[3].

No ensinamento de Jorge Noronha e Silveira, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação de um despacho de pronúncia. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta á particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do principio da presunção de inocência do arguido.

E prossegue, por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios de pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção o M.P. deve arquivar o inquérito e o Juiz de Instrução deve lavrar despacho de não pronúncia[4].

No fundo, a indicação suficiente é, no dizer do Supremo Tribunal, a verificação suficiente de um conjunto de fatos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos do crime/ da infracção porque os agentes virão a responder.[5]

Ou como referia Luís Osório, por indícios suficientes se devem ter aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado.[6]

Com base nos ensinamentos expostos vejamos, pois, se é, ou não, de manter o despacho de pronúncia prolatado e aqui posto em crise com o presente recurso.

No que respeita ao crime de violência doméstica, rege o art.º 152.º, do Cód. Pen., onde se diz no seu n.º 1, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

E no seu n.º 2, que no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

Como ensina o Prof. Américo Taipa de Carvalho, o intento de prevenir e reprimir as ofensas que rebaixem de modo socialmente insuportável a dignidade pessoal da vítima está por certo na base da criminalização específica dos maus tratos domésticos.[7]

Sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, vária tem sido a discussão, não existindo unanimidade de entendimento.

Para Nuno Brandão, ao contrário do que vem sendo defendido pela jurisprudência, não é de sufragar o entendimento que vai no sentido de o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica ser a dignidade humana.

Porquanto, com o delito em causa se pretende dirigir e actuar sobre condutas que estão muito longe de uma tal dignidade.

Sendo mais adequada á teleologia da específica criminalização dos maus tratos intra-familiares, á sua inserção sistemática e á eficácia operativa do preceito apontar a saúde como o bem jurídico do crime de violência doméstica.

Sendo objecto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica[8].

Para Miguez Garcia o bem jurídico protegido pela norma será um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade nas suas expressões sexual e de natureza pessoal.[9]

Para Plácido Conde Rodrigues, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em apreço será a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral[10].

Como afirmação de que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em particular, a saúde, vemos vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, de onde destacamos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26.05.2010, no Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1.

E estaremos perante um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de uma relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Pressupondo que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.[11]

De salientar que a lei prescinde da existência de laços familiares entre a vítima e o agente ao tempo do facto.

Do que de tal dá bem nota o segmento da lei ao abranger o ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga á dos cônjuges. Alargando-se, desta sorte, a tutela às relações parentais não familiares.

A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.

E como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21 a 22, no crime em apreço devem estar em causa actos que pelo seu caracter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima.

Sendo que a circunstância de uma certa acção poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto.

Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.

No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…

Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.

Há que analisar, de seguida, se para o preenchimento do tipo em questão se basta a prática de um acto isolado ou antes se tem de exigir a reiteração de conduta.

Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta.

Pondo-se, desta forma, fim á polémica que existia no seio da doutrina e da jurisprudência, a respeito.

Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta.

Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo.

Como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21, com a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos casos (do facto único) no ilícito-típico de violência doméstica. Na versão final da revisão deixou de constar a referência á intensidade dos maus-tratos como alternativa á reiteração, que fazia parte da proposta de Lei 98-X.

Na jurisprudência anterior á revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não prossupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo.

Para tal, muitas vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade e insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente.

Mais recentemente, na Relação de Coimbra, vem-se aflorando a ideia da dignidade pessoal da pessoa ofendida e à possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apresentados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.[12]

Apesar de entender de que os citados arestos apontam na direcção correcta, entende, porém, o Autor que há que exigir que o comportamento violento seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. [13]

Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012, no Processo n.º901/11.0PAPVZ.P1, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.

Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.

Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.

O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. Sendo que o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é fundamental para a conformação do dolo do agente, como refere Pinto de Albuquerque, in ob. cit., págs. 406.

Por fim, e no que aos autos importa, o crime agravado do n.º 2, do art.º 152.º, do Cód. Pen., e respectivo fundamento.

Segundo entendimento de Pinto de Albuquerque, a ideia foi a de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica com vítimas menores ou ocorridos perante menores, por considerar que os menores são vítimas “indirectas “ dos maus tratos contra terceiros quando eles têm lugar diante dos menores.

Por outro lado, o legislador quis censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas[14].

Dito de outro modo, a necessidade de uma tutela acrescida, por imperativo ético e em congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional, na protecção da infância, da inviolabilidade do domicílio e da vida privada, num contexto em que é no domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas.[15]

Ou como refere Miguez Garcia, a agravação explica-se, quando envolva menores, pelo facto da violência doméstica praticada perante eles representar uma situação de violência “indirecta” que ao fim e ao cabo os abrange. Releva também o reconhecimento de um espaço confinado, vedado a olhares alheios e por vezes aos ouvidos dos outros membros do grupo social[16].

Com base nos ensinamentos acabado de mencionar, debrucemo-nos sobre o caso em apreço nos autos.

Como decorre do recurso em presença pretende-se, entre o mais, seja o arguido pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alª d) e 2, do Cód. Pen., na pessoa do menor JM.

O Tribunal recorrido veio a não pronunciar o arguido pela prática do aludido crime, apesar de ter dado como indiciada a factualidade supra transcrita sob os nºs 2 a 8, e pelas razões que seguem:

No que concerne aos factos alegadamente praticados contra o assistente J, o tribunal considerou suficientemente indiciados os factos supra indicados de 2 a 8.

Compulsados os mesmos, constata-se que poderemos estar perante um crime de violência doméstica na modalidade de maus-tratos psíquicos, com ofensas verbais.

Tendo em conta que o assistente é menor e que alguns dos factos terão ocorrido na residência deste – veja-se facto suficientemente indiciado n.º 5 – poderíamos em abstracto estar perante uma situação prevista na alínea d) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.

Contudo, somos da opinião que a matéria indiciada não é suficientemente grave para levar o arguido a julgamento. Este é um tipo de crime grave, pensado e criado para punir condutas consideradas muito gravosas – veja-se que o crime só admite pena de prisão e, com uma moldura penal que poderia chegar neste caso até aos 5 anos.

Como supra se referiu, o crime de violência doméstica, na modalidade de maus-tratos psíquicos, é um crime de resultado e de dano. Significa dizer que, para além de ser necessária a lesão do bem jurídico, é igualmente necessário que o mundo físico se transforme. Essa transformação tem de ser visível e adequada à acção praticada. Neste sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque, obra supra citada, página 76, anotação 11 ao artigo 10.º.

Acresce que, tendo em conta a gravidade do crime e a moldura penal aplicável, a transformação física visível terá de ter algo de negativo, de forma a que se possa fazer um juízo no sentido de que, não fora a conduta do arguido e o assistente não teria sofrido essa transformação física, o que teria sido benéfico para o mesmo.

Ora, pese embora o tribunal tenha tentado, moto próprio, instar o assistente a descrever e identificar essa transformação física que ele, melhor que ninguém terá sentido, o mesmo acabou por descrever um resultado que, pese embora possa ter sido alcançado de forma negativa, não prejudicou de forma grave e visível o seu percurso de formação pessoal, daí que se tenha tornado mais atento, desconfiado, cauteloso e adulto.

Acresce que, pese embora se possa discordar do método - e discorda-se - certo é que, na versão do arguido, foi exactamente esse o seu objectivo.

Assim, não se alcança preenchido o elemento objectivo, pela falta de gravidade das condutas, que terão de se caracterizar pela violência, ainda que possa ser psíquica e consequente falta de resultado negativo visível.

Do apontado discordam os assistentes para quem nos autos se contêm indícios mais do que suficientes de que o predito crime foi cometido.

T, irmão do assistente, ouvido nos autos sobre o tema, cfr. fls. 286, é claro a afirmar que “em resultado da actuação do arguido o comportamento do seu irmão JM alterou-se por completo. Deixou de ser uma criança alegre e afável, para adoptar comportamentos de reserva e isolamento. Não conversava sequer com os irmãos e comia de cabeça baixa. Às vezes por não aguentar, levantava-se da mesa e ia a correr para o quarto”.

Também IG, pessoa que é casada com o pai do assistente, deu nota de uma transformação no comportamento do assistente, em virtude das atitudes do arguido, cfr. fls. 287 a 290 dos autos.

No seu depoimento refere que o JM era uma criança alegre, muito bem-disposta e afectuosa. É uma criança muito generosa. A partir desta altura o seu comportamento alterou-se evitando contactos físicos de afecto que eram frequentes, não conversava nem contava como era seu hábito o que se tinha passado na escola, isolava-se.

Criou um mecanismo de “desligar” de se alhear daquilo que o rodeia, compreendendo que o passou a fazer como forma de defesa.

Para concluir que, actualmente o menor (referindo-se ao assistente JM) encontra-se bem inserido na escola que frequenta tendo feito inúmeros progressos e transitado de ano lectivo. Aos poucos começou a conversar e a demonstrar a alegria que lhe era habitual.

O Pai do assistente, JA, ouvido nos autos, referindo-se ao assistente, descrevê-lo como sendo meigo e afectuoso, generoso e alegre.

E que devido ao que se passava com o aqui arguido, passou a apresentar sinais de profunda tristeza, alheamento e angústia.

Entendendo que o alheamento manifestado não mais seria do que uma forma de defesa e “que são as consequências evidentes dos maus tratos que lhe foram infligidos pelo arguido”, cfr. págs.292.

Chama-se a atenção para o narrado, a respeito pela testemunha G a fls. 61v.º dos autos, quando refere que o arguido (denunciado) tinha uma especial predilecção em humilhar o filho da denunciante JM fazendo com que este sofresse bastante do foro psicológico.
Do declarado pelo assistente em sede de instrução, resulta com suficiente clareza que os maus tratos psíquicos foram de monta, chegando o aqui assistente a equacionar a sua própria existência.

É bem elucidativo o por si narrado, ver minutagem 49.30 a 51.10, como segue:

Há uma coisa que eu nunca disse a ninguém porque eu sinceramente, não queria preocupar ninguém, mas comecei a pensar o que é que havia depois da vida, o que é que havia e o que é que não havia, mas depois pensei que se eu morresse não podia voltar e lembro-me perfeitamente disto… E eu lembro-me de ir para o meu quarto escrever, olhar para a janela e pensava qual é que é a melhor maneira de me atirar daqui e acabar com isto e porque ele dizia que havia pessoas que vinham para trabalhar e outras para estorvar e eu começava a pensar porque é que eu nasci?

O que é que eu vim aqui fazer? Só vim chatear toda a gente

Até houve um dia que eu já não sabia o que havia de fazer e peguei na roupa, no que tinha e o que não tinha e pus dentro da minha mala para fugir de casa, só que entretanto chegou a minha irmã S e disse para fazer as malas que ia para casa do meu pai…

Sem mais delongas ou considerandos, importa levar á base instrutória, por suficientemente indiciados, o seguinte facto:

• Por causa da conduta do arguido, o assistente tenha começado a rejeitar quaisquer manifestações de afecto, evitando o contacto com outras pessoas, isolando-se, escondendo-se e alheando-se da realidade que o rodeava.

Devendo, em consequência, ser lavrado despacho de pronúncia contra o aqui arguido pela prática do falado crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs. 1, alª d) e 2, do Cód. Pen.

Quanto ao crime de violação de domicílio.

Pretende-se que o arguido seja pronunciado pela prática do aludido crime, por no dia 17 de Junho de 2009, pelas 21:30 horas, a assistente não ter permitido a entrada do arguido na sua residência e que, ainda assim, este ter entrado, a assistente lhe tenha ordenado que abandonasse a casa e o arguido não o tenha feito.

O tribunal recorrido entendeu não pronunciar o arguido pelo predito crime pelos fundamentos que enumerou, como seguem:

O bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é a privacidade do lar. O domicílio de uma pessoa é o espaço físico que poderemos apelidar de bastião da intimidade. É no lar que dormimos, nos lavamos, vestimos e convivemos com aqueles que nos são mais íntimos. É o espaço de cada um de nós, vedado ao público e só livremente acessível a quem for convidado. Assim, só poderá violar o bem jurídico quem não pertencer ao círculo de intimidade do ou dos residentes. O arguido à data dos factos era marido e padrasto dos assistentes. Assim é manifesto que a sua entrada no domicílio, ainda que não consentida pela assistente não é idónea a violar o bem jurídico protegido, pois que o arguido ainda pertencia ao círculo de intimidade daquele domicílio, pese embora em evidente situação de ruptura.

Diga-se em abono da verdade que imputar ao arguido a prática de um crime de violência doméstica e a prática de um crime de violação de domicílio é uma contradição nos termos, pois que o primeiro exige relação de intimidade e o segundo exige a inexistência dessa relação.

Acresce que não se considerou suficientemente indiciado que a assistente não tenha autorizado a entrada do arguido na sua residência.

Em face do exposto, sem necessidade de tecer mais considerandos, conclui-se que, também quanto a este crime não deverá o arguido ser submetido a julgamento.

Dos testemunhos que os assistentes chamam a terreiro para que se venha a inflectir na decisão tomada pelo tribunal recorrido, conta-se o de G.
Se bem se lê o declarado pela predita testemunha, vemos que se num momento inicial tudo parece inculcar a ideia de que presenciou os factos, ver fls. 61 dos autos, ideia bem diferente resulta do por si declarado a fls. 282.

De tudo permanece a dúvida se o arguido entrou dentro de casa e em caso afirmativo se saiu após a assistente lhe ter ordenado que se retirasse.

E todas estas dúvidas se avolumam quando se lê o depoimento da outra testemunha, T, a fls.286, in fine.

Nem o apelo que se faz às mensagens enviadas pelo arguido, via telemóvel, podem vir a esclarecer algo, a respeito, ao invés do pretendido pelos assistentes. Basta, a respeito, olhar á sua transcrição e restar a dúvida que retro se deixou em aberto.

Daí que bem andou o Tribunal a quo em concluir pela não pronúncia do arguido pela prática do apontado crime de violação de domicilio, p. e p. pelo art.º 190.º, do Cód,. Pen.

Quanto ao crime de violência doméstica na pessoa de R.

1- Das agressões físicas, concretamente, dos factos ocorridos em 17 de Junho de 2009 no Parque do Bonfim em Setúbal.

No que respeita aos factos ocorridos no dia 17 de Junho de 2009, no Parque do Bonfim, em Setúbal, não podemos deixar de corroborar o entendimento expendido na Decisão recorrida.

Para lá do arguido e da assistente mais ninguém presenciou o que nesse dia aí se passou. A assistente afirma a existência de uma agressão por banda do arguido, negando este a mesma.

Existe a verificação médica da existência de equimoses nos braços da assistente e nada mais… (cfr. fls. 69 e 79 dos autos).

O chamar a terreiro o depoimento prestado pela testemunha S, sem adiantar qualquer facto novo, limitamo-nos a repetir o que se deixou mencionado em sede de Decisão recorrida: pese embora a testemunha S tenha afirmado ter visto marcas nos braços da mãe, teve alguma dificuldade em descrever as referidas marcas, indicando apenas, situarem-se as mesmas na zona do antebraço. Não situou minimamente no tempo essa constatação e desconhece as circunstâncias em que as mesmas foram feitas.

O referido, a respeito, pela testemunha I não assume qualquer relevo para a decisão em causa.

De facto, a testemunha referiu nada saber sobre o que se passou no Parque do Bonfim, minutagem 8:00.

Porém, afirma que viu os braços da Mãe com marcas, mas nada mais sabendo explicar, ver minutagem 8:25 a 8:50.

Apesar das equimoses verificadas não se pode concluir nem pela indiciação quer do crime de violência doméstica referido, quer de um crime de ofensa á integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, do Cód. Pen., apesar do que consta de fls. 8 dos autos (art.º 143.º, n.º2, primeira parte, do Cód. Pen.).

2– Dos maus tratos perpetuados pelo arguido à assistente

Ao invés do referido na Decisão em crise, existe nos autos testemunho das expressões “merda, caralho, foda-se aquela puta, burra”, que a assistente refere terem-lhe sido dirigidas pelo arguido.

A testemunha T tal refere no seu depoimento exarado folhas 284 dos autos, ao afirmar que Recorda que estranhava o facto de o mesmo dizer asneiras tais como “merda”, “aquela puta”, “foda-se”, “caralho”, proferindo estas expressões em qualquer local mesmo à mesa e logo que se aborrecia.

Como dá nota a mesma testemunha do clima que se vivia em casa, referindo que o arguido passou a evidenciar uma relação de poder com os restantes membros da família; dava ordens à sua mãe e se esta desobedecia chamava-lhe burra, ignorante e irresponsável.

E que no ano de 2007, fruto de todos estes episódios a sua mãe sofreu uma depressão que a levou a auxilio médico. Passou a comer muito pouco depois de ter nascido o Tomás, chegando a pesar 43kg. Não revelava qualquer capacidade de reacção face as actuações do arguido (ver fls. 285).

No que é acompanhado pelo depoimento feito por G, a fls. 61 dos autos, quando refere que ao longo dos três anos de vivência com o denunciado sempre observou que este era uma pessoa que tinha por hábito humilhar os restantes membros da família, muito em especial a sua Mãe sobrevalorizando-se em relação a esta.

Sem olvidar o que é narrado a fls. 60 v.º dos autos pela testemunha S que, de uma forma clara e precisa, caracteriza a forma como o arguido tratava sua Mãe. E a perturbação do foro psicológico que lhe causou em resultado dessa sua actuação.

Pelo que, e sem curar de outros considerandos, importa levar á base instrutória, por suficientemente indiciados, os seguintes factos:

• Desde que o arguido passou a residir com a assistente tenha manifestado uma personalidade violenta e agressiva perante a sua própria pessoa e os seus filhos, utilizando expressões como ”merda, caralho, foda-se aquela puta, que ninguém gostava dela, que era uma burra”;

• Por causa da conduta do arguido nos quatro anos de vivência em comum, a assistente tenha sofrido uma depressão nervosa e se tenha tornado uma pessoa triste, ausente, que se isolava sem amor-próprio nem auto-estima;

• Que o arguido tenha agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e que ao agir como descrito provocaria na assistente as lesões supra descritas.

Devendo ser lavrado despacho de pronúncia contra o aqui arguido pela prática do falado crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.os 1, alª a), do Cód. Pen., na pessoa da assistente R.

Termos são em que Acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que venha pronunciar o arguido nos termos mencionados-quanto aos crimes de violência doméstica-, no mais, confirmar o despacho recorrido, quanto à não pronúncia pelo crime de violação de domicílio.

Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 22 de Janeiro de 2013.

(José Proença da Costa)
(Sénio Alves)
________________________________________________
[1] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 182 e segs..

[2] Na C.J., ano XXIII, tomo IV, págs. 261.

[3] Cfr. Da Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de conflito entre presunção de inocência e a realização da Justiça punitiva, págs. 121-123, in I Congresso de Processo Penal.

[4] Ver, o Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, págs.171.

[5] Ver, Ac. de 10.12.92, no Processo n.º427747.

[6] Ver, Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, págs. 411.

[7] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, Comentário ao art.º 152.º, § 4.

[8] Ver, A Tutela Penal Especial Reforçada Da Violência Doméstica, págs. 14 e 15.

[9] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, págs. 205.

[10] Ver, Violência Doméstica- Novo Quadro Legal e Processual Penal, Revista do C.E.J., n.º 8, págs. 305.

[11] Ver, Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 405 e Ac. Rel. Porto, de 296.09.2012, no Processo n.º 176/11.1SLPRT.P1.

[12] Ver, Ac., de 29-01-2003, e bem assim os Acórdãos da mesma Relação de 13.06.2007 e de 28.01.2010, no Processo n.º 361/07.0GCPBL.C1.

[13] Ver, Ac. S.T.J., de 6.04.2006, no Processo 1167/06.

[14] Ver, ob. cit., págs. 406.

[15] Ver, Plácido Conde Rodrigues, in ob. cit., págs. 314.

[16] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, págs. 204.