Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
241/17.1T8FAR-A.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Um adiantamento de indemnização efectuada pela responsável em data anterior à propositura do procedimento, não obsta ao arbitramento da indemnização provisória sob a forma de renda mensal, se não se demonstra que tal pagamento também é bastante para satisfazer as necessidades do sinistrado a partir do 1.º dia do mês subsequente à data da dedução do respectivo pedido.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. O procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória depende dos seguintes requisitos cumulativos:
a) esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido;
b) ocorra uma situação de necessidade por parte do requerente; e,
c) que essa situação de necessidade seja consequência dos danos sofridos.
2. Um adiantamento de indemnização efectuada pela responsável em data anterior à propositura do procedimento, não obsta ao arbitramento da indemnização provisória sob a forma de renda mensal, se não se demonstra que tal pagamento também é bastante para satisfazer as necessidades do sinistrado a partir do 1.º dia do mês subsequente à data da dedução do respectivo pedido.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Faro, (…) instaurou procedimento de arbitramento de reparação provisória contra (…) – Companhia de Seguros, S.A., pedindo que seja esta condenada no pagamento de uma renda mensal no valor de € 612,94, a contar da data de entrada do requerimento inicial (02-10-2017), a título de reparação provisória do dano e a deduzir na indemnização final a fixar na acção principal.
Contestado o procedimento pela Requerida, realizou-se julgamento e foi proferida sentença, arbitrando o montante mensal de € 557,00 a título de reparação provisória do dano que se vier a apurar na acção principal.

Inconformada, a Requerida recorre e conclui:
1- A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto na mesma não houve uma apreciação correta dos pressupostos de direito e de facto constantes dos presentes autos.
2- Entendeu o Tribunal a quo condenar a Recorrente, no pagamento ao Recorrido da renda mensal de € 557,00. Não concorda a Recorrente com o juízo do tribunal a quo no sentido de admitir que ficou provado o estado de necessidade do Recorrido.
3- Considera a Recorrente que os factos nºs 35 e 36 não deviam ser dados como indiciariamente provados tendo em conta a prova produzida em audiência, principalmente as Declarações de Parte do Requerido (Declarações do requerido nos minutos 00:25:45 a 00:26:08 e 00:26:52 a 00:27:01, transcritas na fundamentação das alegações).
4- As ajudas medicamentosas não estão previstas como parâmetro de dano no Relatório de Final de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, junto pelo Requerido.
5- Considera a Recorrente que o facto provado n.º 38 não ficou provado porque no Relatório final de avaliação do dano em direito civil não está indicado o parâmetro de dano – Dependências de Ajudas Técnicas.
6- A descrição do orçamento junto pelo Requerido aos autos que contempla uma cama de casal e dois colchões, ultrapassa as necessidades do Requerido e nada tem a ver com o acidente dos autos.
7- Quanto ao estado de necessidade do requerido, foi inquirida, somente, uma testemunha (…) que aos autos nada provou quanto àquele estado por parte do requerido, de que são exemplo as seguintes declarações da testemunha (Declarações da testemunha … minuto 00:09:21 a 00:09:40 transcritas na fundamentação das alegações)
8- O Recorrido não alegou nem provou, em concreto, quais as necessidades que tem, seja com rendas, seja com despesas de alimentação, luz, água etc., seja com outro qualquer tipo de despesas.
9- Não juntou qualquer documento a comprovar as suas necessidades.
10- Em relação ao estado de necessidade, considera a Recorrente que o tribunal a quo andou mal ao considerá-lo como provado porque, a sustentar esse mesmo estado esteve somente o Requerido, sem qualquer outra prova.
11- Refere o Acórdão da Relação de Lisboa de 07-06-2016 relativo ao processo 427/13.8TVLSB.L1-1 que o Juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento do interessado na procedência da acção, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas.
12- Considerou o tribunal a quo como não provado, indiciariamente, e mal, os factos indicados nas als. c) e d) Sentença.
13- Quanto ao facto indicado na al. c), tendo em conta o relatório médico de avaliação do dano, considerou-se que o Requerido está incapaz, unicamente, para a profissão habitual de motorista de veículos ligeiros de mercadorias, sendo que pode exercer outra profissão.
14- Quanto ao facto não indiciariamente provado indicado na alínea d) em providência cautelar anterior, Requerido e Requerente, chegaram a acordo, para pôr termo àquela providência pelo valor de € 20.000,00, valor esse que foi recebido em Setembro de 2016 pelo Requerido.
15- Fazendo as contas, o valor entregue, permitiria a que o Requerido fizesse face às suas necessidades, durante mais de 3 anos, considerando o valor de € 500,00 x 40 meses.
16- Se o Recorrido tivesse administrado da melhor forma o valor recebido verificaria que o mesmo chegaria para sustentar as suas necessidades e carências económicas, durante pelo menos 3 anos, o que não aconteceu no presente caso, pelo que o estado de necessidade agora alegado não pode ser imputado à Recorrente.
17- Tendo em conta as condições de vida do Recorrido, que recebeu o valor de € 20.000,00, há um ano atrás, nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-06-2010, tal montante fazia cessar o estado de necessidade do Recorrido pelo menos durante 3 anos.
18- Alegadamente, uma vez que não consta qualquer prova documental no processo, o Requerido terá comprado uma casa o que em nada contribuiu para diminuir a sua situação de necessidade alegada na primeira providência cautelar, como o próprio reconhece. (Declarações do Requerido nos minutos 00:06:30 a 00:06:55 e 00:10:04 a 00:10:23 transcritas na fundamentação das alegações).
19- Entende a Recorrente que em virtude do recebimento do montante de € 20.000,00, em Setembro de 2016, não se verifica a situação de necessidade em consequência directa e necessária dos danos sofridos com o sinistro.
20- O Recorrido não provou o estado de necessidade, não alegou nem provou, em concreto, quais as necessidades que tem, seja com rendas, seja com despesas de alimentação seja com outro qualquer tipo de despesas.
21- Perante todo o supra exposto, pugna a ora Recorrente pela revogação da Sentença proferida pelo douto tribunal a quo.

Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607º, nº 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
A reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
Por outro lado, o art. 662º, nº 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Entrando na análise da impugnação de facto, a Recorrente começa por discutir os pontos 35 e 36 da matéria de facto, relativos à necessidade de vestuário e de medicamentos, tendo para o efeito o Requerente de despender, quanto ao 1.º tipo de bens, € 50,00/mês, e quanto ao 2.º tipo a quantia média de € 30,00 a € 60,00/mês.
Quanto ao vestuário, se é da experiência comum que se trata de bens sujeitos a desgaste, carecendo de regular substituição, não existe, porém, qualquer elemento probatório que nos permita concluir pelo dispêndio mensal da quantia de € 50,00, o que se traduziria num gasto anual, apenas em vestuário, de € 600,00. Ponderando que o próprio Requerente declarou que, desde data anterior ao acidente (mais exactamente, desde que regressou de Inglaterra) já não adquiria roupa e que beneficiava de roupa que lhe era entregue gratuitamente no local onde trabalhava, não se pode considerar provado o aludido dispêndio mensal, subsistindo assim, quanto ao ponto 35, apenas a parte em que se declara a necessidade de vestuário.
Quanto aos medicamentos, embora se admita que, face às lesões sofridas, o Requerente careça de medicamentos analgésicos, acerca do valor despendido mensalmente temos as suas próprias declarações, não suportadas por qualquer outra prova, nomeadamente por comprovativos documentais de aquisição, pelo que do ponto 36 será excluída a despesa mensal média.
Quanto ao ponto 38, temos apenas as próprias declarações do Requerente, não corroboradas em qualquer parecer médico ou outra prova testemunhal, havendo a notar que o “orçamento” junto aos autos descreve, para além da poltrona de descanso, uma cama de casal e respectivo colchão, sendo que o próprio Requerente declara apenas utilizar o primeiro bem. Reconhecendo que as declarações de parte devem ser apreciadas com especial cuidado e, no que aos factos favoráveis à pretensão do declarante, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas, concede-se provimento ao recurso nesta parte e igualmente se elimina o ponto 38 do elenco de factos provados.
No ponto 41, foi considerado provado que, com parte do valor recebido na anterior acção, o Requerente adquiriu um imóvel para viver e utilizou o restante para as suas despesas mensais. Como bem aponta a Recorrente, a aquisição do imóvel não está demonstrada através de qualquer documento, e apenas existem as declarações do próprio Requerente, não corroboradas por qualquer outro elemento probatório, pelo que se reduzirá este ponto da matéria de facto apenas à parte relativa à utilização do valor recebido em despesas mensais.
Quanto aos factos não provados, na al. c) foi declarado não provado que “o Requerente pode exercer outra profissão, quer no âmbito dos planos de inserção, quer em qualquer outro.” A avaliação de dano corporal junta aos autos declara que o Requerente está incapacitado para a profissão habitual de motorista de veículos ligeiros de mercadorias, o que coloca a possibilidade de exercício de outras profissões compatíveis com as sequelas que apresenta, nomeadamente com a redução da mobilidade em flexão e extensão da coluna cervical a 30º, face a artrodese de C2-C3-C4-C5. Deste modo, é lícito concluir pela possibilidade de exercício de outras profissões compatíveis com a citada limitação, nesta medida se concedendo provimento à reclamação.
Na al. d) foi declarado não provado que “o valor adiantado nos autos cautelares seria suficiente para que o Requerente subsistisse por mais de 3 anos”, e visto que está em causa uma mera conclusão de facto, concorda-se que não deve constar do elenco fáctico, sem prejuízo de, no âmbito da aplicação do direito aos factos, serem retiradas as ilações que a esse respeito se considerarem pertinentes.
Em resumo, concede-se parcial provimento à impugnação da matéria de facto, nos seguintes termos:
· quanto ao ponto 35, subsistirá apenas a parte em que se declara que “o Requerente necessita de vestuário”;
· quanto ao ponto 36, subsistirá apenas a parte em que se declara que “o Requerente necessita de medicamentos analgésicos”;
· o ponto 38 é eliminado do elenco de factos provados;
· quanto ao ponto 41, ficará apenas provado que “o Requerente utilizou tal valor nas suas despesas mensais”;
· declarar provado que o Requerente pode exercer profissões compatíveis com as sequelas que apresenta.

O elenco fáctico fica assim estabelecido:
1- A responsabilidade por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula 61-(…)-03 encontra-se transferida para a Requerida através da apólice (…).
2- O requerente tem 59 anos de idade.
3- No dia 17 de Março de 2015, pelas 14 horas e 30 minutos, na Av. Calouste Gulbenkian, em Faro, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos com matrícula 77-(…)-35 e 61-(…)-03.
4- O MI, um motociclo, era conduzido pelo Requerente.
5- O AT, um automóvel ligeiro de passageiros, era conduzido por (…).
6- O Requerente circulava ao lado do AT mas em vias de trânsito diferentes, quando o condutor do AT, de modo brusco, muda de via à direita, atento o seu sentido de marcha.
7- O Requerente que circulava à direita do AT foi assim embatido por este, dando-se a colisão entre a lateral direita do AT e a lateral esquerda do MI.
8- Após a colisão, o Requerente foi projectado para o pavimento, ficando gravemente ferido.
9- Do acidente resultou fractura/luxação C2-C3 e C4, fractura da cabeça do perónio e luxação do 1.º dedo da mão direita.
10- O Requerente foi sujeito a intervenção cirúrgica e artrodese com parafusos.
11- Operação com redução cruenta com 2 fios K no 1.º dedo da mão direita.
12- Ficou internado e foi novamente operado para extracção dos fios K.
13- Voltou a ser operado em revisão da artrodese.
14- Fez programa de recuperação com medicina física de reabilitação.
15- Os serviços clínicos da Requerida efectuaram consulta de avaliação de dano corporal ao Requerente em 6 de Julho de 2016, confirmando que o mesmo apresenta pouca mobilidade em flexão e extensão da coluna cervical a 30º, face a artrodese de C2-C3-C4-C5.
16- Atribuíram a data da consolidação médico-legal em 06/07/2016.
17- Atribuíram-lhe Incapacidade Temporária Absoluta Geral de 17/03/2015 até 06/07/2016, cerca de 1 ano e 3 meses.
18- Atribuíram-lhe 11 pontos (numa escala ascendente de 1 a 100), de Incapacidade Parcial Permanente por sequela anatomopatológica referentes à coluna cervical.
19- Um Quantum Doloris de grau 4 (1-7), Dano Estético 1 (1-7) e Prejuízo de Afirmação Pessoal 5 (1-5).
20- Foi ainda considerado incapaz para a profissão habitual de motorista de veículos ligeiros de mercadorias (IPATH).
21- Em relatório médico elaborado no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, foi o Requerente considerado inapto para a condução de veículos a motor.
22- A Requerida assumiu a responsabilidade pelo sinistro e deu assistência médica ao Requerente e foi-lhe adiantando, parcialmente, despesas e perdas salariais, até à data da consolidação médico-legal.
23- A partir daquela data, e como não há acordo para resolução extrajudicial do montante total a indemnizar, a Requerida deixou de fazer os referidos adiantamentos por perdas salariais.
24- Sendo ainda que, mesmo quando a Requerida efectuava adiantamentos não os fazia mensalmente, o que causava dificuldades financeiras na vida do Requerente que a partir do acidente deixou de auferir rendimentos.
25- O Requerente prestava trabalho para o Centro de Apoio aos Sem-Abrigo, com a categoria profissional de motorista, mediante o pagamento de uma bolsa de ocupação mensal no valor de € 419,00, acrescida do fornecimento de refeições.
26- Sendo que, desde a data do acidente e devido às sequelas do mesmo, o Requerente deixou de auferir a bolsa.
27- Consequentemente o contrato não foi renovado.
28- E uma vez que há responsáveis pelo descrito acidente, a Segurança Social não concedeu subsídio de doença.
29- Termos em que, estando o Requerente impossibilitado para o trabalho de motorista, estava desde a data do acidente financeiramente dependente dos adiantamentos que a Requerida lhe fazia, quando assim entendia.
30- Antes do acidente o requerente vivia em união de facto num imóvel arrendado.
31- Após o acidente e por causa deste, nomeadamente por questões financeiras, o Requerente separou-se e passou a residir com a mãe, uma vez que não auferindo rendimentos não tem capacidade financeira para viver sozinho.
32- Contudo esta não tem a possibilidade de o sustentar.
33- O Requerente despende mensalmente cerca de € 200,00 em alimentação.
34- E todos os dias consome água, electricidade e gás, para tratar da higiene, confeccionar os alimentos, despendendo também para o efeito certa quantia monetária, que se computam em € 75,00/mês.
35- O Requerente necessita de vestuário;
36- …e de medicamentos analgésicos.
37- Fruto do acidente de viação, deixou de auferir qualquer rendimento por ter cessado o contrato de estágio e por estar impedido de exercer a função que exercia antes, de motorista.
38- (eliminado).
39- No âmbito do processo judicial que correu termos sob o n.º 2386/16.6T8FAR que correu termos no J1 da Secção Cível da Instância Local de Faro, a Requerida procedeu ao adiantamento de um valor de € 20.000,00, face ao que o Requerente veio a apresentar a desistência da instância.
40- Tal vontade veio a ser homologada por sentença proferida em 29.09.2016.
41- O Requerente utilizou tal valor nas suas despesas mensais.
42- Na altura havia a possibilidade de um acordo, que se frustrou.
43- O Requerente tem vivido com a ajuda de familiares.
44- O Requerente pode exercer profissões compatíveis com as sequelas que apresenta.

Aplicando o Direito.
Dos requisitos para arbitramento de indemnização provisória
A jurisprudência vem identificando os seguintes requisitos cumulativos para o arbitramento de reparação provisória, nos termos do art. 388.º do Código de Processo Civil:
a) esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido;
b) ocorra uma situação de necessidade por parte do requerente; e,
c) que essa situação de necessidade seja consequência dos danos sofridos.
Trata-se de uma medida que visa antecipar uma situação de carência decorrente do acto lesivo, assente no princípio de que, enquanto a reparação do dano não for ajuizada definitivamente, existem situações humanas pontuais de necessidade, que foram criadas ou se agravaram com a produção do evento, que merecem tutela imediata provisória.
Como refere Lebre de Freitas[2], “o titular do direito a indemnização tem a possibilidade de pedir que lhe seja arbitrada uma quantia mensal, a título de reparação provisória do dano sofrido, até que a decisão definitiva, a proferir na acção de indemnização, transite em julgado: quando, em consequência do facto ilícito, tenha ocorrido morte ou lesão corporal; quando, em consequência do facto ilícito, tenha ocorrido dano susceptível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.”
Se quanto ao primeiro requisito não ocorrem dúvidas de maior acerca da sua verificação – nem a Recorrente discute a sua obrigação de indemnizar o Recorrido – a dúvida instala-se quanto à situação de necessidade, nomeadamente em face do adiantamento da quantia de € 20.000,00 em Setembro de 2016, que no entender da Recorrente seria bastante para satisfazer as necessidades do Recorrido durante 3 anos.
O estado de necessidade consiste numa situação de carência económica, caracterizada pela impossibilidade do lesado fazer face às suas despesas, em virtude das lesões sofridas.
No dizer de Abrantes Geraldes[3], podem “envolver, de acordo com o normal padrão de vida do lesado, componentes ligadas à diminuição do bem-estar, da educação ou do vestuário, que não apenas os atinentes à capacidade de almejar o seu próprio sustento ou de prover à sua habitação.”
E Lebre de Freitas[4] refere que “não é de o considerar limitado ao sustento, habitação e vestuário. Se o lesado ficar impossibilitado, pela lesão corporal, de continuar a auferir o rendimento do seu trabalho, qualquer sua necessidade, tido em conta o seu estilo de vida, há-de poder ser coberta pela reparação provisória, desde que outro meio não tenha de a satisfazer.”
No caso, está demonstrado que o lesado ficou incapacitado para o exercício da sua profissão habitual de motorista de veículos ligeiros de mercadorias e que, em consequência, deixou de auferir qualquer rendimento. E se é certo que pode exercer outras profissões compatíveis com as sequelas que apresenta, é preciso reconhecer que tais sequelas – em especial, a artrodese de quatro vértebras cervicais e consequente redução da mobilidade em flexão e extensão da coluna cervical – são fortemente limitativas da capacidade de encontrar trabalho no mercado laboral, a que se alia a idade de 59 anos, sendo um facto notório que os empregadores, usualmente, não pretendem contratar um trabalhador com esta idade e fortemente limitado na sua aptidão física.
Quanto ao recebimento da quantia de € 20.000,00 em Setembro de 2016, para além de se notar que, à data da propositura do procedimento, já tinham decorrido 30 meses sobre a data do acidente e que, à data desta decisão, já decorreram mais de 34 meses – pelo que o valor pago representa agora uma média mensal aproximada de € 588,00 – haverá a dizer que o lesado ficou afectado de graves sequelas físicas, limitativas da sua capacidade laboral e que motivaram a perda do seu emprego, não podendo tal pagamento considerar-se bastante para garantir a satisfação das suas necessidades até à decisão final da acção principal.
Face às despesas acrescidas que o lesado enfrenta com tratamentos e medicamentos, a perda da casa onde residia, passando a ir viver com a mãe – tal acontecimento, aos 59 anos de idade, significando a perda de autonomia financeira, não pode ser encarado como uma evolução positiva na vida do lesado, muito pelo contrário – e suportando as consequentes despesas de habitação, alimentação e vestuário, o valor pago deve considerar-se adequado para suportar as necessidades do Requerente apenas até à data de entrada do procedimento (02-10-2017), mas não as vencidas desde tal data.
Acresce, ainda, que não ficou provado a que título tal pagamento foi efectuado em Setembro de 2016, pelo que nada obsta ao decretamento da providência, tanto mais que está provada a situação de necessidade por parte do lesado em consequência dos danos sofridos no acidente dos autos, nomeadamente pelo desemprego subsequente à impossibilidade de exercício da sua actividade profissional.
De resto, já se entendeu que “não obsta à reparação provisória a indemnização de € 33.967,98 (…) atribuída pelo acidente de trabalho, o recebimento da quantia de € 1.428,25 a título de subsídio de doença (…), nem o adiantamento de € 10.000,00 feito pela requerida (…). Este adiantamento por conta da indemnização final só revela necessidade de dinheiro por parte do requerente para poder fazer face às suas dificuldades. E, com os € 35.396,23 que recebeu até então, teve certamente que fazer face às despesas, suas e do seu agregado familiar, desde a data do acidente até à data em que teve que recorrer ao aludido adiantamento. O adiantamento efectuado não pode ser aqui considerado, para efeitos de retardar o pagamento da renda mensal fixada, (…) não só porque são diversos os títulos por que foram e serão pagos, mas também porque violaria o disposto no art. 386.º n.º 1, aplicável ex vi do art. 389.º n.º 1, ambos do NCPC, que impõe o pagamento das rendas a partir do 1.º dia do mês subsequente à data da dedução do respectivo pedido (…).”[5]
Estando, pois, preenchidos os requisitos necessários ao decretamento da providência – em especial, o estado de necessidade do lesado em consequência dos danos sofridos – e ponderando que a renda fixada apenas é devida a partir do mês de Novembro de 2017, não estando demonstrado que o anterior pagamento também fosse apto a garantir as necessidades básicas do lesado a partir desse mês, deve o recurso improceder.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação da decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 8 de Fevereiro de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
__________________________________________________
[1] Cfr. os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1), e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., pág. 114.
[3] In Temas da Reforma do Processo Civil, vol. IV, pág. 136.
[4] Loc. cit., pág. 111.
[5] Acórdão da Relação do Porto de 01.04.2014 (Proc. 707/11.7TBGDM-A.P1), disponível em www.dgsi.pt.