Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2700/13.6TBSTR.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTOS-ÍNDICE
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTARÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
Em processo de insolvência não está o credor que a requer dispensado de alegar os factos dos quais se possam extrair os pressupostos que a lei erigiu em fundamentos para ser decretada a insolvência de algum particular ou empresa, previstos no artigo 20.º do CIRE.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes nesta Relação:

A Apelante “F..., Lda.”, com sede em …, nestes autos de insolvência, a correrem termos contra a sociedade “J..., Lda.”, com sede na Rua …, por si instaurados no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Santarém – e onde foi indeferido o pedido de declaração da insolvência desta, por decisão de 17 de Dezembro de 2013 (agora a fls. 30 a 34 dos autos), com o fundamento aí aduzido, a fls. 32, de que “quanto aos factos que relevam para a caracterização de uma situação de insolvência da requerida, a requerente nada diz; aliás, refere que desconhece o património da requerida e que não tem conhecimento de outros credores, embora conste que a requerida terá outras dívidas que não satisfez nas respectivas datas de vencimento” –, vem a ora Apelante, dizíamos, interpor recurso dessa decisão, intentando a sua revogação e que venha agora a ser a requerida declarada em estado de insolvência, que plenamente se justifica, alegando, para tanto e em síntese, que, ao contrário do ali decidido, a requerente indicou factos suficientes para caracterizar a situação da requerida, pois que “à data da apresentação do pedido de insolvência a dívida cifra-se em € 27.768,64, valor de capital e juros calculados”, que a agora “requerente logrou demonstrar a situação de incumprimento total da requerida”, sendo que esta “foi incapaz de cumprir o acordo que celebrou”, “não podendo haver prova maior da deficiente saúde de uma empresa, quando esta demonstra comportamento tão errático e tão escasso no cumprimento a que se propôs”. Acresce que, “durante dois anos, foram solicitados, de forma corrente, por carta registada, por via electrónica, telefonicamente, os pagamentos devidos”, aduz. Consequentemente, deverá ser revogada a decisão recorrida, e dando-se provimento ao recurso, ser substituída por outra que decrete a insolvência da requerida, conclui.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) Em 06 de Dezembro de 2013 a Requerente “F..., Lda.” instaurou no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, esta acção contra a sociedade “J..., Lda.”, pedindo a declaração da insolvência desta, nos termos e com os fundamentos constantes do douto articulado que agora constitui fls. 3 a 7 dos autos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido (a respectiva data de entrada está aposta a fls. 10).
2) Mas por douto despacho proferido em 17 de Dezembro de 2013, foi tal pretensão liminarmente indeferida, por ter sido entendido que a Requerente não alegara factos suficientes ao objectivo pretendido (vide respectivo teor completo a fls. 30 a 34 dos autos, que aqui igualmente se dá por reproduzido na íntegra).
3) A ora Requerente é uma sociedade comercial que “exerce a actividade de comercialização e montagem de ferros e alumínios, bem como todo o tipo de empreitada que envolva caixilharia em ferros e alumínios” (vide tal petição).
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se o Tribunal a quo andou bem ao indeferir in limine o pedido de declaração do estado de insolvência da Requerida, ora Apelada, ‘J..., Lda.’: afinal, foram alegados factos suficientes para tal, como intenta a Requerente, ora Apelante, ‘F..., Lda.’? É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.

Mas cremos bem, salva melhor opinião, que não assistirá agora razão à Apelante na sua pretensão de ver decretado o estado de insolvência da Apelada – assim não merecendo qualquer censura o douto despacho impugnado que se pronuncia pela insuficiência da alegação de factos bastantes para atingir aquele desiderato e indefere, consequentemente, a petição.
E isso mesmo sem aplicar aqui um grau de exigência de tal ordem que se não coadunasse, depois, com a letra e o espírito da lei e apenas servisse para arranjar entraves ao conhecimento do mérito das acções (note-se que vigoram, entre nós, os princípios pro actione e in dubio pro favoritatae instantiae, em ordem precisamente a que se consiga nos processos uma tutela jurisdicional efectiva).
Dessa maneira, se dá sempre margem, e se aceita mesmo, uma alegação deficiente, mas, ainda assim, suficiente.
Só que, aqui, nem isso ocorreu.

Pois que, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, alínea d), do anterior Código de Processo Civil, “Na petição, com que propõe a acção, deve o autor expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”. E o mesmo se estabelece, agora, no artigo 552.º, n.º 1, alínea d), do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, como já se estabelecia no artigo 23.º, n.º 1, do CIRE (“… faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida …”).

Com efeito, basta ler a petição inicial para que se perceba – e é nisso que o Apelante ora continua a querer fazer valer a sua posição – que ali se encontra uma perfeita acção de dívida, com todos os elementos fácticos e jurídicos para se conseguir a condenação da Requerida no pagamento da dívida de 27.768,64 (mesmo as vicissitudes das negociações, interpelações e entregas ali se acham).
Mas esta não é uma acção de condenação em dívida. Esta é uma acção de declaração do estado de insolvência, e para isso é preciso alegar mais algumas circunstâncias de facto: não é só que deve, mas que, do conjunto de tais factos a indicar, se pode concluir que não paga porque não pode, porque não é capaz (in casu até se podia conjecturar, dada a falta de elementos alegados, que não paga, não porque não tem meios financeiros para o fazer, mas, por exemplo, porque discute ainda a própria dívida). É da ponderação de um conjunto de elementos – que aqui não constam – que se conclui estar o devedor incapacitado de solver as suas dívidas, rectius, em estado de insolvência, que o mesmo é dizer se, afinal, se encontra preenchido algum dos pressupostos da lei para a declaração da sua situação de insolvência, maxime se foram alegados e provados factos suficientes para se chegar a tal conclusão. Esta é, aliás, a questão do recurso e da sentença.

E, assim, nos termos da previsão do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado no Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril –, poderá vir a declarar-se a insolvência de um devedor quando, designadamente, se verifique “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante, ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações” (sua alínea b)), ou se verifique “insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor” (sua alínea e)).

[Vide Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, da ‘Quid Juris’, ano de 2009, na anotação 3 àquele artigo 20.º, a páginas 133: “Trata-se daquilo a que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”.]

Ora, é a própria Requerente a reconhecer que desconhece tudo o que diz respeito à situação da Requerida, cuja insolvência agora intenta: “A requerente desconhece o valor do património da requerida” (artigo 10º da douta petição); e “Embora a requerente não tenha conhecimento de outros credores, consta que a requerida terá outras dívidas que não satisfez nas respectivas datas de vencimento” (seu artigo 14º).
Por outra parte, tendo-se a Requerente estribado expressamente, logo no início da sua douta petição, no artigo 20.º, nº 1, alínea h), do CIRE – “manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas” – esqueceu-se, depois, pura e simplesmente, de alegar algum facto reportado a essa questão.

Pelo que concordamos com o douto despacho recorrido de que não foram alegados factos suficientes pela requerente para preencher aqueles pressupostos da lei, em ordem a uma declaração segura e fundada do estado de insolvência da requerida, não se cumprindo o seu ónus inicial de alegação factual.
[Por exemplo quanto à dita alínea e) – “insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor” –, a Requerente não identifica qualquer execução da qual se possa extrair a verificação dessa alínea, apenas dizendo que realizou um acordo de pagamento com a Requerida e que esta o não pagou (não resulta dos termos desse acordo que tenha sido feito em acção executiva que, aliás, como se disse, não identifica). Mas para se poder lançar mão desse fundamento, deveria tê-lo feito, tanto para enquadrar a alínea, como para possibilitar ao Tribunal, caso o quisesse, poder consultá-lo ou dele extrair quaisquer dados ou elementos que reputasse de interesse para a decisão.]
Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá que manter na ordem jurídica a douta decisão da 1ª instância que indeferiu in limine o pedido de declaração do estado de insolvência da requerida, em consequência do que se tem também de julgar improcedente o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.
Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso, e confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 13 de Março de 2014
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral