Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2943/20.6T8FAR-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
SEGUNDA PERÍCIA
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O requerimento a pedir a segunda perícia tem apenas que estar fundamentado com a discordância do primeiro laudo. A lei não exige prova dos factos que consubstanciam essa discordância neste requerimento pois que essa prova há-de mesmo ser a segunda perícia.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2943/20.6T8FAR-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Notificada do teor do relatório pericial, a autora requereu a realização de segunda perícia na especialidade de psiquiatria, para aferir das sequelas do foro psiquiátrico e da necessidade permanente com empregada doméstica.
O seu requerimento, em síntese, tem o seguinte teor:
A causa de pedir nos presentes autos emana da ocorrência de um acidente de viação de que a A. foi vítima e que consistiu numa colisão automóvel frontal, tendo a A. de ser desencarcerada; sofreu várias fraturas, ficou internada por 58 dias e foi operada;
Ora a A., para além de apresentar acentuada limitação e impotência funcional ao nível do membro inferior esquerdo, que a compromete nas situações da vida diária, familiares, sociais e profissionais, evidencia perturbações psiquiátricas não só reativa a este quadro sequelar incapacitante como compatível com perturbações de stresse pós-traumático.
Tal sintomatologia é manifestada por revivências penosas do evento, flashbacks intrusivos, hiperativação fisiológica, entre outras alterações comportamentais quando exposta a circunstâncias semelhantes às do acidente, tais como conduzir veículos automóveis, porquanto passou a não conseguir conduzir os mesmos;
Este quadro, manifestamente provável em situações de gravidade e ocorrência semelhantes, é enquadrável no item Nb1001 ou Nb1002 ou Nb1003 da Tabela da Avaliação de Incapacidades de Direito Civil, com uma variação entre 4 e 25 pontos, consoante o nível de repercussão na autonomia pessoal, social e profissional;
Acresce que, tal quadro sequelar, especialmente ortopédico, acrescido da necessidade de auxílio de canadianas para a marcha, limita a Examinanda na realização das lides domésticas mais exigentes, nomeadamente no impedimento da limpeza da casa e no tratamento da roupa, entre outros de maiores exigências, motivo pelo qual também deverão ser atribuídas ajudas permanentes no que respeita à 3ª pessoa (empregada doméstica ou equivalente);
Tanto que, os próprios serviços médicos da R. reconheceram aquela necessidade.
Neste seguimento e uma vez que estamos perante um erro pericial – “omissão” na valorização das sequelas do foro psiquiátrico, entre outras ajudas – requer-se que a A. seja submetida a uma segunda perícia médico-legal, que avalie corretamente a Examinanda e contemple os parâmetros do dano atrás referidos, de forma a podermos obter uma avaliação pericial justa e adequada à situação em apreço, cumprindo assim o princípio basilar da avaliação do dano corporal em Direito Civil que passa pela reparação integral dos danos sofridos tentando restabelecer a vítima na sua vida anterior da forma o mais similar possível.
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Este requerimento foi indeferido com os seguintes fundamentos:
«Nos termos do artigo 487.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, qualquer das partes pode, ainda, requerer a realização de segunda perícia, alegando as razões de discordância em relação ao relatório pericial apresentado, podendo, ainda, o Tribunal ordenar oficiosamente tal diligência, quando a julgue necessária ao apuramento da verdade.
«Em todo o caso, dispõe o n.º 3 deste normativo, a segunda perícia terá como objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta.
«Analisado o relatório pericial, evidencia-se que o Sr. perito que observou a autora considerou a inexistência de sequelas permanentes a nível psiquiátrico, ainda que no quantum doloris tenha valorado o sofrimento físico e psíquico vivenciado durante o período de danos temporários.
«O que vale por dizer que, as perturbações psiquiátricas, ao contrário do defendido, foram objeto de apreciação, ainda que em sentido contrário ao pretendido pela autora, que visava o reconhecimento a título permanente. Esta é que é a discordância
«Contudo, a autora não junta qualquer elemento de prova que nos faça ponderar da inexatidão da avaliação efetuada, mormente da permanência dessas sequelas.
«O mesmo sucede em relação à necessidade permanente com empregada doméstica, tendo presente que foram consideradas outras dependências permanentes de ajudas, que não a que refere».
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Deste despacho recorre a A. concluindo desta forma a sua alegação:
O tribunal a quo violou o disposto no n.º 1 do artigo 487.º do CPC ao indeferir a realização de segunda perícia.
O requerimento da recorrente para a realização de segunda perícia cumpriu in totum o que dispõe o respetivo normativo, tendo sido devidamente fundamentado.
Ao longo de toda a PI foram invocadas lesões e sequelas do foro psicológico bem como a necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa (vide artigos 48º, 54º, 74º, 77º, 78º, 81º, 84º, 102º, 120º).
Foi junta prova documental com a PI, em que constam as sequelas psicológicas e a necessidade de ajudas permanentes com auxílio de terceira pessoa.
Foi junta prova documental, referida no relatório pericial, designadamente elementos clínicos do centro de saúde de Tavira com referência às queixas psicológicas e medicação com sedoxil.
No próprio relatório pericial do INML são conferidas sequelas de tal modo grave que lhe conferem uma incapacidade de 30 pontos acrescida de dano futuro por dor e rigidez da 1ª articulação metacarpo falângica esquerda, rigidez joelho esquerdo, área dismórfica da face anterior do joelho esquerdo com 23,9 cm com depressão central do joelho e claudicação da marcha com necessidade de apoio técnico.
Atentas as sequelas descritas no próprio relatório pericial, designadamente com necessidade de canadianas, não se vê como não se possa no mínimo considerar fundamentado o pedido de segunda perícia na medida em que decorre da naturalidade das coisas e da experiência comum que uma pessoa que deambule com auxílio na marcha necessite de ajuda de terceira pessoa para as lides domésticas. E veja-se que o quesito da R. no ponto VI alínea d) do requerimento probatório (Exige o auxílio de terceira pessoa? Em caso afirmativo, em que medida?) nem sequer foi objeto de resposta (aliás, nenhum quesito foi respondido limitando-se a elaborar conclusões).
Consubstancia uma inexatidão do relatório pericial concluir-se que a lesada necessita de apoios técnicos para deambular (canadiana) mas não precise de ajuda de terceira pessoa para alguns atos da vida diária, como as lides domésticas.
Mais decorre da naturalidade das coisas que uma pessoa que sofra um acidente da natureza da que tratam os autos fique perturbada psicologicamente.
Traduz-se numa inexatidão do relatório pericial a ausência de sequelas do foro psicológico atenta a gravidade do evento traumático, os dados documentais e as queixas objetivas, muitas vezes só devidamente aquilatadas por alguém da especialidade (Psiquiatria).
Estando o requerimento de segunda perícia devidamente fundamentado tanto em termos de coerência lógica como em sede do que foi alegado na PI e da prova junta aos autos, deve o mesmo ser deferido por cumprir o que dispõe o n.º 1 do artigo 487.º do CPC.
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O artigo 487.º, n.º 1, do Código de Processo Civil dispõe que qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
E alegou. Alegou que a perícia realizada não entrou em linha de consideração com todos os danos, designadamente, o que se prende com a necessidade do auxílio de terceira pessoa e com a totalidade dos danos de foro psiquiátrico.
Foi aqui que a discordância teve lugar e é isto o que fundamenta o pedido de segunda perícia.
Afirmar que «as perturbações psiquiátricas, ao contrário do defendido, foram objeto de apreciação, ainda que em sentido contrário ao pretendido pela autora» é precisamente reconhecer a discordância uma vez que o conteúdo do relatório não é aquele que a recorrente entende que deve ser.
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O requerimento em questão tem apenas que estar fundamentado com a discordância do primeiro laudo. A lei não exige prova dos factos que consubstanciam essa discordância neste requerimento pois que essa prova há-de mesmo ser a segunda perícia.
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Em conclusão, o requerimento está em condições de ser recebido.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso em função do que se revoga o despacho recorrido e defere-se o pedido de realização de segunda perícia.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 14 de Julho de 2021
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos