Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
114/13.7TARMR.E1
Relator: ISABEL DUARTE
Descritores: NE BIS IN IDEM
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
MANDATO
PERDA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O caso julgado pressupõe a identidade do objecto do processo, tendo por referência os poderes de cognição do tribunal e os factos que constituem “o mesmo crime”, no sentido jurídico-penal;
II – Não se verifica o instituto do caso julgado se o arguido foi condenado num processo pela prática do crime de dano por como mero proprietário de um imóvel confinante com o da ofendida ter provocado a esta danos com a destruição, reiterada, de um muro, e nos presentes autos está em causa a prática do crime de peculato de uso por o arguido ser presidente de uma Junta de Freguesia e para a realização daquele acto de destruição do muro ter utilizado uma retroescavadora propriedade da referida Junta de Freguesia, factos estes não alegados naquele processo;
III – O princípio “in dubio pro reo” só será de atender se resultar da sentença, principalmente da respectiva fundamentação, que o tribunal recorrido, num estado de dúvida insanável sobre a autoria do crime, optar pelo entendimento desfavorável ao arguido, sendo que o facto de haver prova divergente não significa que estejamos perante uma dúvida séria e honesta;
IV –A perda do mandato, decorrente da alínea f) do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho (membro de órgão representativo de autarquia local), não é inconstitucional.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular n.º 114/13.7TARMR, da Comarca de Santarém…, foi julgado o arguido:

B…, casado, …, residente na Rua…,

tendo sido condenado, como autor material de três crimes de peculato de uso, p. e p. pelos artigos 3°, n.º 1, alínea i), 21°, n.º 1 e 29°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na pena de 35 dias de multa à taxa diária de € 6,00, por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de 90 dias de multa a igual taxa e na perda de mandato como presidente da junta de freguesia.

2 - O arguido, inconformado, interpôs recurso dessa sentença condenatória.
As conclusões por ele apresentadas são as seguintes:
“1 - O presente recurso tem como objeto toda a matéria da Sentença proferida nos presentes autos.
2 - Impõe-se desde logo que proceda a exceção de caso julgado, na medida em que o Recorrente já foi julgado e condenado pelos mesmos factos, sob o Processo n." 764112.9GARMR, já transitado em julgado, pelo que a Sentença de que se recorre viola o princípio constitucional ne bis in idem previsto no n° 5, do artigo 29° da CRP.
3 - Ao utilizar a retroescavadora propriedade da Junta, o Recorrente pretendia apenas deitar abaixo o muro, não sendo por isso estes factos naturalisticamente autónomos, tanto mais que foram praticados no mesmo momento temporal.
4 - Os factos apreciados nos presentes autos formam conjuntamente com os factos julgados no Proc. n.º 764112.9GARMR uma unidade de sentido, questionando-se se não deveriam os poderes cognitivos daquele Tribunal de primeira Instância ter-se estendido logo ao conjunto de todos eles.
(…)
12 - Sendo certo que a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão diferente da que resulta da Sentença impugnada, devendo como tal o Recorrente ser absolvido do crime em que foi condenado.
13 - Desta forma, o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa.
14 - Acresce ainda que o artigo 29° da Lei n° 34/87, de 16 de julho, é inconstitucional, na medida em que viola o n.º 4 do artigo 30° da CRP.
15 - Assim, ao condenar o Recorrente na perda do mandato enquanto membro de órgão representativo de autarquia local, prevista na alínea f), do artigo 29°, da Lei n" 34/87, de 16 de julho, o Tribunal a quo aplicou uma norma inconstitucional, pelo que deverá esta Relação revogar a Sentença de que se recorre, desaplicando a norma inconstitucional.
Termos em que, a douta Sentença recorrida deve ser alterada, ASSIM FAZENDO V. EXAS A COSTUMADA E NECESSÁRIA JUSTIÇA.”.

3 - O MP e a assistente, C…, Lda., apresentaram a sua resposta, com as conclusões seguintes:
3.1 - O primeiro
“1. O arguido B… interpôs recurso da sentença que o condenou pela prática de três crimes de peculato de uso, previstos e puníveis pelos artigos 3.°, n.º 1, alínea i), 21.°, n.º 1 e 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na pena de 35 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por cada um dos crimes cometidos, e na pena única de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, e bem assim viu declarada a perda de mandato, nos termos do disposto no artigo 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho;
2. Na verdade, o arguido foi julgado no âmbito do processo n.º 764/12.9GARMR, pela prática de três crimes de dano cometidos no mesmo dia e local que os crimes que lhe são imputados nestes autos;
3. Porém, e conforme resulta do teor dos factos dados como provados e não provados da sentença proferida naquele processo - cuja certidão se acha a fls. 45 a 85 destes autos - não lhe foi imputada a prática dos factos que consubstanciam os crimes de peculato de uso, nem foi alegada a sua qualidade de presidente da Junta de Freguesia nem a titularidade da retroescavadora utilizada para o cometimento dos factos ali em apreciação;
4. Prevê o artigo 29.°, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", consagrando o princípio ne bis in idem, que visa impedir a dupla punição pela prática do mesmo crime;
5. No caso dos autos, tal como resulta da sentença recorrida e da sentença proferida no invocado processo n.º 764/12.9GARMR os ilícitos imputados ao arguido são diversos e visam proteger bens jurídicos diferentes;
6. Por essa razão, no caso concreto não se verifica a excepção de caso julgado, porquanto no referido processo não foram apreciados os crimes de peculato de uso imputados ao arguido nestes autos;
7. No que concerne à actuação do arguido e à motivação que o levou a utilizar a retroes cavadora propriedade da Junta de Freguesia de Fráguas. da qual era presidente, não restam dúvidas que o mesmo actuou motivado por um interesse particular, o que resulta de toda a prova produzida e devidamente elencada na fundamentação da matéria de facto constante da sentença recorrida;
(…)
16. O arguido praticou os factos dados como provados, e, por essa razão, não se verifica a violação do princípio constitucional de in dubio pro reo;
17. Deste modo, outra conclusão não poderia ter chegado o Tribunal a quo se não concluir pelo preenchimento dos elementos subjectivo e objectivos dos tipos de crime de que eram imputados ao arguido;
18. Posto isto, e não merecendo a sentença recorrida qualquer reparado relativamente à condenação do arguido pela prática dos ilícitos que lhe eram imputados, a aplicação da pena tem como efeito a perda de mandato, de acordo com o estabelecido no artigo 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho;
19. O artigo 117.°, n.º 3, da Constituição prevê que “A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou perda de mandado", sendo esta norma especial em relação à do n.º 4 do artigo 30.° da Constituição;
20. O artigo 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, é uma lei especial, estando-lhe associada a ideia da indignidade para o exercício de funções de quem pratica no exercido delas algum dos crimes previstos nessa lei e, nesses casos tem também subjacente a necessidade de salvaguarda e defesa do prestígio das instituições, onde era exercido o cargo de que o agente era titular - conforme referido na fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 10/07/2014, publicado no site www.dgsi.pt, no qual foi tratada a questão da inconstitucionalidade da referida norma e no qual se conclui pela sua constitucionalidade.
21. Nesta senda, invocamos a posição defendida pelo Tribunal Constitucional, no seu no acórdão n.º 46/2009, publicado no próprio site, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, enquanto fixa, como efeito da condenação por crime de responsabilidade de titular de cargo político, a perda do mandato respectivo.
22. Deste modo, a norma contida na alínea f) do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, não é inconstitucional, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo.
23. Com efeito, não assiste razão ao recorrente, porquanto a sentença recorrida não padece de qualquer vício, nem viola qualquer norma legal ou princípio constitucional.
Termos em que deverá ser integralmente mantida a sentença recorrida e, consequentemente, dever-se-a manter a pena de 90 dias de multa aplicada ao arguido e a consequentemente declaração de perda de mandato, julgando-se como manifestamente improcedente o recurso interposto pelo mesmo,
Assim se fazendo JUSTIÇA! ”.
3.1 - A segunda
“1 - Este recurso não reage contra qualquer injustiça: só visa diferir o trânsito em julgado da douta sentença recorrida para data em que já tenha terminado o mandato do actual Presidente da Junta de Freguesia de… - o recorrente.
2 - A douta sentença recorrida julgou devidamente os factos e fez correcto enquadramento jurídico dos mesmos,
3 - Não tendo violado qualquer disposição legal.
Consequentemente deve confirmar-se ”.

4 - Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso, concluindo:
“Relativamente à primeira das questões suscitadas, a da exceção de caso julgado, diremos na esteira do expendido pela Exma. Magistrada da primeira instância que tal exceção não se verifica uma vez que os crimes por que o arguido foi julgado e condenado são diferentes, assim como diferentes são os bens jurídicos protegidos.
No que concerne à prossecução do interesse público e violação do princípio in dubio pro reo igualmente referiremos que não assiste razão ao arguido, na medida em que o Tribunal a quo justificou plenamente a sua convicção em considerar ter o arguido cometido os crimes por que se encontrava acusado, mencionando os elementos de prova que serviram de base à sua fundamentação, fazendo correto uso do princípio contido no artigo 127° do Código de Processo Penal.
Por fim, e quanto à inconstitucionalidade do artigo 29°, n° 1, alínea f), da Lei n° 34/87, louvamo-nos, mais uma vez, na fundamentação aduzida pela Exma. Senhora Procuradora-Adjunta, bem como nos acórdãos do Tribunal Constitucional e deste Tribunal da Relação por ela citados.
Pelo exposto, somos de parecer de que o recurso não merece provimento e, por conseguinte, ser de manter a douta decisão recorrida.”.

6 - Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir

II - Fundamentação

2.1 - O teor da sentença recorrida, na parte que interessa, é o seguinte:
“A. Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. No dia 31 de Outubro de 2009, o arguido foi eleito Presidente da Junta de freguesia de …, cargo que exercia à data da prática dos factos.
2. A assistente C…, Lda., é proprietária do prédio misto sito no….
3. O arguido é proprietário do prédio misto sito em….
4. À data da prática dos factos, a Junta de Freguesia de… era proprietária da retroescavadora, de marca Caterpillar, com o motor n° 3DJO 1452, a qual estava destinada à sua actividade.
5. No dia 16.10.20 12, pelas l6:00h, o arguido conduziu a referida retroescavadora para arrancar os pilares em ferro do muro que a assistente se achava a construir no prédio de sua pertença acima referido e na linha que delimita tal prédio e o prédio do arguido identificado em 3.
6. No dia 30.10.2012, pelas 15:00h, no local referido no parágrafo anterior, o arguido conduziu a referida retroescavadora para partir duas fiadas do muro que se achava em construção no prédio da assistente.
7. No dia 02.11.2012, pelas 16:40h, no mesmo local, o arguido conduziu a referida retroescavadora para partir cerca de 10 metros do muro mencionado.
8. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, ao usar a máquina retroescavadora acima referida para destruir o muro que a assistente se achava a construir, apesar de saber que a mesma era propriedade da Junta de Freguesia de…, que exercia funções de Presidente da Junta de Freguesia de… e que não lhe era permitido utilizar a referida máquina para fins pessoais, como fez.
9. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
Mais se provou
10. O arguido, pelo menos desde 2001, que vinha interpelando a anterior proprietária do imóvel pertença da assistente para a desocupação do caminho, tendo requerido a intervenção da CMRM 20.02.2001, com esse propósito.
11. Na sequência da comunicação referida em 10., a Câmara Municipal de…notificou a então proprietária do imóvel da assistente para que aquela procedesse à desobstrução da serventia pública ali existente.
12. À assistente foi concedido Alvará n" 96/2013 para construção e transformação de pavilhão e muro no imóvel identificado em 2.
13. Encontra-se registada a favor do arguido a propriedade dos seguintes prédios:
(…).
14. Em 10.01.2013, o arguido e sua mulher propuseram, na qualidade de Autores, por referência aos prédios descritos em 3. e 13., acção declarativa de condenação contra a aqui assistente, a qual correu termos no 1 ° Juízo deste tribunal, sob o n° 18113.3TBRMR peticionando:
a) Sejam aos AA. reconhecida a violação do seu direito de fruição de passagem constituída pelo caminho;
b) E, em conformidade, ser ordenado à Ré que proceda à imediata retirada, e a expensas suas do muro que colocou ao longo do caminho que se estende pelo espaço e com as dimensões necessárias ao acesso a pé e de carro aos imóveis pertença dos AA, atento o facto de tal acto causar a estes prejuízo grave e dificilmente reparável, restituindo a passagem à sua forma original;
c) Se abstenha de, a partir desta data, colocar entraves à livre admissão e circulação dos AA., na integralidade do caminho que ora se encontra, parcialmente, obstruído;
d) A condenação da Ré a pagar uma indemnização, a título de danos não patrimoniais a liquidar em execução de sentença.
15. Por sentença proferida em 13.05.2014, transitada em julgado em 20.06.2014, foi a acção judicial identificada em 14. totalmente improcedente, por não provada, e a ré absolvida dos pedidos contra si deduzidos.
16. Do certificado de Registo Criminal do arguido consta a sua condenação por sentença proferida em 08.05.2013, no âmbito do Proc. Abreviado n" 764112.9GARMR, do 1° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de…, pela prática de 3 crimes de dano, p.p. pelo artigo 212° do Código Penal, na pena única de 195 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, por factos praticados em 26.10.2012.
17. O arguido é industrial do ramo de transportes, obtendo um rendimento médio mensal equivalente ao salário mínimo nacional, a que acresce uma gratificação de € 272,00 mensais por virtude de exercer as funções de Presidente da Junta de Freguesia de….
18. O arguido reside com a esposa que é doméstica, em casa própria, suportando um encargo mensal de cerca de € 360,00 com o empréstimo à habitação.
19. O arguido não tem filhos menores ou pessoas a seu cargo.
20. O arguido tem o 60 ano de escolaridade.
B. Factos não provados Inexistem factos não provados.
(…)

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que o recorrente alega, no caso em análise, como fundamento do recurso:
a) - Verifica-se a excepção de caso julgado;
b) - A matéria de facto foi erradamente valorada, pois, o arguido agiu na prossecução de um interesse público e, por essa razão, deveria ter sido absolvido;
c) - A sentença recorrida ter violado o princípio in dubio pro reo; e
d) - A aplicação do artigo 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, é inconstitucional.

2.4 - Do conhecimento do objecto de recurso
2.4.1 - Excepção de caso julgado
O arguido/recorrente, alega, no caso “sub judice”, a existência da excepção de caso julgado, na medida em que “já foi julgado e condenado pelos mesmos factos, sob o Processo n.º 764112.9GARMR, já transitado em julgado, pelo que a Sentença de que se recorre viola o princípio constitucional ne bis in idem previsto no n° 5, do artigo 29° da CRP.”.
Este último preceito estabelece “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”.”.
O CPP não contém norma expressa regulamentadora do instituto do caso julgado. Existem, tão só, referências insuficientes - Vide arts. 84º e 467º do CPP -.
No âmbito do CPP de 1929, a situação era distinta, pois que, nos seus art.ºs 148º, 149º, 153º e 446º estabelecia critérios definidores do âmbito desse instituto. Acresce que os artigos 447º/448º confinavam os poderes de cognição do juiz de forma a que os efeitos do caso julgado se articulavam com esses poderes.
O segundo daqueles preceitos legais estabelecia: “"Quando por acórdão, sentença ou despacho com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza”.
Como refere FREDERICO ISASCA, in Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância em Processo Penal, p. 227, a falta de norma expressa sobre o caso julgado, não implica que o legislador não tenha querido consagrá-lo, tanto mais que se trata de um instituto fundamental do direito de defesa, como ainda da paz social, que tem sido reconhecido uniformemente pela doutrina e pela jurisprudência.
Essa omissão do CPP impõe o recurso das normas, sobre essa matéria, do CPC, conforme preceitua o art. 4º, do aludido do CPP.
O art. 498º, n.º1, do CPC, esclarece o conceito de caso julgado em função da identidade da acção tendo como pressuposto a identidade de partes, pedido e causa de pedir.
O determinante é a delimitação da expressão "mesmo crime”, isto é, a identidade do facto criminoso, pressuposto do efeito de consunção do exercício da acção penal ou do caso julgado,
Frederico Isasca, na ob. cit., p. 220/221, citando GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, afirma: «crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare» ... «a expressão “crime” não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o nº 5 do Art. 29º da Constituição da República Portuguesa proíbe é, no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal».
É o número de resoluções que avalia “a existência de diversos crimes, quando diversas condutas violam o mesmo tipo de crime”.
Portanto, o caso julgado pressupõe a identidade do objecto do processo, tendo por referência os poderes de cognição do tribunal e os factos que constituem “o mesmo crime”, no sentido jurídico-penal
O Ac. do STJ, de 20-10-2010, proferido no Proc. N.º 3554/02.3TDLSB.S2, disponível em www.dgsi.pt, sobre o conceito de caso julgado refere: “…o caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio do ne bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo art. 29.°, n.° 5, da CRP: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. III - Com os conceitos de caso julgado formal e material descrevem-se os diferentes efeitos da sentença. Com o conceito de caso julgado formal refere-se a inimpugnabilidade de um decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo). Por seu turno, o caso julgado material tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. O direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado. IV - No que concerne à extensão do caso julgado pode distinguir-se entre caso julgado em sentido absoluto e relativo: no primeiro caso a decisão não pode ser impugnada em nenhuma das suas partes. O caso julgado relativo é objectivamente relativo quando só uma parte da decisão se fixou e será subjectivamente relativo quando só pode ser impugnada por um dos sujeitos processuais. V - Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati). O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.VI - Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo –, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.”
Após esta explanação jurídica, teremos de concluir, que este pressuposto processual de caso julgado, invocado pelo arguido, não se verifica, porquanto, os factos e os crimes pelos quais o arguido foi julgado e condenado são distintos, assim como diferentes são os bens jurídicos protegidos pelos respectivos tipos legais de crime.
Pois que, o arguido foi julgado, no âmbito do processo n.º 764/12.9GARMR, pela prática de três crimes de dano cometidos no mesmo dia e local que os crimes que lhe são imputados nestes autos.
Todavia, conforme consta do teor dos factos dados como provados e não provados da sentença proferida naquele processo, cuja certidão se mostra acha a fls. 45 a 85 destes autos, não lhe foi imputada a prática dos factos que consubstanciam os crimes de peculato de uso, nem foi alegada a sua qualidade de presidente da Junta de Freguesia, nem a titularidade da retroescavadora utilizada para o cometimento dos factos ali em apreciação. O que foi julgado foram os danos ocasionados, pelo arguido, como mero proprietário de um imóvel confinante, com a ofendida, que lhe provocou danos com a destruição, reiterada, de um muro.
É inquestionável que na sentença recorrida e n sentença proferida no aludido Proc. n.º 764/12.9GARMR, os ilícitos imputados ao arguido são diversos e visam proteger bens jurídicos distintos.
A conclusão a retirar é a de que, no caso “sub judice”, não se verifica o instituto de caso julgado, porquanto naquele referido processo não foram apreciados os crimes de peculato de uso e os factos com eles conexos, imputados ao arguido nestes autos.
O recorrente carece de razão, neste segmento do presente recurso.

2.4.2 - Segunda questão
(…)

2.4.4 - Violação do princípio “in dubio pro reo”.
Invoca o recorrente, ainda, que a decisão recorrida violou o princípio do in dubio pro reo, no sentido em que a condenou pela prática dos crimes de peculato de uso, não valorando as dúvidas quanto à prática dos mesmos, a favor do arguido, mas sim, contra este.

A violação do princípio in dubio pro reo é tratada como erro notório na apreciação da prova.

Relativamente a este princípio "in dubio pro reo", cremos que este apenas se coloca no âmbito da matéria de facto; e apenas se verifica quando do texto da decisão recorrida resulte que o tribunal, na dúvida optou por decidir contra o arguido (ac. do STJ de 28.01.99), sendo certo também que de haver prova divergente não significa que estejamos perante uma dúvida séria e honesta.

Ora, resulta da sentença recorrida que o tribunal nunca duvidou, face à prova produzida, que o arguido cometeu os crimes pelo quais foi condenado.

Como já afirmado, o que o recorrente alega no fundo é uma diversa interpretação/valoração da prova.
E como já afirmado, a este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: " Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer Apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de, em concreto, ser recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo..."
Como já referido, a convicção do julgado há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ".
O invocado princípio só seria de atender se resultasse da sentença, principalmente da respectiva fundamentação, que o tribunal recorrido, num estado de dúvida insanável sobre a autoria da prática dos aludidos crimes, tivesse optado por entendimento desfavorável ao arguido.
Ora não é isto que ocorre no caso vertente, sendo patente, da fundamentação da sentença, que o tribunal não teve qualquer dúvida sobre a ocorrência do ponto nºs. 1 a 20, dos factos provados, desde logo, atendendo às mais elementares regras da experiência e senso comum.
Por fim, é óbvio, da simples leitura da fundamentação da decisão recorrida que o tribunal não teve qualquer dúvida acerca dos pontos de factos que deu como assentes, dúvidas que este tribunal de recurso, mesmo sem acesso à imediação e à oralidade, também não vislumbra.
Portanto, não resulta do texto da sentença recorrida que o tribunal tenha violado o princípio" in dubio pro reo".
Razão pela qual deverá improceder a tese do arguido, sendo ainda certo que onde não reside a dúvida, não pode funcionar o princípio constitucional “in dubio pro reo”.
Pelos motivos retro expostos, não se vislumbra que tenham sido violadas, entre outras, normas contidas nos arts 32° da C.R.P e 410°, do Código Processo Penal.
Resumindo o recorrente carece de razão.

2.4.5- Atendendo ao decidido no ponto 2.4.2, para o qual se remete, designadamente a confirmação da matéria de facto provada vertida no ponto n.º 8, é inquestionável que se mostra provado que a actuação do arguido e a motivação que o levou a utilizar a retroescavadora, propriedade da Junta de Freguesia de…, da qual era presidente, para destruir, por três vezes, partes do muro construído pela assistente, num prédio confiante com um outro, pertencente ao arguido e à mulher, como pessoas singulares, por se arrogar ao direito de uma servidão de passagem, foram meros interesses particulares.
Assim, sem necessidade de maiores conjecturas, é destituída de qualquer fundamento a alegação constante do seu ponto 8, das conclusões da motivação de recurso, pois que, não se vislumbra a ocorrência de “nenhuma prossecução de um especial interesse público uma causa de justificação da conduta.”
Portanto, em face do exposto, os elementos objectivos (o arguido, titular de cargo político, fez uso, em três momentos distintos, sem animus domini, para fins alheios àqueles a que se destina, de retroescavadora, pertencente à junta de freguesia, da qual era Presidente, em seu proveito próprio e pessoal) e subjectivos (o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, ao usar a máquina retroescavadora acima referida para destruir o muro que a assistente se achava a construir, apesar de saber que a mesma era propriedade da Junta de Freguesia de…, que exercia funções de Presidente da Junta de Freguesia de… e que não lhe era permitido utilizar a referida máquina para fins pessoais, como fez, sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente) do tipo legal do crime de peculato de uso, mostram-se preenchidos.

2.4.6 - Por fim, deverá, atender-se à alegada inconstitucionalidade do art.º 29.°, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, relacionada com a perda de mandato, consequência da aplicação da pena.
Este preceito, com epígrafe "Efeitos das penas aplicadas a titulares de cargos políticos de natureza electiva" preceitua: "Implica a perda do respectivo mandato a condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções dos seguintes titulares de cargo político:
a) Presidente da Assembleia da República;
b) Deputado à Assembleia da República;
c) Deputado ao Parlamento Europeu;
d) Deputado a assembleia regional;
e) (Revogada.)
f) Membro de órgão representativo de autarquia local".
O recorrente alega que tal normativo legal é inconstitucional, por violar o n.º 4 do artigo 30.° da Constituição, que consagra que "Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direito civis, profissionais e políticos".
Contudo, o art.º 117.°, n.º 3, da C.R.P, que é uma norma especial, relativamente à retro transcrita – n.º 4, do art. 30º, da mesma C.R.P. -, preceitua: “A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou perda de mandado”.
O Ac. deste TRE, de Évora, 10-07-2014, proferido no Processo n.º 540/12.9TASTR.E, disponível em www.dgsi.pt, pronunciou-se pela constitucionalidade do citado art. 29º, al. f), da Lei n.º 34/87, entendendo: “…III - A perda de mandato, decorrente da alínea f) do art. 29.º da Lei n.º 34/87, não é inconstitucional.” Adiantando, também, que “Por sua vez, o artigo 29.°, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, é uma lei especial, estando-lhe associada a ideia da indignidade para o exercício de funções de quem pratica no exercido delas algum dos crimes previstos nessa lei e, nesses casos tem também subjacente a necessidade de salvaguarda e defesa do prestígio das instituições, onde era exercido o cargo de que o agente era titular.
O tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a constitucionalidade deste preceito - art. 29º, al. f), da Lei nº34/87, de 16 de Julho -, enquanto fixa, como efeito da condenação por crime de responsabilidade de titular de cargo político, a perda do mandato respectivo, nomeadamente:
No Ac. N.º 46/2009, publicado no próprio site;
No Ac. de 17-10-1990, publicado no DR nº42, II série, de 20-02-1991.
Concluindo, a norma englobada na alínea f) do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, não é inconstitucional.
Consequentemente, o recorrente carece de razão, pois que a sentença recorrida não deve ser alterada, mas sim, de manter.


III - Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal deste Tribunal, em negar provimento ao recurso, mantém-se, o decidido na sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UCs.
(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas - art. 94 n.º 2 do CPP).

Évora, 02/02/2016
Maria Isabel Duarte (relatora)
Martins Simão (adjunto)