Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
20/23.7YREVR
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRESTAÇÃO DE GARANTIA
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Alega a requerida que aos factos que sustentam o mandado, a verificarem-se, seria aplicável a lei portuguesa e competentes para o seu conhecimento os tribunais nacionais, tendo em conta o disposto no artigo 7º, nº 1, do Código Penal Português.
O que se mostra assente é que a requerida anunciou e processou encomendas através da sua loja online, em sítios da internet, de canabinóides sintéticos e outras substâncias abrangidos pela secção 4 I, nº 1 e III, nº 1a, da Lei de Novas Substâncias Psicoativas e em relação ao Anexo da mesma Lei e da Secção 53, do Código Penal Alemão, sendo os pacotes com as substâncias enviados para clientes em toda a Alemanha através de uma caixa postal localizada também neste país.

É certo que a publicitação e comercialização pela arguida, através da loja on line, das referidas substâncias (actuação que se enquadra nas modalidades de “oferecer”, pôr “à venda” e “vender”) com alta probabilidade ocorreu em território português.

Só que, a entrega das mesmas ocorreu na Alemanha, onde efectivamente se constatou terem as substâncias características narcóticas e psicotrópicas proibidas e em todas as situações a clientes que neste país se encontravam, estando em causa um número significativamente elevado de encomendas (1169) e, previsivelmente, de clientes, pelo que a lesão dos bens jurídicos protegidos pela norma ocorreu com uma muito maior relevância no Estado emissor.

Acresce que, mostrando-se que os crimes se encontram já a ser investigados na Alemanha, este é o país que se apresenta em melhores condições para conhecer de toda a actividade delituosa e proceder ao julgamento dos factos no seu conjunto, não se podendo olvidar também que outros indivíduos actuavam em colaboração com a requerida, correndo até contra um deles processo autónomo.

Tudo visto, ponderando as exigências do ordenamento jurídico do Estado membro de emissão e as da ordem pública portuguesa, bem assim que a entrega não se mostra particularmente gravosa para a requerida, tendo em atenção as circunstâncias jurídico-penais enunciadas e tanto mais quanto a sua entrega ficará sujeita a condição, não se justifica fazer operar esta causa de recusa facultativa.

II- Residindo a requerida em Portugal com dois filhos, tendo um deles nascido já em território nacional em 2019, a decisão de entrega deverá ficar sujeita à condição de ser devolvida a Portugal para aqui cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade a que eventualmente venha a ser condenada na Alemanha.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação veio, em execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE), apresentar AA, filha de BB e de CC, nascida aos … de 1988, em …, Alemanha, portadora do passaporte nº …, emitido em …/…/2020 e válido até …/…/2030, residente em Rua …, …, detida aos 9 de Fevereiro de 2023, em … - … e requerer a sua audição.

Instruiu o pedido com expediente relativo à detenção, de acordo com o qual afirma resultar ter sido emitido, em 19/12/2022, pelo Juiz de Direito do Tribunal da comarca de…, Mandado de Detenção Europeu visando a detenção e entrega da requerida para efeitos de procedimento criminal no Processo nº …, do Tribunal da Comarca de …, pela prática, como autora, de 1169 crimes de tráfico ilícito de substâncias narcóticas e psicotrópicas , previstos e punidos na secção 4 I, nº 1 e III, nº 1a, da Lei de Novas Substâncias Psicoativas em relação ao Anexo da mesma Lei e da Secção 53, do Código Penal Alemão, cuja pena máxima aplicável é de 15 anos de prisão.

Nele se descreve, em síntese, que no período compreendido entre 05/06/2020 e 17/07/2020 a requerida anunciou e comercializou substâncias abrangidas pela referida legislação através da sua loja online denominada “…” nos sítios da internet www…… e www…..

Nesse período processou um total de 1169 encomendas a clientes na Alemanha, sendo os pagamentos dos produtos, canabinóides sintéticos, efectuados para uma conta na Bélgica com o IBAN … titulada por DD, em nome da suspeita AA.

As encomendas variavam entre os valores de 20.00 e 300,00 euros e os pacotes com as substâncias psicoactivas foram enviados para toda a Alemanha através do apartado postal …. em …, que tinha sido alugado por EE.

A pessoa acusada em separado, FF, era responsável pelo envio dos pacotes aos clientes.

Com as 1169 encomendas de canabinóides sintéticos, através da sua loja online e no período mencionado, a requerida recebeu um total de 99.354,50 euros, actuando com o objectivo de obter em seu benefício uma fonte contínua de rendimentos para as despesas do seu modo de vida.

O facto de que os produtos encomendados terem sido efectivamente enviados aos clientes, conforme acordado, mostra-se confirmado através de uma amostra de encomenda efectuada pela Cooperação Aduaneira da …/Investigação Policial de Narcóticos (…) num total de 133,00 euros, em 07/07/2020, no âmbito do qual os produtos “…”, “…” e “…”, foram entregues a 13/07/2020. A amostra de encomenda era composta por 34,73 gramas (peso líquido) de canabinóide sintético …. proibido.

Procedeu-se, em 10/02/2023, à audição da requerida que, para além de ter declarado não prescindir do benefício da regra da especialidade, se opôs à sua entrega ao Estado de emissão do MDE e solicitou prazo para deduzir oposição.

Foi então validada a sua detenção, concedido o prazo de dez dias para apresentar a oposição e meios de prova e determinado que continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo em situação de detenção.

A requerida apresentou oposição, em que pugna por dever a execução do mandado de detenção europeu ser recusada e indicou como meio de prova a testemunha DD, impetrando também que se solicitasse ao Estado de emissão informação relativa à localização de onde a loja on line era gerida.

A produção de prova foi indeferida por despacho do Relator de 07//03/2023.

No mesmo despacho se decidiu também que, não tendo sido produzida prova testemunhal, também não há lugar às alegações orais a que se refere o artigo 21º, nº 5, da Lei nº 65/2003, de 23/08, conforme se elucida, entre outros, no Ac. do STJ de 27/05/2021, Proc. nº 82/21.1YRPRT.S1, consultável em www.dgsi.pt.

Fundou a requerida a sua oposição no seguinte:

Verifica-se a causa de não execução facultativa prevista no artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2003, de 23/08, pois reside em Portugal desde o ano de 2015, acompanhada de seus dois filhos menores, tendo o mais novo nascido em Portugal em …/…/2022, estando completamente inseridos, a nível familiar, social e cultural e frequentando os menores a escola em ….

À data dos factos encontrava-se a residir em Portugal e não na Alemanha, pelo que não se mostra este país competente, uma vez que os factos, a terem sido praticados, sempre o teriam sido em Portugal, sendo aplicável a lei portuguesa e este país o da jurisdição competente, o que se enquadra no artigo 12º, alínea h), ponto i), da Lei nº 65/2003 e determina a possibilidade de recusa de execução do mandado, nos termos do artigo 21º, nº 2, da mesma Lei.

Mais invoca o estabelecido no artigo 18º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31/08 e bem assim refere, subsidiariamente, que deverá ser acautelada a possibilidade prevista no artigo 13º, alínea c), da Lei nº 65/2003, de poder vir a cumprir a pena ou medida de segurança, em que eventualmente vier a ser condenada, em Portugal, mediante declaração expressa nesse sentido do Estado de emissão.

Respondeu o Ministério Público, pugnando pela entrega da requerida ao Estado membro emissor do MDE, porquanto não se verifica qualquer das causas de recusa obrigatória ou facultativa da sua execução, previstas, respectivamente, nos artigos 11º e 12º, da Lei nº 65/2003, de 23/08.

Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.

Cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Com relevância para a decisão, mostram-se provados os seguintes factos:

1) Em 19/12/2022, pelo Juiz de Direito, foi emitido Mandado de Detenção Europeu, que se mostra traduzido, visando a detenção e entrega de AA para efeitos de procedimento criminal no Processo nº …, do Tribunal da Comarca de …, pela prática, como autora, de 1169 crimes de tráfico ilícito de substâncias narcóticas e psicotrópicas, previstos e punidos na secção 4 I, nº 1 e III, nº 1a, da Lei de Novas Substâncias Psicoativas e em relação ao Anexo da mesma Lei e da Secção 53, do Código Penal Alemão, cuja moldura penal máxima aplicável é de 15 anos de prisão.

2) Da descrição sumária dos factos referida no MDE, consta que no período compreendido entre 05/06/2020 e 17/07/2020, AA publicitou e comercializou substâncias abrangidas pela referida legislação através da sua loja online denominada “…” nos sítios da internet www…. e www…..

Nesse período, anunciou e processou um total de 1169 encomendas a clientes na Alemanha, sendo os pagamentos dos produtos, canabinóides sintéticos, efectuados, em cada caso, para uma conta na Bélgica com o IBAN ………, figurando como titular da conta DD, em nome da suspeita AA.

As encomendas variavam entre os valores de 20.00 e 300,00 euros e os pacotes com as substâncias psicoactivas foram enviadas para toda a Alemanha através da caixa postal … em … - Alemanha, que tinha sido alugada por EE.

A pessoa acusada em separado, FF, encarregou-se de enviar as encomendas para os clientes.

Com as 1169 encomendas de canabinóides sintéticos, através da sua loja online, e no período mencionado, a requerida recebeu um total de 99.354,50 euros, actuando com o objectivo de obter em seu benefício uma fonte contínua de rendimentos para as despesas do seu modo de vida.

O facto de que os produtos encomendados foram mesmo enviados aos clientes, conforme acordado, mostra-se confirmado através de uma amostra de encomenda efectuada pela Cooperação Aduaneira da … /Investigação Policial de Narcóticos (…) num total de 133,00 euros, em 07/07/2020, no âmbito do qual os produtos “…”, “…” e “…” foram entregues a 13/07/2020. A amostra de encomenda era composta por 34,73 gramas (peso líquido) de canabinóide sintético … proibido.

3) AA foi detida em 9 de Fevereiro de 2023, na localidade de … - … – Portugal.

4) A requerida tem nacionalidade alemã.

5) É solteira e tem, pelo menos, dois filhos. GG, nascido aos … de 2012, em … e HH, nascido em …, em ….

6) A requerida residia habitualmente em Portugal, pelo menos desde esta última data. Residia antes de detida na Rua …, ….

Inexistem factos não provados, com relevância para a decisão.

A convicção deste Tribunal para a formação da convicção quanto à factualidade dada como provada, fundou-se na análise crítica do teor do Mandado de Detenção Europeu emitido pelas autoridades judiciárias alemãs e das certidões de nascimento juntas aos autos em 03/03/2023.

Analisemos.

O regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu (MDE) foi aprovado pela Lei nº 65/2003, de 23/08 (à qual pertencerão os preceitos adiante citados sem menção especial), em cumprimento da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI adoptada pelo Conselho em 13/06/2002.

De acordo com o nº 1, do artigo 1º, “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.”

O respectivo âmbito de aplicação vem definido no artigo 2º, cujo nº 1 estabelece, nomeadamente, que “ (…) pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses (…)” e cujo nº 2 contém a enumeração das infracções puníveis, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, relativamente às quais a extradição será concedida, com origem num MDE, sem controlo da dupla incriminação do facto, entre elas se contando o tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, constante da alínea e), que é o crime que consta como fundamento do MDE ora em análise.

No nº 3 do mesmo artigo, consagra-se o controlo da dupla incriminação do facto, de acordo com o qual, “no que respeita às infracções não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.”

No caso em apreço, como se viu, não é exigível a dupla incriminação.

No artigo 3º vêm indicados os requisitos de conteúdo e forma do MDE, entre as quais as indicações relativas à identificação da pessoa procurada e da autoridade judiciária de emissão, a descrição das circunstâncias em que as infracções foram cometidas, a natureza e qualificação jurídica destas, para além das regras atinentes à tradução do MDE.

Por seu turno, as causas de recusa de execução do MDE vêm enumeradas nos artigos 11º e 12º, sendo as que constam do primeiro destes preceitos de natureza obrigatória e as do segundo de natureza facultativa.

Nos presentes autos, a requerida foi detida, em cumprimento do MDE contra ela emitido e apresentada para ser ouvida no Tribunal competente, tendo sido observados os procedimentos estabelecidos nos artigos 17º e 18º. A requerida não consentiu na sua entrega e apresentou oposição escrita.

Mostrando-se juntas aos autos todas as informações que se reputam de necessárias, há que proferir decisão sobre a execução do MDE.

Vejamos então.

Nos termos do artigo 21º, nº 2, da Lei nº 65/2003, de 23/08, a oposição à entrega ao Estado membro de emissão pode ter por fundamentos o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu.

A identidade da requerida não se mostra colocada em causa.

Mas, considera esta que se verifica a causa de recusa facultativa prevista no artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2003, de 23/08.

Estabelece-se neste normativo que a execução do MDE “pode ser recusada quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.”

Como é manifesto, mesmo dando como certo que a requerida reside, em situação de estabilidade, em Portugal com seus dois filhos menores, esta norma não é aplicável à situação em presença, pois estamos perante um mandado que foi emitido para procedimento criminal e não para cumprimento de uma pena ou medida de segurança.

Traz ainda à colação o estabelecido no artigo 18º, nº 2, da Lei nº 144/99 de 31/08, fazendo apelo a motivos de ordem pessoal e invocando o Ac. do STJ de 21/11/2013.

Mas, se bem se percorrer este aresto, constatamos que se reporta a uma situação das previstas no referido artigo 12º, nº 1, alínea g), como cabalmente resulta das seguintes passagens: “compete, pois, ao Estado Português (ou seja, às autoridades que têm a seu cargo a competência legal para analisar a situação) verificar caso a caso o grau, a consistência e as consequências dessa ligação, para formular a recusa de entrega, comprometendo-se ao mesmo tempo a dar execução no território nacional à pena ou medida de segurança que são objecto do mandado de detenção europeu (…) é compreensível esta recusa do Estado da execução, quando estejam em causa nacionais, residentes ou pessoas que se encontrem no território nacional, em primeiro lugar por razões ligadas às próprias finalidades das penas, de que a reinserção social é objectivo fundamental e impostergável, nos termos do art. 40.º, n.º 1 do CP, sendo evidentemente mais adequada a reintegração do condenado operada através do sistema de execução da pena ou da medida de segurança do próprio país onde reside ou de que é nacional, ou onde se encontre temporariamente, e mais benéfica e menos penosa para o mesmo condenado, tendo em vista o seu enraizamento social, familiar e nacional (…) O que está em causa no presente recurso é a questão da recusa facultativa, ou seja, saber se a recusa de execução do MDE pode ter lugar ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 1, do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, anteriormente analisada” – fim de citação.

E, como se deixou dito, o mandado de detenção em análise nos nossos autos visa procedimento criminal contra a requerida e não o cumprimento de pena ou medida de segurança.

Sabendo-se que a Lei nº 65/2003 é uma lei especial, que prevalece sobre outros diplomas normativos de carácter geral reguladores de matérias idênticas, como a Lei nº 144/99, de 31/08, que aprova a cooperação judiciária internacional em matéria penal (como se alumia, aliás, no mesmo aresto) e não se vislumbrando a existência de qualquer lacuna a preencher por recurso às “linhas orientadoras ou de aproximação metodológica nas já referidas normas do art. 40.º do CP e no art. 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto”, não são estas aplicáveis.

Daí que, os motivos de ordem pessoal invocados pela requerida não integrem causa de recusa facultativa (muito menos imperiosa, claro) da execução do mandado.

Refere ainda AA, que aos factos que sustentam o mandado, a verificarem-se, seria aplicável a lei portuguesa e competentes para o seu conhecimento os tribunais nacionais, tendo em conta o disposto no artigo 7º, nº 1, do Código Penal Português.

Consagra-se no artigo 12º, nº 1, alínea h), ponto i), que a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada (causa de recusa facultativa, assinale-se) quando tiver por objeto infração que segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses.

O que se mostra assente é que a requerida anunciou e processou encomendas através da sua loja online, em sítios da internet, de canabinóides sintéticos e outras substâncias abrangidos pela secção 4 I, nº 1 e III, nº 1a, da Lei de Novas Substâncias Psicoativas e em relação ao Anexo da mesma Lei e da Secção 53, do Código Penal Alemão, sendo os pacotes com as substâncias enviados para clientes em toda a Alemanha através de uma caixa postal localizada também neste país.

De acordo com o artigo 7º, nº 1, do Código Penal Português, “o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido.”

E, consagra-se no artigo 21º, nº 1, da Lei nº 15/93, de 22/01.

“1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

2 - Quem, agindo em contrário de autorização concedida nos termos do capítulo II, ilicitamente ceder, introduzir ou diligenciar por que outrem introduza no comércio plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.

3 - Na pena prevista no número anterior incorre aquele que cultivar plantas, produzir ou fabricar substâncias ou preparações diversas das que constam do título de autorização.

4 - Se se tratar de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV, a pena é a de prisão de um a cinco anos”

Pois bem.

É certo que a publicitação e comercialização pela arguida, através da loja on line, das referidas substâncias (actuação que se enquadra nas modalidades de “oferecer”, pôr “à venda” e “vender”) com alta probabilidade ocorreu em território português.

Só que, a entrega das mesmas ocorreu na Alemanha, onde efectivamente se constatou terem as substâncias características narcóticas e psicotrópicas proibidas e em todas as situações a clientes que neste país se encontravam, estando em causa um número significativamente elevado de encomendas (1169) e, previsivelmente, de clientes, pelo que a lesão dos bens jurídicos protegidos pela norma ocorreu com uma muito maior relevância no Estado emissor.

Acresce que, mostrando-se que os crimes se encontram já a ser investigados na Alemanha, este é o país que se apresenta em melhores condições para conhecer de toda a actividade delituosa e proceder ao julgamento dos factos no seu conjunto, não se podendo olvidar também que outros indivíduos actuavam em colaboração com a requerida, correndo até contra um deles processo autónomo.

Tudo visto, ponderando as exigências do ordenamento jurídico do Estado membro de emissão e as da ordem pública portuguesa, bem assim que a entrega não se mostra particularmente gravosa para a requerida, tendo em atenção as circunstâncias jurídico-penais enunciadas e tanto mais quanto a sua entrega ficará, como se verá, sujeita a condição, não se justifica fazer operar esta causa de recusa facultativa.

Destarte, encontram-se preenchidos todas os pressupostos e condições legais e substanciais para a decisão de aceitação de execução do MDE emitido, sem violação do estabelecido no artigo 4º, do Código Penal, artigo 5º, da Constituição da República Portuguesa e artigo 12º, nº 1, alínea h), ponto i), da Lei nº 65/2003, de 23/08.

A título subsidiário, considera-se ainda na oposição que deverá ser acautelada “a possibilidade prevista no artigo 13º, alínea c),” da mesma Lei, de poder vir a cumprir a pena ou medida de segurança em Portugal, mediante declaração expressa nesse sentido do Estado de emissão.

Importa se diga, antes de mais, que após as alterações introduzidas pelas Leis nº 35/2015, de 04/05 e 115/2019, de 12/09, o artigo em causa da Lei nº 65/2003 passou a ter a seguinte redacção:

“1- A execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado-Membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:

a) Quando a infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com carácter perpétuo, só será proferida decisão de entrega se estiver prevista no sistema jurídico do Estado-Membro de emissão uma revisão da pena aplicada, a pedido ou o mais tardar no prazo de 20 anos, ou a aplicação das medidas de clemência a que a pessoa procurada tenha direito nos termos do direito ou da prática do Estado-Membro de emissão, com vista a que tal pena ou medida não seja executada;

b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado-Membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado-Membro de emissão.

2 - À situação prevista na alínea b) do número anterior é correspondentemente aplicável o disposto na parte final do n.º 4 do artigo 12.º”

Por seu turno, este nº 4, do artigo 12º, estabelece: “a decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.”

A actual alínea b), do nº 1, do artigo 13º corresponde à anterior alínea c) do corpo do artigo.

Como se pode ler no Ac. do STJ de 20/06/2012, Proc. nº 445/12.3YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt, “a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução (para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão), se for nacional ou residente no Estado membro de execução.

Ou seja, não só não é interditada a prolação da decisão de entrega, por falta da respectiva garantia, como é mesmo admitida a sua prolação, sob condição de devolução da pessoa requerida. E não é imposta tal condição como obrigatória, mas como eventual: a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição. Só é aplicável a limitação do corpo do artigo: a execução do MDE só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar a garantia devida. Uma vez que a al. c) não explicita qual é essa garantia, terá a mesma de ser deduzida de tal alínea e estar em consonância com a condição, se ele vier a ser determinada: a garantia de que o Estado membro de emissão aceitará devolver a pessoa requerida – após ter sido ouvida - ao Estado membro de execução, para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada naquele Estado membro, se essa for também a vontade da pessoa requerida. Interpretação que se ajusta ao pensamento do STJ sobre o MDE e se revê na Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06-2002, em cujo cumprimento foi aprovado o regime jurídico do MDE e que permite no seu art. 5.º que cada Estado membro de execução possa sujeitar a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária a condições previstas nos seus números, como a do n.º 3, que se refere à sujeição da entrega para efeitos de procedimento penal de nacional ou residente do Estado membro de execução, à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado membro de emissão. Sendo a pessoa procurada ouvida no Estado de emissão, quando deva ser ouvida de harmonia com o respectivo ordenamento processual penal, o certo é que logo que ouvida, deverá ser devolvida ao Estado nacional onde reside porque em caso de eventual condenação, poderá cumprir a pena no Estado de execução. É insuficiente, e pode induzir em erro, dizer-se que “a sua entrega só será efectuada depois do Reino de Espanha prestar a garantia de que será devolvido a Portugal para cumprimento da pena em que eventualmente venha a ser condenado.”, porque implicitamente admite que a devolução possa ocorrer após a pessoa procurada ter sido ouvida, mesmo após o trânsito em julgado da decisão condenatória, olvidando a determinação normativa: após ter sido ouvido. Só assim se conjugam os princípios da elevada confiança e do reconhecimento mútuo entre os Estados-membros na cooperação judiciária penal, concretizada pelo objecto do mandado de detenção europeu, sujeito às mesmas regras de cooperação aprovadas pelos Estados-membros. In casu, essa garantia, se prestada, ajusta-se à emissão de mandado de detenção europeu para fins de procedimento penal contra um nacional ou residente no Estado de emissão.

O objecto do presente mandado não reside na pena mas no procedimento penal. A entrega da pessoa procurada ao Estado de emissão, tem natureza temporária, é apenas para efeitos de procedimento penal, como aliás é objecto do presente mandado e, apenas ocorrerá se o Estado de emissão prestar a garantia de que após ser ouvida, será devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que seja eventualmente condenada no Estado membro de emissão” – fim de citação.

Ora, a requerida reside em Portugal com dois filhos, tendo um deles nascido já em território nacional aos … de 2019, pelo que a decisão de entrega deverá ficar sujeita à condição de ser devolvida a Portugal para aqui cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade a que eventualmente venha a ser condenada na Alemanha.

III – DECISÃO

Em face do exposto, acordam em deferir a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido contra a requerida AA, ordenando-se a sua entrega às Autoridades Judiciárias da Alemanha, para efeitos de procedimento criminal no Processo nº …, do Tribunal da Comarca de …, mas, de harmonia com o artigo 13º, nº 1, alínea b) da Lei nº 65/2003, de 23/08, fica sujeita na sua execução à condição de a Alemanha – Estado membro de emissão – prestar, antes dessa entrega, a garantia de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, será devolvida a Portugal – Estado membro de execução - para em Portugal, cumprir, se for essa a sua vontade, a pena ou a medida de segurança privativas de liberdade a que venha eventualmente a ser condenada na Alemanha.

Consigna-se que a requerida não renunciou ao benefício da regra da especialidade.

Notifique o Ministério Público, o GNI, a requerida (com a respectiva tradução) e sua Ilustre mandatária e informe-se a autoridade de emissão.

Comunique à Embaixada da Alemanha.

Após trânsito, confirmada previamente a garantia retro mencionada, proceder-se-á à entrega combinada no prazo de 10 dias.

Solicite-se, desde já e independentemente do trânsito em julgado da presente decisão, à autoridade emitente do mandado para informar se presta a garantia exigida.

Sendo prestada a garantia, a execução, mesmo que tenha transitado em julgado a presente decisão, só se cumprirá depois de considerada válida tal garantia.

Se a garantia não for prestada, a execução não terá lugar e o processo será arquivado. Comunique-se nestes termos à referida autoridade.

A requerida manter-se-á na situação de detenção em que se encontra.

Oportunamente será solicitada a transmissão da respectiva sentença.

Sem tributação.

Évora, 14 de Março de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário).

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso)