Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
852/19.0T8TNV.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: NOTARIADO
INVENTÁRIO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Na pendência do inventário em cartório notarial os interessados podem propor ações comuns destinadas a resolver questões conexas com o inventário em curso quando o notário o determinar, por iniciativa própria ou por iniciativa dos interessados.
II- Por falta de condições de admissibilidade da ação, não é de admitir a ação comum destinada a solucionar uma questão conexa com o inventário em curso sem que os interessados hajam sido remetidos para os meios comuns.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 852/19.0T8TNV.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), viúva, residente na Estrada (…), nº 20, Casal dos (…), (…), instaurou contra (…), residente na Estrada (…), nº 20, Casal (…), (…), ação declarativa com processo comum.

Alegou, em síntese, que A. e a R. são filhas de (…) e (…), ambos falecidos e que estes doaram, a cada uma das filhas, prédios mistos, mas a R foi significativamente beneficiada em relação à A., uma vez que os donatários constituíram uma reserva de usufruto do prédio que lhe doaram e oneraram a doação com o encargo de tratar dos doadores, seus pais, na saúde e na doença e suprir as despesas necessárias com a sua alimentação e saúde o que esta observou, durante mais de dez anos e até à morte de ambos.

A R. instaurou processo de inventário para partilha dos bens deixados por morte de seus pais, o qual corre termos no cartório Notarial de Torres Novas a cargo da Drª Marta Susana da Silva Cruz, as interessadas partilharam, por acordo, os bens móveis, já chegaram a acordo quanto à partilha de dois prédios rústicos, mas quanto aos prédios recebidos por doação a R. pretende receber tornas da A. argumentando que prédio doado à A. tem um valor superior ao valor do prédio que ela R. recebeu em doação e a A. considera que, no seu caso, as tornas não são devidas.

Concluiu pedindo, entre outras declarações, a dispensa da redução da liberalidade por inoficiosidade.

Contestou a R. excecionando a incompetência do tribunal em razão da matéria, por se encontrar em curso processo de inventário para partilha dos bens dos pais da A. e R. e, entre eles, dos prédios doados, em que são interessadas a A. e a R., meio processual adequado para apreciar o pedido da A. que, aliás, não o formulou no inventário e contradizendo, por falsos, os factos alegados pela A.

Conclui pela improcedência da ação e pediu a condenação da A. em multa e indemnização não inferior a € 2.000,00, por litigância de má-fé.


2. Seguiu-se despacho saneador que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e absolveu a R. da instância.

3. A A. recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“1. Sendo o objeto do recurso delimitado ao conhecimento da competência em razão da material do tribunal a quo para conhecer dos pedidos, a única questão que é a passível de decisão do tribunal ad quem é exatamente se poderá, ou não, o tribunal a quo julgar-se absolutamente incompetente em razão da matéria e nessa medida absolver a R. da instância, s.m.o., entendemos que não, porquanto a competência dos tribunais em razão da matéria está plasmada nos artº 64º e 65º do CPC, conjugados com artº 40º, nº 1 e 2, artº 80º, nº 1 e 2, artº 130º todos da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de Agosto, atualizada pela Lei 19/2019, de 19 de Fevereiro.

Por outro lado, dispõe o artº 16º, nº 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário:

“O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade;

2. Dispõe ainda o nº 3 da mesma norma:

“A remessa para os meios judiciais comuns prevista no nº 1 pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado”.

3. E, por fim, dispõe o artº 17º, nº 2, do RJCI:

“Só é admissível a resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes”.

Ou seja,

Sempre que qualquer interveniente num processo de inventário, devido à complexidade da causa, tiver justo receio da redução das suas garantias, poderá requerer a remessa dos autos aos meios judiciais comuns, os quais possuem competência material para os apreciar, sob pena de serem violados direitos fundamentais da CRP.

Atentos os factos supra referidos, deve o Tribunal ad quem, revogar a sentença recorrida e ordenar a devolução dos autos ao tribunal a quo para conhecimento dos pedidos COM O QUE SE FARÁ SERENA, SÃ E COSTUMADAJUSTIÇA!

Respondeu a R. por forma a concluir pela improcedência do recurso.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto dos recursos.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº 4 e 608º, nº 2 e 663, nº 2, do Código de Processo Civil), nos recursos apreciam-se questões e não razões ou argumentos e os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, sem prejuízo da liberdade de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
A não sujeição do juiz às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artº 5º, nº 3, do CPC), a par de outros, é um princípio do procedimento que não sofre restrições na 2ª instância, isto é, o tribunal de recurso não está limitado quanto a esta liberdade de motivação.
“No respeitante à matéria de direito (…) são tribunais de recurso inteiramente livres quanto à determinação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso ajuizado, devendo mesmo, tomar em consideração as modificações da lei sobrevindas após o julgamento ocorrido na instância inferior, caso elas abranjam a relação jurídica litigiosa”[1].
Esta precisão torna-se necessária porquanto a Apelante parece querer ignorá-la e, por efeito, condicionar o conhecimento desta instância à competência do tribunal em razão da matéria; a única questão que é a passível de decisão do tribunal ad quem é exatamente se poderá, ou não, o tribunal a quo julgar-se absolutamente incompetente em razão da matéria e nessa medida absolver a R. da instância, afirma, querendo significar que o tribunal ou é competente ou não é competente e nenhuma outra solução é possível no tribunal de recurso.
A solução supõe a questão mas não se confunde com ela e a diferença está em envolver a solução a qualificação jurídica dos factos, ou seja, a indagação, interpretação e aplicação das regras de direito que a iniciativa das partes não pode limitar, por isso que as questões a decidir pelo tribunal ad quem não estão limitadas pela qualificação jurídica considerada pelas partes, nem pela qualificação jurídica do ato recorrido e, neste sentido, a qualificação jurídica dos factos não condiciona o objeto do recurso.
As questões a decidir consistem, pois, em verificar (i) se a dispensa de redução de liberalidades inoficiosas é uma questão conexa com o inventário, (ii) se estando a correr um processo de inventário, os aí interessados podem propor ações comuns destinadas a resolver questões conexas com o inventário em curso.

III. Fundamentação.
1. Factos
Relevam os factos constantes no relatório supra, designadamente, que se encontra a correr processo de inventário, no cartório Notarial de Torres Novas a cargo da Drª Marta Susana da Silva Cruz, para partilha dos bens deixados por morte de (…) e (…), em que são interessadas a A. e a R.


2. Direito
2.1. Se a dispensa de redução de liberalidades inoficiosas é uma questão conexa com o inventário
A ação destina-se a declarar que a R. não tem direito a reduzir a doação que os seus falecidos pais fizeram a favor da A., sua irmã, no pressuposto – não caraterizado – que tal doação ofende a legítima daquela.
Dizemos não caraterizado, porquanto as liberalidades dizem-se inoficiosas quando ofendem a legítima dos herdeiros legitimários (artº 2168º do CC), esta é calculada por referência ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dividas da herança (artº 2162º, nº 1, do CC) e nada disto vem alegado na petição inicial.
Este aspeto é, aliás, essencial para compreender a ligação ou conexão da pretensão da A. – dispensa de redução de liberalidades inoficiosas – ao processo de inventário, uma vez que, sem ele, ou seja, declarado, em tese, ou em abstrato, como a A. parece entender, é suscetível de ocasionar pronúncia inútil e se a lei proíbe a prática de atos inúteis no processo (artº 137º do CPC), por maioria de razão proíbe a tramitação de processos inúteis.
A utilidade do processo, ou seja, o direito da autora a que corresponde uma ação adequada a fazê-lo reconhecer em, juízo (artº 2º, nº 2, do CPC) parte do pressuposto que a liberalidade que os seus pais lhe fizeram em vida é redutível por inoficiosidade e isto, porque se o não for, isto é, se a doação que beneficiou a A. não ofender a legítima da R., sua irmã, a doação não é, à partida, redutível e é tão só isto que se pretende ver declarado; a inutilidade consistira precisamente em declarar não redutível por inoficiosidade uma doação que ab initio nunca o foi. Por isto que o direito da A. não surge em abstrato, surge em concreto depois de verificado que a doação de que é donatária ofende a legítima da sua irmã.
Considerandos que não têm o propósito de reconhecer ou não razão à A., nem o de verificar se a petição reúne as condições necessárias a este conhecimento, mas tão só de evidenciar que o direito a que a A. se arroga não prescinde do cálculo da legítima da R., sua irmã, o cálculo desta, por sua vez, exige que se conheçam os valores dos bens existentes no património dos autores da sucessão à data da sua morte, o valor dos bens doados, as despesas sujeitas a colação e as dividas, ou seja, para se afirmar o direito que a A. pretende ver declarado é necessário conhecer todos os elementos de facto próprios do processo de inventário.
“A redução, como a revogação, pressupõem a estimação rigorosa dos bens do autor da herança, a determinação exata da sua quota disponível, o apuramento da ofensa das legítimas, e todos estes dados só [são] suscetíveis de serem captados através dos termos que são próprios do inventário em si mesmo” [Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. 1º, 4ª ed., pág. 142].
Em resposta a esta primeira questão dir-se-á, pois, que a dispensa de redução de liberalidades inoficiosas é uma questão conexa com o inventário.

2.1. Se estando a correr um processo de inventário, os aí interessados podem propor ações comuns destinadas a resolver questões conexas com o inventário em curso
Segundo o artº 3º, nºs 1 e 4, do regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5/3, ao caso aplicável[2], “[c]ompete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra” e “[a]o notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns”.

De acordo com os nºs 1 a 4 do artº 16º da mesma lei, os interessados são remetidos para os meios comuns, a seu requerimento ou por iniciativa do notário (i) sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário e no caso de estar pendente causa prejudicial em que se debata alguma das referida questões e o notário pode ainda (ii) ordenar suspensão do processo de inventário.

Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns, cabe recurso para o tribunal.
Assim e em resposta a esta segunda questão diremos que estando a correr um processo de inventário, os aí interessados podem propor ações comuns destinadas a resolver questões conexas com o inventário em curso quando o notário o determinar, seja por iniciativa própria, seja por iniciativa dos interessados.

2.2. O caso concreto
A A., na pendência do inventário em que são interessados ela e a R., sua irmã, propôs a presente ação comum com vista a resolver uma questão conexa com o inventário, sem que haja colocado a questão no processo de inventário e aí requerido a remessa dos interessados para os meios comuns e sem que o Notário (a quem a questão não foi colocada) haja remetido os interessados para os meios comuns, assim se evidenciando que o A. não tem razão para solicitar e obter a tutela judicial pretendida antes de a formular processo de inventário.

A nosso ver, não estamos confrontados com uma questão de competência do tribunal [esta, “em sentido técnico designa a repartição do poder jurisdicional pelos diversos tribunais do Estado”[3] o que, no caso, não se coloca e, ademais, o tribunal comum é competente para conhecer da questão nos termos antes preconizados] mas com uma questão de falta de jurisdição ou de atribuições[4] do tribunal comum que não configurando, no caso, um qualquer conflito entre autoridades (artigo 109.º do CPC) obsta – por falta de condições de admissibilidade da ação – a que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da pretensão da A., constituindo, como tal, uma exceção dilatória inominada (artº 576º, nº 3, do CPC) de conhecimento oficioso (artº 578º do CPC).

Assim, o acórdão desta Relação de 8/2/2018, “(…) não poderá o tribunal de 1.ª instância pronunciar-se sobre a questão em causa, uma vez que compete ao notário dirimir todas as questões que importem à partilha. Tal impedimento configura uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 576.º, n.º 2 e 578.º do CPC)”[5].

A decisão recorrida, na parte em que considerou que a pretensão da A. deve ser suscitada, em primeira linha, no processo de inventário e em que absolveu a R. da instância, conforma-se a solução apontada e, como tal, com este alcance, deve manter-se.

Improcede o recurso.


3. Custas
Vencida no recurso, incumbe ao Apelante pagar as custas (artºs 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):

(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida na parte em que absolve a R. da instância.
Custas a cargo da Apelante.
Évora, 4/6/2020
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 157.
[2] A Lei n.º 23/2013, de 5/3 foi revogada pelo artº 10º da Lei n.º 117/2019, de 13/9, mas continua a aplicar-se aos processos de inventário pendentes nos cartórios notariais, em 1/1/2020 que não sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º (artºs 11º e 15º).
[3] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1, 2ª ed., pág. 104.
[4] Ob. cit., pág. 366.
[5] Processo 90/17.7T8PTG.E1, disponível em www.dgsi.pt.