Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1067/14.0TBABF-A.E1
Relator: GRAÇA ARAÚJO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE REVITALIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 11/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Do Plano Especial de Revitalização devem constar as razões que justificam as diferenças de tratamento entre os credores.
II – O facto de a revitalizanda, no novo modelo de negócio que se propõe desenvolver, necessitar de manter relações com as instituições financeiras de que é devedora e não precisar de as manter com os fornecedores de que também é devedora, não justifica que no Plano se preveja o pagamento integral dos créditos das primeiras e o perdão quase total dos créditos dos segundos, todos de natureza comum.
III – O risco de execução dos garantes de dívidas da revitalizanda não justifica que no Plano se conceda aos respectivos credores tratamento mais favorável relativamente aos demais.
IV – Em tais situações, deve ser recusada a homologação do Plano Especial de Revitalização, por violação do princípio da igualdade dos credores.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
I
1. AA, Lda. deu início a processo especial de revitalização, apresentando o requerimento e documentos vários, ulteriormente complementados na sequência de convite judicial.
2. Foi proferido despacho de admissão liminar e, designadamente, a nomear administrador judicial provisório.
3. O administrador apresentou a lista provisória de créditos – fls. 103 a 108 - que foi objecto de rectificação a fls. 140 a 145.
4. O credor BB, S.A. impugnou o crédito de CC, Lda., tendo, posteriormente, sido admitida a desistência dessa reclamação.
5. O administrador juntou aos autos “Proposta de Plano de Revitalização Final” (fls. 270 a 298), ulteriormente objecto de alteração (fls. 339).
6. O administrador comunicou o resultado da votação e juntou cópia dos votos emitidos - fls. 373 a 404.
7. A credora DD, S.A. requereu a não homologação do Plano de Recuperação, requerimento a que a devedora respondeu.
8. Foi proferida sentença que não homologou o Plano, por considerar violado o princípio da igualdade.
II
A devedora interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
a) O diferente tratamento de créditos, ainda que inseridos na mesma classe, não constitui per si uma violação do princípio da igualdade dos credores, isto desde que se funde em critérios objectivos, materiais e relevantes – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.11.2014, proferido no processo n.º 25367/13.7T2SNT.L1-8; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.09.2015 e de 17.03.2015 proferidos nos processos n.º 5570/14.3T8CBR.C1 e 338/13.7TBOFR-A.C1, respectivamente, e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.06.2013 proferido o processo n.º 743/12.6TBVVD.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt;
b) Enquanto que na perspectiva de negócio futuro da Devedora esta conserva uma dependência económica muito directa das instituições financeiras, inversamente a mesma em muito pouco irá depender dos fornecedores de bebidas na medida em que irá ceder integralmente o negócio da venda a retalho mediante a cedência da exploração dos estabelecimentos. É à luz desta perspectiva do titular dos créditos comuns, e também à razão do modelo de actividade que a Devedora vai adoptar no prosseguimento da sua actividade, que cumpre distinguir materialmente as situações, destrinçando os credores que a acompanharão neste novo modelo de actividade daqueles que nela deixarão de intervir;
c) Não é viável, segundo os diversos estudos de viabilidade económica produzidos, um tratamento uniforme e homogéneo entre os credores comuns que acompanharão o novo paradigma da actividade da Devedora daqueles que deixarão de com ela manter relações comerciais;
d) Se, por um lado, é de todo inviável a aceitação por parte dos credores comuns que são instituições financeiras de uma redução do capital dos valores dos seus créditos – na medida em que os mesmos se encontram garantidos com hipotecas constituídas sobre património dos sócios, o que assegura a tais instituições de crédito um reembolso maior dos créditos mediante a excussão das garantias de terceiros do que o reembolso que lograriam em caso de redução dos seus créditos no âmbito de Plano de Revitalização – por outro lado, também não é viável o pagamento de um montante superior àquele proposto para os demais credores comuns quer porque da venda do stock não resultará um produto superior a este montante quer também porque da actividade da Devedora, segundo o novo paradigma de negócio – locação dos seis estabelecimentos comerciais – não resultará um proveito que permita o pagamento de quaisquer outros valores para além das despesas correntes (rendas, leasings, IMI´s, etc…) e dos créditos das instituições financeiras;
e) É certo que bem pretendia a Devedora dispor de maior capacidade para satisfazer em maior proporção os créditos comuns – tanto que no ponto 4.1. dispõe a cláusula de regresso de melhor fortuna – porém nem a actividade actual gera rendimento para tanto – razão pela qual se abandonará a mesma – nem a actividade futura, na qualidade de cedente dos estabelecimentos que detém, gerarão maiores rendimentos que permitam outra distribuição, nomeadamente um pagamento em quantitativo superior aos credores comuns com os quais cessará as relações comerciais;
f) À luz desta confessada incapacidade de satisfazer presentemente, bem como de vir a satisfazer no futuro, a totalidade das suas obrigações, que a Devedora se coloca perante um dilema: ou é arredada definitivamente do mercado e encerra seis estabelecimentos e manda para o desemprego todos os seus trabalhadores, ou ao invés assume conjuntamente com os seus credores a sua situação económica, converte a sua actividade mediante a entrega da exploração dessas seis lojas e aplica os rendimentos que daí colhe no cumprimento das suas obrigações, e na medida em que estes não permitem satisfazer na totalidade a todos dos credores, distingue aqueles que se assumem determinantes para implementar e para manter esse novo modelo de negócio e que com a Devedora prosseguirão a sua actividade, daqueles fornecedores de bebidas que respeitam à actividade que a Devedora faz extinguir;
g) O Plano apenas se mostra viável e exequível mediante uma correcta composição da distribuição dos rendimentos que a Devedora irá colher quer com as rendas da cedência da exploração dos seus estabelecimentos quer com a liquidação do stock, afectando integralmente os proveitos aos credores no seu todo, embora distinguindo-os, atenta a sua insuficiência, conforme a preponderância que estes assumem nesse mesmo modelo futuro de negócio, critério este que é objetivo, relevante e não discriminatório e que é transversal e norteia todo o Plano;
h) Estas justificações, lógicas e objectivas, imbuídas de um espírito pragmático e de racionalidade gestionária, que leva à distinção material entre os créditos comuns dos fornecedores dos créditos comuns das entidades financeiras e dos créditos comuns decorrentes de leasings imobiliários;
i) É também esta a justificação fundamentada para uma distinção que se faz assentar segundo critérios objectivos relevantes que permitem uma justificada diferenciação de tratamento dos credores comuns à razão dos respectivos titulares, consoante os mesmos façam parte da estratégia de negócio definido para o novo modelo da actividade que ocorrerá com a entrega em cessão de exploração das seis lojas que a Devedora deixará de explorar e de gerir;
j) Com a introdução do PER no CIRE a satisfação dos direitos dos credores deixou de assumir o lugar privilegiado que vinha tendo, passando a recuperação a assumir também uma finalidade atendível no âmbito particular da Revitalização. Aliás, a recuperação do devedor passou a assumir especial relevância e preponderância na filosofia da lei, que privilegia a manutenção do devedor no giro comercial, relegando para segundo plano a liquidação do património sempre que se mostre viável a sua recuperação;
k) Em sede de recusa da homologação [cfr. artº 215º, do CIRE] do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, em razão de violação das regras, há-de forçosamente o juiz atender, ou pelo menos não menosprezar, o desiderato do PER em sede de revitalização do tecido empresarial, e isto em oposição a uma anterior filosofia que privilegiava a liquidação e o desmantelamento das empresas;
l) O PER deve ser assumido e entendido como um mecanismo preferencial de recuperação do devedor, conferindo-se a agilidade e a compatibilização com a respectiva Lei de modo a lograr a revitalização almejada, embora sem atropelo pelas normas aplicáveis ao conteúdo do Plano, e dentro deste desiderato principal, que é o da recuperação do devedor, deve o conteúdo do Plano obedecer nomeadamente ao princípio da igualdade dos credores, não podendo, com o devido respeito, um crédito comum representativo de 1,31% da totalidade dos créditos reclamados, ditar uma eventual liquidação da Devedora, o encerramento de seis lojas e o despedimentos dos colaboradores afectos a toda a actividade da recorrente;
m) Mais, quando esse concreto credor que se opõe à homologação é concorrente quer da Devedora quer da entidade que irá receber de exploração os estabelecimentos, logrando deste modo – intencional ou não, só a mesma poderá afirmar – (i) obstar à concorrência; (ii) assegurar a possibilidade de vir a conquistar o mercado detido pela Devedora com a sua liquidação em insolvência; (iii) como ainda obstar a que esse mesmo mercado seja atribuído à concorrente que será (no âmbito do Plano) a cessionária na exploração das lojas;
n) A decisão recorrida violou, por incorrecta interpretação e aplicação de direito, as normas dos artigos 194.º n.º 1 e 215º do CIRE, aplicáveis ex vi artigo 17.º-F n.º 5 do mesmo diploma.

As credoras DD, S.A., EE, S.A. e FF, S.A. apresentaram contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão.
III
A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:
1. Foram reconhecidos créditos no montante global de € 4.131.025,24.
2. Foram reconhecidos créditos garantidos no montante total de € 390.167,52.
3. Foram reconhecidos créditos privilegiados no montante total de € 19.093,23.
4. Foram reconhecidos créditos comuns no montante total de € 2.898.138,49.
5. Foi reconhecido um crédito subordinado no montante total de € 823.626,00.
6. O plano de revitalização da devedora prevê efetuar a cedência de exploração das seis lojas da devedora e manter apenas o negócio complementar de distribuição por grosso/revenda em armazém.
7. O plano de revitalização prevê o pagamento integral dos créditos de trabalhadores até ao final do ano de 2015 com o resultado da venda do stock no âmbito do acordo de exploração das lojas da devedora.
8. O plano de revitalização prevê o pagamento dos créditos do Instituto de Segurança Social, IP, nas seguintes condições:
8.1. Consolidação das dívidas de capital com referência ao mês de junho de 2014; 8.2. Exigibilidade total de juros vencidos relativos a contribuições vencidas e não liquidadas, bem como dos juros relativos a contribuições pagas fora de prazo até à data do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, recalculados a essa data;
8.3. Aplicação da taxa anual para o cálculo dos juros vincendos que para 2015 se cifram em 5,476%;
8.4. Amortização da totalidade do valor do capital em divida, acrescido dos juros que resultarem dos valores fixados nos pontos anteriores, num prazo de 60 meses, em prestações mensais iguais e sucessivas, com início no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Recuperação;
8.5. Manutenção da suspensão das ações executivas pendentes para cobrança de dívidas à Segurança Social, após aprovação e homologação do plano de recuperação até integral cumprimento do plano de pagamentos que venha a ser autorizado;
8.6. Pagamento integral do valor referente a custas processuais devidas no âmbito de ações executivas que se encontram suspensas na respetiva secção de processo executivo, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação.
9. Quanto aos créditos comuns emergentes de empréstimos e equivalentes atribuídos a instituições financeiras, o plano de recuperação da devedora prevê a:
9.1. Liquidação da totalidade do crédito reconhecido respeitante a capital, bem como a juros vencidos até à data da nomeação do administrador judicial provisório;
9.2. Reestruturação das operações existentes por um prazo de 15 anos, com início na data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano e com vencimentos semestrais e postecipados;
9.3. Aplicação de um período de carência de reembolso de capital de quatro semestres, com pagamento semestral e postecipado de juros;
9.4. Reembolso do capital em 26 prestações semestrais constantes de capital e juro;
9.5. Aplicação de uma taxa de juro indexada à Euribor a 180 dias acrescida de um spread de 2,5%, com início de contagem na data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano;
9.6. Quando aplicável, os juros vencidos entre a data da nomeação do administrador judicial provisório e a data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano são recalculados à taxa proposta e incorporados no capital a reestruturar capital;
9.7. Ausência de penalizações por amortizações antecipadas de acordo com a cláusula "salvo regresso de melhor fortuna" a que é feita referência nas cláusulas adicionais do plano;
9.8. Manutenção das garantias existentes, tendo o património da devedora sido reforçado com a incorporação no seu ativo de duas lojas;
9.9. Isenção de juros de mora, comissões, custas e quaisquer outras despesas relacionadas com a implementação da operação.
10. Quanto aos créditos comuns emergentes de leasings imobiliários, o plano de revitalização da devedora prevê a manutenção em cumprimento dos atuais acordos de leasing imobiliário nos seus exatos termos.
11. Quanto aos créditos comuns de fornecedores e restantes credores não referidos em 9) e 10), o plano de revitalização da devedora dispõe que "em virtude da empresa passar a operar apenas no mercado por grosso de revenda, impõe-se reestruturar o procedimento de compras e seleção de fornecedores" e prevê as seguintes condições:
11.1. A todos os créditos reclamados e reconhecidos na lista provisória de créditos respeitantes a fornecedores e restantes credores não incluídos nos pontos anteriores do plano, aplicar-se-á um perdão de 90%;
11.2. Os restantes 10% serão pagos numa prestação única a ocorrer em outubro de 2016;
11.3. A isenção de juros e de quaisquer outros custos.
12. Quanto aos créditos subordinados, o plano prevê a isenção total do pagamento dos créditos subordinados.
13. O plano de revitalização prevê o pagamento de créditos futuros e estabelece que os credores que, no decurso do plano, financiem a atividade da sociedade disponibilizando-lhe capital para a sua revitalização gozam de privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio creditório mobiliário geral concedido aos trabalhadores.
14. Votaram a favor da aprovação do plano de recuperação os credores GG, S.A., HH, S.A., Instituto de Segurança Social, IP, II, Lda., JJ, S.A., LL, Lda., MM, S.A., e CC, Lda., titulares de créditos reconhecidos no montante global de € 2.120.735,99.
15. Dos créditos referidos em 14), o crédito de CC, Lda., foi reconhecido pelo montante de € 823.626,00 como crédito de natureza subordinada.
16. Votaram contra a aprovação do plano de recuperação, os credores NN, S.A., OO, PLC, PP, S.A., QQ, Lda., RR, Lda., DD, S.A., SS, S.A., TT, Lda., UU, S.A., VV, S.A., FF, S.A., e XX, S.A., titulares de créditos reconhecidos no montante global de € 1.674.864,35.
17. O credor ZZ, Unipessoal, Lda., com crédito reconhecido no montante de € 17.293,90 emitiu voto em branco relativamente ao plano de recuperação da devedora.
IV
A única questão a decidir é a de saber se o Plano de Revitalização apresentado fere o princípio da igualdade dos credores.

A) Nada objecta a apelante ao facto de poder/dever ser recusada a homologação ao Plano de Revitalização cujo conteúdo viole, de modo não negligenciável, normas que lhe sejam aplicáveis (artigos 17º-F nº 5 e 215º do CIRE). E também não discute a apelante que, entre essas normas, se encontra o nº 1 do artigo 194º do mesmo diploma.
Aí se consagra o comprometimento do plano com o princípio da igualdade dos credores, ressalvadas diferenças justificadas por razões objectivas.
Ou seja, e como é pacificamente aceite, tal princípio impõe que situações objectivamente idênticas sejam tratadas do mesmo modo, mas não afasta que a situações objectivamente diferenciadas caibam respostas diversas.

A discordância da apelante também se não centra no facto de o Plano consagrar um desigual tratamento dos credores, em particular dos que são titulares de créditos comuns, desigualdade que, aliás, é manifesta e dificilmente poderia ser escamoteada.

O que a apelante sindica é o entendimento da 1ª instância de que aquelas diferenças de tratamento não têm justificação objectiva.
Entendimento que, desde já o manifestamos, é também o nosso.
Vejamos, pois.

B) Em primeiro lugar, e tal como a sentença já salientava, o Plano de Revitalização apresentado não contém – ao contrário do que deveria – expressa e cabal explicação para as clamorosas diferenças de tratamento entre os créditos das instituições financeiras (pontos 9. e 10. da matéria de facto) e os créditos de fornecedores e outros (ponto 11. da matéria de facto), todos eles de natureza comum.
[Os créditos que o Administrador Provisório qualificou como garantidos e que foram reconhecidos (ponto 2. da matéria de facto) não o são, na realidade, posto que correspondem aos créditos provenientes dos contratos de locação imobiliária, titulados pelo BB e pelo OO e que, aliás, nunca foram incumpridos pela devedora].

C) Em segundo lugar, quando respondeu ao requerimento da credora DD, S.A. (que requerera a não homologação do plano por o mesmo, designadamente, violar o princípio da igualdade dos credores), o que a devedora se limitou a dizer foi que a diferença de tratamentos dos credores tinha como base “a diferente natureza dos créditos”.
Razão que, mesmo que se considerassem como garantidos os créditos relativos às locações financeiras imobiliárias, não relevava para os demais créditos, todos eles comuns.

D) Em terceiro lugar, verifica-se que, apenas perante a recusa de homologação do Plano de Revitalização, enuncia a devedora/apelante um conjunto de motivos que, na sua óptica, constituiriam justificação objectiva para o diferente tratamento dos credores.
Sem razão, porém, como veremos.

Do que a apelante invoca, resulta que, no novo modelo de negócio que pretende implementar, os rendimentos que obterá nunca serão suficientes para satisfazer todas as suas dívidas.
Daí decorre a necessidade de definir o critério de distribuição desses rendimentos entre os credores.
E porque, naquele novo modelo, por um lado, os credores financeiros lhe serão indispensáveis, enquanto, por outro, deixará de ter relações comerciais com os credores fornecedores, o critério eleito pela apelante é, no fundo, o da sua exclusiva necessidade/conveniência, traduzido no pagamento integral aos credores de que não pode prescindir e no não pagamento quase total aos credores de que não mais vai precisar.
Perante idêntica ordem de motivos - que, aliás, constavam do plano apresentado, ao contrário do que ora sucede – e em face de uma desigualdade de tratamento de grau muito inferior ao destes autos, escreveu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 24.11.15 (www.dgsi.pt, Proc. nº 212/14.0TBACN.E1.S1):
No que respeita às instituições bancárias, o Plano particulariza a diferenciação com o argumento de que existe a necessidade de, no futuro, continuarem a apoiar a Devedora, nomeadamente no financiamento da sua atividade operacional. Ou seja, as entidades bancárias credoras são aqui apresentadas como uma espécie de parceiro estratégico (chamemos-lhe assim) da Devedora em ordem à prossecução da sua atividade e à sua projetada reabilitação.
Não duvidamos, pelo óbvio, que naqueles casos em que as instituições bancárias se vinculam a apoiar financeiramente o devedor em certos termos concretos, efetivos e programados (fixados no plano) que denotem, de forma minimamente significativa, a assunção de sacrifícios e de riscos para elas, tal possa constituir um fator justificador de uma diferenciação do regime de satisfação dos créditos no confronto de outros credores. Não assim quando, ao invés, o plano é omisso relativamente a tal, ou quando não mostra que exista qualquer efetiva, concreta e programada vinculação ao apoio financeiro, ou ainda quando em nada se revela na prática a existência de sacrifícios e riscos associados às operações financeiras que tais instituições bancárias se proponham favorecer. Repare-se, quanto a este último segmento, que a lei já beneficia à partida os credores financiadores do devedor com um privilégio creditório (nº 2 do art. 17º-H do CIRE), o que, logicamente, minimiza os seus riscos.
Ora, no caso vertente o Plano não contém qualquer menção acerca da efetiva, concreta e programada vinculação das entidades bancárias credoras a esse suposto apoio financeiro futuro. E a verificar-se tal vinculação, teria o Plano, ademais de indicar a sua existência, que expressar os respetivos termos, para que se pudesse ajuizar da bondade jurídica da diferenciação estabelecida. Efetivamente, e como resulta do nº 2 do art. 195º do CIRE, o plano deve conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz. Concordantemente, aduz-se no recente (8.10.2015) acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 1898/13.8TYLSB.S1 (Júlio Gomes), que “necessário se torna, desde logo, justificar no próprio plano o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas para essa diferença”.
Daqui que, como significa a Recorrente, o que consta do Plano neste segmento mais não pode representar que uma simples expetativa da Devedora, que assim não está senão a ditar unilateralmente uma razão subjetiva para a diferenciação. Não se trata de uma razão objetiva que ajude a explicar a bondade da diferenciação de tratamento que o Plano contém.
Mas mesmo que tais instituições se tivessem vinculado a apoiar a Devedora, nem por isso se poderia concluir, sem mais (isto é, automaticamente), que a enorme diferenciação de tratamento que em concreto se verifica estaria, visto o princípio da proporcionalidade que também tem de ser observado, objetivamente justificada. Neste particular, podemos dizer, como diz o acórdão da Relação de Coimbra de 17 de março de 2015 (processo nº 338/13.7TBOFR-A.C1, relator Henrique Antunes, disponível em www.dgsi.pt), proferido em espécie onde vale mutatis mutandis a mesma ordem de argumentação, que o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns dos credores da mesma classe. Seria o caso.”.

Os inquestionáveis propósitos que levaram à criação do processo especial de revitalização (e que constam da Proposta de Lei 39/XII da Presidência do Conselho de Ministros) não implicam o desrespeito de princípios estruturantes, como o que nos ocupa, e que a própria lei cuidou de salvaguardar.
E não se diga que é o facto de, eventualmente, ser “arredada definitivamente do mercado” e encerrar “seis estabelecimentos” que implicará o desemprego de todos os seus trabalhadores. Basta ler o Plano apresentado para se perceber que, “com a cedência da exploração das lojas, a empresa passa a operar apenas com duas pessoas. O que significa que despedirá 14 trabalhadores.
Acresce que não pode esquecer-se que também os credores são unidades económicas cuja saúde financeira importa salvaguardar e que poderão não estar sequer em condições de “financiar” a recuperação da devedora sem caírem, eles próprios, em situação económica difícil.

Resta dizer que não compreendemos o argumento constante da alínea d) das conclusões das alegações da apelante.
É que os credores que dispõem de hipoteca sobre imóvel pertencente aos dois únicos sócios e gerentes da devedora (é, pelo menos, o caso do OO, relativamente ao crédito de 412.335,72€) e os credores que dispõem de livrança subscrita pela devedora e avalizada pelos referidos sócios (é, pelo menos, o caso do OO, relativamente ao crédito de 71.539,69€ e o caso do BB, relativamente aos créditos de 514.491,36€ e de 207.680,81€) – sendo de realçar que, cerca de 4 meses após a entrada do presente processo, o OO instaurou acção executiva contra os mencionados garantes, tendo o imóvel sido penhorado em 22.12.14 – não vêem, relativamente àqueles, o seu crédito afectado, podendo demandar livremente esses responsáveis (nº 4 do artigo 217º do CIRE). E tal significa que, ao contrário do que diz a apelante, esses credores seriam os que menos sofreriam com a redução dos créditos no âmbito do Plano.
Deste modo, o que se justificaria, em sede de justiça comutativa, era que o “preço” da revitalização da devedora fosse suportado mais fortemente pelos credores que podem ressarcir-se através do património pessoal dos referidos sócios e gerentes, suportando estes últimos, também, aquele preço.
E posto que, de acordo com o Plano, a devedora se propõe assegurar a totalidade daqueles créditos, os maiores beneficiados serão os sócios da devedora, na medida em que consigam evitar a execução do seu património pessoal.
A ser essa situação que está, também, subjacente ao diferente tratamento dos créditos constantes do Plano, mais uma vez nos dá o referido Acórdão do STJ a adequada solução:
Do Plano ainda consta uma terceira ordem de razões justificadoras da sua bondade, e que é a seguinte: a circunstância dos administradores da Devedora (garantes pessoais da dívida desta para com as instituições bancárias) correrem o risco (não sendo o Plano aprovado) de poderem vir a ser executados pelo pagamento das dívidas iria, em última instância, causar a penhora e a perda das participações sociais detidas por eles na Devedora, o que, por sua vez, colocaria em causa a estabilidade futura da Devedora e o cumprimento do Plano de recuperação.
Trata-se de uma argumentação estranha. E, em todo o caso, é uma argumentação sem peso para o que se discute, desde logo por pressupor cenários hipotéticos ou virtuais (e ainda por cima em cascata) que em nada se correlacionam diretamente com a bondade da diferenciação de tratamento dos credores que o Plano encerra, e é disto que cuidamos. Na realidade, e como também aduz a Recorrente, o que o argumento está a significar na prática é simplesmente que os administradores da Devedora acham muito bem que o problema da satisfação das dívidas da empresa seja solucionado (sob o pretexto de um plano de revitalização) à custa do enorme prejuízo de certos credores (entre estes a Recorrente), livrando-se eles, em compensação, das responsabilidades pessoais que assumiram. Inaceitável.”.
V
Por todo o exposto, acordamos em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmamos a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Évora, 17 de Novembro de 2016
Maria da Graça Araújo
Manuel Bargado
Albertina Pedroso