Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
185/17.7JDLSB-B.E1
Relator: GILBERTO DA CUNHA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE SANÁVEL
Data do Acordão: 10/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A nulidade por falta de fundamentação do despacho que aplica medida de coacção é uma nulidade sanável, dependendo de arguição nos termos gerais.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo de inquérito nº 185/17.7JDLSB da Comarca de Portalegre – Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor – J2, o arguido (...), devidamente identificados nos autos, pelo despacho proferido no final do 1º Interrogatório judicial de detido a que foi submetido em 18-12-2019 e precedendo requerimento do Ministério Público no sentido de que o arguido ficasse a aguardar os ulteriores termos processuais em prisão preventiva e sujeito a termo de identidade e residência já prestado, a que o arguido se manifestou contra, por despacho do Senhor Juíz de Instrução foi determinado que ficasse a aguardar os ulteriores termos do processo em liberdade, ficando sujeito, para além do termo de identidade e residência já prestado, às seguintes medidas de coacção:
- «1. Prestação de Caução no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) através de depósito na Caixa Geral de Depósitos, à ordem deste Tribunal, no prazo de 5 (cinco) dias (artigo 197.º do CPP);
2. Obrigação de apresentação periódica diária no posto policial da sua área de residência (artigo 198.º do CPP);
3. Suspensão do exercício da sua actividade profissional de Instrutor de Condução automóvel e de qualquer outra actividade profissional com esta directamente relacionada (artigos 199.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do CPP) - a este propósito ordena-se desde já a comunicação à autoridade administrativa competente do conteúdo desta medida de coacção;
4. Proibição de o arguido se ausentar para o estrangeiro (artigo 200.º n.º 1 al. b), primeira parte, do CPP);
4.1. Caso o passaporte do arguido não esteja já apreendido à ordem do processo, determina-se a imediata entrega à guarda do tribunal do passaporte que possuir e a comunicação às autoridades competentes com vista à não renovação desse passaporte e ao controlo das fronteiras (artigo 200.º n.º 3 do CPP);
5. Proibição de o arguido contactar, por qualquer meio, com os demais co-arguidos no processo (artigo 200.º n.º 1 al. d) do CPP);
6. Proibição de o arguido adquirir armas de fogo (artigo 200.º n.º 1 al. e) do CPP).»

Recursos.

Inconformados com essa decisão, dela interpuseram recurso o Ministério Público e o arguido, pugnando aquele pela aplicação da prisão preventiva e este pela revogação da obrigação de apresentação periódica (diária) e da suspensão do exercício da sua actividade profissional de Instrutor de Condução automóvel e de qualquer outra actividade profissional com esta directamente relacionada, impostas no despacho recorrido.
I. O Ministério Público rematou a sua motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
«1. Decorrido que foi o primeiro interrogatório judicial do arguido (…), o Mm. Juiz por entender como fortemente indiciados todos os factos constantes do requerimento para a sua apresentação, que são suscetíveis de integrar a prática, em concurso real, 9 crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, com referência ao art. 255.º, al. c), todos do Código Penal, e pelo artigo 363.º, n.º 2, do Código Civil, e 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, als. p), i) e q), e art. 3.º, n.° 4, al. a), todos do RJAM, aplicou-lhe as seguintes medidas: prestação de caução no montante de € 10 000; obrigação de apresentação periódica diária; suspensão do exercício da atividade profissional; proibição de se ausentar para o estrangeiro, com apreensão de Passaporte; proibição de contatar, por qualquer meio, com os demais coarguidos; e proibição de adquirir armas de fogo.
2. Atentos os evidentes perigos de fuga, perturbação do inquérito, continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade pública, o Ministério Público promoveu a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva.
3. Os factos em causa encontram-se sustentados em todos os elementos de prova já recolhidos nos autos, os quais não foram infirmados pelo arguido.
4. O facto de o arguido não ter antecedentes criminais não afasta nenhum dos aludidos perigos, atenta a falta de consciência do desvalor das suas ações.
5. Nenhuma das medidas de coação aplicadas ao arguido satisfaz de forma adequada, suficiente e proporcional as necessidades cautelares que os autos demandam.
6. Atenta a quantidade e a qualidade dos meios de prova já carreados para os autos, pode-se concluir, com inteira segurança, pela probabilidade elevada de ao arguido (…), por força deles, vir a ser aplicada uma pena de prisão efetiva.
7. Existe um claro perigo de perturbação do decurso do inquérito, na vertente da aquisição e conservação da prova, porquanto ainda faltam concretizar várias diligências, designadamente as decorrentes das buscas, com inquirição de testemunhas, pelo que é crível que o arguido, ora em liberdade, as tente influenciar e demover, como se verifica pelo facto de ter sido apreendida na residência do arguido a constituição de arguido e o TIR de um dos arguidos, (…).
8. É elevado o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, uma vez que os factos fortemente indiciados revelam que a conduta do arguido é merecedora de acentuada e especial censurabilidade pelo cidadão comum, uma vez que muitos indivíduos, desejosos de obter Carta de Condução, mas não tendo escolaridade ou capacidade inteletual, em vez de optarem por vias ilegais, se resignam a não conduzir, provocando um forte sentimento de injustiça para com aqueles outros, como os nove indivíduos já identificados que, também não tendo essas capacidades, optarem pela via ilegal que o arguido lhes disponibilizou.
9. Tal perigo resulta, ainda, do facto de os indivíduos que obtiveram Carta de Condução nos moldes proporcionados pelo arguido, ignorarem as regras estradais, uma vez que o processo de troca de Carta de Condução apenas exige exame práticos, dispensando o imprescindível conhecimento das regras estradais, fundamental para uma condução segura e para a segurança dos demais utentes das vias públicas.
10. E elevado o perigo de continuação da atividade criminosa, uma vez que, pelo menos desde 2009 que o arguido se dedica à falsificação de Cartas de Condução, obtendo avultados lucros, sendo com esse propósito que a ela se entrega, pois, apesar de ter atividade profissional remunerada, a verdade é que apenas os proventos ilícitos lhe permitem custear o nível de vida que ostenta.
11. Este perigo é potenciado pela personalidade do arguido, uma vez que apesar de bem saber que corria a presente investigação (pois alguns dos indivíduos a quem foi apreendida a Carta de Condução exigiram o dinheiro de volta, e na sua casa foi apreendido um documento de constituição de arguido e TIR de um dos arguidos nestes autos (…), não deixou de continuar a falsificar Cartas, continuando presentemente a fazê-lo.
12. Ademais, na residência do arguido foram apreendidos documentos/ elementos de mais quatro candidatos que o abordaram, e que lhe entregaram os documentos necessários para ele lhes arranjar Carta de Condução nos moldes já conhecidos, o que indicia que continua a intermediar a falsificação de Cartas de Condução.
13. Nenhum das medidas de coação aplicadas é adequada a suster o perigo de continuação da atividade criminosa.
14. Tentar-se que o arguido altere o seu comportamento, e deixe de contribuir para que condutores nacionais obtenham Carta de Condução com recurso a mecanismos ilegais, com a aplicação de outras medidas de coação, é uma decisão, no mínimo, temerária!
15. As medidas de coação aplicadas pelo Mmo. Juiz de Instrução ao arguido não são suficientes, adequadas e proporcionais às necessidades cautelares que, no caso concreto, importa prevenir, e violam o disposto nos artigos 202.º, n.º 1, al. a) e 204. °, alíneas a), b) e c), Código de Processo Penal. 16. Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser o despacho recorrido objeto de revogação, e substituído por outro que, nos termos do disposto nos artigos 191.º, 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. d) e e), e art. 204.º, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, aplique ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, por ser adequada, necessária e proporcional às necessidades cautelares que o caso requer e que urge prevenir, uma vez que todas as restantes medidas se mostram já insuficientes para salvaguardar os perigos que se fazem sentir».
Não houve resposta.
II. O arguido concluiu a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1ª A medida de coação aplicada ao Arguido / recorrente de apresentação diária às Autoridades Policiais da sua área de residência, é manifestamente desproporcionada ao caso, e não respeita os princípios previstos no Artº 193 do CPP
2ª A medida de coação aplicada ao arguido de Proibição do exercício da Profissão de Instrutor de Condução é manifestamente desproporcionada, e violadora do nº 2 do Artº 66 do CPenal.
Assim e por se entender terem sido violadas as normas previstas nos artigos 193º, 66 nº 2 e 256º do Código Penal, se pugna pela procedência do presente Recurso, revogando-se as medidas de coação aplicadas ao Arguido, de apresentação diária às Autoridades Policiais e de suspensão das suas funções como Instrutor de Condução por conta de outrem.
Em tal sentido, substituindo-se o decidido se acredita na Reposição da Justiça do Caso».
Contra motivou o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo do seguinte modo:
«1. Desde logo cumpre referir que também o Ministério Público apresentou recurso do douto despacho em causa, proferido em sede de 1º interrogatório judicial de arguido, que aplicou, ao arguido, as supra referidas medidas de coacção, com o entendimento que ao mesmo deve ser aplicado a medida de coacção de prisão preventiva, pelo que, a resposta a ser dada agora está condicionada pela douta apreciação daquele recurso.
2. Ainda assim, na eventualidade do recurso interposto pelo Ministério Público não merecer provimento, cumpre também referir que as medidas de coacção que o arguido agora se insurge não são desproporcionadas, muito pelo contrário, é o mínimo que se impõe face aos factos que lhe são fortemente indiciados e às exigências cautelares que o caso requer.
3. O arguido encontra-se fortemente indiciado pela prática de:
- Nove crimes de falsificação de documentos, previsto pelo art.º 256.º, n.º 1, al.ª a) e n.º 3, com referência ao art.º 255.º, al.ª c), ambos do Código Penal, e pelo art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil, e punido com a pena de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias; e,
- Um crime de detenção de arma proibida, previsto pelo art.º 86.º, n.º 1, al.ª c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos art.ºs 2.º, n.º 1, al.ªs p)-i) e q), e 3.º, n.º 4, al.ª a) do mesmo diploma, e punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
4. Como referido no douto despacho sob recurso, o arguido tem uma actividade profissional directamente relacionada com a alegada e indiciada prática dos crimes de falsificação de documento, sendo assim evidente a existência, em concreto, do perigo de continuação da actividade criminosa, nos termos do disposto no art.º 204.º, al.ª c) do Cód. de Proc. Penal.
5. Pelo que, uma das formas previstas na lei para afastar a existência desse perigo é, no mínimo, a aplicação da medida de coacção aplicada ao arguido de proibição do exercício da Profissão de Instrutor de Condução, bem como a obrigação de apresentações periódicas.
6. Sendo certo ainda que, em nossa opinião, a única medida de coacção adequada e proporcional a acautelar todos os perigos verificado no caso concreto, como resulta do referido recurso interposto pelo Ministério Público nestes autos, será a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva, uma vez que todas as demais são inadequadas e insuficientes para a realização das exigências cautelares que o caso requer.
7. Assim sendo, ainda que o Ministério Público considere que as medidas de coacção aplicadas ao arguido nestes autos não são as indispensáveis e adequadas às exigências cautelares verificadas, razão pela qual se pugna pela aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, certamente que as mesmas não serão desproporcionais ou excessivas.
Nestes termos, devem Vossas Excelências rejeitar totalmente o recurso apresentado pelo arguido (...) e, em consequência, caso não seja dado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público para aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva, manter na integra o douto despacho recorrido, fazendo, assim, como sempre, a costumada Justiça».
Nesta Instância o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e proficiente parecer no sentido de nos termos prescritos no art.194º, nº6, al. d) do CPP ser declarada a nulidade do despacho recorrido por falta de referência aos factos concretos que preencham os pressupostos de aplicação das medidas de coacção, incluindo os previstos nos artigos 193º e 204º, deficiência que considera ser de conhecimento oficioso, devendo em consequência ser proferido na 1.ª instância novo despacho que sane aquela patologia.
Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP respondeu o arguido alegando que a mencionada deficiência de fundamentação do despacho que aplicou as medidas de coacção, não deve ser corrigida com a concessão da oportunidade ao tribunal de 1.ª instância de “fundamentar melhor”, suprindo aquela deficiência, mas antes implica a revogação das medidas por si postas em causa no seu recurso.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Objecto dos recursos. Questões a examinar.

Como é sabido, constitui jurisprudência unânime que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que os recorrentes extraem da correspondente fundamentação (art.412º, nº1, do CPP), pelo que sintetizando as conclusões formuladas pelos recorrentes as questões a examinar que aqui reclamam solução, consistem em saber:
Do recurso interposto pelo Ministério Público se as medidas de coacção aplicadas ao arguido no despacho recorridas são insuficientes e inadequadas para acautelar os perigos de perturbação do decurso do inquérito, de continuação da actividade criminosa indiciada e de perturbação da ordem e tranquilidades públicas, apresentando-se a prisão preventiva como a única medida capaz de acautelar tais perigos.

Do recurso interposto pelo arguido se são desproporcionadas a obrigação de apresentação diária às autoridades policiais e a suspensão do exercício da actividade profissional do arguido de instrutor de condução e se esta foi decretada fora do condicionalismo legal previsto para a sua aplicação no art.199º do CPP por só poder ser aplicada a arguidos que desempenhem cargos de natureza pública, o que não é o caso daquela sua profissão que é de natureza privada, no dizer do recorrente.
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Antes, porém, de debruçarmo-nos sobres as questões atrás enunciadas que constituem o objecto dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido, importa conhecer da questão suscitada nesta instância no parecer emitido pelo Senhor Procurador Geral Adjunto sobre a patologia que diz enfermar o despacho recorrido, que deve ser prioritariamente conhecida com precedência sobre as questões que emergem das conclusões dos recursos, já atrás enunciadas, uma vez que a proceder pode obstar ao conhecimento destas.
Questão prévia.
Nesta instância o Senhor Procurador Geral Adjunto no seu parecer invocando que o despacho recorrido omitiu em absoluto os requisitos do art.204º, do CPP, que considerou verificados para aplicar como aplicou, as medidas de coacção a que, não obstante, sujeitou o arguido, conclui que, por isso, enferma de nulidade, defendendo ser de conhecimento oficioso e, concluindo como consequência, que seja declarada por este tribunal apesar dos recorrentes não a terem suscitado, nomeadamente no âmbito dos recursos, e ser proferido na 1.ª instância novo despacho que sane aquela patologia.
Vejamos.
Nos termos prescritos no art.194º, nº 6 do CPP a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contem, sob pena de nulidade:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos arts.193º e 204º.
Ora, visto o despacho recorrido, apesar dele constar a descrição dos factos concretos que são imputados ao arguido, a enunciação dos elementos de prova que indiciam esses factos e a sua qualificação jurídica, é por demais evidente, que na sua fundamentação foi completamente omitida a especificação desta última alínea, pois dela não consta qualquer referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação das medidas aplicadas, com excepção do termo de identidade e residência, previstas nos arts.193º e 204º.
Sem sombra de qualquer dúvida que a falta dessa especificação é cominada no corpo da citada norma com a nulidade do despacho.
Mas tal deficiência constituirá uma nulidade insanável e de conhecimento oficioso como defende o Senhor Procurador Geral Adjunto ou tratar-se-á de uma nulidade relativa dependente de arguição?
Aquele alicerça o seu entendimento essencialmente fazendo a equiparação da nulidade do art.194º do CPP à nulidade de sentença que a jurisprudência largamente maioritária defende efectivamente ser de conhecimento oficioso e na circunstância da mencionada omissão verificada no despacho recorrido corresponder a uma situação grave que posterga de forma intolerável o direito de defesa do arguido de conhecer os pressupostos em que assenta a aplicação de qualquer medida de coacção, com excepção do TIR.
Os argumentos aduzidos, que de jure constituendo, deveriam merecer a devida ponderação no processo legislativo, salvo o devido respeito que muito e devido é, pela a posição defendida pelo Senhor Procurador Geral Adjunto, julgamos que o legislador optou por seguir um caminho diferente do proposto no parecer emitido por aquele no processo.
Na verdade, enquanto relativamente à nulidade de sentença, nomeadamente por falta de fundamentação em violação do disposto no art.374º, nº2 do CPP, o legislador deixou expresso no nº2 do art.379º do CPP que as nulidades de sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, tal não sucede no caso de falta de fundamentação do despacho que aplica as medidas de coacção, limitando-se a afirmar, sem mais, que tal deficiência é fulminada com nulidade.
O entendimento largamente maioritário senão unânime da jurisprudência sobre o conhecimento oficioso das nulidades de sentença, decorre do nº2 do art.379º, do CPP, que expressamente dispõe que essas nulidades devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (…). Neste sentido, entre outros, podem ver-se os acórdãos do STJ de 14/5/2003 – proc. 03P518 e de 18/10/2006, rel. Santos Cabral, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
A expressão “conhecidas” usada pelo legislador, diz a jurisprudência, só pode ser entendida como significando serem de conhecimento oficioso as nulidades de sentença.
Ora, é manifesto que o legislador não seguiu idêntico procedimento no caso de falta de fundamentação do despacho que aplica as medidas de coacção, com excepção do TIR, limitando-se unicamente, como dissemos, a proclamar que essa deficiência é cominada com nulidade, pelo que entendemos que de jure constituo não pode ser equiparada essa situação à da falta de fundamentação da sentença.
Por outro lado, apesar de concordarmos que aos vícios de maior gravidade – correspondentes à violação dos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais – deve corresponder uma maior severidade no tratamento jurídico dessas situações, tal ponderação deve ser feita pelo legislador no processo legislativo, sendo que o intérprete não pode substituir-se aquele.
Ora, independentemente da ponderação que o legislador tiver feito, o certo é que para a falta/insuficiência de fundamentação do despacho que aplica as medidas de coacção, não adoptou o mesmo ou idêntico mecanismo de reacção que consagrou para as nulidades de sentença.
Na verdade, o legislador para a nulidade do despacho que aplica as medidas de coacção, com excepção do TIR, por falta de fundamentação não adoptou um tratamento processual excepcional, como fez para as nulidades da sentença, remetendo para o regime geral.
Assim, enquanto consagrou que as nulidades de sentença são insanáveis e de conhecimento oficioso, para a nulidade do despacho de aplica as medidas de coacção parece, salvo o devido respeito por opinião diferente, enveredou por outro tipo de reacção, cominando a falta de fundamentação com nulidade sanável, dependente de arguição, nos termos do regime geral.
Já anteriormente seguimos essa posição na decisão sumária que proferimos em 16-02-2016 no processo deste tribunal nº49/15.9PFSTB-A.E1. Entendimento que continuamos a perfilhar, já que não vislumbramos, qualquer argumento, com a virtualidade de nos fazer alterar a posição que então adoptámos.
Aliás, segundo julgamos saber, tem sido esse o entendimento que a jurisprudência vem seguindo, podendo ver-se nesse sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa, 17-06-2020, proc. nº42/15.1JBLSB-B3 (rel. José Alfredo Costa ) «Está vedado ao arguido, em sede de recurso para o Tribunal da Relação, arguir a nulidade do despacho que aplica a medida de coação, quando não a invocou na altura própria, ou seja, no ato de interrogatório de arguido detido, nos termos do artº. 120º, nº 3 a) do CPP» e da Relação do Porto, de 31-10-2018, proc. nº328/16.8GAVLG-A.P1 (rel.Des. José Carreto), «A eventual nulidade do despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva por insuficiência de fundamentação deve ser invocada no próprio acto sob pena de ficar sanada».
No caso de que aqui nos ocupamos, é patente, que o despacho recorrido, nos termos do disposto no art.194º, nº6, al.d) do CPP está ferido de nulidade.
Todavia, estamos perante uma nulidade dependente de arguição, que devia ter sido suscitada logo após a prolação do despacho recorrido e antes de terminado o acto [art.120º, nºs 1, 2 e 3, al.a) do CPP].
Ora, como se pode constatar do respectivo auto de interrogatório, a que o Ministério Público esteve presente, bem como o arguido, o despacho recorrido foi ditado para o auto, sendo de imediato notificado aos presentes, sem que tivesse havido alguma reacção destes a essa decisão, pelo que de seguida foi encerrado o acto.
Assim, é agora manifestamente intempestiva a arguição através do presente recurso dessa nulidade, que também não é de conhecimento oficioso, estando, por conseguinte, tal patologia sanada.
Prosseguindo.
Recurso interposto pelo Ministério Público.
Sustenta o Mº Pº que as medidas de coacção aplicadas ao arguido no despacho recorridas são insuficientes e inadequadas para acautelar os perigos de perturbação do decurso do inquérito, de continuação da actividade criminosa indiciada e de perturbação da ordem e tranquilidades públicas, apresentando-se a prisão preventiva como a única medida capaz de acautelar tais perigos, pelo que conclui pedindo que seja revogado aquele despacho e substituído por outro que aplique ao arguido a prisão preventiva.
Vejamos, antes do mais, sumariamente a conformação legal da prisão preventiva.
Como é sabido, as medidas de coacção, enquanto medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais, estão sujeitas na sua aplicação aos princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (arts.191º e 193º, do CPP).
Pelo princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou princípio da “justa medida” cuida-se saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. O mesmo é dizer, se no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são “desmedidas” (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.
Pelo princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca-se a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão.
Finalmente pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação da medida à prossecução do fim ou fins que lhe estão subjacentes. Resulta deste princípio que a medida de coacção a aplicar deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há-de ser escolhida em função da finalidade a que se destina.
A Constituição consagra, nos primeiros artigos do catálogo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, o direito à liberdade e à segurança – art.27º.
O direito à liberdade engloba, entre os mais reconhecidos sub-direitos, o de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos e termos prevenidos nos nºs 2 e 3, do mesmo preceito.
Ora, o reconhecimento, constitucionalmente afirmado, do carácter excepcional da prisão preventiva (art.28º, nº2 da CRP), envolve a consideração, além do mais, de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença que o condene (art.32º, nº2, da CRP), sendo certo que estes comandos têm de cumprir-se em concreto, vale dizer, têm de ser respeitados pelas autoridades públicas e, designadamente pelos Tribunais.
Posto isto, com a solenidade e a força dos preceitos da Lei Fundamental, a definição precisa, dos pressupostos da prisão preventiva, impunha-se ao Código de Processo Penal.
Daí que este, para além, de fazer lembrar a natureza excepcional e residual daquela medida de coacção (arts.193º, nºs 2 e 3 e 202º, nº1), impondo mesmo o reexame regular, ex officio, dos respectivos pressupostos (art.213º), inculque o entendimento de que só se pode recorrer à prisão preventiva quando as demais medidas de coacção se mostrem inadequadas ou insuficientes e houver, no caso, fortes indícios da prática, pelo arguido, de algum dos crimes e situações enunciados nas alíneas a), b), c) e d) do nº1, do art.202º, nº1, do CPP e se verifique, em concreto, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou se verifique, em concreto, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou perigo de continuação da actividade criminosa (art.204º, do CPP).
A lei permite que em certas condições se imponham medidas restritivas ou limitativas da liberdade individual, mas acentuando exigências de legalidade/tipicidade e dos modos de intervenção na esfera da liberdade de quem é arguido no processo. Aliás, o nº2 do art.18º da CRP consigna quanto aos direitos, liberdades e garantias, que só podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição., “devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
A Constituição fundamenta a soberania do Estado na dignidade da pessoa humana e impõe o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais (arts.1º e 2º), daí a conclusão doutrinária de que a protecção dos direitos e garantias fundamentais só é pensável e exequível “à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição” (cfr. Frederico Isasca, in “Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais”, 2004, pp.101), o que por sua vez conduz também à conclusão do “ carácter não absoluto dos próprios direitos e garantias fundamentais”.
As medidas de coacção admissíveis são as mencionadas nos arts.196º e segs. do CPP, num crescendo de gravidade. Termo de identidade e residência; caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções; proibição de permanência, de ausência e de contactos; obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva.
A taxatividade/tipicidade das medidas, obstando a aplicação de outras não expressamente previstas, conforma-se com o princípio da legalidade previsto no art.191º, do CPP, segundo o qual a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
Este princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coacção revela-se com particular acuidade em relação à mais gravosa de todas: a prisão preventiva, aliás sempre subsidiária das demais e concebida como “extrema ratio” e nunca como medida regra (art.193º, nº3 do CPP).
Com a revisão do CPP operada pela Lei nº48/2007 de 29 de Agosto, o legislador proclamou o carácter subsidiário da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, relativamente às outras medidas de coacção (art.193º nº2 do CPP), acentuando o carácter de “extrema ratio” e de excepcionalidade da prisão preventiva ao estipular no nº3 do art.193º que quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade – prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação – deve dar preferência a esta sempre que ela se revelar suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
Não obstante, em qualquer caso, fica confiado à prudência do Juiz a missão de decidir sobre a necessidade da prisão preventiva, indicando-lhe o Código de Processo Penal no art.202º do CPP os requisitos especiais que tem de se verificar, para além dos requisitos gerais previstos no art.204º, do referido Código que cumulativamente com aqueles têm de se verificar para se poder aplicar qualquer medida de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, indicando também para a aplicação da prisão preventiva a necessidade de formulação de um juízo de que todas as outras medidas se revelam inadequadas e insuficientes (art.193º, nº3, do CPP).
Como atrás se deixou exposto e não sofre discussão, a prisão preventiva assume, entre nós, carácter excepcional e subsidiário relativamente às demais medidas de coacção, só devendo ser aplicada se estas se revelarem insuficientes e forem inadequadas para acautelarem os perigos enunciados no art.204º do CPP ou se a prisão preventiva se mostrar proporcional relativamente à gravidade dos crimes e às sanções que previsivelmente lhe possam ser aplicadas e ser a única adequada a acautelar os perigos a que alude o art.204º do CPP.
No caso vertente, para além do TIR, no despacho sob censura foram aplicadas cumulativamente todas as medidas de coacção, com excepção apenas da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva.
Ora tais medidas, nomeadamente as decorrentes do TIR e a obrigação de apresentação diária no posto policial e as demais medidas adoptadas, inclusive, a proibição do arguido se ausentar para o estrangeiro, em nosso entendimento, acautelam suficientemente o perigo de fuga, apresentando-se também como suficientes e adequadas a dissuadir o arguido de continuar a desenvolver a actividade delituosa indiciada respeitante ao crime de falsificação de cartas de condução.
Por outro lado, a proibição do arguido contactar por qualquer meio com os demais coarguidos no processo, aliada à suspensão do exercício da sua actividade profissional de instrutor de condução automóvel e de qualquer outra actividade com esta directamente relacionada, salvo o devido respeito, afigura-se-nos ser também suficiente e adequada a acautelar os perigos de perturbação do inquérito, nomeadamente no que tange à aquisição, conservação ou veracidade da prova, sendo que a situação fáctica donde emerge os crime de falsificação imputados ao arguido, não assume uma danosidade social em particular, pelo que entendemos que a alegada perturbação da ordem e tranquilidade públicas fica suficientemente acautelada, com o conjunto das medidas de coacção aplicadas, com maior incidência, claro está, com a suspensão do exercício da actividade profissional do arguido, tanto mais, que o arguido, segundo consta do despacho recorrido não tem registado qualquer antecedente criminal e encontra-se familiar, social e profissionalmente inserido.
Acresce que a prisão preventiva se apresenta desproporcionada face à gravidade dos crimes indiciados.
Assim sendo, em observância dos princípios da adequação e da proporcionalidade na aplicação das medidas de coacção e da excepcionalidade e subsidariedade da aplicação da prisão preventiva, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que não pode deixar de concluir-se que esta, por ora, não deve ser aplicada, pois seria manifestamente desproporcionada face à gravidade dos crimes indiciados.
Ao invés, neste momento, o vasto leque de medidas (todas as previstas na lei com excepção da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva) a que se encontra sujeito o arguido, afigura-se-nos que acautelam os perigos elencados no art.204º do CPP, apresentando-se também como suficientes, e adequadas às exigências cautelares que o caso requer, sendo proporcionais à gravidade dos crimes imputados ao arguido.
Pelo exposto, o recurso interposto pelo Ministério Público deve, pois, improceder.
Do recurso interposto pelo arguido.
- Se são desproporcionadas a obrigação de apresentação diária às autoridades policiais e a suspensão do exercício da actividade profissional do arguido de instrutor de condução e se esta foi decretada fora do condicionalismo legal previsto no art.199º do CPP para a sua aplicação.
Uma vez sem exemplo comecemos pelo fim.
Alega o arguido/recorrente que não exercendo ele qualquer actividade de carácter púbico, não se enquadrando nesta a sua profissão de instrutor de condução automóvel que é uma profissão privada, ao contrário do que sucede com a de inspector de condução que tem carácter público, não podia ser-lhe aplicada tal medida.
Vejamos.
Para o que aqui releva, dispõe o art.199º, nº1, al.a) do CPP que «se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida legalmente cabida, a suspensão do exercício do exercício de profissão, função ou actividade, publicas ou privadas, sempre que a interdição do respectivo exercício possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado».
Assim, a aplicação da suspensão do exercício de profissão, função ou actividade publicas ou privadas depende, para além, das condições gerais dos arts.192º e 204º da verificação também de duas condições especiais:
i. o crime imputado ser punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos; e
ii. a interdição do exercício respectivo poder vir a ser decretada como efeito do crime imputado.
Ora, tanto para a aplicação das penas acessórias de proibição do exercício de função, como a suspensão do exercício de função, previstas nos arts.66º e 67º do C. Penal, para além, de outros requisitos enunciados nessas normas, é comum a ambas a exigência de que só podem ser aplicadas a profissões ou actividades cujo exercício depender de titulo público ou de autorização ou homologação da autoridade pública (nº2 do art.66º e nº3 do art.67º do C. Penal).
As profissões, funções e actividades de que os arguidos podem ser suspensos ao abrigo do disposto no artº 199º do CPP são apenas aquelas cujo exercício lhes pode vir a ser proibido nos termos do artº 66º do CP.
Ora, alega o recorrente que a profissão de instrutor de condução do arguido, não é cargo publico, e o seu exercício também não depende de titulo público ou de autorização ou homologação da autoridade pública, pelo que não pode vir a ser sancionado em consequência da prática dos crimes que lhe são imputados com as penas acessórias de proibição do exercício de função ou com a suspensão do exercício de função, previstas nos mencionados arts.66º e 67º do C. Penal, pelo que falta aquela segunda atrás mencionada condição especial exigida pelo art.199º do CPP, para que validamente pudesse ser decretada a medida de coacção nele prevista.
Porém, não lhe assiste razão.
Na verdade, as profissões, funções e actividades de que os arguidos podem ser suspensos ao abrigo do disposto no artigo 199.º do CPP são apenas aquelas cujo exercício lhes pode vir a ser proibido nos termos do artigo 66 ° do CP.
Ora, a actividade de instrutor de condução é uma profissão privada, mas o seu exercicio depende da habilitação com o respectivo titulo profissional como de seguida se demonstrará.
O art.4º, al.d) da Lei nº 14/2014, de 18 de Março, que aprova o regime jurídico do ensino de condução regulando também o acesso e o exercício da profissão de instrutor de condução, define instrutor de condução — o profissional qualificado e possuidor de título profissional para ministrar o ensino da condução.
Por sua vez, estabelece o art.34º da citada lei o seguinte:
1 — A profissão de instrutor de condução só pode ser exercida por pessoas possuidoras do respetivo título profissional, nos termos previstos na presente lei.
2 — O instrutor de condução só pode ministrar o ensino da condução nas categorias averbadas no seu título profissional.
Também sobre a possibilidade de lhe ser aplicada a interdição dessa actividade é esclarecedor o estatuído na al.b) do art.36º, da referida lei que com a epigrafe “impedimentos”, diz que não pode ministrar o ensino da condução o indivíduo que tenha sido alvo de medida de interdição do exercício da profissão de instrutor de condução, enquanto a medida durar.
Os crimes de falsificação de carta de condução que são atribuídos ao arguido estão intimamente conexionados com a sua profissão de instrutor de condução.
Como lapidarmente diz o Prof. Figueiredo Dias in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 174, a propósito desta medida o que é “essencial é, em todos os casos, que na profissão ou actividade se façam sentir exigências de especiais deveres e dignidade de exercício ligadas a uma confiança geral necessária ao exercício da função e que sejam directamente postas em causa pelo crime, e que, seja em nome daquelas exigências que se torna necessário a existência de título, autorização ou homologação públicas".
Tudo para concluir que, na expressão "título público, autorização ou homologação da autoridade pública" cabe em nosso entendimento, salvo melhor opinião, perfeitamente, considerado o interesse público, o exercício da profissão de instrutor de condução.
Ora, sendo que a actividade de instrutor de condução só pode ser exercida por quem esteja habilitado com o respectivo titulo profissional emitido pelo IMT,IP, pelo que se verifica a segunda mencionada condição especial exigida no art.199º, sendo também indubitável a verificação da outra referida condição prevista nessa norma, pois que os crime de falsificação que são imputados ao arguido são puníveis com pena de prisão de máximo superior a dois anos.
Neste conspecto falece razão ao recorrente.
Por último, passemos a examinar se esta medida de coacção, bem como da obrigação do arguido se apresentar diariamente às autoridades policias, são desproporcionadas como alega o recorrente.
Como anteriormente deixámos consignado as medidas de coacção, enquanto medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais, estão sujeitas na sua aplicação aos princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (arts.191º e 193º, do CPP).
Como também já anteriormente dissemos, pelo princípio da proporcionalidade, restrito ou princípio da “justa medida” cuida-se saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. O mesmo é dizer, se no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são “desmedidas” (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.
Perante a gravidade das situações delituosas indiciadas atribuídas ao arguido, ora recorrente, bem como os perigos que se pretendem acautelar, a restrição da sua liberdade decorrente da obrigação de apresentação diária perante as autoridades policiais e a limitação ao exercício da sua profissão derivada da sua suspensão imposta pela decretação da mencionada medida de coaccção, tais restrições, salvo o devido respeito por opinião diferente, não nos parecem ser desproporcionadas e desajustadas, pois estas medidas em articulação com as demais que foram decretadas, tiveram o condão de por essa via ter sido evitado maiores males para a vida em sociedade do arguido, com uma maior compressão da sua liberdade através da obrigação de permanência na sua habitação ou até da aplicação da prisão preventiva que fora pedida pelo Ministério Público.
Desse modo, conseguindo-se alcançar um certo equilíbrio entre o interesse da boa administração da justiça, minimizando os perigos que com essas medidas se pretendem acautelar por um lado, e o direito à liberdade individual sem tais restrições e ao livre desempenho da profissão do arguido, por outro.
Na verdade, a obrigação de apresentação diária perante as autoridades policiais, bem como a medida de coação de suspensão do exercício de profissão, embora venham restringir a liberdade do arguido e o direito de actividade da sua profissão, tais medidas não são as mais gravosa que poderiam ser aplicáveis ao arguido/recorrente, pois a medida de obrigação de permanência na habitação ou de prisão preventiva, esta pedida pelo Ministério Público, apresentam-se como as mais lesivas dos direitos das pessoas humanas.
Neste conspecto também falece razão ao arguido/recorrente, devendo, por isso, serem mantidas as medidas de coacção de apresentação periódica e de suspensão do exercício de profissão, decretadas no despacho recorrido.
Por todo o exposto e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido devem improceder, mantendo-se a decisão recorrida, que não afronta nem posterga nenhum dos princípios e preceitos legais invocados pelos recorrentes.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos negamos provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida.
Não são devidas custas pelo recurso interposto pelo MºPº por este delas estar isento (art.522º do CPP).
Relativamente ao recurso interposto pelo arguido são devidas custas da sua responsabilidade, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s [arts.513º, nºs 1 e 3 e 514º, nºs 1 do CPP e art. 8º nº9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais].
Évora, 20 de Outubro de 2020.
(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Gilberto da Cunha
Martinho Cardoso