Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2/12.2TBORQ-B.E
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: IMPEDIMENTO
CIRCUNSTÂNCIAS
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: No plano do direito processual civil e na valência do impedimento, as circunstâncias específicas que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade) são apenas aquelas que se mostram previstas no artigo 115º do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 2/12.2TBORQ-B.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Central de Competência Cível e Criminal de Beja – J1
*
Decisão nos termos dos artigos 652º, nº 1, al. c) e 656º do Código de Processo Civil:
*
I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por (…) contra (…) e “Sociedade Agro (…) – Produção e Comercialização de Produtos Agrícolas, SA”, em que foi chamada “(…) – Unipessoal, Lda.”, o Autor não se conformou com o despacho que julgou indeferido o pedido de impedimento do Juiz de Direito da causa, interpondo o competente recurso.
*
O Autor veio requerer a declaração de impedimento da magistrada judicial titular do processo, ao abrigo do disposto na al. c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil. Em benefício da sua tese, o requerente alegou que a Meritíssima Juíza signatária decidiu contra os seus interesses no âmbito de processo anterior (Proc. 108/08.4TBADV) e, por isso, ao ter um pré-juízo sobre a matéria em discussão, está impedida de julgar a presente causa nos termos da referida disposição legal.
*
Na parte que agora interessa, o despacho agora recorrido tem o seguinte conteúdo: «O artigo 115º, nº 1, alínea c), do CPC prevê que nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente.
É manifesto que a situação alegada não cabe na previsão da norma ora identificada e que tal previsão não tem qualquer aplicação ao caso dos autos.
Com efeito, a signatária presidiu à audiência de julgamento do processo nº 108/08.4TBADV, tendo proferido a correspondente sentença. Ora, tal situação não pode de forma alguma enquadrar-se na previsão da al. c) do nº 1 do artº 115º do CPC já que a prolação de uma sentença num processo judicial não consubstancia certamente a emissão de um parecer e obviamente não determina que o Tribunal se tenha pronunciado numa outra causa, ainda que conexa.
Assim, inexistindo qualquer fundamento para o impedimento da signatária, indefere-se o requerido».
*
Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
«1. O recorrente arguiu o impedimento da Meritíssima Juíza a quo, por ter tomado posição noutra causa sob o mesmo problema central à resolução justa do litígio, isto é, sobre a validade e eficácia do contrato de arrendamento rural da Herdade do (…), feito ao Autor pelos donos, senhorios a que a Ré (…) sucedeu.
2. A Meritíssima Juíza a quo indeferiu: o motivo, disse, não cabe na Tatbestand do corpo artigo 644º, nº 2, alínea a), do CPC que previne o impedimento, por perigo de falta de isenção do julgador.
3. Porém, onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir e o texto do artigo 644º, nº 2, al. a), CPC compreende de todo, o ponto de vista do recorrente
4. Para mais, a continuidade do julgamento demonstrou com perfeição o desequilíbrio do ponto de vista de apreciação da causa assumido e tomado pela Meritíssima Juíza a quo, em proveito dos Réus e prejuízo efectivo do Recorrente.
5. Com efeito, tendo ordenado oficiosamente a eventual junção de nota de trânsito da sentença que proferiu em outra causa, recusou providência solicitada pelo Autor quanto a uma decisão judicial ainda mais antiga que, pelo contrário, aceitou a validade e eficácia do contrato de arrendamento rural sob o fogo dos debates.
6. E assim, contrariou e infringiu a regra processual civil da prevalência da primeira entre duas decisões diferentes da mesma questão controversa.
7. Defeito de lei este que incorporou na sentença que proferiu, depois de ter indeferido, o impedimento dela julgadora requerido pelo Autor.
8. A decisão recorrida infringe pois, o artigo de lei, citado a propósito nestas conclusões, isto é, o artigo 644º, nº 2, al. a) CPC.
9. Deve por isso, ser reformado o despacho que indeferiu o impedimento em ordem a uma substituição da Meritíssima Juíza a quo: e para que ocorra um incontornável julgamento repetido da causa.
Vossas Excelências todavia, com douto suprimento, farão Justiça».
*
Não foram apresentadas contra-alegações. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de motivo válido para o preenchimento do conceito de impedimento de juiz.
*
III – Dos factos apurados:
Os factos com interesse para a justa decisão do recurso são aqueles que se mostram arrolados no relatório da presente decisão.
*
IV – Fundamentação:
Estamos no campo das garantias de imparcialidade em que se visa a criação de condições para que o órgão de jurisdição exerça a sua função com independência, rigor e imparcialidade.
No que respeita ao exercício jurisdicional, é indubitável que, num Estado de Direito, a solução jurídica dos conflitos deverá fazer-se sempre com observância das regras de independência e de imparcialidade consagradas nos artigos 218º e 266º da Constituição da República Portuguesa e essas constelações normativas pressupõem que o desempenho do cargo de juiz esteja rodeado de cautelas legais destinadas tanto a garantir a sua imparcialidade como a assegurar a confiança geral na objectividade das decisões dos Tribunais.
Face ao princípio do Juiz natural, em regra, o julgador só pode ser removido nas condições previstas para os impedimentos taxativamente previstos na lei (artigos 115º a 118º do Código de Processo Civil), quando sobrevierem razões de escusa (artigo 119º do citado diploma) ou existam motivos relevantes de suspeição (artigos 120º a 126º do referido Código).
Está estabilizado o entendimento que «enquanto o impedimento afecta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afectar a sua imparcialidade e a sua independência»[1].
O juiz tem a obrigação de se abster (e as partes podem recusá-lo) se estivermos em presença de determinadas situações que o façam aparecer como parcial. Trata-se de casos nos quais aparece provável que alguma ocorrência pessoal (ligação com as partes ou com o objecto processual) possa ter sobrevindo sobre o dever de imparcialidade. Não é dito que em tal situação o juiz seja, em concreto, parcial; mas aparece “pouco credível” que um magistrado possa manter-se imparcial, porque nem sempre poderia conseguir dominar o próprio instinto ou pulsão inconsciente[2].
*
No caso, na concepção defendida pelo recorrente, estamos perante uma situação de imparcialidade objectiva que se traduz numa intervenção processual, em fase anterior de outro processo, que pode condicionar a independência e imparcialidade do julgador «a quo» no julgamento da acção que agora lhe foi distribuída.
As causas de impedimento originam uma incapacidade absoluta para o exercício da função judicial no processo a que respeitam[3] e elas assentam na premissa de que a existência das mesmas poderá determinar uma «predisposição desfavorável»[4] para a resolução de uma determinada causa, na expressão referida por Alberto dos Reis.
No plano do direito processual civil e na valência do impedimento, as circunstâncias específicas que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade) são apenas aquelas que se mostram previstas no artigo 115º[5] do Código de Processo Civil.
Nesse rol de casos em que certas circunstâncias conduzem ao afastamento do Juiz – e à respectiva substituição – está a hipótese de este ter intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente, tal como decorre da simples leitura da convocada alínea c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil.
Porém, ao contrário daquilo que se poderá passar no domínio do direito processual criminal, na dimensão civil a circunstância de ter decidido numa acção conexa precedente não integra motivo de impedimento provisionado na lei. Com efeito, nos termos em que a questão judicanda é colocada, a esfera de protecção da norma restringe-se a abranger as actuações anteriores do agora julgador na qualidade de advogado, perito ou jurisconsulto.
A jurisprudência consolidada aponta claramente no sentido que a previsão da última parte da alínea c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil não contempla a hipótese de o Juiz já se ter pronunciado sobre questão que haja de decidir, mas apenas a de ter intervindo na causa como particular dando parecer, consulta ou conselho a uma das partes ou pronunciando-se como mandatário ou perito[6] [7]. E este entendimento hermenêutico tem claro respaldo no comentário de José Alberto dos Reis emitido a propósito desta norma[8].
A Meritíssima Juíza de Direito actuou no âmbito da sua competência jurisdicional e no exercício da sua função judicial e a tomada de posição em anterior acção conexa com a presente não contende com as exigências de imparcialidade da administração da justiça nem existem sinais de qualquer comportamento tendencioso da sua parte.
O motivo sério e adequado a gerar a desconfiança do juiz há-de repousar mais do que de numa convicção subjectiva, mais ou menos intimista, num critério objectivo, com subordinação a factos concretos, geradores, analisados pelo cidadão médio, inserto na sociedade, à luz do bom senso e da experiência, daquela situação de parcialidade[9].
A par de não estar preenchido o conceito de impedimento, não se vislumbra qualquer razão minimamente válida para concluir que a Juíza da causa tem algum interesse pessoal na mesma ou que manifesta um preconceito sobre o mérito da acção.
E, assim, em conclusão, inexiste qualquer motivo sério, grave e adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade que justifique a subsunção da situação no impedimento previsto na legislação e, por conseguinte, não sobeja qualquer fundamento válido para proceder à substituição da Meritíssima Juíza de Direito e à anulação do julgamento realizado.
*
V – Sumário:
No plano do direito processual civil e na valência do impedimento, as circunstâncias específicas que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade) são apenas aquelas que se mostram previstas no artigo 115º do Código de Processo Civil.
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
*
Évora, 20/12/2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho

__________________________________________________
[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5/12/2012, in www.dgsi.pt.
[2] Embora se referiram à jurisdição penal têm aqui aplicabilidade as palavras de Paolo Tonini, in Manuale di Procedura Penale, Giuffrè Editore, 9ª edizione, pág. 86.
[3] Rodrigues Bastos, Notas, vol. I, pág. 280.
[4] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, 1960, pág. 395.
[5] Artigo 115.º (Casos de impedimento do juiz):
1 - Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária:
a) Quando seja parte na causa, por si ou como representante de outra pessoa, ou quando nela tenha um interesse que lhe permitisse ser parte principal;
b) Quando seja parte da causa, por si ou como representante de outra pessoa, o seu cônjuge ou algum seu parente ou afim, ou em linha recta ou no 2.º grau da linha colateral, ou quando alguma destas pessoas tenha na causa um interesse que lhe permita figurar nela como parte principal;
c) Quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente;
d) Quando tenha intervindo na causa como mandatário judicial o seu cônjuge ou algum seu parente ou afim na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral;
e) Quando se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz de outro tribunal, quer proferindo a decisão recorrida quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso;
f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por algum seu parente ou afim, em linha recta ou no 2.º grau da linha colateral, ou de decisão que se tenha pronunciado sobre a proferida por algum seu parente ou afim nessas condições;
g) Quando seja parte na causa pessoa que contra ele propôs ação civil para indemnização de danos, ou que contra ele deduziu acusação penal, em consequência de factos praticados no exercício das suas funções ou por causa delas, ou quando seja parte o cônjuge dessa pessoa ou um parente dela ou afim, em linha reta ou no 2.º grau da linha colateral, desde que a ação ou a acusação já tenha sido admitida;
h) Quando haja deposto ou tenha de depor como testemunha;
i) Quando esteja em situação prevista nas alíneas anteriores pessoa que com o juiz viva em economia comum.
2 - O impedimento da alínea d) do número anterior só se verifica quando o mandatário já tenha começado a exercer o mandato na altura em que o juiz foi colocado no respetivo juízo; na hipótese inversa, é o mandatário que está inibido de exercer o patrocínio.
3 - Nos juízos em que haja mais de um juiz ou perante os tribunais superiores não pode ser admitido como mandatário judicial o cônjuge, parente ou afim em linha reta ou no 2.º grau da linha colateral do juiz, bem como a pessoa que com ele viva em economia comum, que, por virtude da distribuição, haja de intervir no julgamento da causa; mas, se essa pessoa já tiver requerido ou alegado no processo na altura da distribuição, é o juiz que fica impedido.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2004, in www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/02/2014, in www.dgsi.pt.
[8] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1960, págs. 396-399.
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2012, in www.dgsi.pt.