Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
205/18.8T8CTX.E1
Relator: MARIA JOÃO DE SOUSA E FARO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DOAÇÃO MODAL
ACEITAÇÃO DE DOAÇÃO
FORMA
CONCLUSÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário:
I- Tendo a Autora alegado e demonstrado que adquiriu a propriedade do imóvel em causa por contrato de doação, que registou a seu favor tal aquisição e que o Réu o ocupa, cumpriu integralmente o ónus de alegação e de prova necessário à tutela reivindicatória contemplada no referido art.º1311.º, n.º 1 do Cód.Civil.

II- Tendo o Réu excepcionado a ineficácia do contrato de doação por supostamente a aceitação não ter sido declarada ao doador, como o exige o art.º 945º, nº3 in fine, do Código Civil, era sobre ele, mercê do disposto no art.º 342º, nº2 do Cód. Civil, que recaía o ónus de o demonstrar.

III- A lei admite que a doação seja celebrada, quer entre presentes, quer entre ausentes, sendo que neste último caso, o receptor de uma proposta de doação não tem o ónus de a aceitar logo, podendo fazê-lo mais tarde mas só enquanto o doador for vivo (art. 945º, nº1 do Cód. Civil).

IV- Quando a proposta de doação não é aceita no próprio acto ou não se verifica a tradição, como aqui sucedeu, a aceitação tem de obedecer, nos termos do nº3 do mesmo art.º 945º do Cód. Civil , à forma prescrita no art.º 947º do mesmo código e ser declarada ao doador; o contrato só se considera, nesse caso, concluído com a recepção ou o conhecimento da aceitação pelo doador ( art.º 224º, nº1 do Cód. Civil);

V- Essa declaração do donatário pode ser feita por qualquer dos meios admitidos para a declaração negocial ( art.º 217º e segs do Cód. Civil) (sumário da relatora)

Decisão Texto Integral:

1 – RELATÓRIO
1. N… demandou J… pedindo a condenação deste a restituir-lhe o prédio misto, composto de parte urbana, por casa de habitação, e de parte rústica, sito na localidade do …, freguesia do Vale da Pedra, concelho do Cartaxo, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº … desta freguesia, inscrito na respectiva matriz urbana sob os artigos … e … , com fundamento no facto de a Autora ser titular do direito de propriedade por via de doação efectuada pelo seu avô e pai do ora Réu e este não ter título para o ocupar.

Na contestação, por excepção, o R. suscitou a ineficácia da doação por caducidade da proposta de doação, com fundamento no facto de esta não ter sido declarada ao doador e deduziu reconvenção (a título subsidiário) mediante a qual pediu a condenação da Autora/Reconvinda no pagamento ao Réu/Reconvinte da quantia de €6.983,14 a título de benfeitorias realizadas no imóvel, cuja restituição é pedida.

2. Realizada audiência final veio, subsequentemente, a ser proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:

“Em face da argumentação expendida e do disposto, em especial, nos artigos 216º, 940º, 945, 947º, 1273º e 1311º, do Código Civil, julga-se a presente acção procedente, por provada e a Reconvenção parcialmente procedente por parcialmente provada, em consequência:
A) – Condena-se o Réu J… a entregar à Autora N… o prédio misto, sito no .., freguesia de Vale da Pedra, concelho do Cartaxo, composto a parte urbana por uma casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, a parte rústica por vinha e oliveiras, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o número …, da freguesia de Vale da Pedra, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo … e na matriz rústica sob o artigo … da secção AF
B) Condeno a Autora reconvinda N… a pagar ao Réu/Reconvinte J…, a quantia de € € 1.030,60 (mil e trinta euros e sessenta centavos) a título de indemnização por benfeitorias, absolvendo-a quanto ao mais pedido.”.

3. É desta sentença que o R. recorre, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

I – O Tribunal a quo condenou o R. J… a entregar à A. N…, o prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o n.º …, da freguesia de Vale da Pedra e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e na matriz predial rústica sob o artigo …, seção AF e condenou a A. reconvinda N… a pagar ao R. reconvinte, J…, a quantia de 1030,60 euros, a título de indemnização por benfeitorias, absolvendo-a quanto ao mais no pedido, sucede que a sentença é nula.

II – Na verdade, o facto que foi dado como provado sob o 2.1.5. (Em data não concretamente apurada, mas antes de julho de 2009, F… teve conhecimento da aceitação da doação do imóvel referida no ponto 2.1.2.) não foi alegado pela Autora, consistindo o mesmo num facto essencial à procedência da ação.

III – Os factos essenciais a que alude o 5.º, n.º 2, al. c) do CPC são concretizadores de outros que se encontrem alegados.

IV – A declaração ao doador da aceitação e o modo como foi realizada consistem assim em factos essenciais - art. 945.º, n.º 3 do Código Civil.

V – Sucede que, a A. pura e simplesmente não alegou o hipotético modo através do qual a aceitação da doação foi dada a conhecer ao doador – F…, bem como se a mesma foi realizada, pelo que não há qualquer possibilidade de concretização de tais factos essenciais.

VI – Como também, por cautela de patrocínio ainda se sustentará que não existe qualquer ressonância nos autos de que a A. se pretenda aproveitar do facto.

VII – Em suma, foi praticado um ato que a lei não admite que influiu na decisão da causa, v.g. foi dado como provado facto essencial que não foi alegado pela Autora – art.º 195.º do CPC, isto é, ocorreu uma nulidade que se invoca para todos os efeitos legais.

VIII – A decisão colocada em crise padece de erro de julgamento relativamente à matéria de facto e de direito.

IX– Em segunda linha existem pontos de facto incorretamente julgados: o Tribunal a quo deu nomeadamente como assente:

“2.1.5. Em data não concretamente apurada, mas antes de julho de 2009, F… teve conhecimento da aceitação da doação do imóvel referida no ponto 2.1.2.”, tendo o Tribunal formado a sua convicção com “base nos depoimentos das testemunhas M… e C…, conjugado com a análise das escrituras de proposta e de aceitação de doação e com as regras da experiência comum.

Por outro lado, e como decorre do escrito autenticado de fls. 14 e 15, F… doou à Autora o recheio do imóvel em 27/05/2009, ou seja, posteriormente à aceitação que ocorreu em 14/11/2008, o que, de acordo com as regras da experiência comum, revela que já tinha conhecimento da aceitação. Não faria sentido doar o recheio do imóvel se não soubesse já que a doação do imóvel tinha sido aceite.

Acresce que a aquisição por doação foi registada em 17/11/2008(vide certidão de registo predial de fls. 10 e 11), ou seja, antes do falecimento do doador em julho de 2009, pelo que nessa altura já o R. sabia da doação. Tanto assim é que, logo no mês seguinte, outorgou a escritura de habilitação de herdeiros e declarou os bens do falecido na Autoridade Tributária…”.

X – Sucede que, nada no depoimento integral de M… e de C… resulta no sentido de que foi transmitida ao doador a aceitação da doação e o respetivo modo.

XI – Na verdade, a prova produzida impunha decisão diversa da dada como assente pelo Tribunal a quo, com efeito, nada disseram as testemunhas sobre a transmissão ao doador da aceitação e do seu modo, do primeiro minuto e vinte segundos ao décimo quarto minuto e dezoito segundos do depoimento da testemunha M…, da gravação da audiência de julgamento no dia 26 de setembro de 2019.

Juiz de Direito: Conhece a casa e o senhor F…?

Testemunha: Conhecia há muitos anos o senhor F…e conheço há muitos anos o senhor Joaquim.

Mandatária da A.: Tem conhecimento de alguma doação que o senhor F… fez à senhora N…?

Testemunha: O senhor F… doou a casa à neta, derivado a que, um dia a neta chegou ao Cartaxo, o senhor J… estava em casa porque tinha vindo da Alemanha porque vivia com o pai àquela altura na casa. Ela trazia a neta do senhor J… e ele nem sequer desceu para cumprimentar a filha e a neta, estavam chateados. Aí o Senhor F… falou connosco, com o meu marido a dizer que gostava de fazer uma doação à neta. Sabia que o pai nunca lhe ligou muito e que ela ia ficar sem os bens, uma vez que o Senhor F… tinha vários andares e aí começou ele a tratar dos papéis da doação aonde quem acompanhou essa doação foi o meu marido, eu simplesmente acompanhei uma vez ao notário, mas quem entrou para dentro para a doação e os papéis foi o meu marido.

Mandatária da A.: Quem se apresentou na doação foi o senhor seu marido – C…?

Testemunha: Ele apresentou-se na doação a representar a N….

Mandatária da A.: A senhora sabe se essa doação do senhor F… à neta foi dada a conhecer ao senhor J…?

Testemunha: De princípio quando o pai a fez, não teve porque o pai dizia sempre que o filho só viesse a saber depois da morte dele, mas lá está, as pessoas às vezes por serem leais perdem, a minha sobrinha não achou o direito de o pai não saber, então ela informou o pai que o avô lhe tinha dado a casa, aonde lhe deu também o automóvel, o carro que existia naquela altura e o papel com o recheio da casa e daí o pai (J…) não gostou muito mas também não aceitou e as coisas ficaram assim, até porque depois com o tempo é que as coisas ficaram... o senhor J… teve conhecimento da doação porque a N… contou, isso foi mesmo à minha porta porque as casas são juntas, foi mesmo no quintal. Este episódio tive eu como testemunha. Desse conhecimento da N… ao pai, não houve grande manifestação de desagrado, eles eram amigos. A minha sobrinha vinha de férias e ia com o pai para o Algarve, ia para a casa dele. Há três ou quatro anos fora, juntos para o Algarve e lá se zangaram e a minha sobrinha nunca mais voltou a Portugal e desencadeou todo este processo.

Mandatária da A.: Quando o senhor F… fez a doação à neta, este estava bem?

Testemunha: Sim, o meu cunhado ainda estava bem.

Mandatária da A.: Quando o senhor C… representou a N…, também foi dado conhecimento a esta?

Testemunha: Sim o meu marido tinha uma autorização para poder representar a N….

(…)

XIII – Assim, pelo teor dos aludidos depoimentos, não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que a aceitação da doação foi transmitida ao doador.

XIV – A sua consideração impunha uma decisão distinta relativamente à matéria de facto que se encontra vertida em 2.1.5. da sentença em crise, pelo que, salvo o devido respeito, encontra-se incorretamente julgado, porquanto não foi produzida qualquer prova.

XV – Mas, todos os outros fundamentos elencados pelo Tribunal para dar como provado o facto 2.1.5. não podem subsistir.

XVI – Quanto à doação do recheio do imóvel, não é pelo facto de se realizar esse negócio, que o doador tem conhecimento que a aceitação da doação ocorreu até porque se tratam de negócios jurídicos independentes.

XVII – A outorga de um, não implica necessariamente a celebração do outro.

XVIII – Neste âmbito, também não se descortina como é que o registo da doação, que é realizado pelo donatário, tenha implícita uma comunicação ao doador da aceitação.

XIX – Ou que a celebração de uma escritura de habilitação de herdeiros e a declaração de bens do falecido à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), atos que são obrigatórios e cuja omissão legitima até a AT a sancionar o incumprimento da obrigação declarativa tenham subjacentes a comunicação da aceitação da donatária ao doador.

XX – Em resumo, a consideração dos depoimentos identificados em 21 e 22 e as regras da experiência comum impunham, isso sim, uma decisão diversa quanto ao facto dado como provado sob o n.º 2.1.5., isto é, que a aceitação não foi declarada ao doador.

XXI – E, como tal, deve ser revogada a decisão, declarando-se a ineficácia da doação.

XXII – A matéria de facto incorretamente julgada estende-se aos números 2.2.1., 2.2.2 e 2.2.3. que integram a matéria de facto que não foi dada como provada e que têm o seguinte teor:

“2.2.1. Em 25 de julho de 2012 e 27 de agosto de 2012, o ora Réu J…, despendeu em serviços de construção para manutenção e conservação do prédio referido no ponto 2.2.1. as quantias de € 1650,00 e € 3017,00;

2.2.2. Em 5 de junho de 2012 e 1 de outubro de 2012, o ora Réu J…, despendeu em materiais de construção para um dos portões do prédio referido no ponto 2.1.1., as quantias de € 15,45 e € 12,50 respetivamente;

2.2.3. Em 08/04/2011, o ora Réu J…, despendeu em materiais de construção para manutenção do depósito de combustível que proporciona o aquecimento à casa, a quantia de € 107,00.”

XXIII – O Tribunal motivou a sua decisão quanto a estes pontos de facto da seguinte forma:

“A factualidade descrita nos pontos 2.2.1., 2.2.2. e 2.2.3., não encontra equivalência nas faturas juntas, nem a sua concretização decorre dos depoimentos a este propósito prestados. É que não basta juntar uma fatura com uma descrição genérica de “trabalhos de construção civil” – é preciso concretizar, e a verdade é que a produção de prova sobre esta factualidade não foi concludente, pelo que ao tribunal não restava outra alternativa que não fosse dar tal factualidade como não provada”.

XXIV – Em primeiro lugar, as faturas de € 1650 e € 3017 que o tribunal entendeu não serem suficientes para que se dê a factualidade como assente têm o beneficiário da prestação e o serviço prestado.

XXV – As faturas cumprem assim os requisitos fiscais, referem a morada do R. e o seu teor é de “serviços de construção civil”.

XXVI – A própria A. confessa nos autos a realização das benfeitorias, como ressuma das alegações finais.

XXVII – Pelo que, com a consideração dos documentos juntos com contestação sob os números 9 e 10 (fls. 47 verso e 48 dos autos), conjugados com as regras da experiência comum, deviam conduzir a que se desse como assente os factos que titulam e por isso revogada a sentença.

XXVIII – O mesmo se dirá relativamente às faturas que foram juntas para prova da factualidade a que sentença alude sob os números 2.2.2. e 2.2.3., isto é, os factos devem ficar como assentes.

XXIX – As faturas a fls. 47 verso e 48 dos autos têm, em primeiro lugar, o beneficiário da prestação e o serviço prestado, cumprem os requisitos fiscais e referem a morada do R.

XXX – A própria A. confessa nos autos a realização das benfeitorias, como ressuma das alegações finais.

XXXI – Pelo que, com a consideração dos documentos juntos com contestação sob os números 12 e 14 (fls. 47 verso e 48 dos autos), conjugados com as regras da experiência comum, deviam conduzir a que se desse como assente os factos que titulam.

XXXII – Em resumo, as faturas são o meio de prova idóneo a relativamente aos factos nela descritos.

XXXII – A consideração das faturas a fls. 47 verso e 48 dos autos em articulação com as regras da experiência comum impunha uma decisão diversa relativamente aos factos 2.2.1., 2.2.2. e 2.2.3. dos factos que a sentença deu como não provados.

XXXIII – Mas caso existissem dúvidas, a consideração do depoimento de J… aponta no sentido da realização de tais obras de construção civil.

XXXIV – E do primeiro minuto e cinco segundos ao sexto minuto e cinquenta e sete segundos do depoimento da testemunha J…, gravação da audiência de julgamento no dia 26 de setembro de 2019.

Mandatário do R.: Conhecia o senhor F…?

Testemunha: Conhecia perfeitamente porque de vez em quando ia à sua casa, falava comigo, eu fazia-lhe o IRS, fazia contratos de arrendamento também, era muito amigo dele e contava- me várias coisas até.

(…)

XXXV– Assim, a plena consideração deste depoimento impunha uma decisão diversa relativamente aos relativamente aos factos descritos em 2.2.1., 2.2.2. e 2.2.3. que a sentença deu como não provados. Isto é, não resultam dúvidas de que o R. fez reparações de construção civil para a conservação da habitabilidade do prédio misto e, como tal, tais factos devem ficar como assentes, condenando-se a reconvinda ao pagamento de uma indemnização de valores idênticos àqueles titulados pelas faturas juntas com os números 9, 10, 12 e 14 da contestação.

XXXVI – O erro de julgamento estende-se à matéria de direito, o tribunal entendeu que a aceitação foi declarada ao doador, porque sustenta que este obteve conhecimento da aceitação pela donatária, impendentemente do modo como foi emitida a declaração.

XXXVII – Ora, essa interpretação viola o previsto no art. 945.º, n.º 3 do Código Civil.

XXXVIII – Se é verdade que essa comunicação pode ser efetuada por qualquer um dos meios para emitir a declaração negocial, a verdade é que a norma impõe, para obviar à ineficácia da doação, a concretização do modo e as circunstâncias temporais da declaração.

XL – Trata-se de uma imposição do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica.

XLI – Não tendo interpretado de tal forma a norma, o tribunal violou a sua previsão e, consequentemente, a doação deve ser declarada ineficaz.

XLII – Assim, a sentença deve ser revogada, utilizando-se, também, o princípio da livre apreciação da prova.

Termos em que e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, tudo com as legais consequências, fazendo-se, assim, a habitual JUSTIÇA.”.

4. Contra-alegou a Autora defendendo a manutenção do decidido.

5. OBJECTO DO RECURSO

Como se viu, no caso, apela-se da sentença que conheceu do mérito da acção, circunscrevendo-se o objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2, todos do CPC) às seguintes questões:

5.1. Se a sentença enferma de nulidade por ter alegadamente ter afirmado como provado um facto não alegado.

5.2. Impugnação da matéria de facto: Se o facto vertido em 2.1.5 do rol dos “ Provados” deveria ter sido considerado “ Não Provado” e se, ao invés, os insertos nos pontos 2.2.1., 2.2.2. e 2.2.3 deveriam ter sido dados como “Provados”;

5.3. Reapreciação do mérito da decisão de direito: da (in) eficácia da doação do imóvel à luz do disposto no nº3 do art.º 945º do CPC.

II- FUNDAMENTAÇÃO

i) Da imputada nulidade da sentença

Entende o apelante que a sentença será nula (por via do disposto no art.195º do CPC) por, apesar de não ter sido jamais alegado pela Autora de que havia dado conhecimento da aceitação da doação ao doador, o Tribunal ter considerado tal facto como provado.

Vejamos.

Conquanto o ónus de alegação dos factos que compõem a causa de pedir seja do Autor, nada impede que sendo esses mesmos factos trazidos ao processo pelo Réu, os mesmos sejam considerados pelo Tribunal.

É o que resulta do princípio da aquisição processual que, no dizer de Manuel de Andrade[1] – e que mantém plena actualidade – se traduz no facto de os “materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (…)”.

Logo, os factos essenciais podem ser trazidos ao processo por qualquer das partes para que o juiz deles possa deles conhecer, sendo indiferente saber se foi o autor que alegou e provou um facto que integra uma excepção peremptória invocada pelo réu ou se foi este que alegou e provou um facto que integra a causa de pedir da acção.

Por isso, ainda que recaísse sobre a Autora – e não recai, como veremos- o ónus da alegação dos factos atinentes à eficácia da doação, designadamente o que se prende com a comunicação da aceitação ao doador, sempre seria admissível que fossem considerados, como o foram, porque suscitados na contestação (cfr. art.º11º), vindo, aliás, a integrar os temas da prova na sequência da sua impugnação na réplica.

De todo o modo, sempre se diga que a ter ocorrido violação do princípio do dispositivo nesse conspecto, a cominação seria apenas a de dar por não escrita a matéria aditada.

É, aliás, o que decorre da aplicação ao caso do regime das nulidades processuais constante do art.º 195º nº 1 do CPC e do princípio do aproveitamento máximo dos actos processuais ínsito no nº2 do mesmo normativo.

De qualquer modo, nenhuma nulidade foi, no caso cometida, e, por consequência, a sentença também não padece de qualquer invalidade.

ii) Impugnação da matéria de facto

a. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida e que é, nos factos assinalados, objecto de impugnação:

(…)
b. Entende o apelante que o facto vertido em 2.1.5. (Em data não concretamente apurada, mas antes de Julho de 2009, F… teve conhecimento da aceitação da doação do imóvel referida no ponto 2.1.2.) não deveria ter sido considerado provado porquanto a prova testemunhal invocada para o motivar não o consentia, nem o recurso à presunções judiciais o autorizava.

Para justificar a sua decisão, referiu o Tribunal “a quo”: “No que diz respeito ao conhecimento das doações, tal como descrito nos pontos 2.1.5. e 2.1.6., o tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos das testemunhas M… e C…, conjugado com a análise das escrituras de proposta e de aceitação de doação e com as regras da experiência comum.

Por outro lado, e como decorre do escrito autenticado de fls. 14 e 15, F… doou à Autora o recheio do imóvel em 27/05/2019, ou seja, posteriormente à aceitação que ocorreu em 14/11/2008, o que, de acordo com as regras da experiência comum, revela que já tinha conhecimento da aceitação. Não faria sentido doar o recheio do imóvel se não soubesse já que a doação do imóvel tinha sido aceite.

Acresce que a aquisição por doação foi registada em 17/11/2008 (vide certidão do registo predial de fls. 10 e 11), ou seja, antes do falecimento do doador em Julho de 2009, pelo que nessa altura já o Réu sabia da doação. Tanto assim é que, logo no mês seguinte, outorgou a escritura de habilitação de herdeiros e declarou os bens do falecido na Autoridade Tributária, como se retira da escritura de habilitação de fls. 38v e 39v e das cadernetas prediais de fls. 40 e ss.

Assim do conjunto destes depoimentos e da análise desta documentação, conjugada com as regras da experiência comum, o tribunal não teve quaisquer dúvidas em fixar esta factualidade nos exactos termos em que o fez.”.

Ouvimos os depoimentos de V… e C…, tios do Réu J… e da Autora N… e cunhados do falecido F….

Efectivamente, aos mesmos apenas foi perguntado se o R. J… tinha tido conhecimento da doação do imóvel.

Porém, desses depoimentos se depreende que o falecido não pode ter deixado de ter conhecimento da aceitação da doação por parte da neta, N…, pois, como referiram ambos, o dito F… fazia as suas refeições diárias na casa das mesmas testemunhas, sendo que C… foi procurador da Autora N… na escritura de aceitação da doação.

Era, pois, inevitável que tivesse dado conhecimento ao F… de que a sua neta tinha aceite a doação que ele lhe havia efectuado e que a testemunha havia sido incumbida de representar.

Se assim não fosse, não teria o menor sentido, como bem salienta o Tribunal “a quo”, que mais tarde viesse a doar o recheio do mesmo imóvel.

Porque razão a contemplaria com tal doação se não soubesse que ela havia aceitado a do imóvel onde o mesmo se integrava?

Como se salienta no Ac. do STJ de 5.6.2018, «a presunção judicial implica: (i) um facto conhecido, estabelecido no processo, (ii) um juízo de normalidade ou razoabilidade sindicável, (iii) a afirmação de um facto desconhecido com base na sequência dos pressupostos anteriores».

No caso, o recurso à presunção judicial revela-se devidamente motivado e justificado à luz dos referidos pressupostos e do disposto no art.º349º do Cód. Civil, sendo, portanto de manter a resposta que ao facto em apreço foi dada pela 1ª instância[2].

Insurge-se igualmente o apelante contra a resposta dada aos factos insertos nos pontos 2.2.1. (2.2.1. Em 25 de Julho de 2012 e 27 Agosto de 2012, o ora Réu J…, despendeu em serviços de construção para manutenção e conservação do prédio referido no ponto 2.2.1. as quantias de €1.650,00 e €3.017,00 ) 2.2.2. ( Em 05 de Junho de 2012 e 01 de Outubro de 2012, o ora Réu J…, despendeu em materiais de construção para um dos portões do prédio referido no ponto 2.1.1., as quantias de €15,45 e €12,50 respectivamente) e 2.2.3. (Em 08/04/2011, o ora Réu J…, despendeu em materiais de construção para manutenção do depósito de combustível que proporciona o aquecimento à casa, a quantia de €107,00 ) por entender que as “faturas a fls. 47 verso e 48 dos autos em articulação com as regras da experiência comum impunha uma decisão diversa” relativamente aos mesmos.

Não podemos deixar de acompanhar a motivação expendida pelo Tribunal “ a quo” para os considerar “ não provados” : “A factualidade descrita nos pontos 2.2.1., 2.2.2. e 2.2.3., não encontra equivalência nas facturas juntas, nem a sua concretização decorre dos depoimentos a este propósito prestados. É que não basta juntar uma factura com uma descrição genérica de “trabalhos de construção civil” – é preciso concretizar- , e a verdade é que a produção de prova sobre esta factualidade não foi concludente, pelo que ao tribunal não restava outra alternativa que não fosse dar tal factualidade como não provada.”.
Ademais, o depoimento da testemunha, J…, pela sua vaguidade, não permite afirmar o contrário.
Termos em que se desatende a pretensão do apelante de os ver alterados.

iii) Reapreciação do mérito da decisão de direito: da (in) eficácia da doação do imóvel à luz do disposto no nº3 do art.º 945º do CPC.

a. Nos termos do disposto no art.º 1311º do Cód. Civil, "O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence."

Esta acção é exercida pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor que não é proprietário da coisa, isto é, só pode utilizá-la o proprietário que não está na posse contra o possuidor, que não é o proprietário.

Nas acções reais - dentre as quais a acção de reivindicação constitui verdadeiro paradigma - a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (art. 498º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil) in casu o direito de propriedade.

Temos, assim, que “a indicação da causa de pedir só estará completa se o reivindicante indicar uma aquisição originária, ou melhor, aclarar como se constituiu o seu direito real”[3] .

Essa aclaração, terá o reivindicante de a fazer alegando factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou de qualquer um dos intervenientes na cadeia de transmissões verificadas até o direito se encontrar na sua titularidade. Por isso que, uma de duas: ou o reivindicante “invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão” - caso em que apenas necessitará de alegar e provar os factos de que emerge o seu direito, visto que, uma vez demonstrada, por exemplo, a usucapião, “a reivindicação procede sempre, uma vez que, por ela, se extinguem todos os direitos anteriores em contrário” -, ou o reivindicante invoca como título do seu direito uma aquisição derivada (v.g. contrato de compra e venda, doação, sucessão hereditária, etc.) - hipótese em que terá de alegar os factos concretos tendentes a mostrar, não apenas que adquiriu a coisa por um título legítimo, mas ainda que o direito de propriedade já existia na esfera jurídica do transmitente[4] .

Porém, quando a aquisição do direito de propriedade a favor do reivindicante é registada, vale a presunção constante do art.º 7º do Código de Registo Predial[5], o que o dispensa de provar a aquisição originária, bem como a eventual cadeia de aquisições derivadas anteriores à aquisição que fez inscrever.

No caso, parece-nos evidente que a Autora alegou e demonstrou que adquiriu a propriedade do imóvel em causa por contrato de doação, que registou a seu favor tal aquisição e que o Réu o ocupa, i.e. cumpriu integralmente o ónus de alegação e de prova necessário à tutela reivindicatória contemplada no referido art.º1311.º, n.º 1 do Cód.Civil.

É certo que a presunção da propriedade de que a Autora beneficia por via da inscrição no registo poderia, no entanto, ter sido ilidida pelo Réu desde que tivesse demonstrado a ocorrência de qualquer facto impeditivo, extintivo ou modificativo do direito da mesma Autora – Cfr. art.ºs 350.º n.º 2 e 342.º n.º 2 do Cód. Civil.

Como se referiu, o Réu excepcionou a ineficácia do contrato de doação por supostamente a aceitação não ter sido declarada ao doador, como o exige o art.º 945º, nº3 in fine.

Mercê do disposto no art.º 342º, nº2 do Cód. Civil era, pois, sobre o Réu que recaía o ónus de o demonstrar.

Não o logrou.

Aliás, resultou provado que o doador teve conhecimento da aceitação.

b. Argumenta ainda o Réu /apelante que o Tribunal entendeu que a aceitação foi declarada ao doador porque considerou que a declaração pode ser feita por qualquer dos meios admitidos para a declaração negocial, o que no seu entender viola o previsto no art.º 945.º, n.º 3 do Código Civil que impõe a concretização do modo e as circunstâncias temporais da declaração.

Vejamos.

“O contrato de doação está sujeito a regras diferentes para a sua formação do que as que vigoram para o comum dos negócios jurídicos. Assim, a lei admite que a doação seja celebrada, quer entre presentes, quer entre ausentes”.[6]

Neste último caso, o receptor de uma proposta de doação não tem o ónus de a aceitar logo, podendo fazê-lo mais tarde mas só enquanto o doador for vivo (art. 945º, nº1 do Cód. Civil).

Logo, quando a proposta de doação não é aceita no próprio acto ou não se verifica a tradição, como aqui sucedeu, a aceitação tem de obedecer, nos termos do nº3 do mesmo art.º 945º, à forma prescrita no art.º 947º [7]e ser declarada ao doador.

O contrato só se considera concluído com a recepção ou o conhecimento da aceitação pelo doador ( art.º 224º, nº1 do Cód. Civil).[8]

Como nos esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[9], essa declaração do donatário pode ser feita por qualquer dos meios admitidos para a declaração negocial ( art.º 217º e segs) tendo sido posta de lado a ideia de exigir para o efeito a notificação judicial da aceitação do devedor.

Portanto, aquela objecção do apelante não tem o menor sentido.

Face a todo o exposto e perante o que resultou provado (2.1.5. Em data não concretamente apurada, mas antes de Julho de 2009, Francisco Pires Pratas teve conhecimento da aceitação da doação do imóvel referida no ponto 2.1.2.) improcede em toda a linha a excepção de ineficácia da doação suscitada pelo Réu/apelante, como acertadamente se decidiu na sentença recorrida.

Provou-se igualmente que o referido imóvel se encontra ocupado pelo réu/apelante, pelo que nada obsta à procedência da acção reivindicatória, como, também, e bem, se sentenciou na 1ª instância.

Em consequência da rejeição da impugnação da matéria de facto versando a questão das benfeitorias, nada mais há acrescidamente a apreciar.

III- DECISÃO

Face a todo o exposto, acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 7 de Maio de 2020
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Ana Margarida Leite

__________________________________________________

[1] Noções Elementares de Processo Civil, pag.357.
[2] De todo o modo, ainda que não se tivesse mantido a redacção de tal facto, nem por isso a solução jurídica seria diferente pois, como se explicará, era sobre o Réu que recaía o ónus da prova dos factos atinentes à ineficácia da doação, prova essa que inequivocamente não fez.
[3] Neste sentido, Meneses Cordeiro, in “Direitos Reais”, II vol., 1979, p. 846
[4] Cfr., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. e vol. cit., p. 115) e Manuel Rodrigues, in “A Reivindicação...” cit., in loc. cit., págs. 161-162 e 177-178.

[5] “ O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
[6] Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, Almedina,2015, pag.166.
[7] Que impõe, sob pena de invalidade, que a doação de imóveis seja celebrada por escritura pública ou documento particular autenticado.
[8] Idem, Menezes Leitão, ob.cit.
[9] Código Civil Anotado, Vol. II, pag.238.