Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
764/19.8T8BJA-A.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - De acordo com o regime prescrito nos art.ºs 377.º e 378.º do CPC, a restituição provisória da posse depende da verificação indiciária dos seguintes requisitos: a posse; o esbulho; e a violência.
II - Quando se fala em posse jurídica quer-se dizer posse verdadeira e própria, e não simples detenção; posse, portanto, integrada por corpus e animus possidendi, isto é, por atos materiais praticados com intenção correspondente ao conteúdo de determinado direito real ( art.º 1251.º do C.C.).
III - Para haver esbulho é necessário que o possuidor seja privado, total ou parcialmente, do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou seja, quando fica privado de exercer a sua posse ou os direitos que tinha anteriormente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
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I. Relatório.
1. BB, residente na Rua …, n.º …, 7800-…, em Beja, intentou o presente procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse contra ASSOCIAÇÃO DE AGRICULTORES DO …, com sede na Rua …, n.º …, …-…, em …, peticionando a restituição provisória da posse da casinha que lhe foi dada para uso e fruição vitalícios, no recinto da Feira Ovibeja.
Alegou, resumidamente, ser sócio da requerida, que é uma associação de direito privado, que no âmbito das suas atribuições organiza anualmente a Feira Ovibeja, sendo o requerente expositor do certame desde o seu início até ao presente. Este ano igualmente marcará presença expondo sobretudo cavalos, éguas e potros, sendo que desde há 35 anos que dispõe de uma pequena casinha, dependência de apoio à atividade em exposição, cujo direito de uso e fruição lhe foi, então, reconhecido, e de que dispõe todos os anos por ocasião da Ovibeja. Contudo, há cerca de 15 dias foi-lhe transmitido que deveria desmontar a casinha e retirá-la do espaço onde sempre se encontrou, desconhecendo em que circunstâncias tal decisão foi tomada. Assim, no passado dia 31 de Março de 2019, o requerente constatou que, pese embora a casinha não tivesse sido desmontada, a porta estava aberta e o canhão da fechadura havia sido removido, bem como se encontravam operários a retirar os fios elétricos, o que permaneceu até ao dia 3 de Abril de 2019.
Deste modo, a ameaça real de desmontar a casinha põe em causa por diminuição substancial das condições logísticas a realização de eventuais negócios.
2. Decretada a providência e ordenada a restituição ao requerente da casinha em causa nos autos, veio a requerida deduzir oposição, alegando, para tanto e em síntese, que a parcela onde decorre a feira e se localiza a casinha em causa nos autos apenas é propriedade da requerida desde 2006, pelo que não é verdade que a feira tenha lugar naquele terreno há mais de 35 anos ou que o requerente disponha da mesma desde tal data. No ano de 2000, a requerida construiu duas casinhas, tendo facultado o uso de uma delas ao requerente, sendo que nos últimos 19 anos o requerente não tem participado sucessiva e ininterruptamente nas diversas edições da Ovibeja. Por outro lado, foi a requerida quem instalou em 2017 a eletricidade em ambas as casinhas, pagando os respetivos consumos e, bem assim, os pagamentos das vistorias obrigatórias, pelo que o requerente limitou-se a utilizar a casinha por mera tolerância da requerida. Em razão de outros planos para o espaço, a requerida decidiu contactar os detentores das casinhas com vista à sua demolição, disponibilizando a mão-de-obra e transporte para recolocação e ainda uma compensação, o que não foi aceite pelo requerente. Deste modo, foi desmontada a outra casinha, sendo que foi desmontada a instalação elétrica da casinha do requerente por razões de segurança. Por seu turno, o canhão da fechadura da porta estava muito danificado, não tendo sido forçado ou partido, sendo possível ao requerente abrir a porta para entrar, o que nunca foi impedido pela requerida.
Por isso, falece, desde logo, o requisito da posse, na medida em que o requerente é mero detentor, pois que a sua posse precária decorre da mera tolerância da requerente.
Por outro lado, a requerida nada fez para impedir o acesso do requerente à casinha, pelo que não houve esbulho. Também não houve violência pois que o canhão não foi forçado ou partido, apenas se mostrava muito danificado e velho.
Termina pugnando pela revogação da providência cautelar decretada.
Juntou documentos e arrolou testemunhas.
3. Procedeu-se à produção da prova indicada pela Requerida, com observância das formalidades legais, e foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Em face de todo o exposto e tudo ponderado, o Tribunal decide revogar o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse requerido por BB contra ASSOCIAÇÃO DE AGRICULTORES CC … e, em consequência determina o seu imediato levantamento”.
4. Desta sentença veio o requerente interpor o presente recurso, apresentando conclusões que não respeitam as exigências de síntese referidas no art.º 639.º/1 do CPC, apesar do convite formulado nos termos do seu n.º3, razão pela qual não serão integralmente transcritas, delas extraindo-se de relevante as seguintes:
a) Não devia ser dado como provado a matéria sob a alínea BB) e os factos dados como não provados sob os n.ºs 1), 2), 3), 4) e 5) (que deveriam ter sido considerados provados).
b) A Mma. Juiz, erradamente, deu como provado o facto constante da alínea BB) da matéria de facto provada [Foi a Requerida que instalou, em 2017, por sua exclusiva iniciativa e a expensas suas, a eletricidade em ambas as casetas].
c) Face à prova produzida devia apenas dar-se como provado na alínea BB) “que, em 2017, a Requerida procedeu, a expensas suas, à remodelação da instalação elétrica, designadamente, das casinhas”
d) O que está em causa nos presentes autos é a restituição provisória ao Requerente da posse do direito de usufruto, que mantém há mais de 20 (vinte) anos, posse da qual se viu esbulhado pela Requerida;
e) Ficou suficientemente demonstrado que, ao longo de 23 (vinte e três) anos, foi o Requerente que assumiu a realização destas obras de reparação ordinária, consistentes na limpeza, interior e exterior, no envernizamento da madeira, reparação de caixilhos, substituição de vidros, manutenção anual das baias, etc.;
f) A Requerida ordena e paga a vistoria anual obrigatória, por decorrer de imposição legal, a cargo da entidade exploradora do certame, procedeu à remodelação da instalação elétrica, por razões de segurança e imperativos legais, a cargo do proprietário do certame e do bem dado de usufruto, reparou o telhado aquando do vendaval que o destruiu, por se tratar, igualmente, de despesa a seu cargo por ser o proprietário.
g) Com efeito, a única despesa de administração, que a Requerida vem assumindo, é o pagamento da energia elétrica consumida em toda a feira, o que acontece, por existir um contador único para todo o certame, determinando a emissão de fatura única (vide documento n.º 3 junto aos autos com a oposição).
Deve a sentença ser alterada, designadamente, no que respeita à decisão sobre a matéria de facto que se encontra erradamente julgada e, consequentemente, determinar-se por legal, a restituição da posse da casinha ao Requerente.
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5. Contra alegou a Requerida, defendendo a manutenção da decisão recorrida e improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Alteração da matéria de facto no sentido pretendido.
b) Se estão verificados os pressupostos legais para o deferimento da pretendida restituição provisória da posse sobre a mencionada construção de madeira.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
1.1. A factualidade indiciariamente provada pela 1.ª instância, que se mantém, é a seguinte:
A) O Requerente é empresário, presentemente reformado, e, durante toda a sua vida, foi sócio de diversas empresas nas áreas agrícola, pecuária (e animais exóticos), comercialização de automóveis e construção civil.
B) De igual modo, é sócio da Requerida CC, com o n.º 363.
C) A Requerida é uma associação de direito privado, cujo objeto social é «(…) o desenvolvimento da agricultura, da pecuária, da floresta, da agro-indústria e de todas as atividades do meio rural, nos seus aspetos científicos, técnicos e socioeconómicos e a defesa dos interesses dos seus associados enquanto produtores agrícolas, pecuários, florestais, agroindustriais e outros empresários.
D) No âmbito das suas atribuições, a CC organiza anualmente, a Feira Ovibeja, este ano, a 36ª edição.
E) O principal objetivo da Feira é a apresentação de produtos e/ou serviços que se relacionem com o seu sector de atividade e objeto, ou seja, «(…) divulgação da economia, tradição e cultura do povo alentejano (…)» assumindo-se como «(…) fator de relevo no desenvolvimento regional na vertente económica e social.»
F) O Requerente é expositor do certame, desde a sua 1ª edição em 1983, em representação das inúmeras empresas e atividades a que se dedicou ao longo da sua vida.
G) O Requerente dispõe de uma pequena casinha, dependência de apoio à atividade em exposição, de que dispõe todos os anos, por ocasião da Ovibeja.
H) Como parte da estratégia de fidelização de expositores relevantes do baixo Alentejo, para a Ovibeja, o então Presidente da Direção da CC, saudoso Eng.º Manuel C…, disponibilizou ao aqui Requerente, uma pequena parcela de terreno, onde este poderia edificar uma estrutura de apoio à atividade, que também serviria de abrigo a quem se encontrasse na exposição.
I) Inicialmente, o Requerente construiu uma pequena casinha em alvenaria, com instalações sanitárias e demais comodidades necessárias, num investimento que rondou, em moeda atual, os € 30 000,00 (trinta mil euros).
J) Em 1999, o Requerente viu a sua casinha demolida por decisão da organização do evento, para permitir a realização das obras necessárias ao crescimento do certame.
K) Porém, a CC substituiu a casinha de alvenaria (destruída) por uma casinha sensivelmente com a mesma área em madeira (mas sem instalações sanitárias ou outras).
L) E, assim foi, até há cerca de 15 (quinze) dias, quando o Requerente foi abordado pelo Eng.º Claudino M… que, verbalmente lhe transmitiu que deveria desmontar a casinha e retirá-la do espaço onde se encontra e sempre se encontrou.
M) Perante a estupefação e resistência do Requerente, foi-lhe transmitido que os serviços da CC desmontariam a casinha.
N) Apenas uma «oferta», pela Requerida ao Requerente, de €2.000 (dois mil euros) de indemnização, para a remoção da casinha.
O) Oferta que foi declinada pelo Requerente.
P) Em dia que não consegue precisar, mas na semana de 25 a 31 de março do corrente ano, o Requerente foi novamente informado verbalmente, que teria que desmontar a casinha e remover todos os seus pertences.
Q) Tendo-lhe sido dito que, se não o fizesse, a casinha seria desmontada no domingo, 31.03.2019.
R) Por intermédio da sua mandatária, o Requerente dirigiu uma comunicação ao Eng.º Claudino de M…, membro da direção da Requerida, transmitindo que, a concretizar-se, o Requerente consideraria a demolição/remoção «(…) a prática de ato ilícito, por violador do contrato outorgado entre as partes e, por conseguinte, intolerável.»
S) Acrescentou ainda que «(…) qualquer comunicação formal e/ou proposta ou conversação a encetar com o meu constituinte, relativamente à matéria em questão, deverá ser-me dirigida, na qualidade de sua mandatária ou ao próprio, por meio de carta registada com aviso de receção, na qual se manifestem clara e inequivocamente, as pretensões em cogitação e propostas concretas que, eventualmente, possam estar em análise».
T) No domingo (31.03.2019), pelas 14 horas, o Requerente, acompanhado da neta, deslocaram-se ao local da Feira.
U) A Requerida CC não tem e nunca teve a chave da casinha.
V) Constataram nesse dia que, embora a casinha não tivesse sido desmontada, a porta encontrava-se aberta, o canhão da fechadura havia sido removido e os operários encontravam-se no interior da casinha, retirando os fios elétricos.
W) A casinha ficou sem ligação elétrica e a porta permaneceu aberta até ao presente.
X) Desde sempre, a casinha se encontra identificada com o logotipo da coudelaria Irmãos S…, de formato oval com um I e um S sobreposto, representativos da atividade exposta.
Y) No presente ano, a Feira decorrerá entre 24 e 28.04.2019.
Z) A estrutura de apoio a que nos vimos referindo, serve e sempre serviu, designadamente, para o Requerente receber e reunir com potenciais clientes que, posteriormente poderão vir a fechar negócio.
Da oposição
AA) No ano de 2000, a Requerida, construiu duas casetas, tendo facultado o uso de uma delas ao Requerente.
BB) Foi a Requerida que instalou, em 2017, por sua exclusiva iniciativa e a expensas suas, a eletricidade em ambas as casetas.
CC) Desde então, é a Requerida que paga as faturas referentes ao consumo de eletricidade das casetas.
DD) Assim como, anualmente, é a Requerida que procede ao pagamento das vistorias obrigatórias.
EE) Sucede que, a Direção da Requerida, em virtude de outros planos que tem para o terreno da Requerida, decidiu contactar os detentores das casetas com vista à demolição das mesmas para que aquele espaço desse lugar a outras atividades da Ovibeja.
FF) Para esse efeito, a Requerida disponibilizaria a mão-de-obra necessária para a demolição da casota e oferecer-se-ia para colocar o material em local a indicar pelos detentores. Adicionalmente, a Requerida disponibilizou-se para pagar uma compensação.
GG) Sucede que, o pedido de saída foi aceite por apenas um, não tendo sido aceite pelo aqui Requerente.
HH) A Requerente desmontou a casota do outro associado, o que deu origem à falta de eletricidade na casota do Requerente, já que a eletricidade da casota deste último tinha origem na casota desmontada.
II) Isto porque, ao desmontar a primeira casota, a Requerente viu-se obrigada a retirar, por motivos de seguração, a instalação elétrica da casota do Requerente.
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2. Alteração da matéria de facto.
2.1. O recorrente pretende ver reapreciada a matéria de facto relativamente às alíneas BB) dos factos assentes, considerando que apenas deve constar que “que, em 2017, a Requerida procedeu, a expensas suas, à remodelação da instalação elétrica, designadamente, das casinhas”, em vez de Foi a Requerida que instalou, em 2017, por sua exclusiva iniciativa e a expensas suas, a eletricidade em ambas as casetas”, e isto porque em seu entender está provado que a casita tem instalação elétrica desde 1996, sofrendo uma remodelação, feita pela Requerida, em 2017.
E entende ainda que os factos não provados e identificados na decisão recorrida de 1) a 5) devem ser dados como provados, face aos depoimentos das testemunhas que precisou.
Tais factos não provados têm a seguinte redação:
1) Os factos vertidos em G), I) e L) ocorreram há mais de 30 anos.
2) Todos os anos, antes do início da Feira, o Requerente, procede a limpeza, manutenção e reparações necessárias, a expensas suas e com meios humanos próprios, ao contrário do que sucede com os demais expositores.
3) Assim foi também, após a substituição da casinha de alvenaria, pela casinha em madeira que atualmente ainda se encontra no recinto, procedendo anualmente e sem exceção, ao longo dos últimos 30 (trinta) anos, à sua limpeza, manutenção e reparação, contribuindo, assim, para a boa imagem do certame.
4) Encontrando-se sem utilização durante todo o ano, quando se aproxima o certame, a casinha necessita de obras de manutenção, designadamente, envernizamento, e limpeza e reparação de danos provocados por atos de vandalismo ou pelas condições climatéricas a que está sujeita durante o resto do ano, o que o Requerente continua a fazer, a expensas suas e com meios humanos próprios.
5) Tudo, sempre com o conhecimento e consentimento da Direção da ACOS.
Mas a verdade é que não se vê qualquer utilidade em aditar essa factualidade, por ser totalmente irrelevante, pois é insuscetível de influenciar a decisão de mérito, tendo em conta a questão essencial que se discute nos autos e no recurso – saber se estão verificados os pressupostos legais para ordenar a restituição provisória da posse sobre a mencionada casota de madeira.
Por isso, inútil se torna realizar o seu julgamento para a dar como provada a referida “factologia”, sendo que no processo não é lícito realizar atos inúteis (art.º 130º, do CPC).
Aplicando o referido princípio à pretendida reapreciação da matéria de facto, deve entender-se que «o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa.
Os poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1ª instância não devem ser atuados se os factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhum dos enquadramentos jurídicos possíveis do objeto do recurso» [1]..
Assim também se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 17/05/2017, afirmando: “O princípio da limitação dos atos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os atos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de atos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo. Nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir” [2].
É precisamente o que acontece no caso dos autos, em que está em causa saber se o recorrente tem a posse jurídica sobre da citada casota e se dela foi esbulhado violentamente pela Requerida.
E os factos cujo aditamento pretendem são irrelevantes para aferir da existência dessa posse jurídica, assim como do esbulho violento.
E assim sendo, improcede, por inútil, a pretendida alteração da matéria de facto.
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3. O direito.
3.1. Pressupostos da restituição provisória da posse.
No que respeita ao procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, em decorrência da previsão ínsita no artigo 377.º do CPC, o mesmo exige a alegação de factos que constituam a posse, o esbulho e a violência, sendo ainda que “ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum” – artigo 379.º do CPC.
Com efeito, de acordo com o art.º 377.º do C. P. Civil, “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
E acrescenta o art.º 378.º: “Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a aposse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.
A proteção possessória é o modo adequado de defesa para quem, sendo possuidor, exerce determinado direito real, e vem prevista nos art.ºs 1276.º e segs. do C. Civil.
E desde logo o art.º 1279.º faculta ao possuidor que for esbulhado com violência o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
Assim, três são os pressupostos da medida cautelar de restituição provisória de posse, a que alude o citado art.º 377.º do C. P. Civil: a posse; o esbulho; e a violência.
Como sublinha Marco Carvalho Gonçalves [3], “No que concerne aos requisitos para o seu decretamento, a restituição provisória da posse depende da verificação de uma situação de esbulho violento de uma determinada coisa possuída pelo requerente, pressupondo, por isso, a posse, o esbulho e a violência. Com efeito, o requerente desta providência cautelar deve alegar que era detentor legítimo de um determinado bem, móvel ou imóvel, e que dele foi privado através de um esbulho praticado com violência” (assim também se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil, 2.º Volume, 3.ª Edição, pág. 89 e segs).
Pretende-se atribuir ao possuidor que foi esbulhado, da coisa objeto dessa posse, com violência, um meio de defesa expedito e eficaz para reagir contra esses atos, de modo a repor, com urgência, a situação de facto anterior.
Mas só ao possuidor é atribuído esse direito, isto é, a quem de facto tem a posse jurídica (salvo os casos de extensão a outros direitos reais de garantia, como o de retenção, ou direitos pessoais de gozo, nomeadamente o arrendatário) sobre a coisa objeto desse esbulho violento.
Daí que o requerente da providência tenha de alegar e demonstrar, em primeiro lugar, ter a posse jurídica – art.ºs 377.º e 378.º do C. P. Civil.
E porque de providência cautelar se trata, cuja decisão tem natureza provisória e destinada a antecipar o efeito jurídico duma providência definitiva em relação ao periculum in mora ( ação possessória ou de reivindicação), o juízo que sobre ele incidir é de simples probabilidade , ou seja, que o requerente é titular aparente do direito e um juízo de certeza ou, pelo menos, de probabilidade muito forte.
Com efeito, sendo a restituição provisória da posse uma providência cautelar nominada ou especificada na lei, pretende-se, como as demais, combater o denominado periculum in mora - o grave prejuízo causado pela demora inevitável do processo em que se demonstrará quem é o verdadeiro titular do direito correspondente ( art.1278º/1, do C. Civil), a fim de que a sentença que vier a ser decretada favoravelmente não perca o seu efeito útil; e tem por fundamento o “fumus bonni iuris”, ou seja, a mera aparência da realidade do direito invocado – que se traduz no conhecimento através de um exame e instrução indiciários (“summaria cognitio”), ou como sublinha Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, pág. 230, “(… implica necessariamente uma apreciação sumária da situação através de um procedimento simplificado e rápido”.
E quanto ao periculum in mora, ensina Miguel Teixeira de Sousa, ob. citada, pág. 232, “ Se faltar o periculum in mora, ou seja, se o requerente da providência não se encontrar, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, falta a necessidade da composição provisória e a providência não pode ser decretada. Quer dizer: esse periculum é elemento constitutivo da providência requerida, pelo que a sua inexistência obsta ao decretamento daquela”.
Daí a sua instrumentalidade, visto que a decisão a proferir na providência cautelar é transitória, permitindo ao possuidor ser restituído provisoriamente à sua posse nas situações em que se verifique um esbulho violento (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12/09/2011, proc. n.º 83/11.8TBVLC.P1, in www.dgsi.pt), ficando a aguardar a decisão definitiva a proferir na ação principal (possessória ou de reivindicação) que terá obrigatoriamente que ser proposta e dela depende, salvo se for decretada a inversão do contencioso – art.º 364.º do C. P. Civil.
É que com a providência cautelar pretende-se “garantir quem invoca a titularidade de um direito contra a ameaça ou risco que sobre ele paira, e que é tão iminente que o seu acautelamento não pode aguardar a decisão de um moroso processo declarativo ou a efetivação de um interesse juridicamente relevante através de um processo executivo se for caso de instaurá-lo” (apud Prof. A. Palma Carlos – “Procedimentos cautelares antecipadores”, in “O Direito” 105º-236).
Também Miguel Teixeira de Sousa, ob. citada, pág. 229, refere: “ O objeto da providência cautelar não é a situação jurídica acautelada ou tutelada, mas, consoante a sua finalidade, a garantia da situação, a regulação provisória ou a antecipação da tutela que for requerida no respetivo procedimento”.
Na restituição provisória da posse, que se traduz numa tutela provisória, pretende-se proteger o possuidor, mantendo-se a invocada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito correspondente, no âmbito da ação declarativa a propor, aí se discutindo da titularidade desse direito e que se sobreponha à posse jurídica invocada.
No caso de o possuidor ser titular do direito real de propriedade pode, em caso de esbulho, usar a ação de reivindicação (art.º 1311.º do C. Civil), tendo como causa de pedir esse direito real, ou a ação possessória, fundada na posse. Mas se o possuidor não for titular do direito real correspondente à posse, a tutela possessória é o seu único meio de reação contra atos de terceiro.
A posse, de acordo com o disposto no art.º 1251.º do C. Civil, é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real, e pressupõe uma relação entre a pessoa e a coisa – o corpus e o animus.
Na verdade, segundo a doutrina tradicional, o art.º 1251.º conjugado com o art. 1253º, al. a), ambos do C. Civil, consagram a conceção subjetiva da posse, segundo a qual para a existência de uma situação possessória é necessário simultaneamente dois elementos essenciais: o corpus, elemento objetivo - situação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor; e o animus – elemento subjetivo, a intenção do detentor de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa. Sem corpus não haverá posse porquanto falta a atuação de facto correspondente ao exercício do direito e sem animus não haverá posse, porque falta a intenção da titularidade do direito. (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, Vol. III, 2:ª Edição, pág. 5; e Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 4ª Edição, 2003, pág. 297).
Esta é, de resto, a posição da nossa jurisprudência, como resulta, entre outros, do Acórdão do S.T.J., de 20-05-2010, onde se lê “A posse, de acordo com a conceção subjetivista acolhida pela nossa lei, é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste na relação material com a coisa, e o animus, elemento psicológico que se traduz na intenção de atuar com a convicção de ser titular do direito real correspondente” (Processo n.º12411/03.5TBVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Como se diz no Acórdão do S. T. J. de 6/2/2007, Proc. n.º 06A4036, quando se fala em posse jurídica quer-se dizer posse verdadeira e própria, e não simples detenção; posse, portanto, integrada por corpus e animus possidendi, isto é, por atos materiais praticados com intenção correspondente ao conteúdo de determinado direito real ( art.º 1251.º do C.C.).
A posse adquire-se, entre outros, pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito ou por inversão do título da posse – art.º 1263.º, als. a) e d) do C. C.
“A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião” – art.º 1287.º do C. C.
No caso do locatário, a restituição provisória da posse tem como causa de pedir não a posse mas antes a relação jurídica de mera detenção emergente do contrato de locação, porquanto o arrendatário, sendo simples possuidor precário ou mero detentor da coisa - tendo o corpus - não exerce esse poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente. O que significa que é mero detentor e não possuidor em nome próprio, defendendo a sua posse precária em termos idênticos ao possuidor em nome próprio - art.º 1037.º/2 do C. Civil.
Ora, no caso concreto, está manifestamente afastada a hipótese do apelante deter a posse em nome próprio da casota em madeira, usada como local de apoio à exposição na Feira (Ovibeja).
Com efeito, não foi alegado no requerimento inicial e, consequentemente, não decorre dos factos provados (ainda que se aditassem os não provados e mencionados pelo recorrente) a posse jurídica sobre a referida casota, nomeadamente factos concretos que permitam concluir pela respetiva posse referente a direito de usufruto e o exercício correspondente desse direito, bem como o respetivo “animus”, mas apenas a situação de facto, a sua relação material com essa casota/instalação, a sua utilização.
Temos por manifesto que o Recorrente não exerce os poderes de facto sobre o bem móvel em causa (de acordo com a definição que nos é dada pelo n.º1 do art.º 205.º do C. Civil) com o denominado animus possidendi, antes exerce aqueles poderes por mera tolerância da Recorrida.
Na verdade, está indiciariamente provado:
Como parte da estratégia de fidelização de expositores relevantes do baixo Alentejo, para a Ovibeja, o então Presidente da Direção da CC, saudoso Eng.º Manuel C…, disponibilizou ao aqui Requerente, uma pequena parcela de terreno, onde este poderia edificar uma estrutura de apoio à atividade, que também serviria de abrigo a quem se encontrasse na exposição.
Inicialmente, o Requerente construiu uma pequena casinha em alvenaria, com instalações sanitárias e demais comodidades necessárias, num investimento que rondou, em moeda atual, os € 30 000,00 (trinta mil euros).
Em 1999, o Requerente viu a sua casinha demolida por decisão da organização do evento, para permitir a realização das obras necessárias ao crescimento do certame.
Porém, a CC substituiu a casinha de alvenaria (destruída) por uma casinha sensivelmente com a mesma área em madeira (mas sem instalações sanitárias ou outras).
E, assim foi, até há cerca de 15 (quinze) dias, quando o Requerente foi abordado pelo Eng.º Claudino M… que, verbalmente lhe transmitiu que deveria desmontar a casinha e retirá-la do espaço onde se encontra e sempre se encontrou” (factos descritos nas alíneas H) a K).
E como bem se diz na decisão recorrida “ dúvidas inexistem que o requerente e a sua família usam a casa em causa nos autos, construída pela requerida, em substituição de uma anterior construída pelo requerente, por altura da Ovibeja, pelo menos, desde 2000, aí recebendo amigos e clientes. Tal aconteceu porquanto o Eng. C…, na altura disponibilizou uma pequena parcela de terreno para o efeito. Contudo, não resultaram quaisquer outros factos que permitissem concluir pela verificação dos requisitos da posse. Pelo contrário, sendo a CC quem suporta os consumos de eletricidade e providencia pela manutenção do espaço, sem prejuízo dos arranjos que o requerente faz concomitantemente, é-nos possível concluir que a atuação do requerente iniciou-se por força da autorização de quem, na altura, representava a requerida, sem que tenha resultado provado que lhe tenha sido concedido qualquer direito. Deste modo, inevitável é concluir que o uso que o requerente tem feito da casinha desde o seu início resultou do aproveitamento da tolerância do titular do direito, tratando-se, por isso, de uma mera detenção, nos termos do artigo 1253.º, al. b) do CC, por oposição a quaisquer umas das formas de aquisição da posse conforme estabelece o artigo 1263.º do Código Civil”.
Mas ainda que assim não fosse, a verdade é que falta manifestamente o segundo requisito enunciado – o esbulho violento.
Com efeito, para haver esbulho, é necessário que o possuidor seja privado, total ou parcialmente, do exercício da “retenção ou fruição do objeto possuído”, ou seja, quando fica privado de exercer a sua posse ou os direitos que tinha anteriormente.
Como refere Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit. pág. 264/265, “O esbulho abrange, por isso, os atos que impliquem a perda da posse contra a vontade do possuidor e que assumam proporções de tal modo significativas que impeçam a sua conservação”.
No mesmo sentido se pronunciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in “Código de processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 445, nota 4, salientando que “o esbulho abarca atos que implicam a perda da posse, por contraste com atos de mera turbação”.
E a verdade é que falta manifestamente este requisito para que a providência seja decretada, pois decorre dos factos alegados e provados pelo recorrente que “Em dia que não consegue precisar, mas na semana de 25 a 31 de março do corrente ano, o Requerente foi novamente informado verbalmente, que teria que desmontar a casinha e remover todos os seus pertences e que se não o fizesse a casinha seria desmontada no domingo, 31.03.2019 ( factos P) e Q).
E no dia 31.03.2019, pelas 14 horas, o Requerente, acompanhado da neta, deslocaram-se ao local da Feira e constataram nesse dia que, embora a casinha não tivesse sido desmontada, a porta encontrava-se aberta, o canhão da fechadura havia sido removido e os operários encontravam-se no interior da casinha, retirando os fios elétricos, ficando a “casinha ficou sem ligação elétrica e a porta permaneceu aberta até ao presente”.
Assim, decorre da antecedente factologia que o recorrente não ficou privado de usar a casota nos dias da feira anual, tanto assim que a Feira “Ovibeja” teria lugar de 24 a 28 de abril de 2019 (facto Y) e a presente providência deu entrada em 11 de abril de 2019, ou seja, cerca de 15 dias antes da realização desse evento e sem que houvesse sido esbulhado ou privado do seu uso.
Consequentemente não está demonstrado o esbulho, assim como a violência exercida sobre o recorrente enquanto possuidor ou sobre a coisa possuída.
Em jeito de conclusão, não tem razão o apelante, improcedendo a apelação, pelo que a decisão recorrida deverá ser mantida.
Vencido no recurso suportará o apelante as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. De acordo com o regime prescrito nos art.ºs 377.º e 378.º do CPC, a restituição provisória da posse depende da verificação indiciária dos seguintes requisitos: a posse; o esbulho; e a violência.
2. Quando se fala em posse jurídica quer-se dizer posse verdadeira e própria, e não simples detenção; posse, portanto, integrada por corpus e animus possidendi, isto é, por atos materiais praticados com intenção correspondente ao conteúdo de determinado direito real ( art.º 1251.º do C.C.).
3. Para haver esbulho é necessário que o possuidor seja privado, total ou parcialmente, do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou seja, quando fica privado de exercer a sua posse ou os direitos que tinha anteriormente.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo apelante.

Évora, 2019/09/26
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] ) Cf. Acórdão do TRL de 10-02-2011, proferido no processo n.º 334/10.6TVLSB-C.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[2] ) Proferido no processo n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] ) “Providências Cautelares”, 2015, Almedina, pág. 262.