Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1288/15.8T8OLH-B.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A residência do devedor pessoa singular no estrangeiro não implica, só por si, a incompetência internacional dos Tribunais portugueses em matéria insolvencial;
2 - Situando-se o domicílio do devedor fora de Portugal, o processo de insolvência corre termos como processo particular de insolvência, com as especialidades consagradas no art. 295.º do CIRE.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1288/15.8T8OLH-B.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Requerida: (…)

Recorrida/ Requerente: (…) & Associados – Sociedade de Advogados, RL

Trata-se de um processo de insolvência requerido pela sociedade (…) & Associados com vista à declaração de insolvência da Requerida.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando procedente a ação, declarando a insolvência da Requerida.

Inconformada, esta apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que julgue a ação improcedente. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
I. «A ora Recorrente tomou conhecimento dos presentes autos no passado dia 31/7/2017, nos termos da notificação que se junta como documento nº 1, a qual foi endereçada para um apartado contratualizado pelo seu filho (…), nos termos do documento nº 3.

II. A ora Recorrente não se conforma com a decisão proferida nos presentes autos, uma vez que a mesma padece de inúmeras nulidades, tendo sido proferida sem audiência prévia da Recorrente, alegando-se para esse efeito o desconhecimento da residência da Recorrente.

III. A ora Recorrente apresentou os embargos que constam do documento nº 2.

IV. Ora, a primeira nulidade que a decisão recorrida padece, foi de não ter citado a ora Recorrente para a sua morada.

V. A ora Recorrente nunca foi citada para a morada correspondente ao seu domicilio, a qual constava do documento nº 8, junto com a PI, vide fls. 14, dos presentes autos,

VI. Assim, no caso dos presentes autos, a ora Recorrida, de modo a obter a insolvência da Recorrente, colocou como residência da Recorrente um apartado postal, sabendo muito bem que em virtude de determinações do concessionário do serviço postal universal, CTT SA, nos apartados não são depositadas cartas registadas com avisos de receção, sendo as mesmas devolvidas.

VII. Assim, conhecendo a ora Recorrida a morada efetiva da Recorrente, optou por enganar o tribunal, apondo na PI uma morada diversa da real e verdadeira, de modo a impedir a citação da Recorrente,

VIII. Este facto decorre de fls. 14 e dos documentos juntos 4 a 11, correspondentes as declarações de IRS apresentadas pela Recorrente e seu marido no Canadá.

IX. Em consequência deste truque, a Recorrida que apôs na PI a seguinte morada Rua da (…), Apartado (…), Vale de Garrão, vila (…), 8135-034 Almancil, correspondendo a um apartado, iludiu o tribunal, enganando-o.

X. Ora atentos os documentos juntos como seja o documento 12 que se junta agora, constituído por documento emitido pela Autoridade tributária, assim como o documento de fls. 112 dos presentes autos, e o documento junto aos autos a 9/5/2017, cuja certidão se junta, constituído por documento da segurança social, junto aos presentes autos, deve ser fixada como morada da ora Recorrente a seguinte morada; 69, (…) Drive, Toronto, Ontario, Canadá, Postal Code M9A4K2.

XI. Termos em que deve o tribunal da Relação de Évora, ao abrigo do disposto no artigo 665º do CPC, alterar a decisão recorrida, fixando esta a morada supra referida como domicilio da ora Recorrente,

XII. Conforme verificámos anteriormente, a decisão recorrida padece da primeira nulidade, não conheceu a residência da Recorrente, embora dispondo, conforme se referiu, de documentos autênticos que atestavam a referida morada.

XIII. Ora sendo a Recorrente residente no Canadá, a segunda questão que surge decorre com a ausência de competência dos tribunais portugueses para conhecerem processos de insolvência de pessoas não domiciliadas em Portugal.

XIV. Neste sentido, importa ter presente a norma da alínea e) do artigo 63º do CPC, a qual exige o domicílio em Portugal para os processos de insolvência.

XV. Contudo, havendo ainda a norma do artigo 7º do CIRE e do 294º do mesmo Código e do artigo 62º do CPC, poderia haver um factor de conexão que permitisse a competência dos tribunais portugueses para conhecer destas matérias.

XVI. Sucede contudo que na PI não foi alegado o referido factor de conexão, pelo que devem os tribunais portugueses declararem-se incompetentes para conhecer esta matéria.

XVII. Contudo tal matéria deveria ter sido alegada pela ora Recorrida, não podendo agora ser conhecida, pois não caberá aos Venerandos Desembargadores a correção ou aperfeiçoamento de P.I..

XVIII. Assim, e não tendo a ora Recorrida invocado qualquer norma de competência que permitisse a interposição da presente ação no Tribunal da Comarca de Faro, e sendo claro e inequívoco, nos termos dos documentos 8 da PI, que a ora Recorrente tem domicílio pelo menos desde finais de 2011 no Canada, sendo que a presente ação deu entrada, depressa se concluirá pela incompetência absoluta em razão de incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgarem os presentes autos.

XIX. Pelo que atenta a disposição constante do artigo 96º do CPC, conjugado com o artigo 99º deve ser em despacho liminar ser declarada revogada a Decisão Recorrida determinando-se a absolvição do Requerido em instância com as devidas consequências legais, declarando-se a incompetência Internacional dos Tribunais Portugueses, para o conhecimento dos presentes autos em virtude da inaplicabilidade da norma atributiva de competência constante do artigo 7º do C.I.R.E.

XX. A terceira nulidade que a decisão padece, foi o não conhecimento pela decisão recorrida da desistência do pedido decorrente da não apresentação pela Recorrida, na audiência de discussão e julgamento, do mandatário com poderes especiais para, podendo, transigir.

XXI. Por outras palavras, a ora Recorrida regularmente notificada para se fazer representar na referida audiência de discussão e julgamento com mandatário com poderes para transigir, não juntou aos autos tais poderes, ora não os tendo junto, os mesmos não foram conferidos, pelo que deveria o tribunal recorrido ter determinado de imediato a cominação prevista no artigo 35º do CIRE.

XXII. Ao não conhecer a não junção desta procuração e a não comparência de mandatários com poderes para transigir, a sentença recorrida padece de uma nulidade insanável, não cominou a Recorrida nos termos do artigo 35º do CIRE nem conheceu esta nulidade.

XXIII. Tanto mais que nos autos não consta que a ora Recorrida tenha feito representar-se na audiência de discussão e julgamento, por quem tivesse poderes para a representar, nos termos consignados no art.º 35º do CIRE.

XXIV. Ora, esta omissão de conhecimento constitui uma nulidade essencial, uma vez que na decisão ora recorrida não foi acatada pela Recorrida a disposição do art.º 35º do CIRE quanto esta estava notificada para dar devido conhecimento à mesma.

XXV. Termos em que deve o Tribunal da Relação de Évora, conhecer esta nulidade, sendo que ao conhecer deve substituir-se nos termos do disposto no art.º 665º do CC, ao Tribunal de 1ª Instancia, conhecendo a ausência de representação da ora Recorrida na Audiência de discussão e julgamento, nos termos previstos no art.º 35º do CIRE, devendo o Tribunal da Relação de Évora aplicar sem mais a disposição constante da referida citada legal.

XXVI. Igualmente a sentença recorrida padece da quarta nulidade ao invocar-se na matéria decisória a disposição da alínea c) do artigo 20º do CIRE, a qual apenas é aplicável sempre que há lugar a fuga do Requerido.

XXVII. Ora, não constante da matéria assente nos presentes autos muito menos da PI qualquer alegação ou facto assente respeitante a fugas, a decisão ora recorrida padece de nulidade.

XXVIII. Nada se mencionando sobre a fuga, ou sobre atos de fuga.

XXIX. Termos em que ao invocar a fuga da ora Recorrente como um dos fundamentos para a prolação desta decisão, a mesma padece de nulidade, nos termos do disposto no art.º 615º do CIRE, pelo que deve o Tribunal da Relação declarar nula a sentença ora recorrida, porquanto, ao invocar a disposição da al. c) do art.º 20º do CIRE, como disposição aplicável aos factos apurados, existe uma contradição absoluta entre estes, os factos apurados e a disposição do art.º 20, al. c), do CIRE.

XXX. Os factos apurados não permitem sequer qualquer alusão à al. c) do art.º 20º do CIRE, pelo que, nos termos do disposto no art.º 665º do CPC deve a presente decisão ser revogada, uma vez que dos factos apurados não resulta nenhum indício, ou sequer é questionado da fuga da ora Recorrente.

XXXI. Quinta nulidade; a decisão recorrida contem uma absoluta contradição entre a matéria assente e a decisão proferida.

XXXII. Assim na matéria assente dá-se como provado que a ora Recorrente recebeu em Dezembro de 2013 a importância de 2.600.000,00 €, vide ponto 8 da matéria assente.

XXXIII. Nos pontos 10 a 15 da mesma matéria assente, foi dado como assente que a ora Recorrente tem dívidas no valor de 24.000,00 €

XXXIV. Ora a situação de insolvência é aferida nos termos do artigo 3º do CIRE, sendo que no caso dos presentes autos encontra-se provado que o activo da ora Recorrente é 99 vezes superior ao passivo apurado.

XXXV. Ora, a situação de insolvência é determinada nos termos do artigo 3º do CIRE pelo que estando provado que o ativo é 99 vezes superior ao passivo, existe uma absoluta contradição entre a matéria assente e a decisão, tendo como fundamento o critério estabelecido no artigo 3º do CIRE.

XXXVI. Termos em que sendo a nulidade apurada pelo Tribunal da Relação de Évora, anulando-se a Decisão ora Recorrida, pois total contradição entre a matéria provada e a decisão proferida, anulando-se sem mais a decisão ora Recorrida, nos termos do disposto no artigo 665 º do C.P.C

XXXVII. Sexta nulidade; a decisão recorrida deveria ter dado cumprimento ao artigo 36º do CIRE fixando a residência da ora Recorrente como insolvente,

XXXVIII. Ora a decisão recorrida fixou como residência um local correspondente a um apartado onde manifestamente, como é facto público e notório, a ora Recorrente não reside.

XXXIX. Não reside, pois ninguém reside no apartado, as pessoas individuais normalmente para residirem precisam de uma cama, de uma casa de banho, de um local para receber e guardar roupa, enfim, do mínimo para que se possa residir.

XL. Ora convenhamos que um apartado, que não é mais do que uma mera caixa recetáculo de correspondência postal, não é o local de forma manifesta onde poderá residir uma pessoa, pelo que deverá esta matéria ser conhecida, declarando-se nula a sentença por ausência de factos que permitam determinar, de acordo com a matéria assente, a residência da ora Recorrida.

XLI. Termos em que a decisão ora proferida, no respeitante à fixação da residência da ora Recorrente, para efeitos da disposição do artigo 36º do CIRE, é absolutamente nula, porquanto carece de absoluta fundamentação nos termos do disposto na alínea b) e c) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C, devendo ser de imediato anulada pelo Tribunal de Recurso, nos termos do disposto no artigo 665º do C.P.C.

XLII. Sétima nulidade; a presente decisão foi proferida ao abrigo do disposto no artigo 12º do CIRE nos termos do despacho proferido a 6/7/2017.

XLIII. Conforme referimos anteriormente, o tribunal recorrido foi sucessivamente enganado pelo Recorrido ao realizar citações para locais indicados pelo Recorrido, locais esses que correspondiam ou a apartados ou a locais onde a Recorrente nunca residiu.

XLIV. De outro passo, conforme referido anteriormente, nos autos constavam de forma inequívoca elementos mais que suficientes titulados por documentos oficiais, que demonstravam e provavam a verdadeira residência da ora Recorrente,

XLV. Por razões inexplicáveis, apesar de constarem dos autos 3 documentos autênticos onde se indicava de forma expressa a residência da Recorrente, esta nunca foi citada para a sua residência.

XLVI. Assim, para além de não fundamentado o referido despacho, é nulo pois não conheceu o que já constava dos autos, ou seja, a efectiva morada da Recorrente.

XLVII. Assim o tribunal foi ludibriado pela atividade processual da Recorrida, a qual conhecendo muito bem a efetiva residência da Recorrente, pois juntou aos autos documentos que nela expressamente constavam a Recorrente como residente fora do território nacional, não conheceu este facto sendo pois uma nulidade,

XLVIII. Todos os demais factos foram dados como assentes com fundamento em documentos particulares donde não se compreende como é que, tendo o documento n.º 8 o conteúdo que tem, não foi este assente na sua integralidade no respeitante à morada da ora Recorrente.

XLIX. Assim, e por este confronto, verifica-se que houve uma aplicação de facto da norma constante dos nºs 4 e 5 do art.º 30º do CIRE.

L. Padecendo pois a sentença recorrida da nulidade, uma vez que conheceu matéria que não podia conhecer em virtude da ausência de prova sobre a mesma.

LI. Termos em que a presente decisão deve ser declarada nula e de nenhum efeito pelo tribunal da Relação de Évora, nos termos do disposto no artigo 665º do C.P.C. dando-se como nula e de nenhum efeito a decisão ora recorrida, substituindo-se esta como adiante veremos, por uma decisão onde se conheça a integralidade do ativo da ora Recorrente.

LII. No respeitante ao conteúdo da decisão propriamente dita, a mesma padece de um vício essencial.

LIII. Ou seja, aplicou erradamente a cominação prevista nos nºs 4 e 5 do artigo 30º do CIRE à Recorrente nos presentes autos, quando a Recorrente não havia sido citada pelo que em circunstância alguma não poderia haver lugar a esta cominação.

LIV. Com efeito, esta cominação circunscreve-se as situações em que o devedor é citado e não deduz oposição.

LV. Ora no caso dos presentes autos a Recorrente não foi citada pelo que não poderia haver lugar a esta cominação.

LVI. De outro passo, a sentença recorrida aplicou esta cominação quer em matéria de facto quer em matéria de direito.

LVII. A matéria de facto, pois não tendo a ora Recorrente qualquer testemunha, deu como provado o que deu.

LVIII. Em matéria de direito aplicou erradamente esta cominação, porquanto, ao ter dado como provado que a ora Recorrente havia recebido a importância de 2.600.00,00 € em Dezembro de 2013 a declarou insolvente por dívidas no valor de 24.000,00 €.

LIX. Atenta a desproporção entre o passivo apurado e o activo apurado, caso a decisão recorrida tivesse análise crítica das provas e aplicado corretamente a lei aos factos, em circunstância alguma poderia ter concluído pela insolvência da ora Recorrente.

LX. Ora apurando no ponto 8 o valor do activo e apurando nos pontos 10 a 15 o valor do passivo, verifica-se que a desproporção e ordem de grandeza entre o ativo apurado e o passivo é de 99 vezes.

LXI. Ou seja, o activo apurado é 99 vezes superior ao passivo apurado, pelo que atenta esta desproporção constante da decisão recorrida, e tendo em consideração que compete ao julgador uma analise critica das provas e uma decisão lógica e coerente, a decisão recorrida viola gravemente o artigo 3º do CIRE devendo pois concluir que;

LXII. Teremos que concluir que houve uma erradíssima aplicação do direito aos factos apurados, por violação manifesta do disposto no art.º 3º do CIRE.

LXIII. Ou seja, tendo tomado conhecimento o tribunal que o ativo da ora Recorrente poderia ser o referido no ponto 8 da matéria assente, como é que é possível aplicar o art.º 3º do CIRE e considerar insolvente a Recorrente, quando o passivo é de 24.000,00€ (vinte e quatro mil euros).

LXIV. É que a desproporção dos valores apurados é de tal forma grave, que apenas se compreende a presente decisão mediante a aplicação cega da norma prevista no art.º 30º, nºs 3 e 4 do CIRE.

LXV. Assim, atenta a matéria apurada, e uma vez que no caso dos presentes autos não é possível a aplicação da cominação dos nºs 4 e 5 do artigo 30º do CIRE, pois esta respeita aos factos, e não ao direito, da matéria apurada, resulta inequivocamente que a ora Recorrente não é insolvente de acordo com os critérios fixados no art.º 3º do CIRE.

LXVI. Termos em que deve a sentença ora recorrida ser revogada, nos termos do disposto no artigo 665º do C.P.C. proferindo o Tribunal de Relação de Évora, atenta a gravidade desta decisão para a vida da ora Recorrente, desta decisão, substituir-se ao Tribunal de 1ª Instancia, conhecendo já o pedido, declarando o mesmo improcedente em todos os seus termos, isto apenas com fundamento na matéria provada nos presentes autos.

LXVII. A decisão recorrida fundamentou-se nas alíneas a) a c) do artigo 20º do CIRE.

LXVIII. Ora no caso dos presentes autos não se verifica sequer os eventos decorrentes de qualquer uma das alienas;

LXIX. A ora Recorrente não se encontra em nenhuma dessas situações porquanto nem conhecia a existência das referidas divida.

LXX. Mais, nos presentes autos a ora Recorrente juntou documento que prova a sua situação regularizada, quer perante a banca, quer perante a segurança social quer perante a Autoridade tributária.

LXXI. As obrigações em divida apuradas na sentença recorrida não permitem a aplicação do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 20º do CIRE.

LXXII. Assim, quando o activo apurado é da grandeza referida, é um absurdo, e desculpem os Venerandos Desembargadores a expressão utilizada, declarar insolvente por um passivo 99 vezes inferior ao activo apurado.

LXXIII. Em consequência, e uma vez que também é invocada a alínea c) do artigo 20º do CIRE, e como nada existe sobre alegadas fugas, quer provado quer sequer alegado, a decisão ora recorrida constitui um caso paradigmático de engano do tribunal sobre uma situação inexistente devido a indicação errónea da residência da Recorrente.

LXXIV. Mal estaria a ordem e a segurança jurídica se as pessoas que beneficiam de situação económica como a Recorrente, sejam declaradas insolventes apenas devido a truques processuais.

LXXV. A ora Recorrente, felizmente, não é insolvente, sem margem para nenhuma dúvida pelo que deve ser de imediato revogada a decisão recorrida.


A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que deve manter-se a decisão recorrida, já que não assiste razão à Recorrente, que aqui vem repetir os argumentos que esgrimiu em sede de embargos à insolvência, que deduziu. Mais peticiona a condenação da Recorrente por litigância de má-fé, em indemnização e montante não inferior a € 15.000,00, uma vez que invoca factos falsos e teses manifestamente improcedentes, cuja falta de fundamento não pode ignorar.

Assim, em face das conclusões da alegação da Recorrente, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e sendo certo que apenas cabe apreciar as questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso[2], são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado:
- das nulidades invocadas;
- da falta de fundamento para a declaração de insolvência da Recorrente;
- da litigância de má-fé da Recorrente.

III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância

1. A Requerente é uma sociedade civil de advogados com sede em Lisboa e aí registada no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados sob o número …/99.
2. A Requerida nasceu em 12/7/1966 e foi casada com (…).
3. No ano de 2009 a requerida viu-se confrontada com um pedido de insolvência requerido por um terceiro credor, o qual correu termos no 2.º juízo de competência cível de Loulé, sob o n.º 759/09.0TBLLE, no âmbito do qual foi impugnada a dívida e proferida sentença de improcedência.
4. Em 19/12/2012 a sociedade (…), representada pelo advogado Dr. (…), intentou uma ação contra a Requerida, que deu origem ao processo 3608/12.8TBLLE, que correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Loulé, pedindo em síntese, i) a anulação do negócio de compra e venda do “Lote 5.2.3/1” e ii) a devolução da importância de € 50.000,00 paga em 12 de Maio de 2009, pela sociedade (…) à Requerida.
5. No âmbito do mesmo processo, as partes celebraram transação judicial, nos termos da qual, a Requerida confessou os factos que sustentavam o pedido, anulando o negócio jurídico de compra e venda do “Lote 5.2.3/1”, e obrigando-se a devolver à sociedade (…) o montante de € 37.500,00 (correspondente a parte do preço que recebeu daquela sociedade, deduzindo as despesas por si realizadas, no sentido da concretização do negócio), tendo sido homologada em 19/4/2013.
6. Em 23/10/2013, a Requerente deu entrada no Balcão Nacional de Injunções, de um Requerimento de Injunção para cobrança de montantes em divida pela Requerida, relativos a serviços de honorários prestados desde meados de 2009 e titulados por fatura, que deu origem ao processo n.º 155426/13.3YIPRT.
7. Em 26/11/2013, na sequência da sua notificação pessoal, a Requerida apresentou oposição ao Requerimento de Injunção, tendo o processo sido distribuído ao 2.º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Loulé.
8. Através de escritura de partilha outorgada no dia 9/12/2013, no Cartório Notarial do Dr. Nuno Manuel Santos Louro, em Vilamoura, folhas 56 a 58 do Livro 154ª, a requerida, através de procurador, e o seu ex-marido (…) procederam à partilha do património do dissolvido casal, composto pelo prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), da freguesia de Almancil e prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), da freguesia de Quarteira e todo o mobiliário que compõem o recheio da habitação, os quais foram adjudicados ao segundo, declarando a requerida o recebimento de tornas no montante de € 2.600.000,00 (dois milhões e seiscentos mil euros).
9. A aquisição subsequente a tal partilha foi registada sobre o imóvel (…), pela Ap. N.º …/12/22013.
10. Na pendência do referido processo de injunção, em 4 de junho de 2014, a Requerente e a Requerida acordaram entre si pôr termo ao litígio através de transação judicial, nos termos da qual a Requerida confessou ser devedora da quantia de € 7.624,49 (sete mil, seiscentos e vinte e quatro euros e quarenta e nove cêntimos) e se comprometeu a pagar essa quantia no prazo máximo de 30 dias a contar da data em que fosse proferida a sentença de homologação.
11. A transação foi homologada por sentença proferida em 5/6/2014.
12. No entanto, e contrariamente ao que ficou a constar da transação judicial que pôs fim ao referido litigio, a Requerida não pagou à Requerente, no prazo de 30 dias depois de proferida a sentença homologatória da transação, a quantia de que se confessou devedora, nem o fez até à presente data, pelo que se ainda se encontra em dívida a totalidade daquele valor, i.e, € 7.624,49 (sete mil, seiscentos e vinte e quatro euros e quarenta e nove cêntimos).
13. Por forma a obter o pagamento da quantia em dívida, em 4/9/2015 a Requerente deu entrada de requerimento inicial no âmbito do Procedimento Extrajudicial Pré-Executivo, (adiante, abreviadamente PEPEX), tendo dado origem ao procedimento n.º 60142/15.5YLPEP.
14. Nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 32/2014, de 30 de Maio, foi a ora Requerente notificada do Relatório a que se refere o artigo 10.º do referido diploma legal, resultando do mesmo que a Requerida não tem bens penhoráveis.
15. A Requerida encontra-se também inscrita na Lista Pública de Execuções, conforme informação retirada do portal citius em:
http://www.citius.mj.pt/Portal/execucoes/ListaPublicaExecucoes.aspx,
cujo printscreen, com referência a um processo de execução n.º 1375/14.0TBLLE, no valor de € 15.102,70 e outro com o n.º 1133/10.0TBLLE, no valor de € 1.212,76, no âmbito dos quais se constatou a inexistência de bens.

Mais consta dos autos que:
16. Por despacho proferido a 07/07/2017, fazendo menção ao período de tempo decorrido desde a propositura da ação, a 26/11/2015, bem como do disposto no art. 12.º n.ºs 1 a 3 do CIRE, foi declarada a dispensa da citação da requerida.

B – O Direito

Das nulidades processuais

A Recorrente sustenta que a decisão proferida enferma de nulidades invocando, nesse sentido, o seguinte:
- a sua falta de citação, nunca tendo sido expedida carta para a morada inserta no doc. n.º 8 junto com a p.i., arguindo a nulidade do despacho proferido a 07/07/2017;
- a incompetência internacional dos tribunais portugueses;
- a falta de conhecimento, pelo Tribunal de 1.ª instância, da desistência do pedido decorrente da não apresentação, pela Recorrida, na audiência de discussão e julgamento, de mandatário com poderes especiais para, podendo, transigir;
- a contradição entre os factos provados e a aplicação do disposto no art. 20.º, al. c), do CIRE;
- a contradição entre a matéria assente (donde resulta que o valor do ativo da recorrente é 99 vezes superior ao passivo apurado) e a decisão proferida no sentido da insolvência da Recorrente;
- a falta de cumprimento do disposto no art.º 36.º do CIRE por não ter sido fixada a residência da Recorrente, declarada insolvente;
- a indevida aplicação do disposto no art.º 30.º, n.ºs 4 e 5, do CIRE.

Cumpre desde já consignar que o recurso constitui o meio processual de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Tem em vista a reapreciação ou a reponderação das questões submetidas a litígio, já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas. Donde, é unanimemente sustentado que não cabe invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido, conforme resulta do regime inserto nos arts. 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5, do CPC, apenas excecionada quando a lei expressamente determine o contrário (art. 665.º, n.º 2, do CPC) ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, do CPC).[3]

Por outro lado, estando em causa nulidade processual, cabe aplicar o disposto no art. 195.º do CPC, o que implica que dela não cabe diretamente recurso, devendo ser arguida perante o respetivo tribunal decisor, no prazo de 10 dias – arts. 199.º e 149.º do CPC. Só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que aprecie a arguição de nulidade, verificados que estejam os pressupostos para interposição do recurso, é que dessa decisão caberá recurso para o tribunal superior.


Já as nulidades de que enferme a sentença ou a decisão recorrida[4] podem ser arguidas em sede de recurso, desde que este seja admissível – art. 615.º, n.º 4, do CPC. O que se verifica nos seguintes casos:
- quando não se especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – cfr. al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC;
- quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão – cfr. al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC;
- quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – cfr. al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC;
- quando condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido – cfr. al. e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Ora, é manifesto que o que contende com a arguição das nulidades decorrentes da dispensa da audiência da requerida (não teve lugar a citação previamente à audiência de julgamento, a coberto de decisão judicial que dispensou a citação) e da falta de conhecimento, pelo Tribunal de 1.ª instância, da desistência do pedido decorrente da não apresentação, pela Recorrida, na audiência de discussão e julgamento, de mandatário com poderes especiais para, podendo, transigir, está sujeito ao regime inserto nos arts. 195.º, 199.º e 149.º do CPC. Uma vez que tais questões não foram suscitadas, nos moldes estabelecidos nos referidos preceitos legais, no Tribunal de 1.ª instância, não cabe conhecer delas nesta sede recursional.

A incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do presente litígio constitui matéria de conhecimento oficioso – cfr. arts. 96.º, al. a) e 97.º, n.º 1, do CPC.

A Recorrente invoca que a al. e) do art. 63.º do CPC exige o domicílio em Portugal do devedor para os processos de insolvência. Uma vez que reside no Canadá, como decorre desde logo dos documentos que acompanham a p.i., aí deve fixar-se a sua residência, revogando-se o estatuído na sentença, resultando afirmada a incompetência internacional dos Tribunais portugueses.

Importa antes de mais apreciar a questão atinente ao domicílio da Recorrente, com a consequente fixação da residência.

Nos termos do disposto no art. 36.º, n.º 1, als. b) e c), do CIRE, na sentença que declarar a insolvência, o juiz identifica o devedor insolvente, com indicação da sua sede ou residência e, tratando-se de devedor pessoa singular, identifica e fixa a residência a este.

Nas palavras de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[5], o Tribunal deve «necessariamente escolher uma das que eles tenham, como tal identificadas no processo.
O principal objetivo é o de estabelecer a localização do insolvente e administradores, retirando-lhes a possibilidade legal de mudar livremente de residência, de modo a assegurar que estejam sempre contactáveis para o cumprimento das obrigações para eles decorrentes da declaração de insolvência, nomeadamente no que respeita aos deveres de apresentação e colaboração (vd. art. 83.º).» Assinala Pedro Macedo[6] que há que lhe fixar domicílio para receber as notificações, assim se evitando demoras da comunicação dos atos.

Ora, na sentença recorrida indicou-se a residência habitual da Requerida na Rua da (…), Apartado (…), Vale de Garrão, Vila (…), 8135-034 Almancil, aí se fixando a sua residência. Se é certo que a residência habitual, entendida como o domicílio do devedor, não pode estabelecer-se num apartado postal, ainda assim poderia conceber-se a referida fixação naqueles moldes, atenta a já mencionada finalidade do preceito legal aqui visado, desde que essa tivesse sido a indicação avançada pela devedora para efeitos de notificação no âmbito do processo.

Compulsados, porém, os elementos disponíveis nos autos, alcança-se que tal circunstância não se verificou: a credora (…) & Associados, Sociedade de Advogados, em sede de p.i., indicou o apartado como correspondendo à residência da Requerida. Mais se retira dos autos o seguinte:
- em setembro de 2015, a Autoridade Tributária e Aduaneira indicada o domicílio fiscal na requerida na Rua do (…) – Edifício (…), 3J, 9200-096 Machico, com a última declaração de IRS no ano de 2010 – doc. de fls. 17, junto com a p.i.;
- em setembro de 2015, a Segurança Social contemplava a morada da Requerida em 69, (…) DR, M9A 4K2, Toronto, Canadá – doc. de fls. 17 vs., junto com a p.i.;
- em setembro de 2015, a pesquisa por BI junto da Identificação Civil apresentava a morada da Requerida em 69, (…) DR, M9A 4K2, Toronto, Canadá, mais aí constando a sua nacionalidade como sendo portuguesa – doc. de fls. 19, junto com a p.i.;
- tal morada consta das bases de dados da Segurança Social conforme pesquisa efetuada via itij pelo serviço externo do Tribunal de Loulé a 09/05/2017 – doc. de fls. 112 e 113 deste apenso.

Por via de tais elementos documentais, é de concluir que a residência da requerida é no Canadá, naquela concreta morada, e não no apartado mencionado na sentença recorrida.

Assiste, neste âmbito, razão à Recorrente, pelo que se impõe a revogação da indicação e fixação da morada da Recorrente insertas na sentença, passando a constar como sendo em 69, (…) DR, M9A 4K2, Toronto, Canadá.

Daí não resulta, porém, a incompetência internacional dos Tribunais portugueses para conhecerem do presente litígio.

Ora, nos termos do disposto no art. 63.º, al. e), do CPC, os tribunais portugueses são exclusivamente competentes em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal, o que vale por dizer que, tratando-se de pessoa singular domiciliada em Portugal apenas os tribunais português têm competência nessa matéria. Donde não resulta, porém e como sustentado pela Recorrente, que se exige o domicílio em Portugal do devedor para os processos de insolvência correrem termos nos Tribunais portugueses.

Desde logo o art. 62.º, als. b) e c), do CPC estabelece que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes se tiver sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (al. b) da citada disposição legal), ou quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (al. c). Nesta senda, prevendo-se a instauração e prossecução de processo de insolvência nos tribunais portugueses relativamente a devedores que não tenham sede ou domicílio em Portugal, encontra-se consagrado o processo particular de insolvência, nos moldes estabelecidos nos arts. 294.º a 296.º do CIRE.

No presente caso, a Recorrente tem nacionalidade portuguesa, sendo que o crédito que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência decorre da prestação de serviços jurídicos pela Recorrida à Recorrente em processos judiciais que correram termos em Portugal. Atentos tais fatores de conexão com a ordem jurídica portuguesa, é manifesto que os tribunais portugueses são competentes para a ação especial de insolvência da Recorrente, ainda que resida no Canadá. Tratar-se-á, porém, do processo particular a que aludem os arts. 294.º e ss do CIRE, com as especialidades enunciadas no art. 295.º do mesmo diploma legal.[7]

Termos em que se julga improcedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para o processo de insolvência impondo-se, porém, que corra termos como processo particular de insolvência, à luz do regime estabelecido nos arts. 294.º a 296.º do CPC. É o que se determina – art. 193.º, n.º 3, do CPC.

No que respeita aos demais itens invocados pela Recorrente como fundamento de nulidade (cfr. a contradição entre os factos provados e a aplicação do disposto no art. 20.º, al. c), do CIRE, a contradição entre a matéria assente quanto ao valor do ativo relativamente ao passivo apurado e a decisão proferida no sentido da insolvência da Recorrente, a indevida aplicação do disposto no art.º 30.º, n.ºs 4 e 5, do CIRE), é manifesto que está antes em causa a questão de saber de o Tribunal a quo incorreu em erro na aplicação do direito ao caso concreto, não se reconduzindo a nulidade da sentença recorrida à luz do disposto no n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Da falta de fundamento para a declaração de insolvência da Recorrente

Importa apreciar se, em face do quadro fáctico circunstancial apurado, se justifica a declaração de insolvência da Recorrente.

O Tribunal a quo exarou que «Considerando o alegado pela Requerente, cumpre atentar nas alíneas a), b), d) e e) do enunciado art. 20.º do CIRE.»[8] Concluiu encontrarem-se «verificados os factos presuntivos da situação de insolvência, previstos no citado artigo 20.º, alíneas a), b) e c), do C.I.R.E., pelo que se impõe declarar que se encontra verificada uma situação de insolvência, nos termos do disposto no artigo 30.º, n.º 4 e 5, do C.I.R.E.»[9] Revertendo para o caso dos autos, assinalou aquele Tribunal, em sede de motivação da decisão, que «ficou provado que, além do crédito da Requerente, a Requerida tem pendentes contra si outras duas ações executivas, no âmbito das quais já foi apurada a inexistência de bens penhoráveis», «que a requerente não logrou provar que a requerida tenha dissipado o seu património de modo fictício» e que as circunstâncias do incumprimento relativas à dívida da requerente permitem concluir pela impossibilidade da requerida solver a generalidade das suas obrigações.[10]

A Recorrente sustenta que dos factos apurados não resulta nenhum indício de fuga da sua parte, pelo que inexiste fundamento para invocar a alínea c) do n.º 1 do art. 20.º do CIRE. Para além disso, assente que está que recebeu a quantia de € 2.600.000,00 em dezembro de 2003 e que tem dívidas no montante de € 24.000,00, entende a Recorrente que não se verificam os pressupostos do art. 3.º do CIRE para a declaração de insolvência. Alega ainda que não cabia aplicar-se o disposto no art. 30.º, n.ºs 3 e 4, do CIRE porquanto, não tendo tido lugar a sua citação, não podia ter deduzido oposição ao pedido de insolvência contra si deduzido.

Ora vejamos.

O processo de insolvência, atento desde logo o disposto no art. 1.º do CIRE, é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência. É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – art. 3.º, n.º 1, do CIRE. Trata-se de uma incapacidade de cumprimento, em que alguém, por carência de meios próprios e por falta de crédito, se encontra impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações.[11]

Nos termos do disposto no art. 20.º, n.º 1, do CIRE, “A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sua sede ou exerce a sua principal atividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, (…);
(…)
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
(…)”

Nesta norma legal mostram-se, assim, elencados os denominados
factos-índices ou presuntivos da insolvência. Verificada que seja qualquer uma das situações ali enunciadas, assume-se a situação de insolvência do devedor, cabendo a este o ónus da prova da sua solvência ou da ilisão da presunção do facto-índice em que se fundamenta o pedido, conforme previsto no art. 30.º, n.ºs 3 e 4, do CIRE, desde que não tenha sido dispensada a sua audiência nos termos do art. 12.º do CIRE.[12]

Relativamente à al. a), está em causa a situação em que o devedor deixa de dar satisfação aos seus compromissos em termos que projetam a sua incapacidade de pagar.[13]

No que respeita ao facto-índice previsto na al. b), nas palavras de Carvalho Fernandes e J. Labareda[14], o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos; pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.

Da al. c) consta a fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local onde a empresa tem a sede ou exerce a sua principal atividade. Por conseguinte, tal preceito tem aplicação aos casos em que o devedor constitui uma empresa.

Por via da al. e), a insolvência é de declarar caso se verifique que, em processo executivo movido contra o devedor, não foram encontrados bens suficientes para o pagamento do crédito.

Ora, no caso em apreço, e tal como se deixou já assinalado, o Tribunal de 1.ª instância valorou de forma circunstanciada o regime inserto nas als. a), b) e e), dando conta de que «ficou provado que, além do crédito da Requerente, a Requerida tem pendentes contra si outras duas ações executivas, no âmbito das quais já foi apurada a inexistência de bens penhoráveis»[15]. Não se alcança, em sede de motivação jurídica da decisão, a menção de que se provou a fuga da requerida enquanto titular de empresa, sendo manifesto que a declaração de insolvência não pode alicerçar-se no facto-índice inserto na al. c) do n.º 1 do art. 20.º do CIRE, tal como apontado pela Recorrente.

Provado está, efetivamente e tal como apontado na sentença recorrida, que em dois processos executivos instaurados contra a Recorrente, bem como no Procedimento Extrajudicial Pré-Executivo instaurado pela Recorrida, se apurou a inexistência de bens penhoráveis para pagamento dos créditos exequendos. O que constitui fundamento para a declaração de insolvência à luz do disposto no art. 20.º, n.º 1, al. e), do CIRE.

A tal conclusão não obsta o facto de a Recorrente ter declarado o recebimento de tornas no valor de € 2.600.000,00 em dezembro de 2013. Na verdade, posteriormente a essa data, as informações obtidas com vista à prossecução de ações executivas contra a Recorrente são no sentido da inexistência de quaisquer bens. Apesar de se tratar de uma quantia monetária significativa, certo é que, decorridos estes poucos anos desde então, a Recorrente figura na Lista Pública de Execuções, com menção de que inexistem bens na sua titularidade que permitam a satisfação de créditos exequendos. Em face do que cabe concluir que, atualmente, a Recorrente apresenta incapacidade financeira para cumprir as obrigações vencidas que sobre si impendem.

Sem prejuízo, claro está, de elementos factuais novos que eventualmente a Recorrente tenha invocado em sede de embargos deduzidos à luz do disposto no art. 40.º, n.º 1, al. a), do CIRE, o que poderá implicar na prova da sua solvência ou na ilisão da presunção do facto-índice plasmado no art.º 20.º, n.º 1, al. e), do CIRE. Matéria que extravasa o âmbito do presente recurso (destinado que é a apurar se, face aos elementos apurados, a declaração de insolvência não devia ter sido proferida – cfr. art. 42.º, n.º 1, do CIRE).

Termos em que improcedem as conclusões da alegação do recurso nesta matéria, já que os factos provados justificam a declaração de insolvência da Recorrente.

Da litigância de má-fé da Recorrente

Nos termos do n.º 1 do art. 542.º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir.

Em face do disposto no n.º 2 do citado preceito, a litigância de má-fé, desde que revestida de dolo ou negligência grave, pode ser considerada sob dois aspetos:
- a má-fé material, que abrange os casos de dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa;
- a má-fé instrumental, relativa à omissão grave do dever de cooperação, ao uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, para entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Como ensina António Santos Abrantes Geraldes, e seguindo de perto o que deixa exposto in Temas Judiciários, I vol., p. 303 e ss, as partes devem estar cientes de que, no âmbito da resolução de conflitos de direito privado, devem pautar-se pelas regras da cooperação intersubjetiva, pela lealdade e pela boa-fé processual. A lei, porém, não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta. Por isso, a todas é garantida a possibilidade de fazerem vingar as respetivas posições, desde que estejam convencidas da sua legitimidade, mesmo que assentem em normas jurídicas objetivamente injustas, ou desde que não sejam excedidos certos limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais.

No presente caso, a Recorrente logrou demonstrar, por via do recurso interposto, que reside no Canadá, e assinalou validamente que a declaração de insolvência não pode assentar na sua fuga. Esgrimiu outros argumentos que, é certo, não alcançaram acolhimento, designadamente no sentido de atestar a sua solidez financeira por via da declaração de recebimento de € 2.600.000,00 em tornas em dezembro de 2013. Os dados apurados, no entanto, não permitem afirmar que a interposição do recurso consubstancie o exercício ilegítimo de direitos processuais de molde a justificar a aplicação de um juízo de censura a coberto do instituto da litigância de má-fé.

Termos em que não se condena a Recorrente por litigância de má-fé.

As custas recaem sobre a Recorrente, atento o preceituado no art. 527.º, n.º 1, do CPC, já que a matéria em que alcança vencimento, respeitando tão só à indicação e fixação da sua residência em local diverso, não assume utilidade económica autónoma.

Concluindo:
- a indicação e fixação da residência ao devedor insolvente deve resultar do apuramento e apreciação de todos os elementos constantes dos autos relevantes para o efeito;
- a residência do devedor pessoa singular no estrangeiro não implica, só por si, a incompetência internacional dos Tribunais portugueses em matéria insolvencial;
- situando-se o domicílio do devedor fora de Portugal, o processo de insolvência corre termos como processo particular de insolvência, com as especialidades consagradas no art. 295.º do CIRE;
- a atual inscrição da devedora na Lista Pública de Execuções, com menção de que inexistem bens na sua titularidade que permitam a satisfação de créditos exequendos, enquadra-se no facto-índice plasmado na al. e) do n.º 1 do art. 20.º do CIRE;
- a presunção de insolvência daí decorrente não resulta ilidida pelo facto de ter declarado, em dezembro de 2013, o recebimento de tornas no valor de €2.600.000 (dois milhões e seiscentos mil euros).

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se:
- pela revogação da sentença recorrida no que respeita à residência da Recorrente, indicada na al. a) e fixada na al. b) do respetivo dispositivo, passando a constar como sendo em 69, (…) DR, M9A 4K2, Toronto, Canadá;
- em consequência, pela prossecução dos autos como processo particular de insolvência;
- no mais, pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Évora, 12 de outubro de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
__________________________________________________
[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Cfr. Ac. TRL de 30/04/1992 (Pires Salpico).
[3] V. Ac. do STJ de 01/10/2002, in CJ-STJ ano X, 3, 65 e de 29/04/98, in BMJ 476/401; Ac. TRP de 12/01/2015 (Manuel Domingos Alves Fernandes).
[4] Com exceção da prevista na al. a) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
[5] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3.ª edição, p. 256.
[6] In Manual de Direito das Falências, vol. II, p. 52.
[7] V. Ac. TRG de 14/12/2013 (Moisés Silva).
[8] Cfr. fls. 241 do presente apenso.
[9] Cfr. fls. 242 do presente apenso.
[10] Cfr. fls. 241 e 242 do presente apenso.
[11] Luís Menezes Leitão, CIRE, 4.ª edição, p. 54.
[12] Ac. TRE de 25/10/2007.
[13] Ac. TRL de 27/10/2011.
[14] CIRE anotado, p. 70 e 71.
[15] Cfr. fls. 241 destes autos, parágrafo inserto em sede de motivação jurídica da decisão, apreciando os factos-índice.