Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2767/18.0T8FAR-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO
SEGURADORA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da sua actividade de construção civil (sumário do relator).
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. Vem o presente recurso interposto pela R. T…, Lda., do despacho proferido nos autos de processo n.º 2767/18.0T8FAR [em que é A. A… e RR. I…, Lda., e T…, Lda.], que indeferiu o pedido formulado pela R. de intervenção provocada da seguradora… Companhia de Seguros, SA., para a qual havia transferido a responsabilidade civil por danos provocados por terceiros decorrentes da sua actividade de construção civil.

2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Do incidente de intervenção principal provocada deduzido pela ré T…, Lda:
A ré T., Lda veio na contestação requerer a intervenção principal provocada de … Companhia de Seguros, S.A., ambas com os demais sinais identificadores constantes dos autos.
Para fundamentar a pretensão invoca, em suma, que transmitiu para a chamada a responsabilidade civil por danos causados a terceiros no exercício da sua actividade, pelo que deve intervir na qualidade de ré.
A autora nada veio dizer.
Apreciando.
Acerca do chamamento que a ré efectua de terceiro, para se associar a si, dispõe o artº316º do mesmo diploma que:
“1- Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes na causa pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”.
E continua o nº2, “Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artº39º”.
Nos termos do nº3, “O chamamento poderá ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor”.
No presente caso, a autora peticiona a condenação das rés na eliminação de defeitos em determinado prédio ou, caso não o façam, ao pagamento do montante necessário a fazê-lo, com pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso, bem como nos prejuízos sofridos, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, com fundamento na deficiente execução de contrato de empreitada.
Perante os pedidos e causa de pedir, cumpre, então averiguar se ocorrem os requisitos do litisconsórcio voluntário (artº32º do Código de Processo Civil) ou necessário (artº33º do mesmo diploma), uma vez que a hipótese da coligação não se coloca (anterior artº 320º do Código de Processo Civil).
No litisconsórcio, quer necessário, quer voluntário, a relação material controvertida respeita a várias pessoas (pluralidade de partes).
A diferença reside no facto de, no litisconsórcio voluntário, os sujeitos da relação plural não terem de intervir em conjunto na acção, não obstante, e querendo, o possam fazer, ao passo que no litisconsórcio necessário é a lei ou o negócio jurídico que exigem a intervenção de todos os interessados, seja para o exercício do direito, seja para reclamação o dever correlativo.
No presente caso, a ré não coloca sequer a hipótese da existência de uma situação de litisconsórcio, na medida em que entende que a autora não poderá deduzir o pedido contra si, mas antes o mesmo só poderia ser deduzido contra a interveniente.
Tanto basta para considerar que, não ocorrendo uma situação de preterição de litisconsórcio necessário, não haverá que deferir o chamamento, nos termos do citado artº316º, nº1, sendo que os casos de chamamento previstos para situações de litisconsórcio voluntário, a que se alude no nº2 deste normativo, se destinam a ser deduzidos pelo autor, não pela ré.
Por outro lado, também não nos encontramos perante um dos casos previstos no nº3 do artº316º, do Código de Processo Civil, na medida em que a factualidade invocada pela ré para sustentar o chamamento jamais poderia consubstanciar uma situação de litisconsórcio, quer voluntário, quer necessário, nem contitularidade de direitos invocados pela autora.
Na verdade, a relação material controvertida, tal como é configurada na petição inicial, não respeita a uma pluralidade de sujeitos, mas somente à autora e às (rés), enquanto intervenientes no contrato de empreitada em apreciação.
Em resumo, concluindo é a ré que quem possui legitimidade para ser demandada, enquanto empreiteira e nos termos contratuais, logo não existirá nem litisconsórcio, nem contitularidade de direitos.
Note-se que a autora é alheia à existência de contrato de seguro firmado entre a ré e a chamada, não deduzindo qualquer pedido contra esta, nem exigindo a lei a sua presença na acção (contrariamente ao que sucede com os contratos de seguro do ramo automóvel).
Destarte, pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto nos citados normativos, por não ser legalmente admissível, indefiro a requerida intervenção principal provocada.»

3. A R./recorrente discorda deste entendimento, pedindo que seja admitida a requerida intervenção, nos termos e com os fundamentos seguintes:
a) A A./recorrida deduziu contra a ora recorrente, um pedido de indemnização civil, por danos que alegadamente a recorrida, em conjunto com o restante R., provocaram na sua propriedade.
b) É parte integrante desse pedido a condenação da ora recorrente no pagamento quer de indemnização, quer de valores indemnizatórios decorrentes dos danos que alega ter sofrido no seu imóvel.
c) A Recorrente celebrou com a Seguradora “… Companhia de Seguros, SA” um contrato de seguro de responsabilidade civil, do qual resulta que a responsabilidade civil geral é contemplada no âmbito do referido contrato de seguro, motivo pelo qual, a responsabilidade da seguradora não se encontra excluída do âmbito do contrato de seguro.
d) Os alegados danos peticionados pela recorrida, decorreram do exercício da actividade da recorrente, e foram alegadamente produzidos durante a execução de trabalhos no prédio da R. I…, Ld.ª, prédio contíguo a propriedade da recorrida.
e) A recorrente transmitiu para a sociedade “… Companhia de Seguros, SA” a responsabilidade civil perante terceiros por danos causados no exercício da sua actividade de construção civil.
f) Na relação entre seguradora e a segurada, aqui recorrente, aquela obriga-se a indemnizar um beneficiário terceiro se verificados os pressupostos da responsabilidade de actos praticados pela segurada/recorrente, com cobertura no contrato de seguro.
g) A recorrente invocou, assim, que a referida companhia de seguros tinha legitimidade passiva, razão por que requereu a sua intervenção principal provocada.
h) Juntou as apólices de seguro que comprovam a referida transmissão de responsabilidade por danos provocados em terceiros no âmbito da sua actividade profissional de construção civil.
i) O seguro de responsabilidade civil é um contrato a favor de terceiro, em que o beneficiário não é parte no contrato celebrado- art. 444.º do Código Civil.
j) Os valores peticionados pela recorrida inserem-se no valor da cobertura dos danos contratada pela recorrente à sua companhia de seguros (vide apólice de seguro junto com a contestação).
k) Através de um contrato de seguro, como aquele que foi junto aos autos, a seguradora obrigou-se a suportar o risco da actividade profissional desenvolvida pela segurada, aqui recorrente.
l) Ainda que tivesse sido invocada a ilegitimidade passiva da recorrente, certo é que também foi invocada a transmissão da responsabilidade para a companhia de seguros pelos danos causados a terceiros pela recorrente.
m) Ou seja, ainda que, afinal, a recorrente venha a ser condenada, caso venha a demonstrar-se a sua responsabilidade perante a recorrida, tal responsabilidade recairá na companhia de seguros face ao contrato de seguro celebrado, pelo menos, até ao limite do capital seguro.
n) Nos termos do art. 497.º do Código Civil, a companhia de seguros é solidariamente responsável juntamente com a recorrente, pelos eventuais prejuízos causados à recorrida e, assim, tem legitimidade para intervir, designadamente nos termos do disposto no art. 317.º do CPC.
o) Como refere o Tribunal a quo, a recorrida não está obrigada a conhecer da existência deste contrato de seguro. Mas também é verdade que, conhecendo-o à data da instauração dos presentes autos, como agora conhece, poderia ter desde logo demandado a seguradora, eventualmente em litisconsórcio com a recorrente.
p) Isto porque se trata, como tem vindo a ser defendido pela jurisprudência mais autorizada, de um contrato a favor de terceiro. Neste sentido leia-se Ac TRP de 24/09/2018 (acessível in www.dgsi.ppt).
q) Ainda no sentido de que o incidente de intervenção principal provocada é o adequado para fazer intervir a seguradora leia-se AC TRG de 06/01/2011(acessível in www.dgsi.ppt).
r) Ou seja, em face da responsabilidade solidária existente entre a recorrente e a companhia de Seguros e da possibilidade de ser posteriormente efectivado o direito de regresso daquela contra esta, tem a companhia de seguros legitimidade para intervir nos autos.
s) Ainda que o Tribunal a quo considere que a intervenção da companhia de seguros deve ser efectuada não nos termos da intervenção principal provocada, mas nos termos da intervenção acessória, deveria ter, então, aplicado o disposto no n.º 1 do art. 321.º, na medida em que não está vinculado ao enquadramento jurídico apresentado pela recorrente – n.º 3 do art. 5.º do CPC.
t) Pelo supra referido, e face à transmissão da ora recorrente para a sociedade “ …Companhia de Seguros, SA” da responsabilidade civil perante terceiros por danos causados no exercício da sua actividade, deve a última ser admitida a intervir a título principal nos autos, na qualidade de R.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, deverá o presente recurso ser julgado procedente, dando-se-lhe, assim, o respectivo provimento e, em consequência deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que defira a requerida intervenção principal provocada, ou, caso assim não se entenda, defira a intervenção acessória da referida companhia de seguros, assim fazendo a costumada JUSTIÇA.

4. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se deve ser admitida a intervenção principal provocada da seguradora para a qual a R. transferiu a responsabilidade civil por danos causados no exercício da sua actividade de construção civil, cuja reparação a A. reclama da R., e, se assim se não entender, se deve ser deferida a intervenção acessória da dita seguradora.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais resultantes do relato dos autos.
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B) – O Direito
1. Nos termos do artigo 311º do Código de Processo Civil “[e]stando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º, 33.º e 34.º.”
Como se sabe, foi intenção do legislador eliminar “a intervenção coligatória activa, ou seja, a possibilidade de titulares de direitos paralelos e meramente conexos com a do autor deduzirem supervenientemente as suas pretensões, autónomas relativamente ao pedido do autor, na acção pendente, perturbando o andamento desta” (cf. exposição de motivos da Proposta de Lei que gerou a Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho),
Daí que, em conformidade com esse desiderato, o actual artigo 311º do Código de Processo Civil, que define o âmbito da intervenção principal espontânea e serve de referência à intervenção provocada, veio estabelecer que, estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32º (litisconsórcio voluntário), 33º (litisconsórcio necessário) e 34º (acções que têm de ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges).
Aliás, como resulta da própria epígrafe do preceito, “intervenção de litisconsorte”, o campo de aplicação da intervenção principal, com excepção da situação prevista no art. 317º do CPC, passou a estar confinado às situações de litisconsórcio: só pode intervir na acção, assumindo a posição de parte principal, um terceiro que, por referência ao objecto da lide, esteja em relação à parte a que se vai associar numa situação de litisconsórcio.

2. No caso em apreço, a A. demandou a R. ora recorrente, enquanto empreiteira, com vista a obter dela o ressarcimento por danos alegadamente ocorridos, que a recorrente e a co-R. provocaram na sua propriedade.
Os alegados danos peticionados pela recorrida, decorreram do exercício da actividade da recorrente, e foram alegadamente produzidos durante a execução de trabalhos no prédio da R. I…, Ld.ª, prédio contíguo a propriedade da recorrida.
A Recorrente alegou ter celebrado com a Seguradora “… Companhia de Seguros, SA.”, um contrato de seguro de responsabilidade civil, do qual resulta que a responsabilidade civil geral é contemplada no âmbito do referido contrato de seguro, motivo pelo qual, a responsabilidade da seguradora não se encontra excluída do âmbito do contrato de seguro.

3. Como se sabe, “não tem tido um tratamento unívoco nem na jurisprudência nem na doutrina a questão de saber se numa acção de responsabilidade civil extracontratual, a seguradora, com a qual a ré celebrou um contrato de seguro (não obrigatório), pode ser considerada titular da mesma relação jurídica invocada pela autora ou de relação jurídica com ela conexa a ponto de se poder aceitar que a seguradora seja admitida a intervir como parte principal, defendendo um interesse igual ao da ré; ou se, pelo contrário, poderá intervir na causa, mas apenas como parte acessória, auxiliando a ré na sua defesa” [cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 27/11/2008 (proc. n.º 8398/08-2), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt].
Assim, para uma das correntes jurisprudenciais, o contrato de seguro celebrado entre a lesante e a respectiva seguradora apenas confere a esta um interesse processual secundário, podendo a mesma intervir na própria acção de responsabilidade civil na qual o lesante é réu, mas apenas por via do incidente de intervenção acessória.
Para os defensores desta corrente, não sendo a seguradora contitular da relação material controvertida, mas sim sujeito passivo de uma relação jurídica (contrato de seguro), que é conexa com a relação material controvertida, inexiste interesse litisconsorcial necessário ou voluntário entre o réu/lesante e a sua seguradora, não podendo esta ser demandada como parte principal, nem poderá ser admitido o incidente de intervenção principal provocada previsto no artigo 316º do CPC, por forma a desencadear uma situação de litisconsórcio sucessivo, apenas se justificando a intervenção acessória da seguradora, à luz do artigo 321º do CPC, como auxiliar do réu/lesante, com vista a uma futura acção de regresso contra a mesma, e por forma a ser indemnizada pelos prejuízos que venha a sofrer com a perda da demanda.
Em sentido contrário, outros defendem que, tendo o segurado-lesante celebrado um contrato no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário até determinada quantia, o cumprimento das obrigações daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, podendo a mesma ser exigida, por força do contrato, tanto ao segurado como à seguradora, pelo que o terceiro lesado sempre teria possibilidade de demandar o alegado lesante e a sua seguradora, em litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32.º, do Código de Processo Civil.
Por isso, também o segurado demandado ou o lesado teriam o direito a fazer intervir, a título principal e não a título secundário, a sua seguradora como ré, através de intervenção principal provocada, para ser condenada no pedido, por força do artigo 311.º do Código de Processo Civil.
Este último entendimento espelha a evolução da jurisprudência no sentido de enquadrar a situação na figura da intervenção principal que abrange “todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores ou quando existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista” (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/06/2010, Proc. n.º 9506/08.2TBMAI-A.P1), sendo relevante para o efeito “que do alegado pelo R, em conjugação com a causa de pedir invocada na petição, resulte que o chamado tem uma posição própria, mas paralela à do R e consequentemente também tem interesse directo em contradizer” (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/01/2012, Proc. n.º 3868/11.1TBGDM-A.P1).
Daí que, tendo por base estes pressupostos, se tenha concluído no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06/01/2011(proc. n.º 5907/09.7TBBRG-A.G1), que: «O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da sua actividade de empresa produtora de bens.»

4. E, em idêntico sentido se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19/11/2015 (proc. n.º 814/13.1TJVNF-A.G1), onde, seguindo a mesma linha argumentativa, se concluiu, que:
«II- Tendo-se transferido através da celebração do contrato de seguro, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro, o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis.
III- Por essa razão, obrigando-se a seguradora para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, fica aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário, razão pela qual, não sendo o segurado ou a seguradora, respectivamente, parte originária na demanda, nada impede que se suscite o incidente de intervenção provocada do segurado ou da seguradora, respectivamente, promovendo a apreciação da sua situação jurídica e constituindo a sentença caso julgado quanto a eles.»
Efectivamente, como se escreveu neste aresto:
«Como é consabido, através do contrato de seguro, a seguradora obriga-se a suportar o risco, ou seja, como contrapartida do recebimento do prémio, a seguradora passa a estar disponível para fazer face às consequências da eventual realização do sinistro, podendo, assim, afirmar-se, que, por força do contrato, nas relações internas, a seguradora coloca-se na posição de quem é obrigada a indemnizar e o segurado na posição de quem tem que demonstrar o dano, a sua relação com o sinistro, bem como a sua extensão e valorização.
Todavia, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário. Isto, considerando que o contrato de seguro de responsabilidade civil consubstancia um contrato a favor de terceiro podem ver-se, entre outros, os Acs. do STJ de 16.01.1970, BMJ, nº 193, pág. 359, e de 30.03.1989, BMJ, nº 385, pág. 563, e o Acs. da RL de 07.11.2006, proc. 7576/2206-7, e da RP de 06.07.2009, proc. 721/08.0TVPRT-A.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt; na doutrina cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 99º, pág. 56, nota 1; Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, págs. 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., pág. 372 e segs.; José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 258 e 259.
E isto sucede, mesmo quando o seguro for facultativo, uma vez que o terceiro que sofreu a lesão e exige a responsabilidade do lesante-segurado ainda pode e está em condições de receber da seguradora deste a prestação devida pelo lesante, sendo assim evidente também aqui a existência de uma forte componente do contrato a favor de terceiro, apesar de se tratar de contrato a favor de terceiro impróprio, por não existir aquisição de um crédito autónomo pelo terceiro-lesado.
Assim, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento, sendo que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 497º, do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231.
(…)
Em situações de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39º, prevendo-se ainda no n.º 3 do artigo 316º do NCPC que o chamamento pode ser deduzido por iniciativa do réu quando:
- Mostre interesse atendível em chamar outros litisconsortes voluntários (sujeitos passivos da mesma relação material controvertida);
- Pretende provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
O NCPC veio prever que a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa constitui caso julgado quanto ao chamado, independentemente de este ter, ou não, intervindo na causa.
Sendo suscitado pelo réu, há que ter em conta as especialidades previstas no art. 317º, em que se prevê o chamamento de co-devedores ou do principal devedor (n.º1), bem como, tratando-se de obrigação solidária, e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos co-devedores, o chamamento dos co-devedores, tendo em vista a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir assistir (nº2).
Caracterizando-se as situações tipificadas no art. 317º, do CPC pela circunstância de, existindo pluralidade de devedores ter o co-devedor demandado a possibilidade de repercutir sobre o chamado, no todo ou em parte, o sacrifício patrimonial resultante do cumprimento da obrigação que lhe é exigida, como evidente resulta que ao objectivo normalmente prosseguido com a intervenção litisconsorcial provocada passiva – operar uma defesa conjunta no confronto do credor, opondo-lhe os meios de defesa que forem pertinentes – acresça o interesse do réu em acautelar eventual direito de regresso.
Tratando-se de obrigação solidária, admite-se expressamente que a finalidade do chamamento possa também consistir – para além do objectivo de possibilitar defesa comum – em o réu obter o reconhecimento eventual do direito de regresso que lhe assistirá, se for compelido a pagar a totalidade do débito, sendo assim evidente que a seguradora é parte da relação jurídica ou sujeito da relação jurídica que se envolve o pedido formulado pelo lesado autor contra os réus, podendo, assim, ser demandada directamente ou seja, e dito de outra forma, a cobertura garantida pela seguradora, por via do contrato, transmuta-a em titular da relação material em litígio, por lhe conferir um interesse principal no seu objecto, e não apenas um interesse processual secundário.
E tendo a nova Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, vindo permitir, de forma expressa, que nos casos de seguro facultativo, o lesado demande directamente a seguradora quando o contrato de seguro assim o preveja (art. 140º, nº 2) e quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro e a seguradora com ele tenha iniciado negociações directas (art. 140º, nº 3), tem-se também entendido que, em qualquer destas situações, quando o lesado, demande directa e isoladamente a seguradora, a fim de obter sentença que a obrigue a determinada prestação, uma vez que esta depende de se apurar se determinado acto ou omissão do segurado é ou não gerador de responsabilidade civil e o segurado, não sendo parte na demanda, não será condenado, nada impede que se suscite o incidente de intervenção provocada deste.
Na verdade, se a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário, até determinada quantia, o cumprimento das obrigações do segurado, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, embora por força do contrato possa ser exigida tanto do segurado, como da seguradora.
O que releva é que existe uma obrigação única a favor de terceiro que este verificado o facto lesivo, como credor, passa a poder exigir de qualquer dos devedores, porque a relação material respeita a vários devedores (os condevedores referidos no art.º 317.º n.º 1 do CPC), conforme a expressão ampla do art.º 32.º do CPC, mesmo que um dos devedores o seja por uma relação paralela conexa com a relação directa entre o lesante o lesado, aquela que emerge do contrato de seguro.
Temos assim de concluir que o terceiro lesado tem sempre a possibilidade de demandar o lesante e a sua seguradora em litisconsórcio voluntário nos termos do artigo 32.º do CPC (ou apenas o civilmente responsável ou somente a seguradora, nos caos em que isso é possível), resultando, assim, inequívoco que também o segurado demandado tem o direito a fazer intervir a sua seguradora como ré, ao seu lado, através de intervenção principal provocada para ser condenada no pedido, e sendo possível esta intervenção a titulo principal é ela que deve ser seguida e não a intervenção a título acessório quer porque esse é o pedido primário da ré chamante, como face ao disposto no art.º 321.º n.º 1, no inciso contido na última parte, onde expressamente se estatui que a intervenção acessória é subsidiária em relação à intervenção principal, de modo que a intervenção será acessória “sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal”.
A utilidade e o fim social do contrato de seguro apenas através desta solução se consegue atingir porque a seguradora que assume a transferência da obrigação de pagar o montante do ressarcimento pelo ilícito extracontratual passa a ter a responsabilidade transferida numa cadeia em que além de ter a mesma responsabilidade do lesante é o devedor final até ao limite do montante seguro, pelo qual se pretende que responda de imediato, logo que apurada a responsabilidade.
Assim sendo, nos casos em que o lesado demanda directa e isoladamente a seguradora ou, pelo contrário, tão somente o segurado, sendo, por um lado, nesta última situação, possível obter sentença que obrigue a primeira a determinada prestação, quando esta dependa de se apurar se determinado acto ou omissão do segurado é ou não gerador de responsabilidade civil, e, por outro, tendo-se transferido através da celebração do contrato de seguro o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, razão pela qual, não sendo o segurado ou a seguradora, respectivamente, parte na demanda, nada impede que se suscite o incidente de intervenção provocada do segurado ou da seguradora, respectivamente, promovendo a apreciação da sua situação jurídica e constituindo a sentença caso julgado quanto a eles (cfr. arts. 316º e 320º do C.P.C..
Isso mesmo assim sucede no caso em apreço, em que se verifica, tão só, uma situação de litisconsórcio voluntário previsto no artigo 32 nº 2 do C.P.C., no qual se prescreve que “se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade”.
Na verdade, e como bem referem os Recorrentes, a existência de contratos de seguro de responsabilidade civil facultativo não pode deixar de consubstanciar uma relação jurídica entre os Réus e as terceiras seguradores que, apesar de autónoma, é dependente da responsabilidade civil dos Réus, existindo um inquestionável litisconsórcio voluntário, que permite que o Autor possa provocar a intervenção desses terceiros. (…)»
[Com idêntico entendimento, veja-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11/01/2018 (proc. n.º 2812/16.4T8PTM-A.E1)].

5. Deste modo, concordando-se com os fundamentos do citado aresto, conclui-se pela admissibilidade, a requerimento da R., da intervenção provocada da seguradora para a qual a R. transferiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros no exercício da sua actividade.
Em consequência, procede a apelação, revogando-se a decisão recorrida, em conformidade com o acima decidido.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, admitindo-se a intervenção principal da chamada … Companhia de Seguros, SA., requerida pela R. T…, Lda..
Custas como vier a ser decidido a final.
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Évora, 4 de Junho de 2020
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)