Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
45/12.8FBOLH.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: Uma vez proferida acusação por crime e por contra-ordenação, em concurso efectivo, proferido despacho de saneamento que recebeu, nos seus precisos termos o despacho acusatório, e adiante extinto o procedimento criminal, sobrando o procedimento contra-ordenacional nos termos acusados, impende sobre o tribunal o poder-dever de apreciar a responsabilidade contra-ordenacional imputada à arguida.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 45/12.8FBOLH.E1
[1382]

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I

1 – Nos autos de processo comum em referência, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida, BB, imputando-lhe a prática de factos consubstanciadores da autoria material (i) de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 324.º, com referência ao disposto nos artigos 321.º a 323.º, todos do Código da Propriedade Industrial (CPI), e (ii) de uma contra-ordenação, relativa à falta de apresentação ou exibição de documentos ou declarações, p. e p. nos termos do disposto no artigo 117.º n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), com referência ao disposto no artigo 14.º n.º 1, do Regime de Bens em Circulação (RBC), aprovado pelo artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 147/2003, de 11 de Julho.

2 – Foi proferido despacho de saneamento, nos termos e para os efeitos prevenidos no artigo 311.º, do Código de Processo Penal (CPP) – despacho de 29 de Janeiro de 2014 (fls. 185).

3 – Por despacho de 13 de Março de 2017, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido fez continuar os autos ao Ministério Público nos seguintes termos:
«Parece-nos, salvo melhor opinião, que a contra-ordenação aqui em causa se extinguiria nos termos do artigo 61.º, alínea d), do RGIT no caso de a mesma ter sido levantada por autoridade administrativa e, posteriormente ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público, pelos mesmos factos.
Sucede porém que, no caso em concreto, é o próprio Ministério Público que imputa, em sede de acusação pública, tal contra-ordenação, tendo a mesma sido recebida por despacho de fls. 185 que recebeu a acusação pública na sua totalidade.
Assim sendo, voltem os autos ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes.»

4 – Em sequência, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público promoveu «que os autos prossigam para apreciação da prática da contra-ordenação imputada».

5 – Sobre tal promoção, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido decidiu nos seguintes termos:
«A arguida vem acusada da prática de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos previsto e punida pelo artigo 324.º, do Código da Propriedade Industrial.
A ofendida declarou pretender desistir da queixa ora apresentada, a arguida não se opôs e o Ministério Público também não.
Tendo em conta que o crime reveste natureza semi-pública, ao abrigo do disposto nos artigos 113.º n.º 1 e 116.º n.º2, ambos do Código Penal, 51.º n.º2 do C. P. Penal e 329.º, do Código da Propriedade Industrial julgo válida a desistência de queixa apresentada, a qual homologo por sentença e, consequentemente, declaro extinto o procedimento criminal contra a arguida BB.
Sem custas.
[…]
No caso subsiste a prática pela arguida de uma contra-ordenação.
Nos termos do disposto no n.º1, do artigo 38º do Decreto-Lei n.º433/82, de 27 de Outubro quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, o processamento da contra-ordenação, cabe às autoridades competentes para o processo criminal.
Por sua vez, dispõe o n.º4, do mencionado normativo legal que “quando, nos casos previstos nos n.sº1 e 2, o Ministério Público arquivar o processo criminal, mas entender que subsiste a responsabilidade pela contra-ordenação, remeterá o processo à autoridade administrativa competente.
Assim sendo, face à extinção do procedimento criminal e tendo em conta o supra referido, o Tribunal não tem competência para decidir da contra-ordenação de que a arguida vem acusada. Aliás, já a fls.108 se sugeria que, no caso de existir a prática de contra-ordenação o processo deveria ser remetido à autoridade administrativa competente.
Pelo exposto, determina-se a remessa de certidão de fls.2 a 6, 15, 25 a 30, 54 a 60, 62 a 64, 84 a 87, 97 a 108, 128 a 139 e do presente despacho à autoridade administrativa competente nos termos do RGIT (cfr.fls.108) a fim de decidir quanto à contra-ordenação em causa.»

6 – O Ex.mo Magistrado do Ministério Público em 1.ª instância interpôs recurso deste despacho.
Pede que se determine o prosseguimento dos autos para apreciação da contra-ordenação imputada à arguida.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1. Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 38º e 39º do RGCO, a competência da jurisdição penal estende-se também para o conhecimento das contra-ordenações que surjam em concurso real com as infracções criminais.
2. O art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, bem assim, o artº 20.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa ditam, por um lado, a plenitude da jurisdição em matéria penal, de que a suficiência do processo penal, nos termos do art. 7.º do Código de Processo Penal, é uma das suas vertentes e, por outro, a realização de um julgamento num prazo razoável.
3. O art. 38.º do RGCO abrange todas as situações de concurso ideal ou real de ilícitos criminais com as infracções contraordenacionais que estejam conexas com aquelas.
4. O tribunal recorrido tinha plena competência jurisdicional para conhecer do crime e da contra-ordenação, cuja prática é imputada à arguida e que terão sucedido na mesma ocasião.
5. A competência do Tribunal mantém-se para apreciação da matéria contra-ordenacional, pese embora, o procedimento criminal tenha sido declarado extinto, por desistência de queixa.
6. Conforme, aliás, assim se entendeu nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Julho de 1998, Processo nº 9810467, Relator Baião Papão e 19 de Dezembro de 2007, Processo nº 0714350, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
7. O douto despacho de fls. 216/217, no segmento ora colocado em crise, deve ser revogado e, consequentemente, devem os autos prosseguir para apreciação da contra-ordenação, cuja prática é imputada à arguida.»

7 – O recurso foi admitido por despacho de 7 de Julho de 2017.

8 – Nesta instância, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, abonado de pertinente jurisprudência, é de parecer que o recurso merece provimento, salientando, designadamente (i) que o n.º 3 do artigo 38.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) se aplica, tão-apenas, à fase de inquérito, e (ii) que deve levar-se em ponderação o disposto no n.º 1 do artigo 77.º, do RGCO, do passo em que dispõe que o tribunal pode apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime.

9 – O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões que o Dg.º recorrente extrai da respectiva motivação, reporta a saber se o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido incorreu em erro de jure, do passo em que se absteve de decidir sobre a responsabilidade contra-ordenacional da arguida
II

10 – O n.º 1 do artigo 38.º, do RGCO (inserido no capítulo relativo à competência e epigrafado de autoridades competentes em processo criminal) determina (no segmento que ao presente recurso importa) que, quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação, o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal.

11 – Por sua vez, o artigo 39.º, do mesmo RGCO (competência do tribunal), estabelece que, no caso do n.º 1 do artigo 38.º, acima referido, a aplicação da coima e das sanções acessórias cabe ao juiz competente para o julgamento do crime.

12 – Acresce ressaltar o disposto no artigo 77.º, do RGCO (inserido no capítulo atinente ao processo de contra-ordenação e processo criminal e epigrafado de conhecimento da contra-ordenação no processo criminal):
«1. O tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime.
2. Se o tribunal só aceitar a acusação a título de contra-ordenação, o processo passará a obedecer aos preceitos desta lei.»

13 – O n.º 1 do artigo 38.º, do RGCO, por razões de literalidade e de inserção sistemática, só pode reportar-se à fase de inquérito, cuja direcção cabe ao Ministério Público (artigo 263.º n.º 1, do CPP), devendo a competência que regula ter-se como referida a uma fase de processamento da contra-ordenação.

14 – Uma vez proferida acusação por crime e por contra-ordenação, em concurso efectivo, proferido despacho de saneamento que recebeu, nos seus precisos termos o despacho acusatório, e adiante extinto o procedimento criminal, sobrando o procedimento contra-ordenacional nos termos acusados, impende sobre o tribunal o poder-dever de apreciar a responsabilidade contra-ordenacional imputada à arguida.

15 – E assim, seja em vista do teor literal do artigo 39.º, do RGCO, seja em vista da suficiência do processo penal estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º, do CPP, seja, decisivamente, na medida em que a competência do tribunal se fixou com a prolacção do despacho de saneamento proferido nos termos do artigo 311.º, do CPP, mantendo-se para apreciação da contra-ordenação acusada, desde logo nos casos – como o presente – em que o despacho acusatório imputava à arguida a prática, em concurso real, de um crime e de uma contra-ordenação, não se tendo levado censura sobre tal cumulação.

16 – Em abono, para além dos acórdãos citados, seja na motivação recursiva (cfr. acima) seja no parecer do Ministério Público (acórdãos, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23-02-2015, no processo 56/13, e do Tribunal da Relação do Porto, de 9-12-09, de 6-1-2010, de 14-4-2010 e de 9-2-2011, nos processos 531/09, 291/09, 659/09 e 241/10, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt), também Paulo Pinto de Albuquerque, no «Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações», Universidade Católica Editora, Outubro de 2011, pág. 135.

17 – Por que assim, no provimento do recurso, o despacho recorrido não pode deixar de ser revogado e substituído por decisão que faça continuar os autos para apreciação da responsabilidade contra-ordenacional imputada à arguida na acusação pública.

18 – Não cabe tributação, seja em face da procedência do recurso seja em vista do disposto no artigo 522.º, do CPP.
III

19 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, e determinando-se que, em substituição, seja proferida decisão que, nos termos acima editados, aprecie a responsabilidade contra-ordenacional imputada à arguida.

Évora, 8 de Maio de 2018
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)