Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1911/12.6TBSTB.E1
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - O caso julgado não vale apenas como excepção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior.
II - A autoridade do caso julgado impõe-se não só às partes como ao próprio Tribunal. Consequentemente o Tribunal “ a quo “ não poderia contrariar o entendimento constante do Acórdão deste Tribunal, que no âmbito do proc. nº 6810/06.8TBSTB-A.E, apreciou a exequibilidade do mesmo título que serve de base aos presentes autos.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc.º N.º 1911/12.6TBSTB.E1
Apelação
2ª Secção

Recorrente:
AA
Recorridos:
BB, Lda. e CC.

Relatório

AA, veio instaurar a presente acção executiva para pagamento de quantia certa contra BB, Lda. e CC, apresentando como título executivo um documento particular consubstanciado num contrato promessa de compra e venda, assinado pelas mesmas como promitente compradora e vendedora e fiador, respectivamente, solicitando o pagamento da quantia de € 65.200,00, referente ao pagamento pela exequente do referido valor para obter o levantamento da hipoteca que incidia sobre o imóvel objecto do contrato definitivo, conforme já se encontrava previsto no contrato-promessa junto como título executivo.
Apreciando liminarmente o requerimento executivo, a Sr.ª Juíza, considerou que o documento dado à execução não constituía título executivo, porquanto «consubstanciando o documento dado à execução um mero contrato-promessa de compra e venda alegadamente assinado pelas partes, o incumprimento definitivo pelos executados quanto aos deveres acessórios constantes do mesmo e consequente responsabilização perante a exequente, para que seja título executivo tem que ser declarado em acção ordinária intentada com essa finalidade, não resultam nesta fase a mera existência do referido documento particular a constituição por parte dos executados de qualquer obrigação pecuniária certa exigível e líquida cujo montante esteja aí determinado ou seja determinável por simples cálculo aritmético, carecendo tal documento de força executiva para que possam suportar uma acção executiva» e consequentemente indeferiu liminarmente o requerimento executivo.
Inconformada com tal decisão, veio a exequente interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

«1.º- O presente recurso incide sobre a douta decisão que indeferiu liminarmente o requerimento executivo nos termos do disposto no artigo 812.º, n.º 2, alínea a) do C.P.C., por entender que não se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 46.º, n.º 1, alínea c) e 802.º do mesmo diploma legal.
2.º- Nos presentes autos de execução, a exequente apresentou como título executivo um contrato promessa de compra e venda, do qual resulta, na sua cláusula segunda, uma verdadeira declaração de dívida, na qual a primeira outorgante se reconhece expressamente devedora da exequente no montante de € 65.200,00, cumprida que seja a obrigação assumida pela exequente nos termos da cláusula primeira.
3.º- Conforme resulta do referido contrato, essa obrigação consistia no pagamento do valor que a executada tinha em dívida para com o Banco DD, S.A., encontrando-se o imóvel objecto do contrato promessa onerado com uma hipoteca a favor daquela instituição bancária.
4.º- Resulta do requerimento executivo que a exequente cumpriu com a sua obrigação, tendo para o efeito recorrido a crédito bancário junto do Banco EE, o qual só aceitava conceder crédito mediante o distrate da anterior hipoteca, o que efectivamente veio a acontecer.
5.º- Para prova do cumprimento da sua obrigação, a exequente juntou certidão predial actualizada do imóvel, donde resulta que não existe sobre o prédio a hipoteca a favor do DD, S.A., porque efectivamente tal valor foi por si pago na data da outorga da escritura de compra e venda, no dia 2 de Agosto de 2005.
6.º- Pelo que, no caso dos presentes autos, não existem dúvidas de que se trata de um documento particular, assinado pelo devedor e que importa o reconhecimento de obrigações pecuniárias.
7.º- Aliás, a este respeito veja-se o Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, já transitado em julgado, o qual foi proferido no âmbito da acção executiva com o n.º 6810/06.8TBSTB-A.E1 instaurada pela ora recorrente, no qual se decidiu, acerca do mesmo título executivo, que “a Exequente, para dar força ao contrato dado à execução, devia ter alegado ter cumprido a sua obrigação constante da Clª 1ª e junto o documento comprovativo de tal cumprimento. Ora o que a Exequente não alegou expressamente no requerimento executivo que cumpriu com a sua obrigação consignada na referida Clª 1ª, nem juntou documento comprovativo de o ter efectuado. E, assim sendo, o título executivo não tem força executiva.’ – cfr. doc. 1 que ora se junta.
8.º- O citado Acórdão constitui quanto a esta matéria verdadeira autoridade de caso julgado, pois que se pronunciou sobre a validade do título executivo que foi dado à execução nos presentes autos, e concluiu que o mesmo pode configurar um título executivo, desde que a ora recorrente demonstrasse que tinha cumprido a sua obrigação.
9.º- Assim, e tendo na presente acção executiva a exequente cumprido com o estipulado no Acórdão acima citado, uma vez que alegou ter cumprido com a sua obrigação e juntou certidão comprovativa desse cumprimento, apenas resta concluir que efectivamente o mencionado contrato-promessa configura título executivo.
10.º- A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artigo 498.º do C.P.C.
11.º- Além disso, resulta do contrato dado à execução que a dívida dos executados deveria ser paga integralmente até 30 de Julho de 2006.
12.º- A presente execução deu entrada em Tribunal no dia 23/03/2012, ou seja, quase seis anos após a data mencionada no referido contrato, nada tendo sido pago até então pelos executados.
13.º- Assim, é forçoso concluir que o mencionado documento preenche os requisitos de título executivo, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do C.P.C.
14.º- A acção executiva visa a realização coactiva de uma prestação, e nela não se procura uma decisão sobre um direito controvertido, mas a efectivação de uma prestação que está documentada num título executivo, cfr. artigos 4.º, n.º 3 e 45.º, n.º 1 do C.P.C.
15.º- Diz-se ainda na sentença recorrida que do título executivo em causa não resulta qualquer obrigação pecuniária certa exigível e líquida cujo montante esteja aí determinado ou seja determinável por simples cálculo aritmético.
16.º- Ora, não se compreende como é que o Tribunal “a quo” chega a essa conclusão, uma vez que resulta do título executivo que os executados se reconhecem expressamente devedores do montante global de € 65.200,00, quantia essa certa, líquida e exigível.
17.º- Não restam assim dúvidas de que o documento dado à execução constitui título executivo, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do C.P.C., pelo que não deveria o Tribunal “a quo” ter concluído pelo indeferimento liminar do requerimento executivo, devendo a execução prosseguir os seus termos.
18.º- Conclui-se que a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 45.º e 46.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, SE REVOGARÁ A DOUTA DECISÃO RECORRIDA...»
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Não houve resposta.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[1], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[2], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil ).
Das conclusões acabadas de transcrever, decorre que a questão suscitada no recurso consiste em saber se o título dado à execução é título executivo, designadamente por vincular as partes a decisão proferida no acórdão desta relação no processo n.º 6810/06.8TBSTB-A.E1, entre as mesmas partes e onde o título dado à execução era o mesmo.
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Com relevância para a decisão da causa, decorre dos autos a seguinte factualidade:
Nos presentes autos de execução, a exequente apresentou como título executivo um contrato promessa de compra e venda, do qual resulta, na sua cláusula segunda, que a primeira outorgante e executada se reconhece expressamente devedora da exequente no montante de € 65.200,00, cumprida que seja a obrigação assumida pela exequente nos termos da cláusula primeira.
Essa obrigação consistia no pagamento do valor que a executada tinha em dívida para com o Banco DD, S.A., encontrando-se o imóvel objecto do contrato promessa onerado com uma hipoteca a favor daquela instituição bancária.
A exequente alega que cumpriu com a sua obrigação, tendo para o efeito recorrido a crédito bancário junto do Banco EE, o qual só aceitava conceder crédito mediante o distrate da anterior hipoteca, o que efectivamente veio a acontecer.
Para prova do cumprimento da sua obrigação, a exequente juntou certidão predial actualizada do imóvel, donde resulta que não existe sobre o prédio a hipoteca a favor do DD, S.A., porque efectivamente tal valor foi por si pago na data da outorga da escritura de compra e venda, no dia 2 de Agosto de 2005.
No Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, já transitado em julgado, proferido no âmbito da acção executiva com o n.º 6810/06.8TBSTB-A.E1 instaurada pela ora recorrente, com base no mesmo título executivo, foi decidido que “a Exequente, para dar força executiva ao contrato dado à execução, devia ter alegado ter cumprido a sua obrigação constante da Clª 1ª e junto o documento comprovativo de tal cumprimento. Ora o que a Exequente não alegou expressamente no requerimento executivo que cumpriu com a sua obrigação consignada na referida Clª 1ª, nem juntou documento comprovativo de o ter efectuado. E, assim sendo, o título executivo não tem força executiva.
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Vejamos
Defende a recorrente que a decisão recorrida viola a autoridade do caso julgado formado com a decisão proferida no processo n.º 6810/06.8TBSTB-A.E, onde fora dado à execução o mesmo contrato que serve de suporte à presente execução e onde as partes eram as mesmas.
O caso julgado não vale apenas como excepção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior. Como expendia Manuel Andrade[3], a definição dada pela sentença à situação ou relação material que estiver sub judice deve ser respeitada para todos os efeitos em qualquer novo processo, tendo este novo processo de ter por assente que a mesma situação ou relação subsistia (a esse tempo) tal como a sentença a definiu. A autoridade de caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artº 581º do C.P.C., pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida - nesse sentido, entre outros, Acs. do STJ de 13.12.2007, processo nº 07A3739; de 06.03.2008, processo nº 08B402, e de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, www.dgsi.pt».
A excepção do caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado
Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere TEIXEIRA DE SOUSA: “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente ( “ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs. ). A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão e como elucida LEBRE DE FREITAS «este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida».
A jurisprudência tem acolhido esta distinção ( cf., por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac. do STJ de 18-06/2014 , proc.º nº 209/09.1TBPTL.G1.S1, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.. , Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24 e Ac RC de 27/9/05, disponível in http://www.dgsi.pt.
Considerando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e afasta todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada. É entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado – vd., por todos, Ac. do STJ de 12.07.2011, processo 129/07.4.TBPST.S1, www.dgsi.pt. Como diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 579), citado no referido Acórdão do STJ, «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».
No caso sub judicio é patente e manifesto que a decisão recorrida viola a autoridade do caso julgado formado na decisão proferida por este Tribunal no processo nº 6810/06.8TBSTB-A.E, em que as partes eram as mesmas e o objecto era o mesmo. O que se discutia naquele processo era se o contrato promessa aí dado à execução (e que é o mesmo que serve de base à presente execução) era título executivo ou não. Ora foi aí decidido que o referido contrato tinha virtualidade para ser título executivo mas só não o era porquanto « a Exequente não alegou expressamente no requerimento executivo que cumpriu com a sua obrigação consignada na referida Clª 1ª, nem juntou documento comprovativo de o ter efectuado. E, assim sendo, o título executivo não tem força executiva». Neste aresto o Tribunal afirmou peremptoriamente que aquele contrato promessa seria título executivo, se o exequente tivesse alegado no requerimento executivo que cumprira com a sua obrigação consignada na ….. Clª 1ª e juntasse o documento comprovativo de o ter efectuado.
A exequente nos presentes autos respeitou integralmente esta decisão, alegando o cumprimento da obrigação decorrente da clª 1º e juntando os pertinentes documentos comprovativos, pelo que, nestas circunstâncias, o título dado à execução não podia deixar de ser considerado título executivo, porquanto a autoridade do caso julgado impõe-se não só às partes como ao próprio Tribunal.

Em Sintese:
I - O caso julgado não vale apenas como excepção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior.
II - A autoridade do caso julgado impõe-se não só às partes como ao próprio Tribunal. Consequentemente o Tribunal “ a quo “ não poderia contrariar o entendimento constante do Acórdão deste Tribunal, que no âmbito do proc. nº 6810/06.8TBSTB-A.E, apreciou a exequibilidade do mesmo título que serve de base aos presentes autos.
Concluindo

Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida e ordenar o normal prosseguimento dos autos.
Custas precípuas, pelo produto da execução.
Notifique.
Évora, em 5 de Maio de 2016.
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(Bernardo Domingos – Relator)

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(Silva Rato – 1º Adjunto)

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(Assunção Raimundo – 2º Adjunto)


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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Manuel Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, p. 321.