Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
900/12.5TALLE.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No crime de abuso de confiança à segurança social o acto de entrega não translativo da propriedade traduz-se na circunstância da entidade empregadora estar legalmente investida do poder de deduzir e reter, nos vencimentos dos seus trabalhadores, os montantes pecuniários correspondentes às contribuições devidas à segurança social.
Neste crime, a apropriação verifica-se com a não entrega das contribuições que lhe são devidas e respectiva afectação a finalidades diferentes por parte da entidade empregadora (cfr. Alfredo Sousa, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 3ª ed., pág. 129), e noutro entendimento menos restritivo, há mesmo quem sustente que para a consumação do crime basta a simples não entrega das contribuições destinadas à segurança social, sem necessidade de ulterior tramitação (cfr. Sá Gomes, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, pág. 265).

O crime de abuso de confiança fiscal, independentemente da precisa configuração do bem jurídico protegido, pretende proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza. No crime de abuso de confiança em relação à segurança social o bem jurídico tutelado é o erário de que é titular a segurança social formado a partir das receitas contributivas do sistema definidas segundo critérios materiais e afectas aos fins específicos de solidariedade], que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito.

-A proximidade temporal dos factos, pese embora seja um indicador dos elementos que integram a continuação, só por si não constitui prova cabal de que se trata de uma única resolução criminal indiciadora de tal continuação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório

1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular, n.º 900/12-5TALLE, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Criminal de Loulé – J3, foram julgados os arguidos:

CC Unipessoal, Lda,…….. e

CMCC…………………..

tendo sido proferida a decisão seguinte:

a) Condenar a arguida CC Unipessoal, Lda pela prática, sob a forma continuada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.º, nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30º, nº 2, do C. Penal, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de 5, 50 Euros;

b) Condenar o arguido CMCC, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30.º, n.º 2, do C. Penal, numa pena de 60 dias de multa, à razão diária de 5, 50 Euros;

(…)”.

2 - A Sociedade arguida, inconformada, interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado as seguintes conclusões:

” I- O Tribunal a quo fez uma deficiente interpretação do estipulado no art.º 30, nº2 do Código Penal;

II- Entende o recorrente que com tal decisão se violou o disposto no art.º 79, nº2, do Código Penal, art.º 29, nº5 da Constituição da República Portuguesa e artigo 107, nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).

III- A arguida foi julgada, pelo mesmo tipo de ilícito, no âmbito do Processo nº1253/13.0 TALLE, referente ao período que medeia entre Dezembro de 2011 e Junho de 2012;

IV- Os presentes autos reportam-se ao período que medeia entre Janeiro de 2010 e Dezembro de 2010;

V- O crime de Abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, iniciou-se em Janeiro de 2010 e terminou em Junho de 2012, sendo o hiato temporal existente, de 11 meses, insuficiente para o descaracterizar, atendendo a que a arguida só foi notificada para pagar, pela Segurança Social, em 27 de Novembro de 2012;

VI- Existe uma resolução criminosa que preenche várias vezes o mesmo tipo de crime, executadas de forma homogénea, no quadro de uma mesma solicitação exterior, sendo que, por isso, o ilícito tipo aqui julgado o já foi no Processo nº1253/13.0 TALLE.

VII- Sendo a conduta que integra a continuação de igual ou menor gravidade não se deverá considerar a conduta retratada nos presentes autos, aplicando-se, aqui, o princípio do art.º 29, nº5 da Constituição da República Portuguesa.

VIII- Se se considerar que tal conduta, que integra a continuação, é mais grave, tem aplicação o vertido no art.º 79, nº2 do Código Penal.

Termos em que deve o presente recurso ser recebido, considerado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada, com o que reporão, V. Exas., a Vossa costumada JUSTIÇA! “

3 - Admitido o recurso e cumprido o art. 411º n.º 6, do C.P.P., o MP apresentou, douta resposta ao recurso, concluindo:

1. ”. A primeira e única questão a decidir no presente recurso questão a decidir pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora é saber se face à matéria provada em audiência de julgamento, o Tribunal recorrido poderia considerar os factos julgados em anterior processo incluídos na continuação dos apreciados e julgados na sentença recorrida, por se tratar de uma única resolução criminosa e, por isso, ser absolvido, a fim de evitar a violação do principio constitucional do non bis in idem.

2. Acontece que “O crime de abuso de confiança fiscal, recortado no artigo 105.º do RGIT, é um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, ou seja, a prevista no n.º 7 da referida norma.”, não se confundindo com o preenchimento da condição objectiva de punibilidade, prevista na al. b) do nº 4 do Artigo 105º do RGIT, que até pode acontecer meses ou anos depois da consumação e preenchimento dose elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

3. Foi o que aconteceu no presente caso, o crime consumou-se com a continuada e omitida entrega de tributo no período de Janeiro a Dezembro de 2010 impunível até se lograr o cumprimento da condição objectiva de punibilidade, aquando da notificação da recorrente em 27.11.2012;

4. Assim, uma vez que a recorrente praticou factos posteriores – no período de Dezembro de 2011 a Junho de 2012 e que consubstancia o mesmo tipo de crime, já julgados no âmbito do Processo 1253/13.0TALLE, ainda que a notificação pela globalidade dos factos em ambos os processos, nos termos do disposto no artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT tenha ocorrido em 27.11.2012, não constitui violação do principio ne bis in idem, nem podia constituir, dado tratarem-se de factos autónomos cujos elementos típicos se consuma com a omitida entrega dos respectivos tributos e não com o cumprimento de tal notificação;

5. Na medida em que houve um interregno de 11 meses entre o período temporal em que ocorreram os factos julgados e apreciados no âmbito dos presentes autos e os já julgados no Processo 1253/13.0TALLE, durante o qual a sociedade arguida com a sua conduta não incorreu qualquer crime, de harmonia com as regras da experiência comum de vida, revelou duas resoluções criminosas distintas;

6. Com efeito, a recorrente após o interregno de 11 meses, adoptou nova resolução em omitir no período que decorreu entre Dezembro de 2011 a Junho de 2012, a entrega de tributos à Segurança Social, pelo que, logicamente, estes últimos factos já julgados em anterior processo não integram a continuidade criminosa nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal.

7. Assim, não havendo qualquer relação de continuidade nos termos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal entre os presentes autos e o Processo 1253/13.0TALLE, por em ambos terem sido julgados factos que revelam duas resoluções criminosas distintas, não existe qualquer violação do artigo 30º nº 2, do artigo 79º nº 2 do Cód. Penal (crime continuado como englobando os factos já julgados em anterior processo), do artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa (non bis in idem) e do artigo 107º nº 1 do RGIT.

8. Nesta conformidade, nenhuma censura merece a douta sentença recorrida.

Termos em que não deve ser dado provimento ao recurso, mantendo-se, na integra, a douta sentença a quo.

Vossas Excelências, porém, decidirão, como é de JUSTIÇA!”.

4 - Neste Tribunal a Exma. Sr.ª Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer, concluindo:

“Nos presentes autos, está em causa o recurso interposto pela arguida CC, UNIPESSOAL Lda, da douta sentença de fls. 228 e seguintes, proferida em 26/02/2019.

Através da compulsa dos autos, manifestamos a nossa adesão aos fundamentos de facto e de direito, enunciados e constantes da douta decisão recorrida, sendo que não se vislumbra nada de relevante e de decisivo que a consinta colocar em crise.

Acompanhamos a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, a cujos argumentos nada mais se nos oferece acrescentar, com relevo para a apreciação e decisão do presente recurso.

Termos em que e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, se emite parecer no sentido da improcedência do recurso.”.

5 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º n.º 2, do C.P.P.

6 - Foram colhidos os vistos legais.

7 - Cumpre decidir

II – Fundamentação

2.1 - O teor da decisão, na parte que importa, é a seguinte:

“1. Factos Provados

Da discussão da causa e com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida é uma sociedade por quotas que se dedica à construção de redes de transporte e distribuição de electricidade e de telecomunicações, instalações e reparações eléctricas, comércio, importação e exportação de mercadoria.

2. A sociedade arguida encontra-se inscrita na Segurança Social nos regimes contributivos “000” (Regime Geral dos Trabalhadores por conta de outrem) e “669” (Regime dos membros de órgãos Estatutários”.

3. O arguido é gerente da sociedade arguida, obrigando-se esta com a assinatura de um gerente.

4. No decurso da sua actividade, a sociedade arguida, através do arguido, seu representante legal, no ano de 2010 procedeu ao desconto de contribuições referentes aos salários dos seus trabalhadores, nos períodos e montantes demonstrados no mapa de apuramento da dívida.

5. Assim, o arguido, em representação da sociedade arguida, nos meses de Janeiro a Dezembro de 2010, reteve o montante de € 7 580, 12, referente aos regimes “000” e “669”, nos meses de Janeiro a Dezembro, num total de 24 meses.

6. Durante este período, o arguido, em representação da sociedade arguida, fez entrega das respectivas folhas de remuneração.

7. O pagamento de tais contribuições declaradas deveria ter sido efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, que o arguido não entregou no referido prazo, nem até ao presente o fez.

8. Nem tais pagamentos foram regularizados 90 dias volvidos sobre essas datas.

9. Também no dia 27.11.2012 foi o arguido notificado para proceder ao pagamento das contribuições em dívida, nos termos do n.º 4, al. b) do art.º 105 do RGIT, o que ele igualmente não cumpriu.

10. Assim, o arguido, na qualidade de gerente da arguida, ao decidir pela afectação dos meios financeiros desta, que incluíam as supra referidas prestações para a Segurança Social, optou prioritariamente pela satisfação dos encargos decorrentes do exercício da actividade da sociedade arguida,

11. Em detrimento das contribuições devidas à Segurança Social descontadas nos salários dos respectivos trabalhadores,

12. Que reteve, integrando-as na actividade de serviços desenvolvidos pela sociedade arguida.

13. Bem sabia o arguido que, na qualidade de representante legal da sociedade arguida, era esta mera depositária das prestações em falta e que correspondiam aos descontos dos trabalhadores para efeitos da sua entrega nos termos e prazos da lei à Segurança Social, legítima dona das mesmas,

14. Sendo certo que a tesouraria da arguida dispunha, durante e após os referidos prazos de entrega, dos meios financeiros líquidos suficientes para efectuar os pagamentos em dívida.

15. Pretenderam e lograram os arguidos subtrair aqueles meios económicos da titularidade da sua titular legítima, a Segurança Social, no montante global de € 7 580, 12, bem sabendo que estavam obrigados à sua entrega à sua legítima dona

16. Agiram os arguidos de modo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que:

17. O arguido confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos, enquadrando-os num contexto deficitário da sociedade arguida.

18. O arguido encontra-se divorciado e vive com a mãe em casa própria desta, contribuindo o mesmo com €100, 00 mensais para o sustento da casa.

19. A sociedade encontra-se inactiva mas ainda não foi dissolvida.

20. O arguido trabalha como electricista e recebe, por mês, de salário, € 600, 00.

21. Tem um filho de 16 anos, contribuindo, o arguido, para o seu sustento, com € 150, 00 mensais.

22. Tem, como habilitações literárias, o 6.º ano de escolaridade.

23. Por sentença de 6.02.2017, transitada em julgado em 9.03.2017, proferida no âmbito do processo n.º 1253/13.0TALLE, os arguidos pessoa colectiva e pessoa singular foram condenados pela prática, entre Dezembro de 2011 a Junho de 2012, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, nas penas, respectivamente, de 75 dias e 55 dias de multa, à razão diária de € 5, 00.

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2. Da discussão da causa não resultaram factos não provados.

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3. Motivação da decisão de facto

Para o apuramento da factualidade considerada provada e não provada, o Tribunal formou a sua convicção através da apreciação conjunta e crítica da prova produzida em julgamento, livremente valorada ao abrigo do disposto no artigo 127.º, do CPP e de acordo com as regras da experiência comum e critérios de lógica e de racionalidade.

Os dados referentes à sociedade arguida e ao seu objecto social, dados como assentes resultaram, desde logo, da certidão do registo comercial constante dos autos.

Tal certidão, conjugada com a confissão dos factos pelo arguido CC, conduziu à prova de que este exercia de facto e de direito a gerência da sociedade, o que determinou a prova de toda a factualidade dada como assente referente às decisões que o mesmo tomou de não entregar à Segurança Social as cotizações salariais.

Os valores dos descontos processados por referência às retribuições dos trabalhadores e às remunerações dos membros de órgãos estatutários dados como assentes extraíram-se, ainda, de forma conjugada, dos mapas de fls. 7 e 8, novamente juntos pela Segurança Social, na fase do julgamento, com idêntico valor em dívida, do parecer de fls. 16 e segs. e dos extractos de fls. 49 a 84.

As notificações realizadas nos termos do artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT que constam de fls. 30 e 31 dos autos permitiram demonstrar o cumprimento da condição de punibilidade que as mesmas consubstanciam.

No que respeita aos elementos psicológicos e volitivos da conduta do arguido foram igualmente fixados com base nos elementos probatórios acima referidos, designadamente a confissão integral e sem reservas dos factos, sendo certo que, de acordo com critérios de lógica e da experiência comum, outro não podia ser o conhecimento e a intenção do mesmo senão aquele fixado supra.

Para a matéria referente à confissão e às condições económicas e sociais do arguido CC, o tribunal fez fé nas suas declarações.

Por fim, os antecedentes criminais extraíram-se dos respectivos certificados de registo criminal juntos aos autos e da sentença proferida no processo n.º 1253/13.0TALLE cuja junção aos autos se determinou oficiosamente durante o julgamento.

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Cotejada a prova produzida em sede de audiência de julgamento forçoso é que se conclua que os arguidos incorreram na prática dos factos que nestes autos lhes são imputados, pelo que importa efectuar o enquadramento jurídico dos mesmos.

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2.2 - O registo magnetofónico da prova permite que o tribunal de recurso além de sindicar a matéria de facto (desde que o recorrente o pretenda e dê cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P., o que não ocorre no caso “sub judice”) aprecie as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º, do mencionado compêndio adjectivo) e faça a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas. E dentro destes limites, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.

Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal conhecer, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos. São elas que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.

E, sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), às quais o tribunal se deve restringir, não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão do recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.

Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.

Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que os recorrentes defendem que, no caso em apreço, constitui fundamento do recurso:

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- Falta do preenchimento de todos os elementos do tipo legal do crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30.°, nº 2 do Código Penal, e 107º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho);

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2.4 - Das questões do recurso.

2.4.1 - Elementos do tipo legal do crime em causa.

No caso dos autos, está em causa um crime de abuso confiança fiscal contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos art. 107º em conjugação com o art.º 105º, n.ºs 1, 2 e 4 e 5 da Lei 15/2001, de 5 de Junho, com referência ao art. 30º, n.º 2, do CP.

O primeiro preceito legal mencionado estabelece, no seu n.º 1 do RGIT que “As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos ns.º 1º e 5º do artigo 105º”.

Por sua vez, o citado art. 105º (com a epígrafe “Abuso de confiança”), prevê e pune da forma seguinte:

“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração fiscal.

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

Efectivamente, enquanto no anterior regime se referia à apropriação de prestação tributária que se estava obrigado a entregar ao credor fiscal, no actual, menciona-se, tão só, a recusa ilegal de entrega à administração tributária de prestação deduzida ou a deduzir, nos termos da lei.

No entanto, conclui-se que, na actual lei, se o contribuinte não proceder à entrega, à administração tributária, dos montantes que deduziu, ou estava obrigado a entregar é, naturalmente, porque se apropriou dos mesmos, dando-lhes um destino que não é o imposto pela lei e para o qual estão vocacionados.

Sobre esta matéria, António Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo in Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados, Coimbra Editora. 2002. p. 333) entendem que “diferentemente do previsto anteriormente no artigo 24º n.º 1, do RJIFNA, o crime de abuso de Confiança (fiscal) não exige, agora, como seu elemento constitutivo apropriação, bastando para a sua consumação, a não entrega da prestação tributária, deduzida nos termos da lei

Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos (in Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2ª Edição, Áreas Editora. 2003. p. 646), enquanto no abuso de confiança comum do artigo 205º do Código Penal exige a apropriação ilegítima da coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, o abuso de confiança fiscal deste artigo) (art. 105º RGIT) basta-se com a não entrega total ou parcial de prestação tributária ou parafiscal.

Em sentido idêntico pronunciou-se, o Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 14-10-2004, proferido no Processo n.º 3274/2003, que refere, no seu sumário: “1 - Se a lei do tempo da prática dos factos (RJFNA) exigia, para a verificação do crime de abuso fiscal, a apropriação em proveito próprio, pelo agente, das contribuições devidas, diversamente do que sucede com a lei actual (RGIT) é convocado o n.º 1 do art. 2.º do C. Penal e não o n.º 4, pois é à luz da lei no momento da prática dos factos que se dever determinar se a conduta é punível; se o não for, já não há lugar à ponderação da aplicabilidade de lei posterior que seria então sempre "desfavorável". 2 - A apropriação a que se reporta o abuso de confiança fiscal previsto no RJFNA, satisfaz-se com a não entrega de contribuições ao Estado, dando-lhes outro destino, como tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça: se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei. 3 - O art. 24.º, do RJIFNA (DL n.º 20-A/90, de 15-01, na redacção do DL n.º 294/93, de 24-11), ao falar em apropriação de prestação tributária que se estava obrigado a entregar ao credor fiscal, não conflitua com o disposto no art. 105.º, do RGIT (Lei n.º 15/01, de 05-06), que lhe sucedeu, uma vez que este último, embora não fale expressamente de apropriação, a ideia permanece no espírito do novo texto, ao acentuar a recusa ilegal de entrega à administração tributária da prestação. Na verdade, se o agente não faz entrega ao fisco das prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, no sentido de que lhes deu destino diferente daquele que era imposto por lei, já que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado (Ac. de 23/04/2003, CJ XXVIII, 1, 234). 4 - As normas dos artigos 11.º n.º 7 do RJIFNA e 14.º n.º 1 do RGIT não são inconstitucionais.”

No caso em análise, atendendo à forma continuada do crime em análise, as normas aplicáveis são as do RGIT - Lei n.º 15/01 -, dado que o último acto de execução - Março de 2014 - execução ocorreu na vigência deste diploma, nos termos do art. 30º, n.º 2, CP.

Contudo, é, ainda, importante atender á previsão dos artigos 1º, 3º 5º e 6º do Decreto Lei n.º 103/80, de 09.05, artigo 10º, n.º 2 do Decreto Lei n.º 199/99, de 08.06 e artigo 4º, n.º 2, al. j) do Decreto Lei n.º 316-A/2000 de 07.12, alterado pelo Decreto Lei n.º 112/2004, de 13.05, e art. 18º, da Lei n.º 140-D/86, de 14.06, que impunham ao arguido a obrigação de efectuar a dedução das quantias correspondentes às quotizações nos vencimentos pagos aos seus trabalhadores no exercício da actividade que desenvolviam e a entregá-las à Segurança Social.

Os elementos deste tipo legal de crime são: 1- a dedução, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores das quantias por estes legalmente devidas à Segurança Social; 2 - a não entrega, total ou parcialmente, às instituições de Segurança Social, no prazo de 90 dias; 3 - apropriação dessas quantias pelas entidades empregadoras; 4 - o dolo, ou seja, a intenção de se apropriarem dessas quantias (trata-se de um crime essencialmente doloso, por não estar prevista a prática a título de negligência).

No crime de abuso de confiança à segurança social o acto de entrega não translativo da propriedade traduz-se na circunstância da entidade empregadora estar legalmente investida do poder de deduzir e reter, nos vencimentos dos seus trabalhadores, os montantes pecuniários correspondentes às contribuições devidas à segurança social.

Neste crime, a apropriação verifica-se com a não entrega das contribuições que lhe são devidas e respectiva afectação a finalidades diferentes por parte da entidade empregadora (cfr. Alfredo Sousa, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 3ª ed., pág. 129), e noutro entendimento menos restritivo, há mesmo quem sustente que para a consumação do crime basta a simples não entrega das contribuições destinadas à segurança social, sem necessidade de ulterior tramitação (cfr. Sá Gomes, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, pág. 265).

O crime de abuso de confiança fiscal, independentemente da precisa configuração do bem jurídico protegido, pretende proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza. No crime de abuso de confiança em relação à segurança social o bem jurídico tutelado é o erário de que é titular a segurança social formado a partir das receitas contributivas do sistema definidas segundo critérios materiais e afectas aos fins específicos de solidariedade], que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito.

Acentuada a lesão patrimonial como resultado típico, de forma a poder-se dizer que a infracção em causa pressupõe, entre os elementos da factualidade típica, a efectivação de um dano/enriquecimento, sob a forma de descaminho de prestações correspondentes a créditos tributários.

O Abuso de confiança fiscal integra, entre os pressupostos da factualidade típica, a efectiva produção de um dano patrimonial.

Sobre esta matéria pronunciou-se, também, Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Tributário Português, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6º, Fasc. 1º, Janeiro-Março 1996, págs. 91.

Para a consumação do crime em análise basta a não entrega da prestação tributária, deduzida nos termos da lei.

Relativamente ao elemento subjectivo do crime em referência, verifica-se que sofreu alterações banindo a “intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida”.

O dolo, em qualquer uma das suas três modalidades - directo, necessário e eventual -, manifesta-se quanto à relação de confiança e à apropriação, total ou parcialmente, da prestação tributária.

Portanto este crime tem, assim, como elementos objectivos, a obrigação do agente deduzir uma prestação tributária e entregá-la ao credor tributário e a apropriação total ou parcial dessa prestação tributária.

Neste mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.2007 (CJS, I, pág. 159 e 160), citando o acórdão do mesmo Tribunal, de 23.4.2003, segundo os quais “não parece que entre os dois normativos haja essa diferença substantiva que os recorrentes lhe conferem. Na verdade, sem bem interpretamos o que neles se contém, chegaremos sem esforço à conclusão de que as diferenças são apenas literais que não de fundo, tudo não passando de uma mera diferença de redacção, sem qualquer significado essencial. É certo que no anterior regime o acento tónico da conduta do agente recai na apropriação, enquanto que no actual não se utiliza essa expressão. Todavia, o regime continua a ser o mesmo. Com efeito, embora agora se não faça referência expressa á apropriação, ela está contida no espírito do texto, pois se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente do que era imposto por lei”.

Subsumindo os factos ao direito, é indiscutível que os elementos objectivos e subjectivos do tipo se mostram preenchidos.

Pois que, conforme consta da sentença recorrida: “Da análise dos autos, flui como provado que o arguido, PM, reteve e não entregou a quantia global de €2l9.879,1l, relativas às contribuições devidas à Segurança Social, tendo usado essa quantia para assegurar a continuidade da atividade da sociedade.

Relativamente à sociedade arguida, cumpre atender que, nos termos do artigo 7°, nºs 1 e 3 do RGIT, as pessoas coletivas são responsáveis pelos crimes previstos nesta lei quando cometidos pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse coletivo, sem prejuízo da responsabilidade individual dos respetivos agentes.

A expressão "representante", constante do aludido artigo 7º do R.G.I.T., deve ser interpretada como abarcando quer representantes com legitimação representativa (que, aliás, para efeitos civis, pode ser superveniente), quer "representantes de facto".

Da interpretação conjugada dos art. 6° e 7° do RGIT, só pode resultar que a pessoa coletiva (neste caso uma sociedade comercial) é penalmente responsável pela atuação, em seu nome e no interesse coletivo, quer daquele que age como seu gerente ou representante legal, quer daquele que age como seu gerente ou representante de facto.

Da análise dos autos, flui como provado que os seus representantes legais, à altura dos factos, retiveram e não entregaram os montantes retidos entre o período de Fevereiro de 2011 a Março de 2014, relativas às contribuições devidas à Segurança Social, tendo usado essa quantia para fins diversos, nomeadamente para manutenção da atividade societária.

Ou seja, a sociedade arguida, através dos seus gerentes, não procedeu à respetiva entrega à Segurança Social, nos prazos legalmente estabelecidos, antes dando-lhe outro destino, como se de quantias suas se tratassem.”.

No que respeita ao elemento subjectivo, “compulsados os factos provados, constata-se que os arguidos tinham conhecimento da obrigação de entrega das quotizações à segurança social e vontade de não as entregar, pelos motivos supra elencados, pelo que se conclui que agiram com dolo direto. Com efeito, as eventuais dificuldades económicas sofridas, ainda que tivessem sido provocadas por uma atuação dolosa por outros intervenientes, não afasta o conhecimento e a vontade expressa pelos arguido no incumprimento da obrigação que pendia sobre estes. “

Da 1ª Questão: A recorrente, alega, em síntese, que os factos descritos, na douta sentença a quo e que se consubstanciam na dedução e não entrega dos tributos em causa à Segurança Social no período que vai de Janeiro de 2010 a Dezembro de 2010, ao contrário do doutamente decidido na decisão ora em crise, apesar do interregno de 11 meses, deve ser incluído no crime continuado, nos termos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal relativamente aos factos já julgados no Processo 1253/13.0TALLE e que vão de Dezembro de 2011 a Junho de 2012, já que a sociedade arguida foi notificada nos termos do disposto no artigo 105º nº 4, al. b) do RGIT, constituindo os factos apreciados em ambos os processos uma só resolução criminosa, pelo que ao julga-los novamente, viola-se o principio non bis in idem. Por isso, a recorrente pugna pela sua absolvição.

Com efeito, primeira questão e única questão a decidir pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora é saber se face à matéria provada em audiência de julgamento, o Tribunal recorrido poderia considerar os factos julgados em anterior processo incluídos na continuação dos apreciados e julgados na sentença recorrida, por se tratar de uma única resolução criminosa e, por isso, ser absolvido, a fim de evitar a violação do principio constitucional do non bis in idem.

Vejamos:

Dispõe o Artigo 107.º do RGIT o seguinte:

“Abuso de confiança contra a segurança social

1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º

2 - É aplicável o disposto nos n.os 4 e 7 do artigo 105.º”

Daqui decorre que o crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social ocorre quando o agente legalmente obrigado a entregar à Segurança Social a contribuição social que deduziu e não entregue tal prestação, total ou parcialmente.

Com efeito, desde logo e como se retira do douto aresto plasmado no Ac. TRC de 24-04-2013 “ I. O crime de abuso de confiança fiscal, recortado no artigo 105.º do RGIT, é um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, ou seja, a prevista no n.º 7 da referida norma.”

Portanto a não entrega do tributo, quando o agente estava legalmente a fazê-lo nos prazos legais, retendo-os, ainda que contabilisticamente, através de outra afectação dos montantes retidos, configura o preenchimento, desde logo, do elemento objectivo do tipo incriminador, o que não se confunde com o preenchimento das condições objectivas da punibilidade plasmadas no nº 4 al. a) e b) do artigo 105º do RGIT, que até podem ser preenchidas em datas ou momentos posteriores à data em que o crime se consumara.

Disto mesmo nos dá conta o citado douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2013, cujo sumário é o seguinte:

Ac. TRC de 24-04-2013, Relatora Cacilda Sena, disponível in www.dgsi.pt: : “I. O crime de abuso de confiança fiscal, recortado no artigo 105.º do RGIT, é um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, ou seja, a prevista no n.º 7 da referida norma.

II. As circunstâncias indicadas no n.º 4 do mesmo artigo 105.º configuram condições objectivas de punibilidade, isto é, elementos que não se ligam nem á ilicitude nem á culpa, mas que decidem sobre a punibilidade do facto.

III. Assim, o pagamento parcial da prestação tributária, mesmo que feito no prazo a que se reporta a al. a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, não pode ter a virtualidade de alterar o montante da prestação tributária para efeito de responsabilidade penal do devedor pela prática do crime de abuso de confiança fiscal.”

Portanto e voltando ao caso em concreto, não obstante o cumprimento do nº 4, al. b) do artigo 105º do RGIT tenha ocorrido no dia 27.11.2012 (notificação da sociedade arguida para pagar o tributo em dívida, ainda que abarcasse todos os meses em causa nos dois processos crime, no prazo de 30 dias, não o tendo feito), o facto é que no âmbito dos presentes autos a consumação do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social deu-se no período que abrange os factos situados entre Janeiro de 2010 e Dezembro de 2010.

Acontece, porém, que tendo a sociedade arguida com a sua continuada conduta de omissão de entrega de tributo à Segurança Social no período considerado de Janeiro a Dezembro de 2010, ainda que preenchendo, como se viu, os elementos objectivo e subjectivo do tipo, não podia então ser punido, porquanto a condição objectiva de punibilidade prevista na al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT somente foi cumprida em 27.11.2012.

Daqui se conclui, também, que não obstante a proximidade temporal entre os factos praticados no período entre Dezembro de 2011 a Junho de 2012, já julgados no Processo 1253/13.0TALLE e o período temporal – que decorre entre Janeiro a Dezembro de 2010 -, pelos quais o recorrente, no âmbito dos presentes autos, foi julgado e condenado, pese embora tenham todos sido incluídos na notificação nos termos do disposto no artigo º nº al. b) do RGIT, tal não significa automática e claramente que haja uma única resolução criminosa que integre uma continuação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal.

Com efeito, a proximidade temporal dos factos, pese embora seja um indicador dos elementos que integram a continuação, tal facto só por si, não constitui prova cabal de que se trata de uma única resolução criminal indiciadora de tal continuação.

Senão vejamos.

Ttal como refere o insigne Professor Furtado dos Santos, no seu estudo “O Crime Continuado Efeitos”, BMJ 47, pgs. 497 e ss. “sendo o delito continuado constituído por várias infracções parcelares, a sentença que incida sobre parte destas não produz efeito de caso julgado sobre as demais e, assim não obsta ao procedimento pelas que forem descobertas depois. O princípio ne bis in idem produz efeitos só em relação aos factos julgados e o crime continuado tem tantos factos com autonomia própria quanto os delitos parcelares unidos pelo nexo da continuação”.

No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código Penal anotado, 4.ª ed., p. 109, “o crime continuado é constituído por vários factos sucessivos, cada um deles constituindo um crime em si (...), por isso o caso julgado não poderá abranger os factos integrantes da continuação criminosa só descobertos depois da continuação”.

Como corolário deste raciocínio, o douto Acórdão do STJ, DE 04.11.1992, IN BMJ, 421, P. 195 e segs. “Se estivermos perante o preenchimento plúrimo do mesmo tipo de crime, através de uma execução homógenea, violadora dos mesmos bens jurídicos, no quadro de uma situação exterior que permaneceu igual e lhe facilitou a execução, decorrendo daí uma considerável diminuição da culpa do arguido que actuou na execução de um desígnio criminoso, sucessivamente renovado.

Considerando-se os factos novos provados integrados na continuação criminosa já julgada, há que respeitar os efeitos decorrentes da verificação do caso julgado, estando a apreciação dos mesmos limitada para esses efeitos. Assim, haverá apenas que decidir se a gravidade dos novos factos provados, julgados como integrantes da continuação criminosa, deverão fundamentar uma agravação das penas anteriormente impostas”.

Assim, ainda que a proximidade temporal dos factos em ambos os processos integrasse uma única resolução, configurando-se um crime continuado nos termos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal, os factos julgados no novo processo, descobertos posteriormente à condenação em anterior processo, não consubstancia a violação do principio do caso julgado nem do ne bis in idem constitucionalmente tutelado, havendo, por conseguinte, fazer apelo ao disposto no artigo 79º nº 2 do Código Penal.

Todavia, o supra referido, pressupõe sempre que face aos factos provados, tal proximidade temporal constitui uma única resolução criminosa do agente que fundamente a continuação prevista no artigo 30º nº 2 do Código Penal.

Como bem sustenta o douto Ac. TRE de 29-10-2013 : I. A construção da figura do crime continuado, a sua autonomização no campo mais vasto da pluralidade de infrações, tal como veio a ser acolhida no C. Penal de 1982, assenta essencialmente no menor grau de culpa do agente fundamentado no momento exógeno das condutas, na disposição exterior para o facto (e não na tendência, interna, do agente para o crime), que assim constitui a chave para decidir da subtração da figura ao regime do concurso efetivo de infrações.

II. A proximidade de tempo e de espaço é um índice de que os factos foram praticados no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa, que não se confunde com a unidade de resolução criminosa. Na construção de E. Correia esta unidade de resolução constitui, antes, critério de distinção entre unidade e pluralidade de infrações. Isto é, só depois de assente a existência de uma pluralidade de resoluções que afasta a unidade criminosa é que se coloca a questão de saber se não obstante a pluralidade de infrações, a proximidade de tempo e de espaço permite concluir que, ainda assim, todos os factos ocorreram no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.

III. Por outro lado, importa considerar que a medida da proximidade temporal exigida como índice de que os factos foram praticados no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa, não é aprioristicamente determinável, impondo-se o recurso a critérios de normalidade - não obstante a inevitável margem de indeterminação que comportam -, temperados por razões de justiça e considerações de política criminal.”

Com efeito e descendo aos factos dados como assentes na douta sentença recorrida, verifica-se que a omitida entrega dos montantes devidos – superiores a €7500,00 – ocorreu, ininterruptamente, entre Janeiro e Dezembro de 2010, sendo esta a conexão temporal e espacial dos actos, cometidos de forma uniforme e homogênea e que, por isso, integra a continuação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal.

Todavia este processo, foi interrompido por um período de quase 1 ano – 11 meses – em que a sociedade arguida não omitiu as entregas à Segurança Social, pondo nesse período de cumprimento dos deveres tributários, termo à sua resolução anterior de omissão de cumprimento desses deveres e que preenche, como vimos, os elementos objectivos e subjectivos do tipo incriminador.

A resolução de voltar a omitir a entrega de tributo no período Dezembro de 2011 a Junho de 2012, após um interregno de 11 meses, durante o qual não se preencheu o tipo objectivo e subjectivo de crime, corresponde, de acordo com as regras da experiência comum de vida, a uma nova resolução criminosa, razão pela qual e bem, a douta sentença recorrida não integrou os factos julgados no Processo 1253/13.0TALLE, na continuação com os apreciados e julgados no âmbito dos presentes autos, sem prejuízo de no futuro, a partir do trânsito em julgado dos presentes autos, se ponderar a realização de cúmulo jurídico entre as duas penas aplicadas em ambos os processos, caso estejam em relação de concurso.

Assim, não havendo qualquer relação de continuidade nos termos do disposto no artigo 30º nº 2 do Código Penal entre os presentes autos e o Processo 1253/13.0TALLE, por em ambos terem sido julgados factos que revelam duas resoluções criminosas distintas, não existe qualquer violação do artigo 30º nº 2, do artigo 79º nº 2 do Cód. Penal (crime continuado como englobando os factos já julgados em anterior processo), do artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa (non bis in idem) e do artigo 107º nº 1 do RGIT.

III - Decisão

Por todo o exposto, acordam em negar provimento parcial ao presente recurso, em consequência, mantém-se o decidido na sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça e, 5 Ucs, e demais acréscimos legais, nos termos dos arts. 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, e Tabela III do RCP).

Évora, 18/02/2020

(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas - art. 94 n.º 2 do CPP).

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(Maria Isabel Duarte de Melo Gomes)

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(José Maria Simão)