Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
167/19.4GBASL-A.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
ACUSAÇÃO ALTERNATIVA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O requerimento de abertura da instrução (RAI) consiste num modo de reação do assistente ao despacho de arquivamento, proferido pelo MP.
II. Quando o RAI é apresentado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos consubstanciadores do ilícito, cuja prática é imputada ao agente do crime, pois o RAI mais não é que uma acusação alternativa sujeita a comprovação judicial por parte do JIC.
III. A abertura da instrução a requerimento do assistente não podia ter lugar quanto ao crime de violência doméstica, pois em sede de inquérito não foi suscitada a possibilidade de a arguida ser autora desse ilícito.
IV. O MP investigou, na fase de inquérito, factualidade relativa à eventual prática de crimes como o de injúria, de ameaça, de difamação ou de coação de acordo com a queixa apresentada pelo assistente. Assim, só o arquivamento do processo relativamente a esses crimes era suscetível de fundamentar um requerimento de abertura da instrução.
V. O próprio assistente em sede de denúncia não equacionou nem assinalou ter ocorrido qualquer dolo característico inerente ao crime de violência doméstica.
VI. Se o MP tivesse acusado a arguida da prática do crime de violência doméstica, quando não investigou a materialidade subjacente a esse ilícito, a acusação estaria afetada de uma nulidade insanável, por falta de inquérito (cf. artigo 119.º, n.º 1, alínea d) do CPP).
VII. A instrução não serve para proceder a um novo inquérito, pois este é da competência exclusiva do MP, e ao JIC não compete pronunciar eventuais agentes pela prática de crimes não investigados.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
No Processo n.º 167/19.4GBASL da Comarca de Setúbal Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, Juiz 2, o assistente AA não concordou, na fase de inquérito, com o despacho de arquivamento proferido pelo MP, e apresentou requerimento de abertura de instrução. Nessa sequência o JIC não admitiu a prossecução da ação penal relativamente à prática do crime de violência doméstica imputado à arguida BB pelo assistente AA, sendo deste despacho que este último interpôs recurso.
Para compreender a extensão do recurso interposto, cumpre assinalar em que consistiu o despacho de arquivamento, o requerimento de abertura da instrução, o despacho de não pronuncia bem como o conteúdo do recurso, contra-alegações e parecer apresentados, o que se fará em seguida.

1. Da fase de inquérito e instrução
1.1. Do despacho de arquivamento proferido pelo MP em sede de inquérito
Na fase de inquérito o MP proferiu despacho de arquivamento quanto aos crimes imputados, por AA, a BB, cujo teor foi, em síntese, o seguinte (transcrição):
I.- Dos crimes imputados por AA contra BB:
No dia 17/12/2019, AA apresentou, nestes serviços do Ministério Público, uma queixa crime contra BB (composta de duzentos e onze artigos, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos por brevidade exposição), que deu origem inquérito n.º 361/19.8T9GDL - cfr fls 3-16.
Por despacho proferido no dia 17/12/2020, o referido inquérito foi apensado aos presentes autos, dando origem ao Apenso A – cfr. fls 185 do Apenso A.
Na referida queixa, AA alega factos praticados por BB durante o período em que mantiveram uma relação de namoro e coabitaram como de marido e mulher se tratassem em (…), os quais, no seu entender, são susceptíveis de configurar os seguintes crimes:
1.Extorsão, p. e p. pelo artigo 223.º, do C.P.;
2.Burla, p. e p. pelo artigos 217.º a 218.º, do C.P.;
3.Denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365.º do C.P.;
4.Difamação agravado, p. e p. pelos artigos 180.º e 184.º, ambos do C.P.;
5.Injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181.º.º do C.P.
6. Falsidade de depoimento, p. e p. pelo artigo 359.º a 361.º do C.P.;
7.Simulação de crime, p. e p. pelo artigo 366.º do C.P.;
8.Dano, p. e p. pelos artigos 212.º a 213.º do C.P.
9.Coacção, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º do C.P.;
10. Ameaça, p. e p. pelo artigos 153.º e 155.º do C.P.;
11. Roubo, p. e p. pelo artigo 210.º do C.P.
Todos na Forma agravada.
Indicou testemunhas e juntou um DVD contendo 906 ficheiros e 1 uma pasta, com 1,13 GB.
No dia 25/06/2019, AA já havia apresentado nos presentes autos queixa crime contra BB, queixa essa que se dá aqui também por integralmente reproduzida por brevidade de exposição – cfr. auto de inquirição de testemunha de fls 32-34 destes autos.
Da análise de ambas queixas, embora integrem o mesmo pedaço histórico de vida deste casal, os factos objecto de uma e outra não são inteiramente coincidentes.
II.- Diligência de inquérito:
Foram inquiridas as seguintes testemunhas indicadas pelo denunciante/queixoso AA:
(…)
BB, constituída e interrogada como arguida não quis prestar declarações – fls 199 a 202 destes autos.
Regularmente notificado para, no prazo de 10 dias, indicar, com referência especificada a cada um dos ficheiros contidos no DVD junto autos, os respectivos factos que com eles pretendia provar, o queixoso AA nada veio dizer ou requerer aos autos (cfr. fls 54 e v.º e 78 do apenso A), pelo que tais ficheiros não foram atendidos na formação da convicção da signatária em face do desinteresse revelado pelo queixoso em colaborar na descoberta da verdade material dos factos que participou.
No dia 24 de Abril de 2020, AA declarou desistir das queixas apresentadas contra BB– fls 95 do apenso A e 388-390 destes autos.
Não se vislumbra a realização de quaisquer outras diligências de inquérito que se reputem úteis ao esclarecimento dos factos objecto das queixas apresentadas por AA contra BB, considerando as finalidades constantes do disposto do artigo 262.º, n.º1, do Código de Processo Penal.
III.- Apreciação:
3.1- Dos crimes difamação e injúria agravados:
Antes demais, os factos alegados e imputados pelo denunciante à arguida BB, susceptíveis de configurar tais ilícitos, não reúnem os pressupostos da circunstância agravante prevista no artigo 184.º do Código Penal.
Em todo o caso, independentemente da natureza particular ou semipública, que revistam, tais crimes admitem a desistência de queixa.
Nestas circunstâncias, posto que manifestada em tempo e por quem para tanto tem legitimidade, revelando-se inequívoca a vontade de AA de desistir do procedimento criminal pelos aludidos factos, em face da natureza do aludidos crimes participados e a não oposição da arguida BB (cfr. fls 404-406), homologo a desistência de queixa e declaro extinto o respectivo procedimento criminal, nos termos das disposições combinadas dos artigos 180.º, n.º1, 181.º, 183.º, 184.º, 188.º, n.º1, alínea a), 116.º, n.º 2, todos do Código Penal, 48.º, 49.º e 51.º Código de Processo Penal.
Termos em que determino o arquivamento do presente inquérito nesta parte, por ser legalmente inadmissível o seu prosseguimento, nos termos do artigo 277.º, n.º1 (3.ª parte) do Código de Processo Penal.
3.2- Dos crimes de dano:
(…)
Tal crime reveste natureza semipública e como tal também admite desistência queixa. Nestas circunstâncias, posto que manifestada em tempo e por quem para tanto tem legitimidade, revelando-se inequívoca a vontade de AA de desistir do procedimento criminal pelos aludidos factos, em face da natureza do aludido crime participado e a não oposição da arguida BB (cfr. fls 404-406), homologo a desistência de queixa e declaro extinto o respectivo procedimento criminal, nos termos das disposições combinadas dos artigos 212.º e 116.º, n.º 2, todos do Código Penal, 48.º, 49.º e 51.º Código de Processo Penal.
Termos em determino o arquivamento do presente inquérito nesta parte, por ser legalmente inadmissível o seu prosseguimento, nos termos do artigo 277.º, n.º1 (3.ª parte) do Código de Processo Penal.
3.3- Dos demais crimes: extorsão, burla qualificada, denúncia caluniosa, falsidade de depoimento, coacção agravada, ameaça agravada e roubo:
(…)
Dado o exposto, subsumindo as considerações supra no enquadramento processual, não resta se não concluir que não foram colhidos quaisquer indícios para sustentar a imputação objectiva e subjectiva dos aludidos crimes à arguida BB, o que não permite promover a acção penal, nos termos do disposto do citado artigo 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Nestas circunstâncias, determino também nesta parte o arquivamento do presente inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem prejuízo de o mesmo poder ser reaberto caso surjam novos elementos de prova, nos termos do artigo 279.º n.º 1 do Código de Processo Penal; e declaro cessado o estatuto de vítima a AA, de harmonia com o disposto no art.º 24.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.”.


1.2. Do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente AA
Na sequência do despacho de arquivamento o assistente requereu a abertura de instrução referindo, em síntese, na parte relevante para a apreciação do recurso, que a desistência da queixa por si apresentada não podia produzir efeitos jurídicos sobre o crime de natureza pública, pois em sede de inquérito apuraram-se factos integradores de um crime de violência doméstica (artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do CP) para o efeito no seu requerimento articulou, nomeadamente, a seguinte factualidade:
1. Em 14.2.2019 AAe BB passam a partilhar cama, mesa e habitação e ali residiram como se de marido e mulher se tratassem até 19.6.2019.
2. Durante a referida relação marital BB rebaixou física, intelectualmente e até sexualmente AA dirigindo com frequência diária expressões como “és um trambolho”, “mentiroso”, “tarado”, “és uma boa merda”, “és um miserável”, “nojento”, “és um falhado”, “és um palhaço”, “és um deprimento sem escrúpulos”, “és um burro, estúpido, anormal, ordinário, porco”, “és um filho da puta, estafermo e patego”.
3. Sempre que AA se encontrava no exercício das suas funções de advogado e agente de execução, no seu escritório na cidade de Évora, BB dirigia-lhe as seguintes expressões “andas nas putas” e “estás atrasado porque andas na putaria”.
4. Durante os momentos de intimidade do casal BB dirigia-lhe as seguintes expressões com o intuito de o rebaixar, humilhar e vexar “paneleiro”, “não vales nada, não tens picha para me foder como deve ser eu só ando com gajos ricos e poderosos todos vão saber que tenho amantes”.
5. As supra mencionadas expressões form proferidas verbalmente e por escrito através de aplicações Messenger e whatsapp.
6. BB sofria e depressão estando medicada com ansiolíticos e hipnóticos e apesar disso ingeria bebidas alcoólicas perdendo o controlo dos seus atos tendo no dia 14.6.2019 destruído material informático, porta principal da residência e respetivo vidro, ao mesmo tempo que dizia tarado, porco, nojento e que tinha estado todo o dia a comer putas
7. Seguindo-se discussão com troca de empurrões e pontapés em várias partes do corpo.
8. Após termino da relação BB continuou através de mensagens escritas através de Messenger e Whatsapp a dirigir as mesmas expressões descritas em …
9. Ao atuar do modo descrito a denunciada BB agiu com o propósito de maltratar física e psiquicamente AA, sabendo que o fazia no domicílio comum, pretendendo humilha-lo, diminuir a sua dignidade e consideração pessoal e profissional, causando-lhe profunda tristeza, ansiedade, intranquilidade, insegurança e angustia, perturbando a sua paz e o seu sossego, o que quis e logrou concretizar.
10. Sabia BB que sobre si impendiam especiais deveres de respeito e assistência relativamente ao seu companheiro, decorrente do vínculo que os unia e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
11. Agiu de forma deliberada, livre e consciente
12. Cometeu, assim, em autoria material e em concurso efetivo, um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do CP, pelo qual devia ser pronunciada.”.


1.3. Do despacho proferido pelo JIC

Na sequência do requerimento de abertura de instrução (estando também em causa o crime de violência doméstica perpetrada pelo aqui assistente contra a ex-companheira BB), foi agendado debate judicial e a final proferido despacho, em síntese, com o seguinte teor (transcrição):
“Nos presentes autos e a final do inquérito, proferiu o Ministério Público despacho de arquivamento e acusação, o qual consta de fls. 874-889.
Por efeito de tal despacho, arquivou o Ministério Público o inquérito quanto aos factos denunciados pelo assistente/arguido AA, melhor id. nos autos, enquadráveis em crimes de difamação, injúria agravada e dano (por homologação da desistência de queixa), e de extorsão, burla qualificada, denúncia caluniosa, falsidade de depoimento, coacção agravada e roubo (por falta de indícios suficientes).
(…)
Inconformado com as decisões de arquivamento de acusação públicas, veio o assistente/arguido AA requerer a abertura de instrução, com os fundamentos que constam do requerimento de abertura de instrução de fls. 1008 e seguintes, os quais, brevitatis causa, se dão aqui por reproduzidos.
Em suma, pretende a pronúncia da assistente/arguida BB pelos factos que enuncia, e que entende fazê-la incorrer na prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, números 1, al b) e 2, al. a), do Código Penal e de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo artigo 365º, número 1, do mesmo diploma.
(…)
Tal fase foi admitida.
Foi produzida a prova julgada necessária às finalidades da presente fase.
Foi realizado o debate instrutório em obediência ao devido formalismo legal (…).
II. Conhecimento de nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer (artigo 308º, número 3, do Código de Processo Penal).
O Tribunal é competente.
As partes têm legitimidade para exercer a acção penal.
Questão prévia:
Da impossibilidade de prossecução da acção penal relativamente aos factos descritos nos arts. 10º a 19º, 22º, 29º, 32º e 37º:
Pretende o arguido que tais condutas integrem o crime de violência doméstica, pretensão que anteriormente ao requerimento de abertura de instrução, não havia manifestado nos autos.
E de facto, não havia antes imputado à arguida o dolo constante do artigo 37º do requerimento de abertura de instrução, antes o fez quanto a outros tipos de dolo (referentes aos crimes que entendia a arguida ter praticado, e relativamente aos quais foi proferido despacho de arquivamento).
Sucede porém, que a instrução apenas pode versar sobre factos não dependentes de acusação particular relativamente aos quais tenha existido arquivamento (artigo 287º, número 1, al. b), do Código de Processo Penal, in fine), sendo que quanto à unidade criminosa em que consiste a prática do crime exaurido correspondente ao tipo legal de violência doméstica (se praticado pela arguida BB) e quanto ao dolo característico inerente a este tipo legal (a intenção de rebaixar, de amesquinhar, de dominar) não existiu qualquer arquivamento.
Na realidade, tais factos foram tratados tal como denunciados (fls. 3-16 do apenso A).
Sucede, porém, que os mesmos, desacompanhados de tal dolo característico, e como se referiu no despacho de arquivamento, apenas poderiam integrar os crimes de difamação e injúria agravados e dano, todos de natureza semipública, sendo que, como também se referiu no despacho de arquivamento, o assistente AA veio, a fls. 95 do apenso A e 388-390 dos presentes autos, manifestar a sua desistência de queixa, que foi devidamente homologada (cfr. despacho de arquivamento).
Assim sendo, não é possível o procedimento criminal relativamente a tal factualidade, por falta de pressuposto de procedibilidade.
Prosseguirá a instrução, pois, apenas relativamente à demais factualidade constante do requerimento de abertura de instrução e da acusação.
*
B.2. Factos não suficientemente indiciados.
Dão-se por insuficientemente indiciados os factos que constam da acusação pública e do requerimento de abertura de instrução não assinalados em B.1..
*
B.3. Motivação do tribunal no tocante à indiciação da matéria de facto.
(…)
B.4.2. Dos Crimes de Violência Doméstica e Denúncia Caluniosa imputados a BB.
Não se indiciou qualquer factualidade que permita a pronúncia da arguida pela prática do crime de denúncia caluniosa (sendo quanto ao crime de violência doméstica válidas as considerações expendidas em sede de conhecimento de questões prévias), pelo que importa proferir, neste tocante, despacho de não pronúncia.
(…) Pelo exposto, e tendo presentes todas as supra aludidas considerações e normas jurídicas invocadas, decido a) Não pronunciar BB, melhor id. a fls. 197, pelos factos e qualificação jurídica descritos no requerimento de abertura de instrução; (…).”.



2. Do recurso
2.1. Das conclusões do assistente/arguido
Inconformado com a decisão o assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O Assistente pretende insurgir-se apenas contra a decisão instrutória na parte em que não pronunciou a arguida BB pelo crime de violência doméstica;
2. Em 25/06/2019 foram formalmente denunciados os factos constantes dos artigos 10º a 19º, 22º, 29º, 32º e 37º do Requerimento de Abertura da Instrução;
3. Tal denúncia consta de fls. 513 e seguintes;
4. As expressões que aí se fizeram constar, repetidamente proferidas pela arguida, não podem deixar de constituir uma forma relevante de maus tratos psíquicos.
5. O Assistente foi injuriado, minimizado e inferiorizado como homem;
6. A sua dignidade pessoal foi insofismavelmente posta em crise;
7. Mostram-se, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1 b) e nº 2 a) do Código Penal;
8. A desistência de queixa apresentada pelo Assistente é irrelevante, atenta a natureza pública do ilícito em apreço;
9. A prova dos factos constantes do Requerimento de Abertura da Instrução constitui-se, indiciariamente, com as declarações do Assistente prestadas em sede de instrução e com toda a prova documental junta aos autos, designadamente, o acervo de ficheiros e documentos constantes do DVD oportunamente junto.
10. Existem, assim, indícios suficientes da prática do apontado crime por parte da arguida BB,
11. Impondo-se, assim, a prolação de despacho de pronúncia em conformidade.
Nestes termos, requer a V/ Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, que seja revogada a decisão proferida, e substituída por outra que determine a pronúncia da arguida BB por um crime de violência doméstica, p. p, pelo artigo 152º, nº 1 b) e nº 2 a) do Código Penal, (…)”.


2.2. Notificada a arguida do recurso interposto silenciou.

2.3. Da posição assumida pelo Ministério Público
O Ministério Público embora não tenha contra-alegado apresentou requerimento defendendo o acerto da decisão recorrida.

2.4. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo assistente.

2.5. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a apurar é a de saber se existem indícios suficientes da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível, pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 alínea a) do CP, com a consequente necessidade de proferir despacho a pronunciar a arguida BB.
3. Apreciação do recurso interposto pelo assistente/recorrente AA
O assistente AA interpôs recurso da decisão de não pronúncia da arguida BB, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do CP.
Os factos que o assistente/recorrente imputou à arguida são os constantes do requerimento de abertura de instrução por si apresentado.
O assistente apresentou denuncia onde imputou à arguida BB a prática de factos, em vários momentos da vida conjugal, consistentes em aquela lhe ter dirigido expressões como "és um trambolho", "mentiroso", "tarado", "és uma boa merda", "és um miserável", "nojento", "és um falhado'', "és um palhaço ", "és um ser deprimente e sem escrúpulos", "és um burro'', "estúpido'', "anormal'', "ordinário'', "porco'', "és um filho da puta'', "estafermo'', e "patego"; "andas nas putas" e "estás atrasado porque andas na putaria" e "paneleiro'', "não vales nada'', "não tens picha para me foder como deve ser'', "eu só ando com gajos ricos e poderosos e todos vão saber que tenho amantes".
Denunciou, também, o assistente, entre o mais, que a arguida lhe havia destruído várias peças de mobiliário, objetos pessoais, material informático, bem como a porta principal da residência e o respetivo vidro.
O assistente/recorrente salientou ter indicado como meio de prova o conteúdo de um DVD que juntou aos autos, contendo vários ficheiros com imagens, documentos e cópias de conversas havidas entre ambos através das plataformas Whatsapp e Messenger, das quais, refere, poder extrair-se o teor das expressões proferidas pela arguida.
Para o recorrente as expressões utilizadas, no seio do casal, não podiam deixar de ser idóneas a rebaixá-lo e a humilhá-lo como homem, cidadão e profissional, integrando o conceito de maus tratos psíquicos. Tendo objetivamente, as expressões proferidas pela arguida pretendido e conseguido minimizar e inquietar o assistente, inferiorizando-o como homem, designadamente, troçando da sua capacidade sexual. Na ótica do recorrente a sua dignidade pessoal foi posta em crise, prolongando-se a atuação da arguida praticamente por todo o período de duração do relacionamento.
Conclui o recorrente referindo constituir prova dos factos as declarações tomadas a si em sede de instrução e a prova documental (o conteúdo do DVD). Daí não ocorrerem dúvidas de que as expressões reiteradamente dirigidas pela arguida ao assistente integram o conceito de maus-tratos psíquicos, e, em consequência, encontra-se indiciada a prática do crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do CP. Como este ilícito criminal tem natureza pública, a desistência apresentada pelo assistente é processualmente irrelevante, impondo-se e, assim, a pronúncia da arguida BB.
Vejamos, se assiste razão ao assistente, começando por salientar que o artigo 287.º do CPP, sob a epígrafe “Requerimento para abertura da instrução”, dispõe que “A abertura da instrução pode ser requerida (…) b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação e o artigo 286.º, n.º 1 do CPP estabelece que "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”[1] (sublinhado nosso).
O requerimento de abertura da instrução (RAI) consiste, assim, num modo de reação do assistente ao despacho de arquivamento, proferido pelo MP.
Quando o requerimento de abertura da instrução é apresentado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos consubstanciadores do ilícito, cuja prática é imputada ao agente do crime. O RAI mais não é que uma acusação alternativa sujeita a comprovação judicial por parte do juiz de instrução criminal (JIC). Daí aquele requerimento dever cumprir os requisitos exigidos pelo n.º 2 do artigo 287.º e pelo artigo 283.º, n.º 3, alíneas a) a f) do CPP.
A razão, todavia, que conduziu o JIC a não admitir a prossecução da instrução contra a arguida quanto ao crime de violência doméstica não foi qualquer falta de alegação factual, pois nesse conspecto o assistente cumpriu os requisitos legais exigidos por aqueles normativos citados.
Foi com base em outro fundamento, mais concretamente na falta de verificação de um pressuposto de procedibilidade, que o Tribunal a quo não permitiu a prossecução da instrução, pois o crime de violência doméstica não foi objeto de investigação na fase de inquérito.
Estando apenas em causa neste recurso o segmento do despacho proferido pelo JIC que, analisando a questão prévia de falta de um pressuposto de procedibilidade, não permitiu a prossecução da instrução quanto ao crime de violência doméstica, por este não ter sido investigado em sede de inquérito, vejamos se assiste razão ao recorrente.
O despacho de arquivamento, prolatado pelo MP, efetivamente não se debruçou sobre qualquer eventual prática do crime de violência doméstica, por parte da arguida BB sobre o assistente AA, pois essa materialidade não foi investigada em sede de inquérito. E não foi investigada, pois o aqui assistente quando apresentou a queixa nunca o fez quanto ao crime de violência doméstica nem assinalou ter ocorrido qualquer dolo característico inerente a este tipo legal (a intenção de rebaixar, de amesquinhar, de dominar).
Como assinalou o JIC, em sede de inquérito, os factos foram tratados como denunciados e, naturalmente, considerados na investigação os elementos subjetivos (dolo) inerentes à eventual prática dos crimes de extorsão (artigo 223.º do CP), burla (artigos 217.º a 218.º do CP), denúncia caluniosa (artigo 365.º do CP), difamação agravado (artigos 180.º e 184.º do CP), injúria agravada (artigo 181.º do CP), falsidade de depoimento (artigo 359.º a 361.º do CP), simulação de crime (artigo 366.º do CP), dano (artigo 212.º a 213.º do CP), coação (artigos 217.º e 218.º do CP), ameaça (artigos 153.º e 155.º do CP) e roubo (artigo 210.º do CP).
Os factos denunciados pelo assistente, desacompanhados do dolo característico do crime de violência doméstica, não foram, investigados pelo MP, o titular da ação penal, pois a alegada vítima não o referenciou. Daí, naturalmente, o despacho de arquivamento, prolatado pelo MP, não ter apreciado eventuais indícios sobre a prática do crime de violência doméstica.
Se o assistente pretendia que a arguida fosse investigada, em sede de inquérito pelo MP, pela prática de factos constitutivos do crime de violência doméstica poderia ter, desde logo, assinalado, na denuncia, que as expressões utlizadas pela sua companheira o foram, no domicílio comum, durante toda a convivência marital e com a intenção de o amesquinhar, dominar, humilhar e rebaixar como homem, diminuindo sua dignidade e consideração pessoal e profissional causando-lhe profunda tristeza, ansiedade, intranquilidade, insegurança, angustia e perturbando a sua paz e sossego.
Ao ter denunciado os factos (objetivos e subjetivos) inerente aos crimes de extorsão, burla, denúncia caluniosa, difamação agravado, injúria, falsidade de depoimento, simulação de crime, coação e roubo o assistente acabou por indiretamente balizar a investigação penal.
Aliás se o MP tivesse acusado a arguida da prática do crime de violência doméstica, quando não investigou a materialidade subjacente a esse ilícito, a acusação estaria afetada de uma nulidade insanável, por falta de inquérito (cf. artigo 119.º, n.º 1, alínea d) do CPP). Como é assinalado no Acórdão desta Relação de Évora, datado de 8.9.2015, “A obrigatoriedade do inquérito em processo comum implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena (…)[2].
No caso, apesar de relativamente à arguida ter sido suscitada, em inquérito, a possibilidade de a mesma ser autora de factos ilícitos, não o foi concretamente quanto ao crime de violência doméstica. Daí que a abertura da instrução a requerimento do assistente não podia ter lugar quanto ao crime de violência doméstica, pois em sede de inquérito não foi suscitada a possibilidade de a arguida ser autora desse ilícito.
O MP, como titular da ação penal tem na fase de inquérito de equacionar e decidir se face aos indícios colhidos no inquérito um suspeito deve ser acusado da prática de um determinado crime. No caso em apreciação o próprio assistente/queixoso/recorrente não equacionou nem assinalou a hipótese de ter sido praticado o crime de violência doméstica, configurando ele próprio a atuação da ex-companheira como se subsumindo à prática de crimes como os de injúria, ameaça, difamação ou coação. Ora, quanto a estes crimes o assistente desistiu da queixa (devidamente homologada pelo MP) e quanto aos restantes o MP considerou não estarem suficientemente indiciada a sua prática, proferindo despacho de arquivamento.
Era, assim, inadmissível a instrução requerida pelo assistente visando a pronuncia da arguida pela prática de um crime de violência doméstica quando os factos que o consubstanciavam não haviam sido objeto de inquérito, precisamente por virtude de o queixoso/assistente nunca ter apresentado queixa por este ilícito e relativamente aos factos por si denunciados não ter alegado ou sequer aflorado que a atuação da sua ex-companheira teve como propósito maltratá-lo física e psiquicamente pretendendo humilhá-lo, diminuir a sua dignidade e consideração pessoal e profissional.
O MP investigou na fase de inquérito a factualidade relativa à eventual prática dos crimes de extorsão, burla, denúncia caluniosa, difamação agravado, injúria, falsidade de depoimento, simulação de crime, dano, coação, ameaça e roubo, de acordo com a queixa apresentada por AA. Assim, só o arquivamento do processo relativamente a esses crimes era suscetível de fundamentar um requerimento de abertura da instrução.
Como refere Germano Marques da Silva, referenciado no já citado Acórdão da RE, “essencial é apenas que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronuncia tenham sido objeto de inquérito sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (…) se o requerimento de instrução do assistente contiver factos que não tenham sido objeto do inquérito, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução em razão da nulidade prevista no artigo 119.º, n.º 1, alínea d) do CPP”.
É que a instrução não serve para proceder a um novo inquérito, aliás este é da competência exclusiva do MP. Ao JIC não compete realizar o inquérito nem pronunciar eventuais agentes pela prática de crimes não investigados naquela sede, mas tão só comprovar ou não a decisão do MP de acusar ou arquivar.
Assim, não tendo ocorrido inquérito contra a arguida BB pela prática do crime de violência doméstica o RAI apresentado pelo assistente, onde são articulados elementos objetivos e subjetivos desse ilícito, era inadmissível e daí ter sido tratado como questão prévia, no despacho judicial recorrido. Deste modo “Assegura-se (…) que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo Ministério Público, titular da ação penal, e sem que possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas.”[3]
Se o MP tivesse investigado o crime de violência doméstica e erradamente valorado como crime de injúria, difamação, coação, etc, nessa situação sim a decisão de arquivamento proferida com base na desistência de queixa por parte do assistente fundamentaria a sindicância da investigação por via da abertura de instrução. Já se posteriormente tivessem surgido novos elementos de prova invalidando os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, a solução seria a reabertura do inquérito (artigo 279.º do CPP), não a abertura da instrução. Por fim qualquer eventual insuficiência da investigação realizada pelo MP no inquérito teria de ser sindicada hierarquicamente por via de reclamação.
Pelos fundamentos explanados conclui-se não assistir razão ao recorrente, mantendo-se, em consequência, o despacho proferido que não admitiu a prossecução da instrução quanto ao crime de violência doméstica.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo assistente/recorrente e em consequência, mantem-se na íntegra, a decisão recorrida.
2. O assistente/recorrente pagará 4 UC de taxa de justiça (artigos 515.º n.º 1, alínea b) do CPP e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 21 de junho de 2022.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
Gilberto da Cunha


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[1] Os atos de instrução que o juiz entenda levar a cabo são tão só os necessários a prosseguir a finalidade de comprovação judicial da decisão do Ministério Público de acusar ou de não acusar.
[2] Proferido no processo 58/11.7MAOLH-A.E1 e relatado por António Latas.
[3] Idem Acórdão da RE já citado.