Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
573/14.0T2STC-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
SENTENÇA CONDENATÓRIA NÃO TRANSITADA
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se existe a possibilidade da sentença condenatória ainda não transitada em julgado configurar um título executivo, como reflexo dessa exequibilidade provisória também é admissível que esse mesmo documento seja apresentado como contracrédito parcial ou totalmente extintivo da obrigação exequenda inicial, possibilitando assim a compensação simultânea de créditos entre exequente e executado.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 573/14.0T2STC-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Instância Local – Juízo de Competência Genérica de Odemira – J1
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
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I – Relatório:
Na presente oposição à execução mediante embargos, apensa à acção executiva proposta por (…) contra (…), este não se conformou com o saneador-sentença proferido.
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(…) veio deduzir embargos de executado com fundamento na existência de contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos, ao abrigo do disposto na alínea h) do artigo 729º do Código de Processo Civil.
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O embargado apresentou contestação, pugnando pela improcedência dos embargos contra si deduzidos com fundamento na circunstância de se estar perante uma mera expectativa, uma vez que ainda não tinha sido proferida sentença (transitada em julgado) no processo registado sob o número 340/12.6T2ODM.
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Em face da inexistência de prova documental do contracrédito invocado, o Tribunal «a quo» julgou improcedente a oposição à execução mediante embargos e ordenou o prosseguimento da execução.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
I. Errou o Tribunal recorrido ao não julgar verificada a compensação, pelo menos, do crédito do Recorrente no valor de € 11.704,15 (onze mil setecentos e quatro euros e quinze cêntimos), reconhecido por sentença proferida no âmbito do processo nº 340/12.6T2ODM (cf. doc. 1 ora junto).
II. Errou o Tribunal a quo ao considerar que obstaria a tal compensação o facto de a mencionada sentença não ter, ainda, transitado em julgado, porquanto a sentença em causa já é (já era, à data da prolação da sentença recorrida) plenamente eficaz e executória, uma vez que os recursos dela intentados gozam de efeito meramente devolutivo (cf. doc. 2 ora junto).
III. Face ao reconhecimento judicial do contracrédito do Recorrente, no valor de € 11.704,15 (onze mil setecentos e quatro euros e quinze cêntimos), através de sentença, consultada pelo próprio Tribunal a quo conforme relatado na sentença recorrida, errou o Tribunal recorrido ao considerar que não existiria (pelo menos, quanto ao referido contracrédito) prova documental bastante do contracrédito do Recorrente.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que declare compensado, pelo menos, o crédito do Recorrente no valor de € 11.704,15 (onze mil setecentos e quatro euros e quinze cêntimos).
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A parte contrária não contra-alegou.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de existência de fundamento de oposição à execução baseada em sentença fundada em contracrédito sobre o exequente, com vista à obtenção de compensação de créditos.
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III – Dos factos apurados:
Considera-se com interesse para a justa decisão da causa a seguinte factualidade:
1) A sentença dada à execução transitou em julgado, tendo sido reconhecido ao exequente (…) o direito a haver do executado, (…) a quantia global de € 36.726,05 (trinta e seis mil, setecentos e vinte e seis euros e cinco cêntimos).
2) A sentença proferida em 18/07/2016 no âmbito do processo registado sob o nº 340/12.6T2ODM do Juízo Local de Odemira condenou o Réu (…) a pagar ao Autor (…), a quantia de € 11.704,15 (onze mil, setecentos e quatro euros e quinze cêntimos), foi notificada em 19/08/2016 e ainda não transitou em julgado por ter sido interposto recurso. Foi fixado o efeito devolutivo ao recurso interposto.
3) O saneador-sentença prolatado na presente oposição à execução mediante embargos está datado de 21/10/2016.
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IV – Fundamentação:
Os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa e que visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva[1].
Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos impressos no artigo 729º do Código de Processo Civil. Centrando-nos no caso concreto, a oposição baseia-se na existência de contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos.
A lei prevê nos artigos 395º[2] e 847º[3] e seguintes do Código Civil uma forma de extinção das obrigações que é a compensação. Segundo esta quando duas pessoas estejam reciprocamente obrigados a entregar coisas fungíveis da mesma natureza, é admissível que as respectivas obrigações sejam extintas, total ou parcialmente, pela dispensa de ambas de realizar as suas prestações ou pela dedução a uma das prestações da prestação devida pela outra parte.
A compensação traduz-se num direito potestativo extintivo que tanto pode ser exercido por via extrajudicial ou judicial, por via de acção ou por reconvenção[4], conforme a situação. Logo, a compensação pode ser exercida, em sede de oposição à execução, como facto extintivo da obrigação exequenda e não já de reconvenção, pois esta não é admissível em processo executivo[5] [6].
Como adiante mais detalhadamente se debaterá, um dos requisitos da compensação é que o crédito invocado para a compensação seja exigível em juízo e não esteja inutilizado por excepções, ou seja, o crédito daquele que invocar a compensação não pode ser controvertido, tem de existir de facto, estar judicialmente reconhecido.
A compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma parte à outra (artigo 848º, nº 1), mas é ineficaz se for feita sob condição ou termo (artigo 848º, nº 2)[7].
Se as duas dívidas não forem de igual montante, a compensação opera-se na parte correspondente (artigo 847º, nº 2), sendo certo que a iliquidez de qualquer delas não impede a compensação (artigo 847º, n.º 3).
A compensação é exactamente o meio de o devedor se livrar da obrigação por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor[8].
Os contributos de Vaz Serra em sede de trabalhos preparatórios do Código Civil salientam que «a compensação baseia-se na conveniência de evitar pagamentos recíprocos quando o devedor tem, por sua vez, um crédito contra o seu credor. E funda-se ainda em julgar equitativo que se não obrigue a cumprir aquele que é, ao mesmo tempo, credor do seu credor, visto que o seu crédito ficaria sujeito ao risco de não ser integralmente satisfeito, se entretanto se desse a insolvência da outra parte»[9]. Acrescentando, mais adiante, no seu estudo que a declaração de compensação é um negócio jurídico unilateral, a que pode chamar-se negócio potestativo, porque, por ela, exerce-se um direito potestativo do declarante[10].
Na visão da jurisprudência mais avalizada[11] a compensação tem lugar quando o devedor que seja credor do seu próprio credor se libere da dívida à custa do seu crédito, assentando no princípio de que não há qualquer interesse em efectuar uma prestação a repetir posteriormente em cumprimento doutra obrigação.
Para que seja operacionalizada, a lei exige a verificação de determinados pressupostos, os quais se encontram previstos no artigo 847º, segundo o qual, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, pode qualquer delas extinguir a sua obrigação por compensação com a obrigação do seu credor, desde que o seu crédito seja exigível judicialmente e não proceda contra ele qualquer excepção, peremptória ou dilatória, de direito material, e que ambas as obrigações tenham por objecto coisas fungíveis do mesmo género e qualidade[12].
A contenda hermenêutica relacionada com a possibilidade da compensação apenas poder ser invocada se o contracrédito estiver já reconhecido é objecto de intenso debate na jurisprudência.
A corrente maioritária afiança que só podem ser compensados créditos em relação aos quais o declarante esteja em condições de obter a realização coactiva da prestação. Se estiver a ser discutido numa acção declarativa pendente, o crédito invocado nesse procedimento deve ser tido como incerto e hipotético e não permite ainda executar qualquer operação de compensação, por não existirem ainda condições para autorizar a execução do património do devedor.
No meio deste dissídio interpretativo, a construção legislativa que vingou foi a que afastava a possibilidade de compensação poder ser alegada em sede de oposição à execução por via de excepção, atendendo a que no âmbito da acção declarativa passou a prever-se somente a possibilidade de invocação condicionada da compensação por via reconvencional.
A explicação teórica mais ajustada à realidade normativa vigente em território nacional é defendida por Menezes Cordeiro, que salienta que «a exigibilidade judicial implica ainda que o crédito activo esteja vencido. Haverá que lidar, agora, com os diversos factores que ditam o vencimento das obrigações e, designadamente, com os atinentes ao benefício do prazo e à sua perda. Quanto ao crédito passivo: a compensação é possível quando o mesmo possa ser cumprido. Caso exista prazo, ele deverá ter sido estabelecido a favor do compensante.
Tudo isto pressupõe, naturalmente, que as obrigações em presença sejam válidas e eficazes»[13].
Temos assim como evidência apodíctica que nenhum problema sobrevém nos autos se o crédito compensante puder ser reconhecido judicialmente nos autos de oposição à penhora sem necessidade de produção de prova ou se essa compensação estiver em condições de ser concretizada através de avaliação a efectuar nos próprios autos de execução ou se se tratar de um mero reconhecimento formal do crédito a compensar.
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A sentença recorrida fez uma análise das correntes jurisprudenciais que se pronunciam sobre a viabilidade da compensação em sede de processo executivo, confrontando decisões que admitem o recurso ao instituto[14] e outras que negam essa possibilidade[15].
A sentença recorrida opta pela solução da não admissibilidade da compensação em sede de processo executivo, adiantando que «no caso em apreço, que inexiste prova documental do supra referido contracrédito e, para que possa servir de fundamento a oposição à execução, «(…) não será necessário, como se referiu, que a existência do crédito e os requisitos substantivos da compensação se provem por documento com força executiva, mas é necessário que se prove por documento o facto constitutivo do contracrédito e as suas características relevantes para o efeito do art. 847.º do C. Civil»[16].
Socorrendo-se do entendimento perfilhado num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[17] o acto postulativo impugnado assume que «seria necessário provar-se por este meio, antes de mais, a própria existência dos créditos contrapostos pela embargante».
Este colectivo do Tribunal da Relação de Évora já emitiu jurisprudência (processo registado sob o número 3306/12.2TBPTM-A) no sentido de que «para efeitos de compensação, um crédito só se torna exigível quando está reconhecido judicialmente e, na fase executiva, um crédito dado em execução só pode ser compensado por outro que também já tenha força executiva».
Para além dos requisitos substantivos que o instituto da compensação comporta e que vêm definidos no artigo 847º do Código Civil, é indispensável também que o crédito esgrimido pelo devedor contra o seu credor esteja já reconhecido, pois o processo executivo não comporta a definição do contra – direito[18].
Nesta concepção axiológica-normativa a compensação formulada pelo executado na oposição do crédito exequendo com um seu alegado contracrédito sobre o exequente, não reconhecido previamente e cuja existência pretende ver declarada na instância de oposição não é legalmente admissível, salvo nos casos de mera iliquidez em que se admite que a liquidação seja efectuada nos próprios autos, de mero reconhecimento formal da existência da obrigação a compensar ou em que não se torna necessário produzir prova relativamente à vida e extensão do contracrédito.
No entanto, a questão aqui em análise é distinta daquela que importou a edição da jurisprudência atrás convocada e que acabou por modelar o actual quadro legislativo no domínio dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença.
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Impõe-se assim apurar se o crédito a compensar respeita os pressupostos da compensação exigidos pelos artigos 847º e 848º do Código de Processo Civil, se o mesmo foi objectivamente constituído após o encerramento da discussão no processo declarativo, é dotado de força executiva e finalmente se o contracrédito está demonstrado por meio de documento.
Entende o recorrente que a sentença proferida no processo registado sob o nº 340/12.6T2ODM já é plenamente eficaz e executória, tendo o Tribunal errado ao não admitir a compensação entre os contracréditos.
O título executivo previsto na alínea a) no nº 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil diz respeito às sentenças condenatórias[19], devendo entender-se como tal qualquer decisão judicial proferida no decurso da tramitação de um processo, mesmo que contendo apenas um segmento de condenação, podendo ocorrer em processos tramitados pelo tribunal cível, laboral, criminal e julgados de paz ou decorrer de decisão arbitral[20].
Efectivamente, qualquer sentença declarativa, seja ela de simples apreciação, de condenação ou constitutiva, pode ser um título executivo, desde que a mesma imponha a alguém, de forma expressa ou implícita, o cumprimento de uma obrigação[21] [22] [23] [24] [25] [26].
A sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo (artigo 704º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Quando é atribuído efeito meramente devolutivo ao recurso interposto de decisão de Tribunal de Primeira Instância, esta detém imediatamente eficácia do ponto de vista da sua exequibilidade e vale até ao trânsito em julgado do acórdão da Relação[27].
Neste particular, vale a disciplina precipitada no artigo 647º do Código de Processo Civil. À luz deste normativo, atendendo à natureza da providência decidida em Primeira Instância no decurso da fase declarativa, a apelação tem efeito meramente devolutivo, o que torna indiscutivelmente admissível a possibilidade requerer, ainda que provisoriamente, a execução da sentença.
Nesta eventualidade, a exequibilidade da sentença está garantida mesmo que haja sido interposto recurso, desde que o mesmo seja recebido com efeito meramente devolutivo. Ainda que a sentença não seja definitiva e mesmo existindo o risco de a mesma vir a ser modificada ou revogada, o legislador permite ao credor executar provisoriamente essa sentença, privilegiando, por isso, o interesse do credor na “execução pronta” em detrimento de uma eventual “execução injusta”[28] [29].
A execução iniciada na pendência de recurso extingue-se ou modifica-se em conformidade com a decisão definitiva comprovada por certidão (primeira parte do nº 2 do artigo 704º). Por isso, neste contexto, caso ocorresse um fenómeno de alteração ou revogação da decisão ou anulação para realização de novo julgamento, o título executivo modificar-se-ia ou extinguir-se-ia em conformidade com o teor da decisão final proferida em sede de recurso incidente sobre a sentença proferida na fase declarativa.
Presume-se que o legislador encontrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados como se retira do artigo 9º do Código Civil[30] e, assim sendo, por paralelismo, a unidade do sistema jurídico e a inferência imanente de regras lógicas impõem o entendimento que, se se considera que as sentenças condenatórias objecto de recurso a que foi atribuído o efeito devolutivo constituem título executivos provisórios, as mesmas podem igualmente servir de instrumento compensatório no seio de uma execução já instaurada.
E o princípio de actuação incorporado no nº 2 do artigo 704º do Código de Processo Civil é de aplicar extensivamente aos casos em que está em discussão em sede de recurso a existência de um contracrédito já declarado por uma instância. Na realidade, se existe a possibilidade da sentença condenatória ainda não transitada em julgado configurar um título executivo, como reflexo dessa exequibilidade provisória também é viável considerar que esse mesmo documento seja apresentado como contracrédito parcial ou totalmente extintivo da obrigação exequenda inicial, possibilitando assim a compensação simultânea de créditos entre exequente e executado.
Porém, a questão não se esgota com a afirmação da exequibilidade provisória do título que contêm o crédito a compensar. Face ao teor da sentença proferida em primeira instância importa avaliar qual o significado da alocução «prova por documento» referida na legislação aplicável e se o crédito a compensar tem de estar já declarado no momento da dedução dos embargos.
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Como afirma Marco Gonçalves para que o executado deduza oposição à execução com fundamento em compensação torna-se necessário que ele seja credor do exequente, liberando, por conseguinte, a dívida exequenda com base no seu crédito. Para além disso, o executado só pode invocar a compensação de créditos em sede de oposição à execução desde que essa invocação não fosse possível no âmbito do processo declarativo em que se formou o título executivo judicial[31] [32] [33].
É ainda necessário que se prove por documento que o facto constitutivo do contracrédito e as suas características relevantes para efeito do disposto no artigo 847º do Código Civil, bem como a declaração de querer compensar como decorre do artigo 848º do mesmo diploma, aqui no caso desta ter sido formulada fora do âmbito judicial.
Em função das características atrás enunciadas a resposta neste caso é positiva, porquanto, a saber, estão preenchidos os seguintes pressupostos:
i) O crédito do embargante é judicialmente exigível, pese embora a pretensão apresentada judicialmente se encontrar em apreciação no Tribunal de recurso.
ii) Não era processualmente admitida a possibilidade do embargante invocar a compensação de créditos no âmbito do processo declarativo em que se formou o título executivo judicial que fundamentou a presente execução.
iii) O contracrédito foi objectivamente constituído após o encerramento da discussão no processo declarativo que justifica a presente execução.
Relativamente à questão da prova do facto através de documento, o único problema que poderia ocorrer seria o da não junção da sentença declarativa proferida no processo registado sob o nº 340/12.6T2ODM aos presentes autos. É incontroverso que é um ónus da parte comprovar os factos que alega e que a prova da compensação deve ser feita através de suporte documental.
Contudo, é igualmente indiscutível que o documento que incorpora a obrigação constitutiva do contracrédito existe e corresponde à própria sentença, a qual, como já vimos, é dotada de força executiva própria, a título provisório.
O julgador «a quo» admite que esses autos lhe foram apresentados e a decisão faz menção expressa a essa avaliação. E mesmo que assim não fosse, por correr a acção correr no mesmo Tribunal, impunha-se que, por dever de ofício, logo que tivesse conhecimento dessa informação, caso não existisse impulso processual adequado por parte daquele que pretende compensar créditos, como decorrência do princípio da cooperação e ao abrigo do dever de gestão que lhe está cometido, o titular do processo providenciasse pela junção dessa documentação, a qual era decisiva para a justa composição do litígio em prazo razoável.
Não é assim válido o argumento da não existência de documento para negar a possibilidade de compensação entre créditos. Ele existe e o documento pertinente é a própria sentença condenatória prolatada no âmbito do processo nº 340/12.6T2ODM.
Resta assim solucionar a questão do momento até ao qual é admitida a prova da existência do contracrédito. Ou, noutra formulação, importa descortinar se é tolerável que o crédito a compensar seja declarado judicialmente na pendência do processo de execução, quando o Tribunal recorrido já tem conhecimento da existência de título executivo que contém uma condenação favorável ao embargante.
A ratio legis radica na protecção do exequente no interesse de cobrança rápida e eficaz de créditos, que é a específica finalidade da execução para pagamento de quantia certa, a que se conecta igualmente a conveniência comunitária do regular funcionamento da economia de mercado. Com isto pretende-se prioritariamente evitar que os embargos de executado sejam um mecanismo meramente dilatório da satisfação dos interesses daquele que já goza de um título adequado a realizar coactivamente uma obrigação que lhe é devida.
Nesta óptica mantém-se assim a regra base de actuação que se estrutura na ideia que a compensação formulada pelo executado na oposição do crédito exequendo com um seu alegado contracrédito sobre o exequente, não reconhecido previamente e cuja existência pretende ver declarada na instância de oposição, não é legalmente admissível. E assim afasta-se a possibilidade de em sede de oposição à execução mediante embargos ser produzida prova relacionada com a própria existência do contracrédito.
No entanto, essa avaliação também demanda uma apreciação casuística de acordo com as regras do bom senso e nas presentes circunstâncias de tempo e de modo, no momento em que o despacho saneador é elaborado, o Tribunal «a quo» já tinha conhecimento da sentença que ditou a condenação do aqui exequente a pagar determinada quantia ao agora executado e assim as razões atinentes à dilatação no tempo do interesse de satisfação do crédito exequendo não tem aqui acolhimento.
E, consequentemente, a conveniência de evitar pagamentos recíprocos, a que se associa a ausência de qualquer tentativa de prolongamento artificial do litígio por parte do executado, permite claramente que, em nome da equidade e dos interesses adjectivos de simplificação e agilização processuais, se tome em consideração o crédito provisório já fixado judicialmente e se garanta a simultaneidade do cumprimento das obrigações.
Aliás, essa exigência até é mais marcada na hipótese judicanda, por se estar perante providências judiciais cruzadas tendentes à prestação de contas no âmbito de uma sociedade irregular e o credor do seu credor tem inequívoco fundado interesse na realização simultânea das prestações recíprocas.
Em adição, a própria ordem jurídica dispensa a multiplicação de procedimentos executivos entre sujeitos simultaneamente colocados na posição de devedores e credores, sendo que o único risco que poderá sobrevir é o da alteração do decidido na Primeira Instância pelo Tribunal Superior, mas existem formas correctivas de superar essa hipótese, como resulta paradigmaticamente deste próprio processo onde o título apresentado à execução sofreu uma modificação decorrente da decisão tomada em sede de recurso.
Assim, evita-se a proliferação de processos cruzados e estimula-se a justiça comutativa na igualdade e na proporção das prestações recíprocas, favorecendo a geometria sinalagmática entre credor e devedor e, por isso, na situação concreta, é de admitir a compensação de créditos.
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V – Sumário:
1) Um dos requisitos da compensação é que o crédito invocado para a compensação seja exigível em juízo e não esteja inutilizado por excepções, ou seja, o crédito daquele que invocar a compensação não pode ser controvertido, tem de existir de facto, estar judicialmente reconhecido.
2) Quando é atribuído efeito meramente devolutivo ao recurso interposto de decisão de Tribunal de Primeira Instância, esta detém imediatamente eficácia do ponto de vista da sua exequibilidade e vale até ao trânsito em julgado do acórdão da Relação.
3) Se existe a possibilidade da sentença condenatória ainda não transitada em julgado configurar um título executivo, como reflexo dessa exequibilidade provisória também é admissível que esse mesmo documento seja apresentado como contracrédito parcial ou totalmente extintivo da obrigação exequenda inicial, possibilitando assim a compensação simultânea de créditos entre exequente e executado.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se parcialmente procedente a decisão proferida, compensando-se a dívida exequenda no montante de € 11.704,15 (onze mil setecentos e quatro euros e quinze cêntimos), sem prejuízo dos efeitos que possam derivar do resultado do recurso interposto na acção registada sob o número 340/12.6T2ODM.
Custas a cargo do apelante e do apelado na proporção do respectivo decaimento nos termos do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 08/06/2017
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
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[1] Lebre de Freitas, A acção executiva, Coimbra Editora, Coimbra 1993, pág. 143.
[2] Artigo 395º (Factos extintivos da obrigação):
As disposições dos artigos precedentes são aplicáveis ao cumprimento, remissão, novação, compensação e, de um modo geral, aos contratos extintivos da relação obrigacional, mas não aos factos extintivos da obrigação, quando invocados por terceiro.
[3] Artigo 847º (Requisitos):
1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.
[4] Actualmente, face à disciplina vertida na alínea c) do nº 2 do artigo 266º do Código de Processo Civil, a lei apenas viabiliza a dedução de reconvenção «quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor».
[5] Lebre de Freitas, in A Acção Executiva (Depois da Reforma), 4ª edição, págs. 178-179.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/04/2012, in www.dgsi.pt.
[7] Artigo 848º (Como se torna efectiva)
1. A compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra.
2. A declaração é ineficaz, se for feita sob condição ou a termo.
[8] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, pág. 197.
[9] Compensação, Boletim do Ministério da Justiça nº31, págs. 13-14.
[10] Obra citada, pág. 137.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2009, in www.dgsi.pt.
[12] Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 6ª edição, pág. 200.
[13] Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário, Almedina, Coimbra 2003, pág. 113.
[14] O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Maio de 2015, in www.dgsi.pt, pronuncia-se no sentido de que «a compensação enquanto facto extintivo da obrigação pode ser invocada pelo executado na oposição/embargos à execução, mas, para que tal suceda, necessário é que o contra-crédito invocado esteja reconhecido judicialmente».
[15] No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30/0472015, in www.dgsi.pt, ficou firmada posição em que «a invocação da compensação por parte do embargante com base no contra-crédito sobre o exequente [artº 729º, al. h), do CPC] não é admissível quando ela já era possível à data da contestação na acção declarativa, por via do efeito preclusivo da defesa (artº 573º, do CPC) e tendo em conta a harmonização do regime da alínea h) com o da alínea g) do art. 729º».
[16] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/04/2015, in www.dgsi.pt.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/10/1987.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/06/2007, in www.dgsi.pt.
[19] Sobre o alcance da expressão pode ser consultado Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, págs. 55-65.
[20] Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 131.
[21] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, Coimbra 2016, pág. 56.
[22] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra 1982, pág. 152, pág. 127.
[23] Alberto dos Reis, Processo de Execução, 3ª edição reimpressa, Coimbra Editora, Coimbra 1985, pág. 127.
[24] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa 1998, pág. 73.
[25] Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2013, pág. 46-47.
[26] Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, Themis – Reforma da Acção Executiva, ano IV, nº 7, Almedina., Coimbra 2003, págs. 58-59.
[27] Acórdão do Tribunal ad Relação de Lisboa de 22/01/2008, in www.dgsi.pt.
[28] Marco Carvalho Gonçalves, obra citada, pág. 59.
[29] Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. I, pág. 130.
[30] Artigo 9º (Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
[31] Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, Coimbra 2016, pág. 206.
[32] Consultar ainda Paulo Ramos de faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, pág. 249.
[33] No mesmo sentido acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/1996, CJ STJ 1996-89 e Tribunal da Relação do Porto de 17/05/2011, in www.dgsi.pt.