Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
583/19.1T8PTG-B.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: EXECUÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
TRANSMISSÃO DE CRÉDITO
ARTICULADO SUPERVENIENTE
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A transmissão do crédito na pendência da acção executiva não opera qualquer alteração no conteúdo do direito, nem tão pouco do pedido, que permanece o mesmo.
II. Por expressa previsão da lei, é admitido a permanecer na acção, litigando em nome próprio, quem já não é titular da relação material controvertida, estendendo-se o caso julgado ao verdadeiro titular (artigo 263.º do CPC).
III. Daí a irrelevância da falta (superveniente) de titularidade do transmitente, que não conduz à absolvição do pedido nem da instância, não constituindo, portanto, matéria de excepção susceptível de habilitar o Réu a deduzir articulado superveniente, sem prejuízo de a lei lhe conferir legitimidade para suscitar incidente de habilitação do transmissário (artigo 356.º, n.º 2, CPC).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 583/19.1T8PTG-B.E1
Tribunal Judicial da comarca de Portalegre
Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre – Juiz 2


I. Relatório
Por apenso à execução que lhe é movida pelo (…) Banco, SA, veio (…) deduzir embargos de executado, tendo invocado as excepções da ilegitimidade da exequente, incompetência em razão do território, insuficiência do título e inexigibilidade da obrigação exequenda, para além das excepções peremptórias da prescrição de juros e abuso de direito, requerendo a final a sua absolvição do pedido executivo.
A exequente contestou.
Pelo requerimento de 30/10/2019, veio o embargado, para além do mais, apresentar articulado superveniente, no qual alegou que em data posterior à da instauração dos embargos a exequente procedeu à venda de uma carteira de créditos à (…), na qual se incluiu, segundo informação que lhe foi prestada, o crédito exequendo, tendo aquela, portanto, deixado de ser a titular do mesmo.
Concluiu requerendo a admissão do articulado e, uma vez demonstrados os factos alegados, por força da procedência da excepção peremptória da falta de titularidade do crédito exequendo, a sua absolvição da instância executiva.
Por despacho datado de 9/12/2019 foi rejeitado o articulado oferecido, com fundamento na manifesta irrelevância dos factos nele alegados, considerando que, ainda a resultar demonstrada tal factualidade, sempre a cedente e aqui exequente manteria a legitimidade para prosseguir com a causa.

Inconformado, apelou o requerente/embargante e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com a decisão proferida, formulou a final as seguintes conclusões:
“A- A rejeição de um articulado superveniente só é admissível nos termos do disposto no artigo 588.º, n.º 4, do CPC, isto é, quando este, por culpa da parte, não seja tempestivo ou quando os factos essenciais aí alegados manifestamente não interessem à boa decisão da causa, de acordo com as várias soluções jurídicas possíveis;
B- A alegação de factos supervenientes que, se provados, determinam a procedência de excepção peremptória inominada de falta de titularidade do crédito ou ilegitimidade substantiva, com o consequente pedido ao tribunal que declare essa mesma falta de legitimidade material, manifestamente interessa à boa decisão da causa, de acordo com as várias soluções jurídicas possíveis;
C- A excepção dilatória de ilegitimidade na execução não se confunde com a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva: a primeira depende unicamente da verificação prevista no artigo 53.º do CPC; a segunda prende-se com o direito subjacente ao fundo da causa, podendo uma parte ter legitimidade para permanecer na demanda – que apenas perderá após a habilitação do cessionário – e, não obstante, não ver a sua pretensão atendida pelo tribunal por não ser quem, de um ponto de vista substantivo, é o titular do direito;
D- Em sede embargos de executado apresentados em execução titulada por documento particular autenticado, têm manifesto interesse para a boa decisão da causa os factos essenciais supervenientes que, se provados, põem em causa que o exequente seja titular do crédito exequendo;
E. A circunstância de não ser junto ao articulado o documento que comprova a cessão de créditos não prejudica a sua admissibilidade, quer por não estar demonstrado que a mesma não possa ser provada testemunhalmente, quer por, sem prejuízo do disposto no artigo 588.º, n.º 5, do CPC determinar que as provas são juntas com o requerimento, ser admissível em embargos de executado requerer a junção de documentos aos autos nos termos do disposto nos artigos 423.º, n.º 2 e 3, 429º, 432.º e 436.º todos do CPC.
Indicando como violadas as disposições legais contidas nos art.ºs 588.º, n.º 4, 731.º, 423.º, n.º 2 e 3, 429º, 432.º e 436.º, todos do CPC, requereu que, na procedência do recurso, fosse o despacho recorrido substituído por outro que admita o articulado superveniente oferecido.
Não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se o articulado superveniente oferecido pelo recorrente deveria, ao invés do que foi decidido, ter sido admitido.
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II. Fundamentação
À decisão importam os factos relatados em I., à luz dos quais se impõe decidir da admissibilidade do dito articulado superveniente, oferecido pelo embargante e aqui recorrente.
Rege a matéria o art.º 588.º do CPC (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua proveniência), nos termos do qual “Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.” (ide n.º 1). E diz-nos o n.º 2 do preceito que tanto são supervenientes os factos ocorridos posteriormente aos prazos marcados nos artigos precedentes (superveniência dita objectiva), como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses mesmos prazos (superveniência subjectiva), devendo neste caso produzir-se prova.
Apresentado o articulado com oferecimento da prova relativa aos factos alegados o juiz profere despacho de admissão ou rejeição, podendo esta fundamentar-se num duplo fundamento: o articulado foi apresentado fora de tempo, por culpa da parte; os factos não interessam à boa decisão da causa (n.º 4). E os factos que interessam são, conforme resulta do n.º 1, apenas os constitutivos, cujo ónus de alegação recai sobre o autor, os modificativos ou extintivos do direito, cuja alegação é incumbência do réu.
No caso dos autos o recorrente sustenta em sede de recurso que os factos por si alegados - e que, nos termos do pedido formulado no final do articulado apresentado, conduziriam à absolvição da instância - integram afinal a excepção peremptória da ilegitimidade substantiva da exequente/embargada, conducente à absolvição do pedido, cumprindo a previsão do n.º 1 do art.º 588.º, e que é diferente da ilegitimidade processual a que se referiu a Sr.ª juíza no seu despacho, devendo por isso ser admitido.
Chama assim o recorrente a atenção para o facto de, consequência da transmissão, que deu a conhecer no processo - ainda que sem juntar prova de que a mesma tenha ocorrido -, se verificar um desfasamento entre a relação material agora existente e aquela que existia aquando da dedução da pretensão em juízo, do que decorreria já não ser a exequente a titular do crédito exequendo, a determinar a sua absolvição do pedido na versão agora apresentada (ao invés da absolvição da instância, pela qual propugnara no articulado rejeitado).
É conhecida a distinção entre legitimidade para a causa e a dita legitimidade material ou substantiva, que atina à titularidade do direito – “legitimidade ad actum que consiste no complexo que representa os pressupostos da titularidade, por um sujeito, decerto direito que invoque ou que lhe seja atribuído” (cf. ac. do STJ de 4/7/2017, processo 5297/12.0TBMTS.P1.S1, em www.dgsi.pt), sendo certo que o art.º 30.º atribui legitimidade para a acção aos sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, assentando a solução legal numa presumida coincidência entre as partes na acção e os sujeitos da relação material. No caso das acções executivas a legitimidade das partes litigantes afere-se segundo um critério puramente formal: a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor (cfr. art.º 53.º, n.º 1).
A questão colocada atina, pois, aos efeitos da transmissão do direito em litígio quando ocorre na pendência da causa. É sabido que a transmissão do direito não interfere com o respectivo conteúdo, que se mantém idêntico, a despeito da modificação ocorrida na sua titularidade. E se nos termos da lei dessa transmissão pode resultar a modificação subjectiva da instância, com substituição do A. se estivermos perante a transmissão da situação activa, ou do R. se, ao invés, a transmissão tiver por objecto a situação passiva (art.º 262.º, al. a)), não é necessário que assim suceda, porquanto, conforme resulta do disposto no art.º 263.º, a lei confere ao transmitente legitimidade para continuar a litigar em defesa de um direito que já não é seu, decorrência do carácter facultativo da transmissão entre vivos, ao invés do que ocorre na transmissão “mortis causa”.
Conforme explica o Prof. Lebre de Freitas[1], o transmitente permanece na acção como substituto processual do transmissário, conferindo-lhe a lei legitimidade para o efeito. A partir da transmissão, o transmitente, que já não é titular da situação jurídica transmitida, substitui processualmente o adquirente, seu actual titular, litigando em nome próprio mas em prossecução de um interesse que só indirectamente é seu.
Mas se a legitimidade para a causa se mantém no transmitente, nos termos do n.º 3 do mesmo art.º 263.º, a sentença que vier a ser proferida vincula o transmissário, ainda que este não intervenha no processo, produzindo assim os seus efeitos quanto ao transmitente e transmissário, protegendo a parte estranha à transmissão de eventual pretensão deste último.
Em suma, como se deixou dito, a transmissão não opera qualquer alteração no conteúdo do direito, nem tão pouco do pedido, que permanece o mesmo, continuando a pretender-se a cobrança coerciva do mesmíssimo crédito, de modo que apenas com a habilitação a cessão assumirá relevância na acção pendente; não sendo requerida – sendo certo que a lei confere à parte contrária legitimidade para suscitar o incidente (cfr. n.º 2 do art.º 356.º) – a acção prossegue como até então seus regulares termos, vinculando o transmissário à decisão de mérito que aí venha a ser proferida (vide n.º 3).
Resulta do regime descrito que, por expressa previsão da lei, é admitida a permanência a litigar em nome próprio de quem já não é titular da relação material controvertida, estendendo coerentemente o caso julgado ao verdadeiro titular. Daí a irrelevância da falta (superveniente) de titularidade do transmitente, que não conduz à absolvição do pedido nem da instância, não constituindo, portanto, matéria de excepção susceptível de habilitar o R. a deduzir articulado superveniente. Sendo certo que, conforme se deixou já referido, nada obstava a que o ora recorrente tivesse deduzido incidente de habilitação do transmissário, o que optou por não fazer.
Improcedente o fundamento do recurso, impõe-se confirmar a decisão proferida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Sumário:
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Évora, 14 de Julho de 2020
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva

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[1] CPC anotado, vol. I, comentário ao art.º 271.º (a que sucedeu, apenas com pequeníssimos ajustes de redacção, o art.º 263.º), e Introdução ao Processo Civil, 2.ª edição, 2009, págs. 65-66, interessando particularmente nota 5-A nesta última página).