Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
276/14.6TBLLE.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: INTERNAMENTO
REQUISITOS
ANOMALIA PSÍQUICA
PERIGOSIDADE
Data do Acordão: 07/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I - A decisão sobre o internamento compulsivo não tem de ter, necessariamente, a contextura de uma sentença (tal como ela vem estruturada no Código de Processo Penal). A decisão sobre o internamento deve, isso sim, ser sempre fundamentada, identificando a pessoa a internar e especificando as razões clínicas, o diagnóstico clínico, quando existir, e contendo a justificação do internamento.
II - O primeiro pressuposto para o internamento compulsivo (e seu requisito básico) consiste em ser o internando portador de uma anomalia psíquica grave, e o segundo pressuposto é a perigosidade, exigindo-se ainda a existência de uma relação causal entre a anomalia psíquica e o perigo concretamente criado pelo seu portador.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos acima identificados, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, foi ordenado o internamento compulsivo de RKR, determinando a sua apresentação no Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Faro, devendo o mesmo providenciar pelo seu internamento imediato, nos termos do art.º 21.° da Lei n.º 36/98, de 24-7 (doravante designada por Lei de Saúde Mental ou apenas LSM).
#
Inconformado com o assim decidido, o internando interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
a) A douta sentença ora colocada em crise, decidiu internar compulsivamente o recorrente.
b) O recorrente não concorda com a douta sentença do Tribunal a quo por não configurarem correctas as perícias médicas e pelos factos considerados como provados serem incorrectos ou não configurarem uma anomalia psíquica mas sim traços da personalidade de qualquer pessoa com capacidade plena da razão.
c) A douta sentença coloca-se em crise por ter considerado que os factos provados nas alíneas h), i), j), l), m), n) o) e p), não o deveriam ter sido pelas razões que se expõe infra.
d) O recorrente por ter alterado o seu mandatário viu-se na necessidade de apresentar um requerimento de prova, pois nada tinha sido apresentado pela defesa do recorrente.
e) Por esse motivo, apresentou nos dias anteriores à data da sessão conjunta um conjunto de diligências de prova que lhe assegurariam uma defesa adequada.
f) Em resumo, o recorrente requereu a nomeação de um intérprete, a audição dos médicos que elaboraram a avaliação psiquiátrica em 10/04/2014 e a audição de seis testemunhas, entre as quais dois filhos, pacientes e amigos.
g) Na sessão conjunta realizada em 12/06/2014 apenas foi deferido a nomeação de intérprete, sendo a restante prova indeferida por extemporaneidade.
h) Na sessão conjunta o recorrente, através do seu mandatário, requereu, novamente, de forma oral para a acta, que fossem ouvidas na qualidade de testemunhas, pessoas que com ele privam e que poderiam dar uma perspectiva da realidade social e profissional da sanidade mental do recorrente e da real ameaça que o mesmo representa.
i) Apenas foi deferida pelo Tribunal a quo a audição dos filhos do recorrente, na qualidade de testemunhas.
j) Na sessão conjunta realizada em 19/11/2014 o recorrente requereu ao Tribunal a quo a admissão de relatório médico elaborado pelo Hospital de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática da Alemanha devidamente traduzido para a língua portuguesa no qual se comprovava o seu estado de saúde mental.
k) Contudo mais uma vez, o Tribunal a quo não admitiu a junção do aludido relatório, que consideramos ser essencial para a defesa do recorrente, pois foi elaborada pelo seu país natal adequando-se à sua cultura, personalidade e protocolos a que está acostumado.
l) Desta forma precludiu-se um direito de defesa essencial preconizado no art. 10 n.º 1 al. e) da Lei da Saúde Mental e arts. 20.º e 32.º da CRP que no essencial levou à privação da liberdade do recorrente.
m) Por este motivo e por constituir uma violação do direito de defesa do recorrente deve facultar-se a audição das testemunhas indicadas pelo recorrente no requerimento apresentado pelo recorrente.
n) A douta sentença no Tribunal a quo carece da distinção e delimitação dos factos provados e não provados de acordo com o art. 374 n.º 2 do CPP.
o) Apenas se verifica no texto da douta sentença, os factos considerados assentes, nada sendo aludido quanto à matéria considerada como não provada nem se faz qualquer menção à mesma.
p) Por falta dos requisitos mencionados a douta sentença está ferida de nulidade nos termos do art. 379.º n.º 1 al. a) do CPP.
q) - Factos provados
Facto h) O Internando apresenta uma sintomatologia de estado psicótico, fragilmente compensado, que qualquer distúrbio pode descompensar.
Facto i) Sofre de perturbação paranóide de personalidade, com ideias delirantes, de tipo paranóide e outras de caracter megalómano.
Facto j) A intensidade e qualidade do delírio vai aumentando, não sendo reversível.
Facto K) A administração de medicação adequada é fundamental para controlar a intensidade do delírio.
Facto l) Não tem a mínima consciência da sua doença.
Facto m) Nega-se a receber tratamento médico.
Facto n) O internando acredita que vai receber o prémio Nobel pelos seus trabalho junto dos seus pacientes (cura do cancro, diabetes).
Facto o) A aplicação aos seus pacientes do método inventado pelo Internando, que acredita curar a diabetes em dez dias, afigura-se de extremo perigo para a saúde dos seus pacientes.
Facto p) A ausência de tratamento provocará a deterioração do seu estado clínico, aumentando o seu alheamento da realidade, o estado de delírio e aumentará a sua frustração pessoal, sendo o prognóstico imprevisível, mas seguramente negativo, fazendo com que o doente possa constituir uma ameaça para si próprio e para terceiros.
r) Perante os factos supra expostos o recorrente considera que não deveriam ter sido considerados como provados, ou pelo menos não na sua totalidade por não constarem provados nos depoimentos prestados pelas testemunhas e pelo próprio recorrente na sessão conjunta e carecerem de prova documental que as suporte, que não sejam os relatório médicos.
s) O recorrente, no decurso deste processo de internamento, pelas suas declarações verifica-se que já se encontrava num estado de exaustão latente perante o sistema judicial português por considerar não lhe deu todas as oportunidades de se defender perante relatórios médicos de psiquiatria que são idênticos entre si e que provocaram uma decisão arbitrária só por si.
t) Verificaremos a incoerência e a falta de sustentabilidade com que perito médico elaborou o relatório médico.
u) O perito quando perguntado quanto tempo demorou a análise, não soube responder nem dar um padrão de modelo de entrevista no qual nos pudéssemos basear como modelo padrão
v) Simplesmente, o perito limitou-se a discordar das técnicas usadas pelo recorrente na sua qualidade de médico de medicina geral.
w) O recorrente caso tivesse a anomalia psíquica relatada nos relatórios médicos, teria tido uma postura de total alheação da realidade.
x) Poderemos colocar por hipótese que a mensagem e técnicas médicas que o recorrente transmite não o sejam feitas da forma correcta, podendo ser interpretado que o recorrente auto intitula-se detentor de poderes.
y) Não é esse o caso como se verifica, apenas trata-se de técnicas de medicina utilizadas pelo recorrente nada tendo que ver com falta de lucidez ou doença mental.
z) Não alcançamos onde transparece a falta de lucidez caso uma pessoa acredite que pode ganhar o prémio nobel pelos tratamentos médicos que utiliza.
aa) Os próprios pacientes sentem-se bem tratados e sem queixas a apresentar.
bb) Apenas pelo facto de não praticar a medicina tradicional ou ter ideias diferentes da generalidade da comunidade não é razão suficiente para privar o recorrente da sua vida pessoal, da sua liberdade ou até mesmo da sua profissão, nos termos do art. 27.º da Constituição da Republica Portuguesa.
cc) O próprio filho do recorrente que se deslocou de propósito para vir prestar declarações na qualidade de testemunha no presente processo, foi peremptório em afirmar que o recorrente não tem qualquer problema mental.
dd) Este familiar próximo como é o filho não considera existir ameaça para a saúde do pai nem para os seus bens materiais.
ee) Quando questionado sobre se o pai merece o prémio nobel, foi assertivo ao dizer que se tiver capacidades para isso não via qualquer problema, nunca considerando que estas ideias poderiam ser delirantes.
ff) Os próprios pacientes, conhecidos do filho do recorrente, sentem-se bem tratados, não alcançando a falta de lucidez, anomalia psíquica latente no recorrente e necessidade de internamento compulsivo com a consequente privação da sua liberdade.
gg) Durante todo o processo de internamento nunca foi dado o benefício da dúvida ao recorrente, tendo o Tribunal a quo uma fé cega nos relatórios médicos juntos aos autos, que são idênticos entre si o que só por si é de estranhar.
hh) O próprio perito médico nunca explica como a entrevista ao recorrente foi elaborada, em que termos a mesma foi conduzida e se de certa forma já estavam induzidos pelo conhecimento dos anteriores relatórios médicos.
ii) É latente que o Tribunal a quo desconsiderou este depoimento, considerando os factos supra expostos como provados, incorrendo em erro de julgamento.
jj) A testemunha revelou que discorda do seu pai/recorrente e que entram em diálogo, não havendo qualquer tipo de confronto agressivo de um ou de outro.
kk) Constitui facto assente que o recorrente é megalómano.
ll) Não se percebe na necessidade de internamento com o facto de ser uma característica da personalidade em que nada influencia a sua segurança pessoal nem dos que o rodeiam.
mm) Em termos leigos megalómano será uma pessoa com a mania das grandezas.
nn) Perguntamos, é motivo/facto assente suficiente para internamento? Parece-nos que não.
oo) O que realmente aconteceu no presente processo de internamento foi utilizar um primeiro relatório médico produzido no processo-crime e utilizá-lo de forma idêntica nos restantes relatórios médicos com a mesma patologia em todos eles apesar de médicos diferentes.
pp) As perícias médicas realizadas não tiveram em consideração o facto do recorrente ser da nacionalidade alemã o que comporta só por si outra forma de agir, pensar e outros costumes culturais diferentes de Portugal.
qq) O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao considerar os factos supra mencionados como assentes, por não constituírem a realidade apresentada pelos familiares do recorrente.
rr) Em momento algum do processo de internamento se considerou um tratamento em regime ambulatório, aplicando-se a privação da liberdade total do recorrente.
ss) Ninguém pode ser privado da sua liberdade sem razão criminal ou psíquica para tal.
tt) Realça-se que os pacientes do recorrente dirigem-se ao seu consultório privado do recorrente, na medida em este não presta serviço público num Hospital ou Clinica.
uu) Desta forma apenas é tratado na qualidade de paciente do recorrente quem dispõe da sua vontade e quer ser tratado pelo recorrente.
vv) Entende o recorrente que a douta sentença do Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao considerá-lo doente mental e consequentemente privá-lo da sua liberdade.
ww) É sabido, pela via legal, que o juízo técnico-científico realizado pelo perito médico está subtraído à livre apreciação do julgador, pelo que não se coloca em causa o mesmo.
xx) Contudo, coloca-se em crise as declarações, considerações e presunções realizadas pelo perito médico.
yy) Não obstante o perito analisar pela razão da sua ciência a alegada doença do internando, as suas declarações reúnem um conjunto de considerações e opiniões pelas quais conclui que não é admissível a inserção do internando na sua vida social, familiar e profissional.
zz) Na realidade o que se coloca em crise é a valoração legal realizada pelo Tribunal a quo relativamente à opinião do perito médico quando este se afasta do juízo técnico-científico que lhe compete.
aaa) Ficou claro que os filhos do internando consideram que o seu pai está totalmente inserido social, familiar e profissionalmente, revelando, inclusive, que tem muitos amigos e pacientes que nunca se queixaram do recorrente, muito pelo contrário.
bbb) Se o recorrente tem opiniões médicas divergentes da comunidade cientifica, não faz dele, necessariamente, doente mental, ou pelo menos não implica que a sua doença não seja comportável com a sua inserção social ou profissional.
ccc) O que o recorrente considera é que o perito médico diverge na sua opinião médica da do recorrente apenas por considerar que a cura de determinadas doenças não é possível ou pelo facto do recorrente considerar que merece o Prémio Nobel pelas suas “descobertas”.
ddd) Realça-se que o depoimento do médico perito afastou-se do juízo científico que lhe competia, pelo que as opiniões emitidas, salvo o devido respeito, considera-se que estão sob a alçada da livre apreciação do julgador.
eee) Na verdade o Tribunal a quo apenas se apoiou no relatório médico e nas declarações do perito médico que na sua génese não está relacionado com o juízo técnico cientifico propugnado na Lei da Saúde Mental.
fff) Neste ensejo, considera o recorrente que os factos já referidos não devem ser considerados como provados, tendo o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento.
ggg) A Lei aplicável a este processo é a Lei da Saúde Mental e subsidiariamente a Lei de Processo PEnal.
hhh) O art. 7.º da Lei da Saúde Mental define o que se trata de internamento compulsivo:
“a) Internamento compulsivo: internamento por decisão judicial do portador de anomalia psíquica grave;”
iii) No art. 8.º da referida lei apresenta-nos os princípios gerais que a douta decisão do Tribunal a quo deveria ter verificado:
“1 - O internamento compulsivo só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado e finda logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa.
2 - O internamento compulsivo só pode ser determinado se for proporcionado ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa.”
jjj) Nunca foi dada a devida escolha ao recorrente relativamente ao tratamento em regime ambulatório.
kkk) O art. 12.º da Lei da Saúde Mental enuncia-nos os pressupostos do internamento:
“Pressupostos
1 - O portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado.
2 - Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.”
lll) Os filhos do recorrente demonstraram claramente que não existe ameaça a bens jurídicos próprios ou alheios, acrescentando que amigos e pacientes poderiam atestar a veracidade dessas declarações. Inclusivamente, o Tribunal a quo referiu que o recorrente pode configurar uma causa de perigo para os seus pacientes, contudo o recorrente requereu a audição de pacientes e amigos, tendo sido indeferido, que poderiam atestar a sua confiança nos métodos e técnicas médicas do recorrente.
mmm) O próprio recorrente quando prestou declarações não demonstrou qualquer falta de consciência ou discernimento, pois caso o tivesse teria confirmado os aludidos poderes de que alegadamente seria detentor e todos os pensamentos delirantes que fazem dele um portador de anomalia psíquica.
nnn) Por tudo isto, não se verifica a existência de justificação para a privação da liberdade do recorrente, existindo uma decisão arbitrária com a violação dos artigos alegados da Lei da Saúde Mental e uma clara violação constitucional do art. 27.º da Constituição da República Portuguesa (adiante apenas designada de CRP).
ooo) Apesar de em Portugal pouco nos debruçarmos sobre as questões judiciais que incidem sobre o foro psicológico, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem uma vasta jurisprudência que nos auxilia na compreensão da necessidade da privação da liberdade de uma pessoa que padece de anomalia psíquica.
ppp) A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (adiante apenas designada por CEDH) não ter uma definição de saúde mental, a Organização Mundial de Saúde propõe uma definição que “saúde mental não é apenas a ausência de transtorno mental. É definida como um estado de bem-estar que permite que cada individuo se aperceba do seu próprio potencial, lide com o stress normal da vida, possa trabalhar produtiva e proveitosamente e seja capaz de dar o seu contributo à sua comunidade.” – vide in o Estatuto Jurídico do Doente Mental, Gonçalves, Pedro Correia, ed. Quid Juris, pág. 26.
qqq) Expõe o art. 5.º da CEDH relativamente ao direito de liberdade e segurança, exposto no art. 27.º da nossa CRP:
“1. Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança.
Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal:
Se se tratar da detenção legal de uma pessoa susceptível de propagar uma doença contagiosa, de um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano ou de um vagabundo;”
rrr) Na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nomeadamente no Acórdão Winterwerp/Holanda elucidou neste sentido “Em todo o caso, a al. e) do n.º 1 do artigo 5.º não pode ser obviamente interpretada no sentido de admitir-se a detenção de uma pessoa cujo comportamento se desvia das normas prevalecentes numa sociedade em particular.”
sss) Ou seja este artigo nunca pode ser “interpretada no sentido de admitir-se a detenção ou o internamento de pessoas cujas opiniões e comportamentos se desviam daquilo que é considerado aceitável, admissível ou normal pela sociedade onde se encontram inseridas.” – vide Estatuto Jurídico do Doente Mental de Gonçalves, Pedro Correia, ed. Quid Juris, pág. 43.
ttt) Não é por ter uma opinião diferente ou praticar técnicas de medicina que não se enquadram na normalidade, que tem de ser considerado doente mental.
uuu) Neste Acórdão estabeleceu-se três condições, propugnadas por toda a jurisprudência, para o internamento de um doente mental possa ocorrer:
“1 – A alienação deve ser estabelecida através de um a peritagem médica, peritagem essa que, em casos de urgência, pode seguir-se à detenção ou ao internamento;
2 – A doença mental em causa deve ser em grau e espécie que justifique o internamento compulsivo;
3 – A manutenção da detenção (validade) depende da actualidade/existência da anomalia psíquica.”

vvv) Perante estas três condições nunca poderemos considerar verificadas as condições 2 e 3.
www) Não se nega que este processo de internamento teve início pela inimputabilidade do processo-crime em que foi absolvido.
xxx) Contudo, caso essa anomalia existisse ou se mantivesse o recorrente não teria pacientes, amigos ou mesmo a família a atestar a sua sanidade.
yyy) Por toda a matéria alegada, realça-se que um dos grandes objectivos da Lei da Saúde Mental portuguesa em consonância com a europeia, é que o internamento compulsivo deve ocorrer apenas a título excepcional e em circunstâncias muito específicas.
zzz) Neste caso não se antevê, nem há queixas da comunidade nesse sentido que revelem a gravidade da doença mental do recorrente nem se sentem ameaçados por conviver com um médico respeitado por todos.
aaaa) Caso se suscitem dúvidas, deverá ser considerado a audição da comunidade em que o recorrente está inserido, tal como foi requerido pelo mesmo na sessão conjunta.
bbbb) Deve ser assegurado ao arguido uma defesa que lhe proporcione toda a equidade e neutralidade de produção prova possíveis em matéria judicial, vindo agora juntar-se novo relatório médico produzido na Alemanha, pais de origem do recorrente.
cccc) Por ser o seu país de origem, pode ser avaliado a sanidade mental pelos parâmetros de um nacional daquele país.
dddd) Nos termos dos art.s 20.º, 30.º e 32.º da CRP verifica-se um regime de excepção pelas provas apresentadas pelo recorrente que contradizem claramente todo o exposto e considerado assente no Tribunal a quo.
eeee) Por este motivo, deve ser analisado este relatório, por a decisão colocarem causa a privação da liberdade do recorrente sem que para isso tenha contribuído ou praticado algum crime.

Pelo exposto, e pelo que mais que for doutamente suprido por V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida e, em consequência, substituir por outra que não implique o internamento do recorrente, assim fazendo a costumada JUSTIÇA
#
A Ex.ma Procuradora-Adjunta do tribunal recorrido respondeu, pugnando pela manutenção do decidido.
#
Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na decisão recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:

(………….).
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado (sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer).
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que ao não ter ouvido na sessão conjunta 4 das 6 testemunhas indicadas pelo internando, nem ter admitido a junção aos autos de um relatório médico elaborado por um Hospital de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática da Alemanha, o tribunal "a quo" violou o direito de defesa do internando consignado no art.º 10.º, n.º 1 al.ª e) da LSM (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem);
2.ª – Que a decisão recorrida é nula, nos termos do art.º 379.º, n.º 1 al.ª a), do Código de Processo Penal, por dela não constarem os factos dados como não provados;
3.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova produzida na sessão conjunta que o tribunal "a quo" deu como provados os factos descritos nos pontos h), i), j), l), m), n), o) e p);
4.ª – Que o internando não padece de qualquer doença mental de grau e espécie que justifique o internamento compulsivo.
#
Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões postas, a de que ao não ter ouvido na sessão conjunta 4 das 6 testemunhas indicadas pelo internando, nem ter admitido a junção aos autos de um relatório médico elaborado por um Hospital de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática da Alemanha, o tribunal "a quo" violou o direito de defesa do internando consignado no art.º 10.º, n.º 1 al.ª e):
Sobre estes assuntos, tomou o tribunal "a quo" a seguinte posição, em despacho proferido na sessão conjunta a que refere o art.º 19.º:
Aquando do recebimento dos autos foi o internando notificado dos seus direitos e deveres, entre os quais o direito de oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurassem necessárias (artigos 10.° n.° 1 e 15.° n.° 2, da Lei da Saúde Mental).
Nos termos do disposto no artigo 15.° n.° 2 da referida Lei, o defensor é notificado para requerer o que tiver por conveniente no prazo de 5 dias.
Após, o juiz, durante a fase instrutória do processo, determina a realização das diligências que se lhe afigurem necessárias e obrigatórias à avaliação clinico-psiquiátrica do internando. Resulta do exposto, que o requerimento de prova apresentado pelo internando é manifestamente extemporâneo. Por outro lado, é certo que o juiz pode convocar para a sessão conjunta quaisquer outras pessoas cuja audição repute oportunas, nos termos do disposto no artigo 18.° n.° 2, da Lei da Saúde Mental. Para esse efeito notificou o Tribunal um dos Srs. Peritos subscritores do relatório pericial junto aos autos. Por outro lado, não resulta do requerimento apresentado qualquer facto ou fundamento que pudesse integrar o juízo de oportunidade do Juiz em aceder à audição de outras pessoas para além das convocadas.
Importa ainda esclarecer, relativamente ao pedido de novo relatório pericial, que constam já dos presentes autos dois relatórios médico-psiquiátricos, elaborados por quatro médicos distintos: os Drs. AG e SS (fls. 5) e os Drs. FF e LR (fls. 94), sem mencionar já o relatório realizado pelo Dr. EG no âmbito do Processo n.° 441/07.2TALLE, cuja certidão também se encontra junta aos presentes autos. Também por esses motivos e por a sua pertinência não ter sido tão pouco alegada, se indefere a leitura do relatório psiquiátrico alemão a que alude o requerimento que antecede.
Assim, em face do exposto e sintetizando, por ser extemporâneo e não resultar do seu teor qualquer fundamento atendível (não se nos afigurando, por isso, necessárias, conforme resulta do artigo 16.° n.° 1, da Lei da Saúde Mental), indeferem-se as diligências de prova requeridas.
Relativamente à audição do perito médico subscritor do relatório pericial junto aos autos e não presente nesta diligência, pronunciar-nos-emos no final desta sessão conjunta.
Mais ao deante da sessão conjunta, o Ilustre defensor do internando fez o seguinte requerimento:
Em face das declarações do internando e do perito aqui presente, afigura-se de extrema necessidade a audição das testemunhas já indicadas por serem familiares, colegas, vizinhos e pacientes do internando, podendo esclarecer relativamente aos pressupostos do internamento a verdadeira necessidade relativa ao mesmo.
As testemunhas indicadas podem esclarecer se o internando tem vindo a integrar-se na sociedade, representa algum tipo de perigo para os mesmos e para os seus bens pessoais, podendo revelar-se atendível, esclarecedor e não dilatório a audição das mesmas Estas testemunhas indicarão se tem convivido, se consideram se é possível continuar a conviver, com o internado na qualidade já mencionada, nomeadamente vizinhos, pacientes, colegas, cumprindo-se o direito à defesa nos termos do artigo 10.° n.° 1, al. e), da Lei da Saúde Mental, requerendo-se a audição das mesmas nos termos dos artigos 18.° e 12.°, da Lei da Saúde Mental, podendo esclarecer se existem os pressupostos ou não.
Por estes motivos, requer-se a V. Exa. o deferimento.
Dada a palavra ao M.º P.º, o mesmo disse:
Tendo em consideração o teor das declarações do Exm. perito médico ouvido nesta sessão, nomeadamente quanto à patologia diagnosticada ao requerido e ao reflexo dessa patologia na sua vida e na actividade profissional que desempenha, afigura-se não ser tal posição susceptível de ser posta em causa por prova testemunhal, sendo ainda de referir que as pessoas cuja inquirição se pretende não são médicos psiquiatras.
Tendo de seguida o tribunal "a quo" exarado o seguinte despacho:
Ficou demonstrado pelos esclarecimentos do Sr. Perito médico que o estado psicológico do requerido não é incompatível com um quadro de integração social, na estrita medida, porém, em que as pessoas com quem se relacione não o confrontem relativamente às suas ideias. Como referiu o Sr. Perito, quem padece deste tipo de sintomatologia divide o universo de pessoas em dois grupos: "com quem me dou bem e com quem me dou mal”. Deste modo, as testemunhas identificadas no requerimento que antecede integram-se no primeiro daqueles grupos, nada podendo acrescentar aos autos quanto ao estado de saúde mental do internando, nem quanto à sua perigosidade, porquanto não terão conhecimento direto do mesmo, das concretas características que aqui estão em causa e manifestadas em situações de confronto.
Acresce que, como bem referiu o Ministério Público na promoção que antecede, os seus depoimentos não teriam a virtualidade de abalar a credibilidade dos relatórios médicos juntos aos autos, por se tratar de prova pericial.
No que aos filhos do requerido respeita, apesar dos mesmos residirem na Alemanha, segundo declarações do requerido, não convivendo, por isso, diariamente com o mesmo, tratam-se de familiares próximos (não ouvidos oportunamente precisamente por não residirem com o Requerido, nem havendo notícia de manterem com o mesmo convívio próximo) que, segundo informação destes autos (cfr. certidão da sentença proferida no âmbito do Processo n.° 441/07.2TALLE), terão regressado à Alemanha com a progenitora no seguimento do divórcio dos pais que terá sido causado pela incapacidade daquela de lidar com o problema do requerido.
Entende-se, assim, ser relevante ouvir apenas os filhos do requerido.
No mais, indefere-se o requerido.

Ora bem.
Quanto à não audição na sessão conjunta de 4 das 6 testemunhas indicadas pelo internando, desde já se diga que o tribunal "a quo" tem razão. Primeiro, porque há regras a cumprir quanto ao timing da indicação dessas testemunhas (art.º 15.º, n.º 2), que não é prorrogado pela circunstância de no entretanto ter mudado o defensor do internando. Depois porque se o juiz pode realmente convocar para a sessão conjunta quaisquer outras pessoas cuja audição repute oportunas (art.º 18.° n.° 2), no requerimento escrito, além de extemporâneo, não era indicada a razão da oportunidade da sua audição. E quando finalmente no decurso da sessão conjunta o internando divulgou a razão pela qual queria ouvir mais aquelas 4 testemunhas, viu-se que o depoimento das mesmas seria irrelevante para contraditar o teor das duas avaliações clínico-psiquiátricas existentes nos autos.
Já quanto ao relatório médico elaborado por um Hospital de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática da Alemanha, aí não acompanhamos o tribunal "a quo". Se não for posta em causa a autenticidade do mesmo, valerá o que valerá, não é uma avaliação clínico-psiquiátrica a que se reporta o art.º 17.º, n.º 1, mas não deixa de ser já uma opinião técnica que deverá merecer uma apreciação por parte do tribunal.
Afortunadamente, esse relatório ficou junto aos autos, está traduzido e a fls. 278, de modo que a ele voltaremos infra, assim se salvaguardando, afinal, o direito do internando a que essa prova por si oferecida seja apreciada pelo tribunal.
#
No tocante à 2.ª das questões postas, a de que a decisão recorrida é nula, nos termos do art.º 379.º, n.º 1 al.ª a), do Código de Processo Penal, por dela não constarem os factos dados como não provados:
Prescreve o art.º 20.º, sob a epígrafe de decisão, que:
1 - A decisão sobre o internamento é sempre fundamentada.
2 - A decisão de internamento identifica a pessoa a internar e especifica as razões clínicas, o diagnóstico clínico, quando existir, e a justificação do internamento.
Sendo que o art.º 9.º, sob a epígrafe legislação subsidiária, diz:
Nos casos omissos aplica-se, devidamente adaptado, o disposto no Código de Processo Penal.
É, pois, com base neste art.º 9.º que o internando vai invocar o disposto no art.º 379.º, n.º 1 al.ª a) [1- É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º
(…)], que por sua vez remete para o n.º 2 do art.º 374.º, do Código de Processo Penal [2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, (…)], para arguir como nulidade a ausência de referência a factos dados como não provados – e sendo certo que o recorrente também não os indicou.
Acontece que a decisão sobre o internamento não tem de ter necessariamente a contextura de uma sentença tal como ela vem estruturada no Código de Processo Penal. A estrutura de uma decisão sobre o internamento, o que a mesma deve conter, está descriminado no art.º 20.º, não é naquele art.º 20.º mais o art.º 374.º do Código de Processo Penal. O art.º 9.º só manda aplicar o Código de Processo Penal aos casos omissos, e, ainda assim, devidamente adaptado. De modo que, para que obedeça à lei, a decisão sobre o internamento deve ser sempre fundamentada (n.º 1 do art.º 20.º). Como? Identifica a pessoa a internar e especifica as razões clínicas, o diagnóstico clínico, quando existir, e a justificação do internamento (n.º 2 do art.º 20.º). Não tem, portanto, que enumerar obrigatoriamente os factos dados como não provados, a não ser que, fazendo parte do objecto do processo, a sua enumeração seja imprescindível ou necessária para a compreensão do resultado final – o que no caso não se verifica.
Falece, pois, a objecção.
#
No tocante à 3.ª das questões postas, a de que foi por ter avaliado mal a prova produzida na sessão conjunta que o tribunal "a quo" deu como provados os factos descritos nos pontos h), i), j), l), m), n), o) e p):

Estes pontos, impugnados, têm o seguinte teor:
h) O Internando apresenta uma sintomatologia de estado psicótico, fragilmente compensado, que qualquer distúrbio pode descompensar.
i) Sofre de perturbação paranoide de personalidade, com ideias delirantes, de tipo paranoide e outras de caráter megalómano.
j) A intensidade e qualidade do delírio vai aumentando, não sendo reversível.
l) Não tem a mínima consciência da sua doença.
m) Nega-se a receber tratamento médico.
n) O internando acredita que vai receber o prémio Nobel pelos seus trabalhos junto dos seus pacientes (cura do cancro, diabetes).
o) A aplicação aos seus pacientes do método inventado pelo Internando, que acredita curar a diabetes em dez dias, afigura-se de extremo perigo para a saúde dos seus pacientes.
p) A ausência de tratamento provocará a deterioração do seu estado clínico, aumentando o seu alheamento da realidade, o estado de delírio e aumentará a sua frustração pessoal, sendo o prognóstico imprevisível, mas seguramente negativo, fazendo com que o doente possa constituir uma ameaça para si próprio e para terceiros.
Há aqui factos que só a avaliação clínico-psiquiátrica de que fala o art.º 17.º ou o testemunho de peritos é que pode comprovar ou não:
h) O Internando apresenta uma sintomatologia de estado psicótico, fragilmente compensado, que qualquer distúrbio pode descompensar.
i) Sofre de perturbação paranoide de personalidade, com ideias delirantes, de tipo paranoide e outras de caráter megalómano.
j) A intensidade e qualidade do delírio vai aumentando, não sendo reversível.
l) Não tem a mínima consciência da sua doença.
p) A ausência de tratamento provocará a deterioração do seu estado clínico, aumentando o seu alheamento da realidade, o estado de delírio e aumentará a sua frustração pessoal, sendo o prognóstico imprevisível, mas seguramente negativo, fazendo com que o doente possa constituir uma ameaça para si próprio e para terceiros.
Por prova testemunhal ou também por prova testemunhal (uma vez que a sua constatação também pode ter ocorrido em avaliação clínico-psiquiátrica), apenas os seguintes:
m) Nega-se a receber tratamento médico.
n) O internando acredita que vai receber o prémio Nobel pelos seus trabalhos junto dos seus pacientes (cura do cancro, diabetes).
o) A aplicação aos seus pacientes do método inventado pelo Internando, que acredita curar a diabetes em dez dias, afigura-se de extremo perigo para a saúde dos seus pacientes.
Vamos ver o primeiro grupo:
Certo que, para efeitos da decisão a que se refere o art.º 20.º, a perícia ou as perícias que mais contam são, em princípio, as que são feitas de acordo com o estatuído no art.º 17.º, isto é, a avaliação clínico-psiquiátrica (…) deferida aos serviços oficiais de assistência psiquiátrica da área de residência do internando, (…) realizada por dois psiquiatras, (…) com a eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental.
E dissemos que são as que, em princípio, mais contam, porque pode haver outras que influenciem ou até acabem por ser as que determinem a decisão de internar ou não internar, como resulta, desde logo, do direito do internando de oferecer provas e requerer as diligências (art.º 10.º, n.º 1 al.ª e)) e de o juiz pode convocar para a sessão quaisquer outras pessoas cuja audição reputar oportuna (art.º 18.º, n.º 2); isto é, se estas outras provas e diligências não pudessem servir para abalar ou corroborar o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica, então não se vê para que é que o legislador as estaria a autorizar.
Vem isto a propósito de chamar à colação o teor da perícia realizada no âmbito do processo n.º 441/07.2TALLE, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, a qual esteve na base da declaração de inimputabilidade do internando em razão de anomalia psíquica decretada naquele processo e na qual consta o seguinte acerca do ora recorrente:
Refere que "está a perder a sua força, em virtude do excesso de equipamento médico usado pelos médicos colegas portugueses ... Afirma-se "génio, e não quer mas, sabe que irá ganhar mais tarde ou mais cedo o prémio Nobel ...". Diz-se "capaz de criar um espaço, preenchido por um conjunto de forças, um campo, em que é possível a renovação fenotípica, e assim promover o desaparecimento de doença (por exemplo. diabetes ...)". Em Junho de 2006, na sua clínica em Almancil, fundou a «Denkfabrik» ("«Fábrica dos Pensamentos»"), dedicada à sua nova conceptualização de «doença» - «Temporalpathologie» ("«Patologia Temporal»"). Afirma que pratica Clínica Geral (é portador da cédula profissional da Ordem dos Médicos n° 37881, válida até 12/2016), de acordo com a «Legis Artis», e Medicina Alternativa e Complementar, reforçando a ideia que é, neste contexto, que "utiliza a força que aprendeu com Deus". Ainda em 2006, "durante a frequência de curso de Medicina Alternativa e Complementar" – afirma – "assistiu a muitos milagres ...". Em 1996, ainda de acordo com o que refere, "frequentou, na Alemanha, curso intensivo de «Bio-ressonância», durante o qual aprendeu muitas técnicas de tratamento".

III - OBSERVAÇÃO PSIQUIÁTRICA/EXAME MENTAL
A observação directa do examinado decorre em sessão única, e nela se apresenta com uma atitude inadequada. Apresenta-se irascível, facilmente irritável. O seu discurso é pobre em conteúdo informativo. A linguagem (falada) projecta uma realidade arcaica, pragmática, com pouco alcance social. As suas vias sublimatórias mostram-se deficitárias, no que toca à canalização dos seus impulsos. Quanto aos seus mecanismos de defesa, predominam a clivagem, a projecção, a identificação projectiva. A sua atenção é insuficientemente focalizável e sustentável. As suas memórias estão suficientemente íntegras. O seu funcionamento mental não é flexível, e comporta características pouco adaptativas.
O examinado está orientado no espaço, no tempo e auto-e alo-psiquicamente. Manifesta uma consciência de significação em relação ao mundo (pessoas e coisas) alterada. Registam-se alterações do pensamento, designadamente, quanto ao seu conteúdo. As temáticas predominantes nas suas construções delirantes decorrem de um desenvolvimento psicogenético anómalo, com exacerbado narcisismo. Apresenta ideias de grandeza — "não sou um qualquer homem da Medicina (...) (Documento anexado I[1]) … Mediante o meu poder (mental) curo o cancro (Documentos anexado II) e de teor mágico, místico-religioso "Eu, KARL, sou todo o poder de Deus (Documento( anexado III) (...) O Espírito Santo" (Documento anexado IV). Admite que a sua plenipotenciária capacidade de curar lhe advém de Deus («qual Iluminado, detentor de revelações divinas»), e somente existe uma explicação para tal, dogmática, que intenta impor a outrem («qual Déspota»): re-conceptualiza a doença - de acordo com um registo patológico, delirante, psicótico, bizarro, com a criação de neo-conceitos, de pendor concretista (isto é, sem a adequada interferência do raciocínio abstracto) e de neologismos; através da construção, por aglutinação livre de ideias e palavras, sem alcance social, de um conjunto de actos de pensamento e fala, determinantes de injunções vagas, por vezes paradoxais, incongruentes, com afrouxamento da cadeia de associativa (de ideias) (esquizo-afasia), categoriza e descreve: "«Denkfabrik»... «Temporalpathologie» (Documento anexado V) (...) Os problemas humanos desaparecerão com a dissolução dos bloqueios que existem em todos nós ... estes bloqueios são as verdadeiras razões das doenças ... os medicamentos servem para tratar as doenças a um outro nível (Documento anexado VI) (...), não a «um nível de base» («konzeptbasis der krankheit»), não a «um nível interior»".
Existe alienação do Eu, também em virtude da inexistência de fronteiras do mesmo - "mediante o meu poder (mental) curo o cancro (...) crio um espaço de renovação fenotípica, para fazer desaparecer a doença" -, promovida pelo processo patológico de que é portador: esquizofrenia.
A clivagem irá operar a representação dicotómica (maniqueísta) dos objectos (internos e externos) em «maus» e «bons». "Rolf Polack, nazi" (examinado; Documento anexado II), objecto (de relacionamento) «mau» - em contraposição aos "milliona” (examinado) exilados (judeus) (Documento anexado IV), objectos «bons» - "merecerá" aprioristicamente, em virtude do seu estatuto de «mau», a imposição de um castigo, penitência, exercida pelo examinado [qual «justiça exercida pelas próprias mãos», por um «justiceirol/(qual)juiz em causa própria»).
A passagem-ao-acto (« acting-out») hetero-agressivo - que imediatamente se seguirá, neste contexto - estará também sancionada por «Deus» (entidade que o examinado, de modo sincrético e concreto. quanto patológico, vivencia) (“justiça divina" ao serviço da identificação projectiva).

IV - DISCUSSÃO DO CASO, CONCLUSÕES
Não revela uma genuinamente humana preocupação para com o Outro, sendo, mesmo, a sua representação inadequada.
Apesar de presentemente denegar alguns dos (f)atos ilícitos alegadamente praticados, estava – aquando da sua prática - sob a influência de sintomatologia psicótica, com humor irritável, era incapaz de prever a consequência dos seus atos; todavia, verifica-se que, previamente, o examinado tinha formado a "intenção" de praticar os referidos (f)atos ilícitos, mas sob a influência da supramencionada doença neuro-psiquiátrica, designadamente, com as novas, patológicas, significações (quanto ao mundo e às pessoas) que tal doença acarreta.
Está-se perante um indivíduo que apresenta destruição da fronteira entre Si e o Outro (Alheio). Prepondera uma atitude de displicência que interfere nos relacionamentos sociais.
Numa apreciação retrospectiva à data da prática dos (f)atos de que vem acusado, a partir dos elementos – disponibilizados – nomeadamente, constantes nos autos, apura-se que, na ocasião, o examinado/arguido apresentava um quadro clínico de psicose esquizofrénica, em estado de descompensação clínica.
A noção de culpabilidade decorre da consciência moral, da existência de uma instância psíquica repressora e controladora (Superego), da capacidade de renúncia instintiva, do medo da perda do amor, da estima e da consideração, do temor à punição e agressão externa e do temor à agressão interna (sentimento de culpa). A presença de sentimentos de correcção e coerção interna (a correcção leva alguém a fazer algo que o dever reclama ou abster-se daquilo que induz reprovação, e a continência, que é um estado de coação interior, mantém subjugados os impulsos mais básicos e primitivos) estão entre os sentimentos mais necessários ao concerto social e ao evitamento de atos delituosos, fundamentando a compreensão/a inteligência/(a auto-)avaliação e a (auto-)determinação.
No agente/examinado, houve um momento intelectivo imperfeito (porque o agente não se deu conta do resultado, não detinha a necessária representação psíquica alternativa prévia da ocorrência, em virtude da operação interferencial do seu sistema delirante de pensar) e um momento volitivo também imperfeito (por ausência de um «animus» não patológico).
O examinado cometeu delitos, em virtude de anomalia psíquica grave, não compensada, de que é portador, em que se reconhece haver comprometimento da sua capacidade de determinação - em virtude da textura delirante que caracteriza e cerceia a sua consciência de significação: faltam-lhe os suficientes graus de liberdade mental para decidir após um adequado exercício da sua capacidade de «de-liberare» (de que também não é detentor).
Também não detém «insight» verdadeiro para a sua actual condição psicopatológica.
Assim, salvo melhor, decorre a opinião que, em relação à prática dos (f)atos ilícitos de que o examinado/o arguido vem acusado nos presentes autos, deverá ser considerada a sua inimputabilidade, assim como a sua perigosidade.
É recomendável o seu urgente tratamento psiquiátrico, se necessário em regime compulsivo.

O teor desta perícia foi confirmado pela 1.ª avaliação clínico-psiquiátrica, a que está a fls. 4-5 destes autos (da qual se retira que, da forma como o seu texto se inicia, desconhecia o teor daquela perícia):
História Clínica Sumária
Vem sem informação pré existente para avaliação clínico-psiquiátrica no quadro da lei de saúde mental 36/98 – internamento compulsivo não urgente.
Apresenta-se imediatamente veemente, acusador, projectivo.
Recusa-se a responder às questões afirmando e mostrando um certificado por ele elaborado enquanto que médico que diz ser e de facto com a vinheta da ordem que o comprova.
Minimiza, anula, acusa em discurso altivo e acusador dos psiquiátras, das autoridades e do sistema.
Refere ideias que poderemos classificar de megalomania, dizendo que receberia o Nobel pelos seus trabalhos pouco definidos (curar cancro, diabetes, etc.).
Algumas referências místicas associadas às ideias de grandeza vem interrogar sobre uma extensão delirante mística, nao se consegue apurar desde quando esta apresentação existe;
Diagnóstico provisório. Medidas terapêuticas propostas
Ideias delirantes megalomaníacas, com tonalidade mística e persecutória, difíceis de avaliar dada a pouca colaboração, ser reticente e oposição ao exame.
Quando questionado se aceitava um acompanhamento e eventual tratamento, recusa categoricamente.
Conclusão
Aparenta sintomatologia de estado psicótico não compensado.
Recusa formalmente acompanhamento e tratamento, que a nosso ver necessita.
Deverá beneficiar de tratamento compulsivo, que a nosso ver passará por um primeiro episódio de internamento.

E da 2.ª avaliação clínico-psiquiátrica, a fls. 93-94, consta:
História Clínica Sumária
Sem informação legal preexistente.
Doente com hostilidade e desconfiança generalizada.
Querelante e conflituoso aquando minimamente confrontado. Ainda termina ideias de carácter delirante (eventual megalomania), que conformam o sistema de comportamento baseado e derivado a muito provável perturbação paranoide da personalidade. O doente apresenta atitude sugestiva de actividade eventualmente psicótica episodicamente (palavra ilegível), sendo que a distorção cognitiva, a rigidez, o excesso de religiosidade e o fanatismo conformam o quadro clínico.
Diagnóstico provisório. Medidas terapêuticas propostas
Perturbação paranoide da personalidade.
Ideias delirantes de tipo paranoide e outras de carácter megalómano (em princípio monotemático).
O doente só beneficiaria de tratamento e seguimento psiquiátrico, no entanto não tem qualquer consciência da doença, negando-se a qualquer tratamento.
Conclusão
O doente apresenta sintomatologia de estado psicótico, fragilmente compensado.
O doente deve beneficiar de tratamento ambulatório compulsivo, pelo qual deveria internar-se compulsivamente, mais ainda tendo em conta o actual exercício profissional da medicina.

É evidente que estas avaliações clínico-psiquiátricas, bem como a perícia elaborada no processo n.º 441/07.2TALLE, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, confirmam o teor dos impugnado pontos h), i), j), l), p), m), n) e o) dos factos provados.
Para a convicção de que aquele teor foi correctamente aferido pelo tribunal "a quo" contribuiu também a audição a que procedemos das declarações prestadas pelo internando na sessão conjunta, em que o intérprete traduziu:
… ele diz que realmente tem aqueles dons psíquicos e é uma pessoa santa… a partir de minuto 5m20s
… com o sucesso que tem com alguns clientes, ele tem a sensação de que poderá ganhar (o prémio Nobel da medicina)… … tem em média dois pacientes por dia… a partir de minuto 35.005
E ainda das declarações prestadas pelo perito médico que interveio numa das avaliações clínico-psiquiátrica, Dr. FF, que referiu o perigo que correm os pacientes do internando, designadamente os que padeçam de diabetes, que o internando revolucionariamente trata em 10 dias com doses maciças de insulina…

A tal conclusão, a de que a matéria de facto impugnada se encontra correctamente aferida, não obsta o teor do tal relatório médico elaborado por um Hospital de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática da Alemanha, apresentado pelo recorrente e aonde se diz que o motivo da sua admissão nessa unidade hospitalar foi a ocorrência de um síndrome de ansiedade e tensão e o diagnóstico de alta reacção aguda ao stress. No momento da alta não representa qualquer perigo para o próprio ou para terceiros – ou seja, além dos problemas detectados nas avaliações clínico-psiquiátrica e na perícia do processo n.º 441/07.2TALLE, o internando também parece ser atreito a stress agudo. Mas quanto a este stress agudo não há problema: não representa qualquer perigo para o próprio ou para terceiros. E é apenas isto o que se pode extrair do tal relatório médico elaborado por um Hospital de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática da Alemanha.

Pelo que improcedem as objecções do recorrente no tocante à impugnação da matéria de facto.
#
No tocante à 4.ª das questões postas, a de que o internando não padece de qualquer doença mental de grau e espécie que justifique o internamento compulsivo:
Sobre este tema, escreveu o tribunal "a quo", citando-se apenas os considerandos tidos por mais prementes:
(…)
Reportando-se ao internamento normal - o que ora nos interessa e por contraposição ao internamento por urgência regulado nos arts. 22º a 27º da LSM -, estabelece o art. 12º do mesmo diploma legal que “o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado” (nº 1) e que “pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado” (nº 2).
O primeiro pressuposto para o internamento compulsivo, isto é, o seu requisito básico, seja para aquele a que alude o nº 1, seja na modalidade referida no nº 2, ambos do sobredito art. 12º, consiste em ser o internando portador de uma anomalia psíquica grave.
Em lado algum o legislador define o que seja uma anomalia psíquica, embora resulte claramente do art. 1º da LSM que o respectivo conceito é mais amplo e abrangente do que o conceito de saúde mental. É pertinente e elucidativo o ensinamento do Professor Jorge de Figueiredo Dias a propósito das boas razões da decisão legislativa de recusa de uma enumeração – sequer exemplificativa – do tipo de anomalias psíquicas que podem determinar a inimputabilidade: “Desde logo a de que no próprio campo médico científico reina ainda hoje a maior incerteza, tanto ao nível terminológico como a nível da determinação dos efeitos sobre o intelecto e a vontade do sujeito que a cada tipo de anomalia devem, em abstracto, atribuir-se. Depois, a circunstância de o conhecimento científico estar a evoluir neste domínio com grande rapidez, pelo que qualquer elenco correria o risco de ser ultrapassado ou se tornar mesmo obsoleto a breve prazo, mais prejudicando deste modo do que favorecendo as tarefas da aplicação do direito. Em terceiro lugar, porventura, a circunstância de assim se ter querido dar a entender que (...) decisivo será sempre o efeito normativo que ao substrato biopsicológico há-de estar ligado. Por fim – mas não por último - o facto de assim se tornar mais claro que o conceito de anomalia psíquica ultrapassa, sob muitos pontos de vista, o conceito médico de doença mental: não apenas pois as doenças mentais em sentido estrito, mas também as perturbações de consciência, as diversas formas de oligofrenia e, em suma, de anormalidade psíquica grave (psicopatias, neuroses, pulsões) podem preencher o substrato biopsicológico necessário” - cfr. “Pressupostos da Punição”, in “Jornadas de Direito Criminal”, Edição do CEJ, 1975-1976.
Para o internamento compulsivo a lei exige que o internando seja portador de anomalia psíquica grave e a par desta gravidade que dela resulte uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, ou então que o portador da anomalia psíquica não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.
O conceito de gravidade da anomalia psíquica há-de, como afirma Cunha Rodrigues, “definir-se em termos técnico-científicos mas sem ligação com o critério de perigosidade.
Terá uma função limitadora e restritiva, apropriada ao estado do conhecimento científico.
Noutra perspectiva, a noção de gravidade obedece a um plano axiológico em que se fixam pressupostos mínimos e se recusam critérios utilitaristas de selecção e diagnóstico. Se a anomalia psíquica não for grave, não há lugar a internamento compulsivo, ainda que gere situações de perigo” – ibidem, págs. 44 e 45.
A verificação do requisito da anomalia psíquica grave para o internamento compulsivo cabe, contudo, à medicina. Depende, com efeito, de uma avaliação clínico-psiquiátrica do internando, de realização obrigatória (excepto se o requerimento for requerido pelo director clínico do estabelecimento nos termos do nº 3 do sobredito art. 13º), a levar a cabo por dois psiquiatras, com eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental (cfr. arts. 16º, nºs 1 e 2 e 17º, nº 1 da LSM).
Nos termos do nº 5 do referido art. 17º, “o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz”. Refere Cunha Rodrigues que, “com o aparente objectivo de reequilibrar as tensões clínico-psiquiátrica e judicial, a lei estabelece uma espécie de cézure entre a perícia e o juízo do Tribunal, contrariando o conhecido brocardo de que o juiz é o perito dos peritos” - ibidem[2], pág. 47.
A verificação da anomalia psíquica grave para efeitos do internamento compulsivo é, pois, matéria da competência médica e está sujeita ao juízo técnico-científico inerente à respectiva avaliação pericial. Estamos, assim, no dizer do Professor José Carlos Vieira de Andrade, “perante um parecer psiquiátrico obrigatório e vinculante, figura que também tem um carácter decisório (é, no fundo, uma deliberação preliminar ou uma «pré-decisão» médica).
Em face do exposto, tendo em conta a factualidade assente, fundada nos relatórios médicos juntos aos autos, e sem necessidade de grandes considerandos, dúvidas não restam que, no caso em apreço, se encontra verificado o primeiro pressuposto previsto no artigo 12º da LSM, tendo-se demonstrado que o Requerido é portador de anomalia psíquica grave.
Falta, assim apurar o segundo pressuposto previsto no referido preceito – a perigosidade.
Para que se verifique este pressuposto, é necessário que o portador de anomalia psíquica crie efetivamente situações de perigo para determinados bens jurídicos. Não é, assim, suficiente, a consideração de um perigo potencial do ponto de vista médico, antes sendo ainda necessário aferir processualmente, com a indagação da factualidade pertinente, da atualização e atualidade daquele perigo. (Pedro Soares de Albergaria, A Lei de Saúde Mental Anotada, Almedina, 2006, página 41).
Mais se exige uma relação causal entre a anomalia psíquica e o perigo concretamente criado pelo seu portador.
Ora, resulta dos factos provados que o estado de saúde mental do Requerido tem criado situações de perigo concreto para bens jurídicos alheios, plasmadas em toda a factualidade provada no âmbito do Processo crime que deu origem aos presentes autos, no âmbito do qual se provaram atos persecutórios, de grande violência emocional, por parte do Requerido relativamente aos, aí, ofendidos, RP e AW. Tal perigo resulta, ainda, da atividade médica que concretamente exerce, aplicando métodos de cura reputados, pelo Sr. Perito médico ouvido, como perigosos para a saúde dos seus pacientes (concretamente o tratamento da diabetes em 10 dias, com doses de insulina não recomendáveis medicamente). Note-se que o estado de certeza sobre o seu saber médico e os seus poderes curativos num contexto de prática médica ativa, não deixam de constituir uma situação de extremo perigo para a saúde e vida de todos aqueles que consultam o Requerido.
A anomalia psíquica de que padece apresenta ainda perigo para a sua própria saúde, atendendo à irreversibilidade do estado delirante, à degradação do seu estado mental, ao seu crescente alheamento da realidade e, consequente, estado de frustração pessoal. Entende-se, porém, que a situação de perigo na pessoa do Requerido não se encontra totalmente concretizada na factualidade assente, uma vez que o prognóstico do seu estado de saúde mental é imprevisível, não se tendo apurado de que forma tais perigos se podem concretizar, para além de uma situação de aprofundamento da doença.
Finalmente, resultou, ainda, provado que o Requerido se recusa determinantemente a receber tratamento médico.
Resulta, assim, do exposto, que se encontram preenchidos todos os pressupostos previstos no artigo 12º n.º 1 da LSM.

O tribunal "a quo" tem razão.
Há uma perícia psiquiátrica e duas avaliações clínico-psiquiátricas a sustentarem a sua decisão.
Digamos, em jeito de conclusão, que o drama do internando é não só ele padecer do que padece, como ainda por cima uma das características desse padecimento é ele não se aperceber, não ter a noção do que padece e portanto estar convencido não só de que de nada padece, como de que não precisa, por conseguinte, de tratamento e medicação – e por isso se recusa a voluntariamente se sujeitar a tratamento.
Ora deixá-lo assim, sendo ele médico que ainda exerce a medicina, constitui desde logo um risco inaceitável para os pacientes que o consultem e sigam as suas prescrições, designadamente os diabéticos se submeterem durante 10 dias a doses intensivas de insulina… (declarações prestadas na sessão conjunta pelo perito médico que interveio numa das avaliações clínico-psiquiátrica, Dr. FF) ou os cancerosos andarem enganados pelo exercício dos seus poderes místicos… (perícia realizada no âmbito do processo n.º 441/07.2TALLE, referência a fls. 24 in fine, do presente acórdão). O internando não faz isto por mal, por querer o mal dos pacientes; mas está-lhes a fazer mal, por os trazer enganados e, no caso dos diabéticos, até causar-lhes mais danos na saúde do que aqueles com que entraram para a consulta.
Um médico – qualquer que seja a medicina que exerça, convencional ou alternativa (e as medicinas alternativas não são só por si ilegais ou proibidas, nem o arguido poderia ser penalizado por essa sua opção) – encontrando-se no exercício (activo) da medicina no estado psiquiátrico em que o arguido se encontra e que recusa tratar, poderá constituir um perigo para as pessoas (pacientes) que a ele recorram e que nele confiem.
De resto, crê-se que, após algum tempo de internamento compulsivo e de a medicação começar a fazer efeito, o internando, que sem dúvida é um homem que no seu estado normal é inteligente, ganhará consciência do seu estado e, na posse da mesma, poderá muito bem tornar-se desnecessária a continuação do internamento compulsivo, por ele próprio então assumir a necessidade de medicação e acompanhamento psiquiátrico – revisão que obrigatoriamente será ponderada passados dois meses sobre o seu internamento compulsivo (art.º 33.º, n.º 1 e 2, 34.º, n.º 1 e 2, e 35.º, n.º 1 a 3).
Ao fim e ao cabo, o que a decisão recorrida está a fazer é propiciar ao internando um período por ora de apenas 2 meses a fim de lhe permitir recuperar a noção de que deve voluntariamente medicar-se e ir a consultas psiquiátricas.
IV
Nestes termos, acordam os Juízes da 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas (art.º 37.º da LSM).

Évora, 14-07-2015
(elaborado e revisto pelo relator)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito

__________________________________________________
[1] Nota do ora relator: este, como os demais documentos referidos a seguir, são excertos de textos e cartas selecionadas da autoria do examinado.
[2] Isto é: in “A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo”, Coimbra Editora 2000 (nota do ora relator).