Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
425/19.8GESLV.E2
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: RECURSO
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O assistente tem interesse em agir e legitimidade quando interpõe recurso da decisão final proferida pela 1.ª instância que absolve o arguido.
II. É que com a interposição do recurso, o assistente está a manifestar de forma clara, pessoal e concreta o seu interesse em que o processo prossiga até a tribunal superior para conhecimento da sua impugnação, por a decisão final ter sido desfavorável à sua pretensão, tal como a havia apresentado na denúncia criminal e tal como a sustentou em julgamento.
III. Do princípio do in dubio pro reo decorrerá que ao arguido basta fragilizar a um certo nível a prova da acusação, já que, no enfoque probatório, acusação e defesa não se encontram em situação de igualdade.
IV. Inexiste repartição de ónus de prova em processo penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica ... - Juiz ..., foi o arguido AA submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu julgar a acusação totalmente improcedente e, em conformidade,

“a) absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) ambos do C.P.”


*

Inconformado com a decisão, o assistente BB interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1.Da produção de prova realizada nos presentes autos, nomeadamente dos depoimentos do arguido AA (5), do assistente BB (6) e das duas testemunhas CC (7), DD (8) e, bem assim, da dos autos de notícia de fls. 68 a 71, 103 a 106 e 139 a 142 e das fotografias de fls. 247 a 252 e das fotografias das «plantas» de localização de fls. 252v., 253 e 256v o Venerando Tribunal da Relação de Évora deve chegar a um julgamento quanto à matéria de facto diferente do que chegou o Tribunal a quo no que importa os seguintes quatro pontos concretos da factualidades e considerar os mesmos como provados, o que se requer:

a) Na sequência do descrito no facto provadon.º6, e após o assistente BB ter ido na direcção do arguido AA para lhe tirar satisfações, este muniu-se de uma “gadanha” e com a mesma dirigiu-se na direcção daquele, e em tom grave e sério, proferiu as seguintes expressões: «Corto-te aos pedaços, sai daqui senão corto-te aos pedaços»;

b) Na sequência do descrito na alínea anterior o assistente BB ficou receoso pela sua integridade física;

c) O arguido AA quis, pela forma descrita na al. a), coarctar a liberdade do assistente BB, bem sabendo que a sua conduta era idónea para atingir tal objectivo, o que representou e quis levar a cabo;

d) O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei.

2) No corpo das presentes alegações, o recorrente fez a referência aos momentos concretos dos depoimentos referidos em 1) que permitem chegar a um julgamento diferente quanto à matéria de facto. Todavia, devido à pequena dimensão temporal de cada um dos quatro depoimentos todos e cada um deles, na sua plenitude, mostram-se importante para se aferir a verdade material, razão pela qual se requer a audição integral da prova por depoimento do arguido, do assistente e das testemunhas referida.

3) Todos os depoimentos são claros quanto à existência de uma “gadanha” e resultam dos mesmos que a mesma foi exibida com natureza agressiva pelo arguido ao assistente.

Uma análise crítica da prova, devidamente enquadrada em juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova diz-nos que quem exibe uma gadanha, acompanha a acção com palavras ameaçadoras conforme vem referido na douta acusação publica.

As próprias declarações do arguido denotam o clima de conflitualidade existente deste para com o assistente.

Da alteração do julgamento quanto à matéria de direito

4) Aqui chegados, i.e., alterada a matéria de facto quanto aos quatro referidos pontos concretos da matéria de facto importa concluir que o arguido praticou com elevado dolo directo e elevada censura e culpa factos susceptível de serem s subsumidos nas normas proibitivas de natureza penal previstas nos artigos artigo 153, n. 1, conjugado com o artigo 155, n. 1, al. a), ambos do Código Penal, i.e. crime de ameaça, na forma agravada.

5) Pelo que ao arguido deverá ser aplicada uma pena, enquadrável na moldura penal prevista no artigo 155, n. 1 do Código Penal: pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

6) Pelo que se sugere seja o arguido condenado na pena de 1 ano e 1 dia de prisão, mas suspensa durante três anos subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, nomeadamente a entrega a uma instituição social a indicar pelo douto Tribunal da Relação de Évora, de valor nunca inferior a 5.000,00 Euros, no prazo de 6 meses, fazendo-se prova nos autos.

7) Julgando de outro modo o Tribunal “a quo” vez uma errada aplicação e interpretação das regras que resultam, entre outros, dos artigos 153, n. 1, conjugado com o artigo 155, n. 1, al. a), ambos do Código Penal e ainda as demais normas de direito que o Venerando Tribunal da Relação de Évora queira aplicar suprindo as insuficiências do recorrente.

Termos em que

Deve o presente recurso ser julgado procedente e a sentença recorrida revogada e substituída por douto acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora que condene o arguido pela prática do crime de ameaça na forma agravada, na pena concreta de 1 ano e 1 dia de prisão, mas suspensa durante três anos subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e acompanhada de regime de prova se, o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, nomeadamente a entrega a uma instituição social a indicar pelo douto Tribunal da Relação de Évora, de valor nunca inferior a 5.000,00 Euros, no prazo de 6 meses, fazendo-se prova nos autos ou outra que de julgue justa e adequada à ilicitude, à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial que o Venerando Tribunal queira indicar.

Mas V. Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, melhor decidirão fazendo a necessária justiça, como é o Estilo deste Tribunal.


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O arguido respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

I . O assistente BB interpôs recurso da Douta Sentença proferida em 07/06/2022, na qual o M.mo Juiz a quo absolveu o arguido da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº1 e 155º, nº1 al.) ambos do Código Penal.

II. O recorrente aponta vícios na sentença recorrida e conclui que o julgamento quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito deve ser alterado.

III. Com o devido respeito, entende o arguido que não assiste razão ao recorrente, não padecendo a sentença dos vícios que o recorrente lhe aponta na sua motivação do recurso.

IV. O M.mo Juiz a quo decidiu corretamente quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, encontrando-se a sentença bem fundamentada de facto e de direito em face da prova produzida em juízo.

V. Como bem saberá o recorrente o julgador é livre de apreciar as provas, sendo, no entanto, tal apreciação “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” ( Prof. Cavaleiro Ferreira, em curso de Processo Penal, 1986, 1º Vol. fls.211)

VI. No entender do arguido o M.mo Juiz a quo apreciou e valorou corretamente as provas, tendo essa apreciação sido efetuada em obediência às regras e princípios de direito probatório.

VII. O Mmo Juiz a quo em relação à matéria de facto não provada sob as als.a) a d) da sentença considerou existirem versões dos factos claramente opostas, tendo, após efetuar um exame crítico da prova e tendo prevalecido uma dúvida razoável e insanável sobre se aqueles factos probandos ocorreram ou não, por referência ao princípio do direito penal do in dúbio pro réu, considerou os mesmos como não provados.

VIII. O Mmo Juiz a quo bem decidiu ao absolver o arguido da prática do crime de que vinha acusado, devendo manter-se a sentença absolutória recorrida na íntegra.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deverá ser julgado improcedente o recurso apresentado pelo assistente BB, confirmando-se na íntegra a douta sentença recorrida, assim fazendo Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA.


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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos:

“ Presentes os autos com vista nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º, n.º 1 do CPP, vem o Ministério Público encaminhar aos autos parecer nos termos que se seguem.

Veio o assistente BB interpor recurso da sentença de 07.06.2022 que decide absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) ambos do C.P..

Radica o assistente o seu recurso em diversa avaliação da matéria de facto que entende resultar da prova produzida em sede de audiência e de julgamento e que, em seu entendimento, deveria ter conduzido a decisão condenatória do arguido.

Entende o Ministério público que, se ponderado o disposto nos artigos 401º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 414º, n.º 2, e 420º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, deve o presente recurso ser rejeitado.

Na verdade, ao recorrente não assiste a posição de vencido nem foi diretamente prejudicado pela decisão que pretende colocar em crise, pois que esta não foi proferida contra posição por si tomada no processo, donde, não tem legitimidade para a impugnar, visto a mesma não ter posto em causa um seu interesse digno de proteção.

Atente-se que o assistente BB não deduziu acusação contra o arguido AA, pelo que, não tendo exercido a ação penal, não pode, enquanto sujeito processual, questionar a decisão a esse propósito ditada pelo tribunal, falindo-lhe subjetivamente justificação para a possibilidade de a impugnar.

Em conclusão, entendemos que deve o recurso em análise ser rejeitado.”


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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, o assistente respondeu nos seguintes termos: “Notificado do parecer da Digna Procuradora-geral Adjunta que antecede, diz o assistente BB nos termos e para os efeitos do Artigo 417, n. 2 do CPP:

1)Da prática pelo arguido de um crime de ameaça na forma agravada

Conforme o corpo das alegações e a conclusão 5, pretende o recorrente (devidamente constituído como assistente) que o arguido (absolvido em 1ª instância por crime cometido contra o assistente) seja condenado pela pratica, com elevado dolo directo e elevada censura e culpa, de factos susceptíveis de serem subsumidos nas normas proibitivas de natureza penal previstas no artigo 153, n. 1, conjugado com o artigo 155, n. 1, al. a), ambos do Código Penal, i.e. crime de ameaça na forma agravada.

2) Da natureza pública do crime de ameaça na forma agravada

Sabemos que o crime de ameaça na forma agravada tem a natureza pública. Neste sentido tem sido o entendimento, seguramente unânime, dos Tribunais Superiores (cfr. entre outros os seguintes acórdãos:

Tribunal da Relação de Évora de 26 de Outubro 2019, processo 538/17.0PBELV.E1, 12 de Outubro de 2021, processo 105/20.1GCCUB.E1, de 20 de Outubro de 2020, processo 157/18.4GACTX.E1, de 24 de Maio de 2022, processo 223/20.6GCBJA.E1 e de 9 de Março de 2010, processo 59/08.2PBBJA.E1; Tribunal da Relação de Coimbra de 3 de Fevereiro de 2016, proc. nº 164/11.8GAPNC.C1, de 20 de Maio de 2015, proc. nº 45/14.3GEACB.C1, de 26 de Junho de 2013, proc. nº 207/10.2GAPMS.C1, de 10 de Julho de 2013, proc. nº 187/11.7GBLSA.C1, de 10 de Dezembro de 2013, proc. nº 183/09.4GFVIS.C1 e de 6 de Julho de 2016, processo 467/13.7GASEI-A.C1; Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Novembro de 2015, proc. nº 178/13.3PASCR.L1, de 30 de Abril de 2015, proc. nº 64/14.0PAPTS.L1, de 10 de Dezembro de 2014, processo 52/12.0PEPDL.L1-3 e de 13 de Outubro de 2010, proc. nº 36/09.6PBSRQ.L1, Tribunal da Relação do Porto de 17 de Fevereiro de 2016, proc. nº 509/12.3GBAMT.P1, de 12 de Novembro de 2014, proc. nº 883/12.1PAPVZ.P1 e de 27 de Abril de 2011, proc. nº 53/09.6BGVNF.P1, da Relação de Évora de 7 de Abril de 2015, proc. nº 517/12.4PAOLH.E1 e de 15 de Maio de 2012, proc. nº 16/11.1GAMAC.E1 e Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Janeiro de 2015, proc. nº 59/13.0OGVCT.G1, de 7 de Novembro de 2022, processo 41/19.4GBVNF.G1; e de 15 de Novembro de 2010, proc. nº 343/09.8GBGMR.G1, todos in, www.dgsi.pt).

E também a doutrina vem entendendo que após a revisão operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça agravada passou a crime público (cfr. Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 560 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição actualizada, 2015, pág. 614).

Sublinhando o já alegado, conforme se verifica pelo douto despacho de 27 de Outubro de 2020:

3) A Jurisprudência fixada pelo AFJ 5/2011

Ora, dispõe o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n. 5/2011, Acórdão de Fixação de Jurisprudência publicado no Diário da República, 1.ª série — N. 50 — 11 de Março de 2011, páginas 1410 e segts:

«Em processo por crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público Para que não haja dúvidas, face à posição que antecede do MP, podemos verificar a total analogia entre os factos que fundamentam o referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência com os presentes autos.

Assim, no caso sub judice estão plenamente reunidos os requisitos previstos nos Artigos 69, n 2 e 401, n 1 b) do CPP:

4) Desenvolvimento da Jurisprudência fixada

Podemos retirar do douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência:

“O assistente só tem legitimidade para recorrer das decisões contra ele proferidas, mas dessas decisões pode sempre recorrer, haja ou não recurso do Ministério Público. A circunstância de haver ou não recurso do Ministério Público não aumenta nem diminui as possibilidades de recurso do assistente. A única exigência feita pela lei ao assistente para poder recorrer de uma decisão é que esta seja proferida contra ele. Não há que procurar outras a coberto do chamado interesse em agir, a que alude o nº 2 do artigo 401º.

De facto, sendo a legitimidade, no processo civil, a posição de uma parte em relação ao objecto do processo, justificando que possa ocupar-se em juízo da matéria de que trata esse processo (cf. Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, Faculdade de Direito de Lisboa, Lições, 1973-1974, página 151), em processo penal, a legitimidade do assistente para recorrer significa que ele só pode interpor recurso de decisões relativas aos crimes pelos quais se constituiu assistente (cf. Damião da Cunha, ob. cit., página 646).

Já o interesse em agir do assistente, em sede de recurso, remete para a necessidade que ele tem de lançar mão desse meio para reagir contra uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, a significar que ele só pode recorrer de uma decisão com esse alcance, de acordo com Figueiredo Dias, que conclui, citando Roxin: «Aquele a quem a decisão não inflige uma desvantagem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na sua correcção, não lhe assistindo, por isso, qualquer possibilidade de recurso» (RLJ, ano 128, página 348).

(…)

O facto de o assistente, após a aquisição dessa qualidade, não haver tomado qualquer posição expressa até à decisão instrutória ou até à sentença final, apresentando-se apenas a recorrer de uma dessas decisões, não significa, pois, que até aí se tenha alheado do modo como o processo foi sendo conduzido nem, portanto, que o acto de interposição de recurso esteja em contradição com a sua anterior actuação. Significa tão-só que, até ao momento da decisão, concordou totalmente com o desempenho processual do Ministério Público, não vendo razões para, em qualquer momento, agir em sua substituição ou complementar a sua actividade.

(…)

E foi essa a solução a que chegou o Supremo Tribunal de Justiça em acórdãos de 09/04/1997, CJ ASTJ, 1997, II, 175, de 28/04/2004, proferido no processo nº 4230/03, da 3ª secção, de 01/03/2006, proferido no processo 06P113, disponível em www.dgsi.pt, de 30/04/2008, CJ, ASTJ, 2008, II, 219, e de 07/05/2009, CJ, ASTJ, II, 203, bem como a Relação do Porto em acórdão de 17/09/2008, proferido no processo 0813222, a Relação de Coimbra em acórdão de 19/10/2010, proferido no processo 60/05.8GDGRD.C1, e a Relação de Guimarães em acórdão de 06/10/2004, proferido no processo 1373/04-1, estes disponíveis em www.dgsi.pt. E no acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/99, de 30/10/1997, tratando embora questão diversa da presente, o Supremo não deixou de afirmar: «o estatuto processual do assistente não é afectado por este deduzir ou não acusação pelos factos por que o MP tenha acusado ou só por alguns» (cf. DR, I série-A, de 10/08/1999, página 5194)”.

5) O interesse específico e próprio do arguido. Sentido da decisão proferida na instância recorrida

Todavia, importa aqui deixar efectivamente claro a razão pela qual o assistente e aqui recorrente tem um interesse específico e próprio e a decisão foi proferida contra ele.

O aqui recorrente promoveu atempadamente a sua constituição como assistente, pagou as necessárias taxas, e veio a colaborar com o Ministério Público na promoção dos autos:

Desde logo com a apresentação da queixa crime, depois nos actos de inquérito – indicação de testemunhas por exemplo – e de instrução e posteriormente na condução da audiência de discussão e julgamento, aqui através dos seus mandatários que fez estarem em julgamento e com a junção de mais prova, nomeadamente documental, fotografias e outras.

Nenhuma dessa prova foi desnecessária e abusiva; nunca impugnada e sempre pertinente e indispensável para o bom julgamento da causa.

Pela factualidade já provada (por exemplo factos 3, 4, 5 e 6 já provados) e por aquela que o assistente e recorrente deseja ver aqui dada por provada (conclusão 1 e 2 da minuta de recurso) decorre que o mesmo não actua à margem dos direitos subjectivo e processual, nem é conduzido por razões torpes, fúteis e levianas, nem mesmo por simples paixão ou sentimento de vingança, …

… mas unicamente por razões válidas que lhe são próprias e decorrem da sua segurança e da segurança dos seus familiares e amigos e dos seus bens;

segurança essa que a acção ilícita, reiterada e culposa do arguido coloca em perigo.

Ora, a decisão recorrida, contraria a posição do recorrente, uma vez que absolve o arguido.

Não se compreendendo como pode o recorrente ter tido legitimidade para se constituir como assistente e agora não a ter para recorrer de uma decisão que lhe foi totalmente desfavorável, aplicando aqui os ensinamentos de Germano Marques da Silva, in “Do Processo Penal Preliminar”, Lisboa, 1990, págs. 427- 428 e de Damião da Cunha, in “A participação dos particulares no exercício da acção penal”, in RPCC, ano 8, fasc. 4, Outubro-Dezembro de 1998, pág. 646).

Aliás, convém aqui reflectir que não se trata unicamente de uma simples questão de se discutir a medida da pena (como é tradicional nas questões relacionadas com a legitimidade do assistente em fase de recurso), mas sim num erro quanto ao julgamento da matéria de facto e subsequente aplicação da norma criminal punitiva, isto é, da própria absolvição do arguido e de uma afirmação muito forte do sistema judiciário sobre a qualificação da sua conduta (ameaça com uma gadanha).

Ora somente através do processo – e in casu do processo penal e deste recurso - é que o assistente pode ver o seu direito que foi ameaçado reparado ou (ao invés) ser convencido daquilo que não pode acreditar: que a ameaça em causa não é punida.

Por outras palavras, o assistente tem a necessidade processual de obter vencimento ou convencimento nesta Veneranda Jurisdição do Tribunal da Relação de Évora – revogando ou confirmando a anterior decisão aqui recorrida.

Assim, e aplicado as palavras sábias retiradas do Acórdão do STJ de 18 de Outubro de 2000, processo 2116/2000-3, da matéria de facto agora articulada e da sua subsunção jurídica resulta sobre o interesse do assistente em agir, na sua utilidade e na imprescindibilidade do recurso como meio judicial para assegurar um direito (o seu direito concreto) que se encontra em flagrante perigo.

Estamos certos que este Venerando Tribunal da Relação de Évora não deixará de apreciar e decidir em conformidade.

Pelo que se conclui com toda a segurança que o aqui recorrente e assistente pode e deve recorrer da sentença de 7 de Junho de 2022 do Juízo de Competência Genérica ... - Juiz ... que antecede, tendo legitimidade para tal; requerendo a sua revogação e consequente condenação do arguido pelos ilícitos dolosos cometidos,

Assim se fazendo Justiça!

Mas V. Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, melhor decidirão fazendo a necessária justiça, como é o Estilo deste Tribunal.”


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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice o recorrente limita o recurso às seguintes questões:-

- erro de julgamento;

- preenchimento do tipo de crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) ambos do C.P.


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Da Decisão recorrida - Factos e Motivação (transcrição)

“III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

a) Factos provados

Com interesse para a boa decisão da causa resultaram como provados os seguintes factos:

1. O arguido AA é legítimo possuidor e proprietário de um imóvel, composto por uma parte urbana e por uma parte rústica, sito na Rua ..., na freguesia ... e ..., em ....

2. Por seu lado, o assistente BB é legítimo possuidor e proprietário de um terreno que confronta com o do arguido AA, sendo que o acesso para o seu terreno é efetuado por um caminho de servidão que atravessa o terreno do arguido AA, caminho esse que tem um portão de acesso que é comum a ambos.

3. Esse caminho de acesso tem provocado, ao longo dos últimos 6 anos, vários desentendimentos entre o arguido AA e o assistente BB.

4. No dia 8 de setembro de 2019, pelas 20h50m, quando o arguido AA e o assistente BB se encontravam no ..., da freguesia ... e ..., deste concelho ..., voltaram a desentender-se entre si.

5. No dia referido no facto anterior, o assistente BB ao chegar ao mencionado local, abriu o portão de acesso à sua propriedade, tendo permitido que o seu cão saísse à rua.

6. Apercebendo-se do portão aberto, o arguido AA logo se dirigiu a ele, e fechou o mesmo, deixando o canídeo do assistente BB na rua.

Mais se provou que:

7. O arguido AA é reformado e aufere a título de reforma a quantia mensal de cerca de €350,00.

8. Vive, em casa própria, com a esposa que é igualmente reformada e aufere a título de reforma a quantia mensal de €350,00.

9. Despende a quantia mensal de cerca de €200,00 para pagamento de um empréstimo bancário.

10. Tem o 4.º ano de escolaridade.

11. Do certificado de registo criminal do arguido AA não consta qualquer condenação.

* b) Factos não provados

Com interesse para a boa decisão da causa resultaram como não provados os seguintes factos:

a) Na sequência do descrito no facto provado n.º 6, e após o assistente BB ter ido na direção do arguido AA para lhe tirar satisfações, este muniu-se de uma “gadanha” e com a mesma dirigiu-se na direção daquele, e em tom grave e sério, proferiu as seguintes expressões: «Corto-te aos pedaços, sai daqui senão corto-te aos pedaços».

b) Na sequência do descrito na alínea anterior o assistente BB ficou receoso pela sua integridade física.

c) O arguido AA quis, pela forma descrita na al. a), coartar a liberdade do assistente BB, bem sabendo que a sua conduta era idónea para atingir tal objetivo, o que representou e quis levar a cabo.

d)O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei.


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Consigna-se que não foi considerada matéria constante da acusação e da contestação de cariz normativo ou de carácter conclusivo, a que não é lícito atender no âmbito da matéria de facto, e, bem assim, a factualidade desprovida de interesse e relevância para a decisão da causa.

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c) Motivação da matéria de facto

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do C.P.P., «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção da entidade competente.».

Ao abrigo deste princípio o juiz, na ponderação da prova, deve pautar-se por regras lógicas e de racionalidade, para que os sujeitos processuais, confrontados com a sua decisão, tenham a possibilidade de adesão ou repúdio, também racional, da valoração feita. A livre apreciação não pode, desta forma, ser entendida com uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável.


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A convicção do Tribunal assentou na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, analisada à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, bem como na prova documental junta aos autos, nomeadamente, os autos de notícia de fls. 68 a 71, 103 a 106 e 139 a 142, as fotografias de fls. 247 a 252 e as fotografias das «plantas» de localização de fls. 252 v., 253 e 256 v.

No que concerne à prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal valorou as declarações do arguido AA, as declarações do assistente BB, e os depoimentos das testemunhas CC [esposa do arguido] e DD [ex-companheira do assistente].

Passemos então à motivação da matéria de facto dada como provada e não provada. Para dar como provados os factos n.ºs 1, 2 e 3 o Tribunal atendeu às declarações do arguido e do assistente, as quais, nesta parte, se mostraram consentâneas. O arguido AA confirmou que é proprietário de um prédio sito em ..., da freguesia ... e ... e que o assistente BB é igualmente proprietário de um prédio que confronta com o seu [a este propósito valorou-se ainda as fotografias de fls. 247 a 252 e as fotografias das «plantas» de localização de fls. 252 v., 253 e 256 v.]. Mais referiu o arguido que o assistente para aceder ao seu prédio usa um caminho de servidão que atravessa o prédio de que é proprietário.

Tanto o assistente como o arguido confirmaram ainda os vários desentendimentos que têm existido entre ambos.

No que concerne aos factos provados n.ºs 4, 5 e 6 tanto o arguido, como o assistente confirmaram, em audiência de discussão e julgamento, que no dia em causa nos autos houve um desentendimento entre ambos [o que foi confirmado pelas testemunhas CC e DD]. De outra banda, o arguido AA confirmou que efetivamente fechou a portão a que se alude no facto provado n.º 5, mas que não viu, em nenhum momento, o cão do assistente [sendo certo que fechou o portão, porque o mesmo se encontrava aberto – o que foi confirmado por aquele – e não para o cão do assistente ficar na rua].

Por outro lado, o assistente referiu, que no dia em causa nos autos, o seu cão acabou por sair do portão que dá acesso à sua propriedade, sendo que o arguido fechou o mesmo, tendo deixado o seu cão na rua. É certo que tal circunstância se apurou como verídica, apesar de não se ter apurado [dado os meios de prova contraditórios] que efetivamente o arguido fechou o portão referido de modo a deixar o canídeo do assistente na rua ou que viu sequer o mesmo.

Relativamente às condições sociais e económicas do arguido o Tribunal teve em conta as suas declarações, porquanto se mostraram credíveis e não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova (cf. factos provados n.ºs 7 a 10).

Já para dar como provada a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, o Tribunal teve em consideração o seu certificado de registo criminal junto aos autos (cf. facto provado n.º 11).


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No que se refere aos factos não provados sob as als. a) a d) cumpre dizer o seguinte.

É inequívoco que, na sequência do descrito nos pontos n.ºs 4 a 6 da matéria de facto provada, o arguido AA apresenta uma versão dos factos que não corresponde à versão dos factos apresentada pelo assistente BB, o primeiro diz que o assistente o ameaçou de morte [proferindo a expressão «juro pela alma do meu pai que te mato»] e o injuriou [apelidando-o de «cabrão», «filho da puta» e «bandido»] e este diz que o arguido o ameaçou e injuriou – «seu cabrão, sai-a da minha frente, senão corto-o aos pedaços» - [sendo certo que cada um deles nega, por outro lado, que em algum momento tenha injuriado e/ou ameaçado o outro].

De outra banda, o arguido negou que em algum momento tenha pegado na gadanha e a empunhado na direção do assistente, conforme referido por este, e confirma antes que pegou num objeto que serve para puxar as palmeiras e que apenas o fez para se proteger dos eventuais comportamentos agressivos do assistente, uma vez que o mesmo o ameaçou de morte [nunca o tendo empunhado na direção do assistente].

Por sua vez, a testemunha CC, esposa do arguido AA, confirmou, no essencial, a versão dos factos trazida por este, sendo que a testemunha DD [ex-companheira do assistente] confirmou a versão dos factos do assistente BB.

Diante do supra exposto, estamos perante duas versões dos factos distintas e contraditórias, a do arguido e a do assistente, as quais são corroboradas, respetivamente, pelos depoimentos da esposa e da ex-companheira destes.

Assim, e perante as versões dos factos claramente opostas e inexistindo nos autos qualquer meio probatório que permita sustentar com maior credibilidade qualquer uma delas [tendo até por referência a relação nada amistosa existente entre ambos], designadamente uma testemunha que não tenha qualquer relação com o arguido e o assistente – sendo que as testemunhas ouvidas nos autos têm uma «relação» com estes – apenas resta dar como não provados os factos em análise, tendo por referência o princípio basilar do direito penal do in dúbio pro reo [cf. art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa], pois que, uma vez produzida a prova e efetuada a sua valoração, o resultado do processo probatório se traduz numa dúvida, numa dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsiste no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, dos factos em análise – in casu – se o arguido AA ameaçou ou não de morte o assistente BB.”


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Apreciando

Questão prévia

-Da legitimidade e interesse em agir do assistente para a interposição do recurso- questões suscitadas pela Exmª Procuradora Geral Adjunta no Parecer emitido e pelo assistente/recorrente na resposta a esse Parecer.

Como decidido no Ac. do TRP de 10 de dezembro de 2008, Rel. Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt, “ (…) 2.2. Invoca (…), que o assistente carece de legitimidade para recorrer, uma vez que a decisão que absolveu o arguido não foi proferida contra si (art. 401 nº 1-b) do CPP), acrescentando, ainda, que notificado da acusação deduzida pelo MP (pelos crimes de burla e de falsificação de documento), não deduziu por si qualquer acusação, nem aderiu à do MP.

Estando em causa crimes públicos e semi-públicos é ao Ministério Público que incumbe deduzir acusação.

É certo que o assistente (…) não deduziu nenhuma acusação (se o fizesse, teria que observar o disposto no art. 284 nº 1 do CPP e, portanto, a acusação que apresentasse não poderia importar alteração substancial dos factos alegados na acusação pública), nem aderiu à acusação pública, tão pouco deduziu pedido cível (…), no entanto esteve presente em audiência de julgamento, acompanhou (sustentando) a questão penal nela discutida, tendo apresentado o recurso ora em apreço.

Tal como a acusação pública (…) se mostrava (…) estava assegurada a intervenção do ofendido (…) enquanto assistente neste processo penal (art. 68 nº 1-a) do CPP[4]), independentemente de o mesmo não ter deduzido acusação própria, nem se ter pronunciado (v.g. adesão ou não) sobre a acusação pública.

A lei também não faz depender a sua legitimidade e possibilidade de intervir no processo, da prévia dedução de acusação própria ou da adesão à acusação pública.

O disposto no art. 284 do CPP apenas lhe confere a faculdade (que não a obrigação) de deduzir acusação ou de aderir à acusação pública, nos termos indicados na mesma norma, quando estão em causa crimes públicos ou semi-públicos.

E, não cremos que o assistente, por não ter deduzido acusação própria, nem ter manifestado adesão à acusação pública, fique afectado ou comprometido nos seus direitos, concretamente na posição processual que a lei lhe confere.

Ou seja, o legislador não sancionou essa possível “inércia” do assistente, na fase de inquérito, com qualquer limitação dos seus deveres e direitos enquanto sujeito processual.

A norma contida no nº 7 do artigo 32 (Garantias de processo criminal) da CRP[5], “não específica o conteúdo do direito de intervenção do ofendido, remetendo para a lei ordinária a sua densificação”[6].

No CPP foi densificado o conteúdo desse direito constitucional de intervenção do assistente no processo penal.

Enquanto assistente, a sua posição processual está definida no art. 69 do CPP.

Claro que é o Ministério Público que tem o monopólio da investigação, devendo a sua actividade ser orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219 nº 1 da CRP), obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade (artigo 53 nº 1 do CPP)[7], tendo em vista, na fase de inquérito, as finalidades indicadas no nº 1 do artigo 262 do CPP (investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação), competindo-lhe (entre outras funções específicas indicadas no art. 53 nº 2 do CPP), em julgamento, não só colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, como sustentar a acusação.

Na sua actividade de investigação, enquanto dirige o inquérito, o Ministério Público pode ser auxiliado pela intervenção do assistente.

Isso mesmo decorre, nomeadamente do art. 69 nº 2-a) do CPP que estabelece que incumbe em especial ao assistente “intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias”[8].

Nos termos do artigo 69 nº 1 do CPP o assistente tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção, salvas as excepções previstas na lei.

Dir-se-á que essa subordinação da intervenção do assistente ao Ministério Público é compreensível na medida em que no processo criminal (ao contrário do que sucede no processo civil), “está imediatamente em causa o interesse público do ius puniendi”[9].

Com efeito, a “realização prática do poder punitivo estadual” tem o seu campo de actuação no processo penal, “nomeadamente através da investigação e da valoração judicial do crime indiciado ou acusado”[10] que, na fase de inquérito é da competência do Ministério Público.

De qualquer forma, o legislador ordinário ao reconhecer a posição processual do assistente, enquanto sujeito processual, conferiu-lhe alguma autonomia em relação ao Ministério Público de quem é colaborador.

É o que sucede, por exp., quando a lei (art. 287 nº 1-b) do CPP) atribui ao assistente a faculdade de requerer a abertura de instrução quando o Ministério Público decide arquivar o inquérito (art. 277 do CPP) não estando em causa crime particular.

Ou seja, por esta via, permite-se ao assistente que também controle a actuação do Ministério Público durante o inquérito, quando este determina o seu arquivamento: isto significa que a lei prevê situações de excepção em que a intervenção do assistente não é subordinada à actuação do Ministério Público.

Ora se é assim, porque é que então o assistente não pode recorrer da decisão que absolveu o arguido quando o Ministério Público se conformou com essa decisão (….)?

Se o assistente pode “controlar” a actuação do Ministério Público durante o inquérito, não se vê porque o não possa fazer na fase de julgamento, tanto mais que a decisão final concluiu pela absolvição do arguido, o que, portanto, o afecta no direito que pretendia fazer valer quando apresentou a queixa crime e quando marcou a sua presença e, consequente posição, na audiência de julgamento.

Nos termos do art. 69 nº 2-c) do CPP, compete em especial aos assistentes interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.

Então qual é o sentido desta norma?

Qual a sua utilidade?

Claro que o art. 401 nº 1-b) do CPP estabelece que têm legitimidade para recorrer o arguido e o assistente, de decisões contra ele proferidas.

Mas, também o art. 401 nº 1-d) do CPP admite o recurso daqueles (o que inclui qualquer pessoa) que (…) tiverem a defender um direito afectado pela decisão.

Será que então o assistente não tem interesse em agir (art. 401 nº 2 do CPP), quando interpõe atempadamente recurso da decisão final proferida pela 1ª instância que absolve o arguido?

É que com a interposição do recurso, o assistente está a manifestar de forma clara, pessoal e concreta o seu interesse em que o processo prossiga até a tribunal superior para conhecimento da sua impugnação, por a decisão final ter sido desfavorável à sua pretensão (tal como a havia apresentado na denúncia criminal e tal como a sustentou em julgamento).

Até nem fazia grande sentido, por um lado, permitir a constituição de assistente em determinado tipo de crimes (com o argumento da sua natureza pluridimensional, como sucede, por exemplo, com o crime de denúncia caluniosa, já para não falar nas situações expressamente previstas no art. 68 nº 1-e) do CPP, cujo catálogo de crimes tem vindo a ser alargado e que evidencia que o legislador aderiu a um conceito amplo de ofendido, querendo por essa via “tornar mais transparente a administração da justiça e permitir um combate mais eficaz a certas formas de criminalidade”[11]), aproveitar a sua colaboração e contribuição na definição da questão da culpa e, por outro, restringir a sua intervenção aos casos em que o Ministério Público tivesse interposto recurso.

(…)

Por aqui se vê que o argumento da sua “eterna” relação de dependência/subordinação ao Ministério Público (por ser este quem representa e encabeça o interesse do ius puniendi) é frágil, particularmente em situações como a destes autos.

Por outro lado, se é certo que se atribui ao assistente um “papel de cooperação na descoberta e prova da verdade material [estando o mesmo] envolvido na demonstração da culpa”[12], percebe-se que, quando a culpa se não prova, tenha interesse em recorrer.

Sustenta Cláudia Santos[13] que “enquanto titular do bem jurídico posto em causa pela conduta criminosa (ou representante do titular) que formaliza a sua intenção de condicionar a resposta à questão penal, o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça. Por isso, é essa coincidência (ainda que apenas relativa e tendencial) entre aquele interesse da comunidade na administração da justiça penal – que cabe ao Ministério Público promover – e este interesse concreto do assistente em que a justiça penal encontre uma resposta adequada para a ofensa que lhe foi causada que justificam, segundo se julga, a colaboração legalmente admitida entre o Ministério Público e o assistente no processo penal.”

Também Paulo Pinto de Albuquerque[14] defende que “é o próprio direito constitucional de protecção contra a vitimização primária, repetida e secundária que é, deste modo, gravemente posta em causa (…) com a negação ao assistente dos meios de reacção processual das mais importantes decisões que o afectam”.

Portanto, pelo que já se deixou dito, quanto a nós[15], o assistente tem legitimidade para recorrer da sentença/acórdão que absolveu o arguido.”

E, tal entendimento é por nós integralmente sufragado, pelo que improcede esta questão prévia colocada pela Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta.


*

Conhecendo do recurso interposto pelo assistente.

- Do erro de julgamento

A pretensão do recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando ter o arguido sido incorretamente absolvido por não terem sido devidamente valorados meios de prova produzidos em audiência de julgamento.

Nesta decorrência, alega o recorrente na conclusão 1:

“1.Da produção de prova realizada nos presentes autos, nomeadamente dos depoimentos do arguido AA (5), do assistente BB (6) e das duas testemunhas CC(7), DD (8) e, bem assim, da dos autos de notícia de fls. 68 a 71, 103 a 106 e 139 a 142 e das fotografias de fls. 247 a 252 e das fotografias das «plantas» de localização de fls. 252v., 253 e 256v o Venerando Tribunal da Relação de Évora deve chegar a um julgamento quanto à matéria de facto diferente do que chegou o Tribunal a quo no que importa os seguintes quatro pontos concretos da factualidades e considerar os mesmos como provados, o que se requer:

a) Na sequência do descrito no facto provado nº 6, e após o assistente BB ter ido na direcção do arguido AA para lhe tirar satisfações, este muniu-se de uma “gadanha” e com a mesma dirigiu-se na direcção daquele, e em tom grave e sério, proferiu as seguintes expressões: «Corto-te aos pedaços, sai daqui senão corto-te aos pedaços»;

b) Na sequência do descrito na alínea anterior o assistente BB ficou receoso pela sua integridade física;

c) O arguido AA quis, pela forma descrita na al. a), coarctar a liberdade do assistente BB, bem sabendo que a sua conduta era idónea para atingir tal objectivo, o que representou e quis levar a cabo;

d) O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei.”

Vejamos, então.

Nos termos do disposto no artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito».

Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um Tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade.

O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo Tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas poderá ter como objeto uma reapreciação autónoma do Tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do Recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova ( cfr. Ac. do STJ de 20.01.2010, in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos).

O recurso da matéria de facto perante a Relação não é, assim, um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.

A Relação não pode proceder à reapreciação das provas na exata medida em que o fez o juiz de julgamento porque não se encontra na mesma posição perante as provas – não dispõe de uma imediação total e não tem a possibilidade de interagir com a prova pessoal, estando impedida de intervir na orientação da produção da prova e de questionar diretamente. Também o objeto do recurso não coincide com o objeto da decisão do tribunal de julgamento (este decide sobre a acusação, aquele decide sobre a sentença).

Há, por tudo, que reconhecer a existência de uma impressão causada no julgador, pelo prestador da prova oral, que só a imediação, em primeira instância, possibilita ao nível mais elevado. E tem de aceitar-se que, no modelo de recurso plasmado no Código de Processo Penal e numa interpretação conforme à Constituição, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto.

Regressando à concreta matéria objeto de apreciação, dir-se-á, desde já, que do confronto das razões do recurso com a sentença, resulta que a sentença, num exame crítico de prova bastante cuidado, dá resposta às objeções suscitadas no recurso.

Com efeito, em julgamento foram efetivamente apresentadas duas versões dos factos integrantes do crime imputado – a do arguido e a do ofendido.

Estas versões foram antagónicas ou opostas quanto aos factos essenciais (ou seja, quanto aos pontos impugnados em recurso), coincidindo já quanto a factos circunstanciais. E de tudo se dá conta detalhadamente, no exame crítico das provas, para o qual se remete.

A problematização da oposição de versões ali tratada ocorre frequentemente em casos de criminalidade como a presente. E da constatação desta circunstância não derivam, nem regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada do depoimento do ofendido (ou das “suas” testemunhas) por contraposição a uma negação dos factos pelo arguido, nem uma impossibilidade de realização da prova da acusação.

Inexistem regras processuais penais especiais que confiram, só por isso e por si só, um “estatuto” especial às declarações do assistente, como regras que imponham que estas declarações tenham de ser corroboradas sob pena de nada valerem, sendo certo que no confronto de prova oral de sinal contrário – como sucede com as declarações do arguido versus as declarações do assistente –, o tribunal não fica desobrigado de justificar a maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido, em detrimento daquelas. Sob pena de, não o logrando, dever fazer operar o princípio do in dubio pro reo, como ocorreu no caso sub judice.

Com efeito, o tribunal a quo convocou o princípio in dubio pro reo para dar como não provados os factos que permitiriam integrar a conduta do arguido no crime de ameaça imputado.

Tal princípio, sendo corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2, CRP), constitui princípio probatório, dirigido à apreciação dos factos objeto de um processo penal e impõe que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos imputados ao arguido, o tribunal deve decidir a favor deste.

Portanto, a aplicação do princípio in dubio pro reo tem lugar somente quando se verifique a existência de dúvida razoável e insanável quanto à verificação de certa factualidade.

O princípio de inocência in dubio pro reo, deve estar sempre presente na mente do julgador, mas por outro lado deve conjugar-se com a observância do princípio da livre apreciação da prova, cabendo ao julgador fazer uma apreciação crítica da conjugação dos vários elementos probatórios, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros.

Por Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional no Processo nº102/96, decidiu-se:

“ (…)

III - A fundamentação

1. No Código de Processo Penal, Livro III, 'Das provas', Título I, 'Disposições gerais', o artigo 127º consagra a regra da livre apreciação da prova, ao determinar que 'salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente'.

Este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstratos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade [que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta.

A valoração da prova segundo a livre convicção do juiz não significa uma valoração contra a prova ou uma valoração que já se desprendeu dos quadros da legalidade processual [a legalidade dos meios de prova, as regras gerais de produção da prova]. Esta livre convicção é 'objetivável e motivável' (Figueiredo Dias): existe conjugada com o dever de fundamentar os atos decisórios e de promover a sua aceitabilidade, com a imediação e a publicidade da audiência.

Radicando na lógica da investigação que estrutura o processo penal, que é uma investigação virada à descoberta da verdade objetiva do caso, a prova livre centra-se 'no mérito objetivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo (pelas alegações, respostas, meios de prova utilizados, etc.)' (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-68, pp. 47-48).

2. Sem dúvida, como sublinha Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação da prova adquiriu um lugar no sistema de processo 'pela deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstratas para as circunstâncias concretas do caso'. A liberdade do juiz é um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão. É uma certeza sobre os factos da existência e tudo o que neles 'de material e espiritual participa' (Castanheira Neves).

Esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso 'mediante fundamentos que a 'razão prática' reconhece como tais' (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso está 'apta para o consenso'. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça.

A liberdade do juiz de que aqui se fala é, como diz Castanheira Neves, uma 'liberdade para a objetividade (...) não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros' (ob. cit., pág. 50).

A norma do artigo 127º do Código de Processo Penal não é, pois, contrária ao artigo 32º da da Constituição da República. Também assim decidiu o acórdão nº 1165/96, do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 6-2-1997, com apoio num longo excurso sobre a doutrina. É a jurisprudência desse acórdão que aqui se reitera. “

“ A doutrina tem agasalhado e compactado o critério operante de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência (cf. n.º 2 do art. 32.º da CRP) e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável. (…)

Os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados pelo Tribunal de julgamento em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido/acusado, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido/acusado e o crime, quer os “contra indícios”, isto é, os indícios de cariz negativo que a partir de máximas de experiência, exaurem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível descoincidente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao arguido/acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo” (cfr. Ac.TRL. de 04.07.2012, acessível in www.dgsj.pt).”

Como é sabido, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal), regendo, pois, o princípio da livre apreciação da prova, o qual significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Só quando for impossível chegar a um juízo de certeza, perante uma dúvida irremovível, é que o tribunal na dúvida deve decidir a favor do arguido, em obediência à presunção de inocência de que beneficia.

Assim, no caso sub judice podemos reformular a pergunta a que importa responder deste modo: estamos perante um non liquet que se impõe valorar em sentido favorável ao arguido – como aconteceu na decisão sob recurso – ou se com a prova produzida foi destruída a presunção da inocência, de modo que os factos não provados devem ser considerados como provados – como defende o recorrente?

Ora, as declarações de arguido e as declarações do assistente são, pois, valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova que significa ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3), não podendo tratar-se de uma convicção puramente subjetiva ou emocional, curando-se sempre de uma convicção pessoal, mas necessariamente objetivável e motivável.

Do princípio do in dubio pro reo decorrerá, por último, que ao arguido basta fragilizar a um certo nível a prova da acusação, já que, no enfoque probatório, acusação e defesa não se encontram em situação de igualdade. Inexiste repartição de ónus de prova em processo penal.

No caso sub judice não é visível que o julgador se tenha afastado do cumprimento de qualquer regra e princípio de prova enunciados, particularmente dos relativos à apreciação, e que tenha sido atribuído aqui um peso incompreensivelmente diminuído à negação do arguido.

Da sentença resulta que o tribunal se deparou, efetivamente, com provas de sinal contrário e abstratamente de igual peso probatório, tendo o sentido das declarações do arguido e das declarações do assistente sido corretamente apreendido pelo Tribunal.

Como já supra dito, o recorrente, como questão central do presente recurso, não põe em causa a prova admitida e valorada pelo tribunal ou a sua fiabilidade, nem invocando, a seu favor, qualquer outro meio de prova que contrarie aqueles que foram considerados na decisão recorrida.

Fundamenta a sua pretensão apenas no facto de a prova produzida não ser suficiente para alicerçar a decisão proferida.

Tal impugnação é feita, antes de mais, através do isolamento de cada um dos indícios.

Depois de isolados e separados, o recorrente formula um juízo de debilidade quanto a alguns, apontando um ou outro contra-argumento às ilações extraídas pelo tribunal.

Esse procedimento não é, a nosso ver, justificado porquanto a força probatória dos meios de provas resulta precisamente da sua independência, concordância e pluralidade.

Por isso, mesmo a debilidade da força probatória de alguns dos elementos de prova não tem a consequência pretendida pelo recorrente. Cada um desses elementos não pode ser separado do conjunto em que se insere e ser valorado autonomamente.

Como resulta da motivação da decisão de facto não há dúvida que o Tribunal atendeu quer às declarações do arguido, quer às declarações do assistente e aos depoimentos das diversas testemunhas, quer a prova documental inserta nos autos, explicitando de uma forma coerente, convincente e lógica, o entendimento e a convicção com que ficou sobre as mesmas.

A divergência do recorrente assenta precisamente nesta circunstância, já que no seu entender a convicção formada sobre a prova, não pode ser suficiente para que o Tribunal conclua pela prova dos factos assentes como provados e não provados na sentença e conclua pela absolvição do arguido.

Como é sabido e já supra dito, em processo penal vigora o princípio da livre apreciação da prova inserto no art. 127º, do CPP, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, que não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, mas tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Não há dúvida que a livre apreciação da prova não consiste na afirmação do livre arbítrio, já que também está vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.

A liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e que se imponha aos outros. Isto significa, por um lado que, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda que no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva.

E, atentando na apreciação da prova no caso sub judice, o que se constata é que o tribunal fundamentou esclarecidamente a valoração que fez da prova produzida em audiência, como claramente resulta da pormenorizada e crítica motivação da decisão de facto.

Ora, quando a atribuição ou não da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Não se trata, na instância de recurso, de encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só de verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos.

“A convicção do tribunal é construída dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos» (cfr. Ac. STJ de 20SET05, in www.dgsi.pt)

Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, conclui-se que o Tribunal “a quo”, tal como resulta da motivação da decisão de facto, não atendeu a prova proibida por lei (art. 125º, do CPP), mas, pelo contrário, todas as provas apresentadas foram objeto de apreciação segundo as regras da experiência comum e da sua convicção (art. 127º, do CPP), não resultando qualquer apreciação arbitrária, procedendo à análise crítica da prova (art. 374º, nº2, do CPP). Aí se referem quais de entre as várias provas produzidas aquelas que serviram para a formação da convicção do tribunal, com uma fundamentação convincente, em que é feita a análise crítica das provas atendidas.

Assim, reexaminada a prova em que o Tribunal “a quo” se baseou para dar como assente a matéria de facto, não há qualquer razão para este Tribunal de recurso alterar a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida, nem se mostra violado o princípio da livre apreciação da prova, inserto no art. 127º, do CPP.

Com efeito, a prova produzida consente as ilações retiradas pelo tribunal e as regras da experiência não a contradizem.

Assim, dada a dependência, concordância e pluralidade dos meios de prova e a sua força probatória, que assenta em máximas de experiência fundadas e que não foi contrariada pela argumentação do recorrente, não pode deixar de improceder o recurso neste particular.


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- Do alegado preenchimento do tipo de crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) ambos do CP.

Dispõe o artº 153º nº 1 do CP: «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».

Após a revisão de 1995 do CP, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera ação e de perigo. Deste modo, já não é exigido que a ameaça cause efetiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, pois, como resulta do estatuído no art 153º, passou a bastar que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Assim, enquanto no artº 155º nº 1 do CP/1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação.

Como refere o Prof. Taipa de Carvalho “O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou de intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado). (...) Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem se exige a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)”.

Assim, para que ocorra o crime de ameaças não se exige que o agente cause ao ofendido receio, medo ou inquietação, exigindo-se apenas que a ameaça seja adequada a provocar medo, mesmo que no caso concreto o não venha a provocar (do mesmo modo que, se os provocar, mas a ameaça não se mostrar idónea para esse efeito, o crime não se mostra cometido). O crime de ameaça passou de crime de resultado a crime de perigo e deixou de ser exigível que a ameaça produza efeito no espírito do ameaçado.

E quando se diz que o mal ameaçado tem de ser futuro, ou que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, tal significa simplesmente que não podem estar praticados quaisquer atos de execução do crime prometido, pois que, neste caso, estar-se-ia já diante de uma tentativa de execução do crime em causa, não suportando seguramente o conceito interpretações como a pretendida pelo recorrente.

“ (…) O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.

É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico. Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.

(…)

Tudo depende da intenção do agente.

É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).

O que se exige é tão somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja suscetível de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa suscetibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.

Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante.

O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse suscetível de afetar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação…” (cfr. Ac. Rel. Guimarães de 18-5-2009, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, revertendo ao caso concreto, considerando a explanação dogmática a que ora se procedeu e recordando a factualidade apurada, constata-se a inexistência de factos provados que consubstanciem o preenchimento dos elemento objetivo e subjetivo do tipo de crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) ambos do CP.

Termos em que, também neste particular improcede a pretensão do recorrente.


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Decisão

Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.

- Condenar o recorrente em custas, fixando em 3 Ucs a taxa de justiça.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 28 de março de 2023


Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

J.F. Moreira das Neves


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5. Conforme a acta da audiência de discussão e julgamento realizada em 25 de Maio de 2022 o depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 31 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 55 minutos;

6. Conforme a acta da audiência de discussão e julgamento realizada em 25 de Maio de 2022 o depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 56 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 24 minutos;

7. Conforme a acta da audiência de discussão e julgamento realizada em 25 de Maio de 2022 o depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11 horas e 25 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 35 minutos;

8. Conforme a acta da audiência de discussão e julgamento realizada em 25 de Maio de 2022 o depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11 horas e 35 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 51 minutos