Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2650/17.7BELSB.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2650/17.7BELSB.E1

(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
AA, autor na ação de responsabilidade civil extracontratual movida contra o Estado Português, interpôs recurso do despacho saneador-sentença proferido pelo Juízo de Competência Genérica ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... que julgou procedente a exceção perentória de falta do pressuposto a que alude o artigo 13.º/2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro e, consequentemente, absolveu o réu do pedido.

Na ação o autor pedira a condenação do Estado Português a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais que computou em € 8.180,04 (sendo € 4.388,43, a título de capital e o remanescente a título de juros moratórios) e uma indemnização por danos não patrimoniais que avaliou em € 5.000,00.
Para fundamentar o seu pedido, o autor alegou, em síntese, o seguinte: em 1993, na qualidade de ofendido, apresentou uma queixa-crime junto do Ministério Público pela prática de um crime de burla na forma tentada, contra o legal representante da firma A..., queixa que deu origem ao processo n.º 118/..., tramitado no DIAP ... e, posteriormente, renumerado para 13/99....; o processo foi arquivado porque o Ministério Público entendeu que o pagamento ao queixoso estava comprovado documentalmente, «sendo uma questão do direito civil determinar onde o pagamento devia ter sido feito»; o autor requereu, em 25.11.1998, a reabertura do inquérito, pretensão que viu ser indeferida porque o Ministério Público entendeu que o procedimento criminal já se encontrava extinto por efeito da prescrição; de seguida, em 29.01.1999, o autor requereu a abertura de instrução e a sua constituição como assistente, e solicitou apoio judiciário, juntando para o efeito a sua declaração de IRS relativa ao ano de 1998; em 10.03.1999, o autor, por intermédio do seu advogado, foi notificado para juntar aos autos atestado da Junta de Freguesia comprovativo da alegada insuficiência económica, o que não logrou fazer porque foi informado pela Junta de Freguesia da sua área de residência que já não emitia tal declaração; de seguida, o autor tentou obter documento comprovativo da sua insuficiência económica junto da Repartição de Finanças, para o que lhe foi exigido um quantitativo que o autor não podia pagar; requereu, então, ao tribunal que diligenciasse ele próprio pela obtenção do documento que ele próprio estava exigir, viu a sua pretensão ser indeferida e ainda foi condenado em multa de uma UC; interpôs recurso de tal decisão para o Tribunal da Relação de Évora, o qual veio a ser julgado improcedente, em 28 de janeiro de 2000; o autor apresentou, em 17/02/2000, novo requerimento para abertura de instrução, tendo sido então notificado para pagar a taxa de justiça devida pela constituição de assistente e abertura de instrução e, nesta senda, voltou a requerer a concessão de apoio judiciário, pedido que, após vicissitudes várias que descreveu, lhe foi deferido, por despacho de 22.10.2001; porém, o Tribunal Judicial da Comarca ... rejeitou o pedido de constituição de assistente e abertura de instrução, considerando a extemporaneidade dos pedidos e a falta de pagamento das taxas de justiça devidas, «aventando-se que a decisão da Segurança Social de 22/10/2001, não tem qualquer eficácia sob pena de violação do caso julgado que se formou com o Acórdão do Tribunal da Relação de 28 de janeiro de 2000» e ainda condenou o autor em duas UC de taxa de justiça. As várias multas processuais e taxas de justiça não pagas deram origem a sucessivas penhoras na pensão do autor, o que lhe causou humilhação. A 18 de abril de 2013 o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente mais um recurso interposto pelo autor. Conclui que ao longo do decurso do processo o Tribunal praticou factos voluntários que foram ofendendo os seus direitos e interesses legítimos, designadamente bloqueando o direito fundamental do autor de fazer valer os seus direitos em Tribunal.
O Ministério Público contestou, em representação do Estado Português, por exceção e impugnação. Concretamente, excecionou a incompetência em razão da matéria do Tribunal Administrativo (onde a ação foi inicialmente proposta), bem como a incompetência em razão do território.
Após várias vicissitudes processuais, veio a considerar-se que o tribunal competente para a ação era o Juízo de Competência Genérica ....
O tribunal recorrido proferiu despacho onde dispensou a realização de audiência prévia, invocando o disposto no artigo 593.º/1 do Código de Processo Civil, e considerou que «os autos contêm todos os elementos habilitantes a uma imediata decisão de mérito», proferindo então a decisão sob recurso.

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«i. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo a qual decidiu julgar procedente a exceção perentória invocada pelo Réu, da falta do pressuposto a que alude o n.º 2, do art. 13.º, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro;
ii. Deviam as partes ter sido notificadas do concreto entendimento do Tribunal a quo de decidir a causa com base no entendimento de que aos autos era aplicável o previsto no artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e que para tal já dispunha de todos os elementos, para que as partes se pudessem pronunciar sobre tal;
iii. Não o tendo feito, posto que apenas na presente sentença, em despacho prévio, referiu genericamente que os autos teriam todos os elementos, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil;
iv. Essa inobservância, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, constitui nulidade processual por estar em causa “a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei” prescreve e que é suscetível de “influir no exame ou na decisão da causa”, a qual se tendo corporizado na decisão recorrida pode ser arguida em sede de recurso;
v. O Tribunal a quo ignorou que ainda existiam factos alegados pelo A. que careciam de prova, os quais, de acordo com uma outra interpretação jurídica, seriam importantes para a decisão da causa (mormente os referentes aos danos não patrimoniais);
vi. Assim, não se encontravam ainda reunidos os requisitos para que o Tribunal a quo pudesse ter decidido do mérito da causa;
vii. Pelo que, ao decidir do mérito antes de estar habilitado para tal o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 595.°. n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, bem como o direito fundamental do A. a uma tutela judicial efetiva, previsto no artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa;
viii. Por tudo o que supra se expôs deve-se concluir pela nulidade do despacho saneador "Sentença" ou caso assim não se entenda, no que não se concede e só por dever de patrocínio se equaciona, sempre se terá que entender que o despacho saneador sentença violou o disposto no artigo 595.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, e, por isso, deve ser revogado;
ix. Quando esteja em causa todo o desenrolar do processo e não só uma concreta decisão judicial estaremos já não perante um caso de erro judiciário mas antes de uma responsabilidade civil do Estado pela função judicial tal como decorre do previsto no artigo 12.º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado;
x. Salvo melhor opinião, embora na petição Inicial se refira a existência de incorreção na prolação da decisão também é alegado o incorreto desenrolar do processo antes de tal fase;
xi. Pelo que existiu erro de julgamento do Tribunal a quo ao decidir aplicar ao caso o previsto no artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado;
xii. O previsto no artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado é inconstitucional por violação do previsto no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, o previsto no artigo 18.º, nºs 2 e 3, da Constituição;
xiii. Assim, acha-se previsto no referido artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa que o Estado é responsável civilmente pelos atos ou omissões praticados pelos titulares de órgãos, agentes ou funcionários;
xiv. Ora, a norma em causa exclui a responsabilidade do Estado sempre que esteja em causa uma decisão judicial que venha a ser confirmada em recurso ou então tomada em casos em que não seja possível já recorrer;
xv. Estamos, assim, perante uma clara violação do previsto no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa, o qual constitui um direito fundamental da categoria dos direitos liberdades e garantias;
xvi. Ademais, o artigo 22.º da Constituição não confere qualquer permissão para a restrição do seu conteúdo;
xvii. Até porque estamos perante uma norma com um escopo claramente definido e que confere diretamente um direito subjetivo ao cidadão, assim veja-se que, ao contrário do que sucede noutros casos, não se deixou consignado que esse direito se faria de acordo com a lei a aprovar nesse sentido;
xviii. Pelo que, nem se pode falar numa qualquer restrição implícita;
xix. Ademais, não se vislumbra qual o interesse ou direito constitucionalmente protegido que tal restrição visaria proteger;
xx. Assim, sempre estaríamos perante uma restrição de um direito, liberdade e garantia em violação do previsto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição;
xxi. Mas mesmo que assim não fosse, no que não se concede, sempre existiria violação do previsto no artigo 13.º, n.º 3, da Constituição;
xxii. Pois que a restrição em causa ao excluir todo um conjunto de atos ilícitos (todos aqueles em que não tenha existido revogação da decisão judicial tida como ilegal) afetaria o alcance e o conteúdo essencial do direito em causa;
xxiii. O referido artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado é ainda inconstitucional por violador do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, pois que as ações que tenham por fundamento no previsto no artigo 12.º da referida Lei n.º 67/2007 não estão sujeitas a essa restrição.
Deste modo a, apesar de tudo, douta sentença deverá ser revogada e substituída por decisão que admitindo o presente recurso ordene a prossecução dos autos com os seus ulteriores tramites, só assim se fazendo a Costumada Justiça!».

I.3.
O Ministério Público apresentou resposta às alegações de recurso, pugnando pela improcedência do recurso.

I.4.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
No caso as questões que importa decidir resumem-se ao seguinte:
1 – Violação do princípio do contraditório.
2- Oportunidade de conhecimento do mérito da causa no despacho saneador.
3 – Subsidiariamente, da reapreciação do mérito da causa.
4 – Inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das Demais Entidades Públicas (RRCEE).

II.3.
FACTOS
O Tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
1. Correu termos neste Tribunal processo com o nº. 13/99.... e que teve o seu inicio em 1993.
2. Tal processo teve origem em queixa-crime efetuada pelo ora A.;
3. Nessa queixa, o ali queixoso e aqui A. mencionava a prestação de serviços a terceiro e o não pagamento de tais serviços por banda deste terceiro.
4. Instaurado o pertinente inquérito, veio o Magistrado do Ministério Público a proferir despacho de inexistência de indícios de responsabilidade criminal e, consequentemente, em 09/02/1995, determinou o arquivamento dos autos.
5. Foi expedida carta simples em 15/02/1995 a comunicar ao ali queixoso e ora A. o teor do supra referido despacho de arquivamento.
6. O processo teve visto em correição a 24/03/1995.
7. O ali queixoso e ora A. veio, em 26/11/1998, requerer a reabertura de inquérito, nos termos do disposto no artigo 279º do CPP.
8. O que foi indeferido, por despacho proferido pelo Magistrado do Ministério Público nos autos, com o fundamento de ocorrência de prescrição do procedimento criminal.
9. Em 01/02/1999, o ali queixoso e ora A. veio aos autos requerer a sua constituição como assistente, a abertura de instrução e, ainda, a concessão do benefício do apoio judiciário.
10. Em 26/04/1999, o Magistrado Judicial proferiu despacho a indeferir a requerida concessão do benefício do apoio judiciário, fundamentando tal indeferimento na inexistência de comprovação de uma situação de insuficiência económica, como era ónus do requerente.
11. Foi, ainda, determinada a notificação do requerente para efetuar o pagamento de taxa de justiça devida pela constituição como assistente e, também, pela abertura de instrução.
12. Deste despacho veio o ora A., em 06/05/1999, a interpor recurso para o Tribunal da Relação de Évora, o qual foi admitido a subir em separado.
13. O Tribunal da Relação de Évora proferiu aresto, em 26/01/2000, a negar provimento ao recurso e, outrossim, confirmar o despacho recorrido.
14. Em 08/03/2001 o ora A. enviou ao Senhor Procurador-Geral da República exposição e na qual referia não ter recebido qualquer notificação relativa a um novo pedido de reabertura de inquérito e apresentado nos autos em 18/02/2000.
15. Em 13/07/2001 foi consignado nos autos que dos mesmos não constava qualquer pedido de reabertura de inquérito formulado em 18/02/2000.
16. Em 04/10/2001 o Magistrado do Ministério Público atravessou promoção no processo com o entendimento que o requerimento de abertura de instrução era extemporâneo e, além do mais, que o procedimento criminal se encontrava extinto por efeito da ocorrência de prescrição.
17. Em 25/10/2001 a Segurança Social enviou ofício aos autos e no qual se comunicava que, por despacho proferido pelos serviços, tinha sido deferido ao ora A. o pedido de concessão de benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento total de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
18. O Magistrado Judicial veio a proferir despacho nos autos, em 08/02/2002, a rejeitar a requerida constituição como assistente, por falta de pagamento de taxa de justiça.
19. E em 15/05/2002 veio a proferir despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por extemporaneidade, condenando, também, o ora A. em taxa de justiça.
20. Em 04/05/2002 o funcionário judicial lançou informação nos autos mencionando que o pedido formulado pelo ora A. em 18/02/2000 tinha sido junto, por lapso, no processo nº. 18/99.....
21. O Magistrado do Ministério Público não reapreciou este pedido por entender que já anteriormente havia tomado posição sobre a matéria, e defendeu um uso anómalo do processo por banda do ora A., requerendo, assim, a sua condenação em taxa de justiça.
22. O Magistrado Judicial, por despacho proferido em 08/11/2002, subscrevendo a posição vertida nos autos pelo Ministério Público, condenou o ora A. no pagamento de 4 UC’s.
23. Em 16/01/2003 foram expedidas guias para pagamento de taxa de justiça no valor de € 319,23 e pagáveis até 24/02/2003.
24. Não tendo ocorrido pagamento em prazo legal, foi determinado o cumprimento do, então em vigor, artigo 115º do CCJ.
25. A conta foi elaborada em 26/11/2004 e apurou-se um valor em dívida de € 708,31, valor este pagável até 21/12/2004.
26. Em 19/02/2008, veio o Ministério Público, com o fito de instauração de execução, indicar à penhora o veículo de matrícula ..-..-SG, o mais recentemente inscrito no respetivo registo a favor do ora A.
27. Em 27/02/2008 foi, por apenso, instaurada execução.
28. Dada a impossibilidade de localização e apreensão do veículo, foi determinada a penhora de 1/3 da pensão percebida pelo ora A.
29. Em 03/04/2009 o ora A. veio aos autos de execução requerer o seu arquivamento, alegando ter-lhe sido concedido o benefício do apoio judiciário.
30. Foi, então, proferido despacho por Magistrado Judicial a indeferir a pretensão de arquivamento com o fundamento de que a decisão administrativa da Segurança Social foi proferida após o termo dos autos principais e, ademais, por existência prévia de decisão judicial transitada em julgado a indeferir essa mesma concessão.
31. Em 23/03/2011 o ora A, apresentou reclamação à conta de custas elaborada nos autos, reclamação essa que mereceu despacho judicial de indeferimento.
32. Deste despacho veio a ser interposto, pelo ora A., recurso de apelação em 24/01/2012, recurso esse rejeitado por extemporaneidade.
33. Foi, então, o ora A. notificado da conta de custas, no valor de € 153,00, valor pagável até 11/07/2012.
34. Apresenta, novamente, reclamação, em 28/06/2012, alegando ter-lhe sido concedido o benefício de apoio judiciário.
35. Foi, então, proferido despacho por Magistrado Judicial a indeferir a reclamação e reafirmando que o ora A. não beneficiava de apoio judiciário.
36. Deste despacho veio o ora A. a agravar, em 10/09/2012, com resposta do Ministério Público em 20/02/2013, tendo sido proferido aresto, pelo Tribunal da Relação de Évora, em 18/04/2013, a julgar o agravo improcedente e condenado o agravante em custas.
37. Na discordância com tal aresto, veio o ora A. a interpor recurso de revista para o STJ, em 27/05/2013, o qual, porém, não foi admitido.
38. Em 26/09/2013 a 1ª instância, no conhecimento do aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, determinou nova liquidação de custas em divida.
39. Elaborada a conta, a quantia em divida era de € 204,00, tendo o ora A. sido notificado, quantia essa pagável até 15/11/2013.
40. Veio o ora A., em 25/08/2014, intentar providência cautelar (para suspensão do ato de penhora) contra o ISS – Centro Nacional de Pensões; porém, por decisão datada de 24/09/2014, o requerido foi absolvido da instância com fundamento em erro na forma de processo.
41. Em 05/03/2015 o ora A. deduziu embargos de executado e, ainda, oposição á penhora.
42. A oposição foi admitida em 10/03/2015 e, assim, determinada a notificação do exequente para contestar, nos termos do disposto nos artigos 732º, nº.2 e 733º, nº.1, al. c), do CPC.
43. O Magistrado do Ministério Público contestou, invocando falta de mandado conferido pelo A. ao advogado subscritor dos embargos, a falta de pagamento de taxa de justiça e alegando inexistência de ilegalidade na penhora, peticionando, a final, a absolvição da instância ou a improcedência do pedido.
44. Em 26/05/2015 foi proferido despacho por Magistrado Judicial com convite ao aperfeiçoamento da petição de embargos, à junção de procuração forense e ratificação do processado e determinando a notificação do embargante (ora A.) para pagamento de taxa de justiça devida (uma vez que, de acordo com decisão do Tribunal da Relação de Évora, foi entendido que o embargante não beneficiava de apoio judiciário).
45. Em 16/06/2015 veio o ora A. interpor recurso de agravo do despacho supra para o Tribunal da Relação de Évora.
46. Este recurso foi admitido por despacho proferido em 26/06/2015, embora como de apelação.
47. Na resposta a tal recurso, o Magistrado do Ministério Público pugnou pela inadmissibilidade do recurso em função da irrecorribilidade do despacho judicial.
48. Veio, então, em 27/10/2015, a ser proferido despacho por Magistrado Judicial de indeferimento do aludido recurso com fundamento na irrecorribilidade legal do despacho proferido em 26/05/2015, no valor do incidente, na sua extemporaneidade e, ainda, por falta de representação por advogado.
49. Deste despacho não houve recurso ou reclamação.
50. E foi notificado ao A. através de carta expedida sob registo datado de 04/11/2015.
51. Em 24/01/2018 foi expedida notificação para pagamento do montante de custas no valor de € 306,00.
52. Em 15/02/2018 o ora A. veio apresentar reclamação à elaboração da conta.
53. Em 19/03/2018 foi proferido despacho por Magistrado Judicial a indeferir a aludida reclamação, considerando-se que aquele não beneficiava de apoio judiciário em qualquer uma das suas modalidades.

II.3.
Apreciação do mérito do recurso
II.3.1.
Nulidade processual
A decisão recorrida consiste num despacho saneador-sentença que conheceu do mérito da ação, julgando procedente a exceção perentória da falta do pressuposto previsto no artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro[1], diploma legal que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.
No seu recurso o apelante começa por arguir a nulidade daquela decisão (cfr. artigo 13.º da motivação de recurso) decorrente de uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do Código de Processo Civil, concretamente a inobservância do princípio do contraditório. Defende o apelante que o tribunal recorrido entendeu ser aplicável o disposto no artigo 13.º/2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidade Públicas e que no caso não existia prévia revogação da decisão, acrescentando que não foi ouvido sobre tal matéria «que, por sinal, não era consensual entre as partes, posto que na sua réplica o autor, ou dito de outro modo, na Contestação da contraparte tal não resultava claramente expressa a invocação da exceção perentória» e que «mesmo que se entenda que do artigo 597.º resulta que não tem de existir uma decisão expressa a dispensar a audiência prévia, o que até se pode admitir, deve ser dado sempre oportunidade às partes para se pronunciarem sobre tal. E tal notificação não se basta com um mero despacho genérico onde se refere que o tribunal entende que dos autos já constam todos os elementos».
Vejamos se lhe assiste razão.
No processo comum de declaração, em princípio, é obrigatória a realização de uma audiência prévia. Com efeito, proferido despacho pré-saneador ao abrigo do disposto no artigo 590.º do CPC e após praticados os atos em execução daquele despacho, ou, não tendo lugar o despacho pré-saneador, o processo é concluso ao juiz no final da fase dos articulados, o qual designará data para a realização da audiência prévia, destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas várias alíneas do artigo 591.º, n.º 1, do CPC. Esta é, portanto, a regra, sendo para aquela diligência convocados os mandatários das partes e as próprias partes quando o objeto da ação se contenha no âmbito dos direitos disponíveis.
Há, porém, situações em que a lei prevê a não realização de audiência prévia: são os casos contemplados nas alíneas a) e b) do artigo 592.º do Código de Processo Civil)[2]; e há também as situações em que a lei permite ao julgador dispensar a realização daquela diligência, dando assim expressão ao princípio da gestão processual: é o que pode acontecer quando a audiência prévia se destina apenas aos fins enunciados nas alíneas d) a f) do artigo 591.º/1 do CPC[3] (cfr. artigo 593.º do Código de Processo Civil).
Em suma, a audiência prévia pode ser dispensada pela lei (artigo 592.º) ou pelo juiz (artigo 593.º).
Refira-se, ainda, que o artigo 597.º do Código de Processo Civil, para as ações de valor não superior a metade da alçada da Relação e uma vez terminada a fase dos articulados, coloca à disposição do tribunal várias opções quanto à tramitação subsequente dos autos, permitindo-se ao julgador, ao abrigo do normativo em referência, avançar diretamente para a audiência final sem realizar uma audiência prévia. Porém, a consagração no preceito supra mencionado do princípio da adequação formal, veículo para a agilização da tramitação das ações, não pode implicar a derrogação de princípios estruturantes do processo civil, como o é o princípio do contraditório. Por conseguinte, e ainda que porventura não haja factos controvertidos, designadamente porque os factos necessários à solução da causa se encontram já assentes por confissão, admissão por acordo ou por documento, ainda assim, deve ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões de direito que a solução do caso convoca, tudo em obediência ao princípio do contraditório e, em última análise ao princípio do processo equitativo.
É consabido que o processo pode terminar no despacho saneador, seja com uma absolvição da instância em resultado da procedência de alguma exceção dilatória, seja com uma decisão sobre o mérito da causa (absolvição ou condenação no pedido), sempre que se mostre desnecessário qualquer ato de instrução (cfr. artigo 595.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC).
Quando o tribunal se proponha conhecer da questão de fundo, a sua decisão deve ser precedida de discussão ou de debate sobre a matéria de facto e de direito (cfr. artigo 591.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, do CPC e artigo 593.º, n.º 1, do CPC).
A audiência prévia das partes, possibilitando a estas a pronúncia, em debates orais, sobre a matéria de facto que consideram provada e aquela que consideram não provada, bem como sobre os fundamentos de direito invocáveis para sustentar as pretensões de cada uma, permite evitar, justamente, as decisões surpresa, que estão vedadas pelo disposto no artigo 3.º/3 do Código de Processo Civil.
O artigo 3.º/3 do Código de Processo Civil dispõe que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Explicam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[4] que o referido preceito legal consagra o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão-surpresa, acrescentando que «não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito de fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (itálicos nossos).
O princípio do contraditório – que é uma decorrência do princípio do processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição – exige, assim, que antes da apreciação final do(s) pedidos, o tribunal permita às partes se pronunciarem sobre os fundamentos de facto provados e não provados e de exporem os últimos argumentos de direito convocáveis para fundamentar as suas pretensões.
No caso sub judice o tribunal a quo proferiu decisão sobre o fundo da causa pois julgou procedente uma exceção perentória, tendo, consequentemente, absolvido o réu Estado Português do pedido.
Resulta dos autos – e não é controvertido – que o tribunal proferiu aquela decisão sem que, previamente, tivesse anunciado às partes a sua intenção de conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador ou anunciado previamente a sua intenção de dispensar a realização da audiência prévia, não lhes tendo dado, portanto, quer por via da realização de debates orais, quer por via de alegações escritas, uma derradeira oportunidade de se pronunciarem de facto e de direito antes da prolação daquela decisão e, nomeadamente, sobre a verificação da exceção perentória invocada pelo tribunal recorrido para absolver o Estado do Pedido quando na própria decisão recorrida o julgador a quo referiu expressamente que o Ministério Público na Contestação não a mencionou expressamente.
A decisão sob recurso surgiu, assim, como uma decisão-surpresa, logo, violadora do princípio do contraditório e, por via dela, também da garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio e de um processo equitativo.
O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa. Já Anselmo de Castro ensinava que, no que deva entender por “irregularidade suscetível de influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa”, «não restam quaisquer dúvidas de que a fórmula legal abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório» e que, para além disso, «só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver»[5].
As nulidades processuais devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz, como resulta do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CPC, sendo a decisão que recair sobre a respetiva arguição impugnável por via recursiva.
Todavia, uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.
Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, p. 90, referem que «a falta de audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d)): o tribunal conhece de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta), não pode conhecer».
Assinala Teixeira de Sousa, in https: //blogippc.blogspot.pt., que ainda que a falta de audiência prévia constitua uma nulidade processual por violação do princípio do contraditório, aquela é consumida por uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.
Em face de todo o exposto, alcança-se a conclusão de que a decisão recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e, consequentemente, há que anulá-la e determinar que os autos regressem à primeira instância para que o tribunal possibilite às partes a discussão de facto e de direito da causa antes da prolação da decisão sobre o mérito da causa.
Procedendo este segmento da apelação, fica prejudicado, por ora, o conhecimento das demais questões suscitadas no presente recurso.

Sumário:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar a apelação procedente e, consequentemente, anulam o despacho saneador-sentença, determinando que os autos voltem ao tribunal de primeira instância para que, julgando-se aquele habilitado a proferir decisão de mérito sem ulterior produção de prova, possibilite às partes a discussão de facto e de direito antes da prolação da decisão final.
As custas na presente instância, se as houver, serão fixadas a final.

Évora, 20 de abril de 2023
Cristina Dá Mesquita
Rui Machado e Moura
(1.º Adjunto)
Eduarda Branquinho
(2.ª Adjunta)


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[1] O artigo 13.º epigrafado Responsabilidade por erro judiciário, dispõe qual dispõe o seguinte:
1 – Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos. 2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
[2] Ou seja, nas ações não contestadas que corram termos em regime de revelia inoperante ou seja, em obediência ao disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 568.º do CPC e quando o juiz entenda proferir despacho saneador a julgar procedente uma exceção dilatória, e assim, absolver o réu da instância, desde que a exceção dilatória em causa já tenha sido debatida nos articulados.
[3] Isto é, para proferir despacho saneador, nos termos do artigo 595.º/1, determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual ou proferir, após debate, o despacho previsto no artigo 596.º/1 e decidir as reclamações deduzidas pelas partes.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Almedina, p. 7.
[5] Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 109.