Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1026/22.9T8SLV-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
IMPUGNAÇÃO DE DOCUMENTOS
APERFEIÇOAMENTO DA PETIÇÃO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Se na narração da petição de embargos, o embargante afirma que a assinatura constante da livrança exequenda não lhe pertence mas na conclusão da mesma peça refere que “segundo a sua versão pessoal dos factos, não se recorda de em momento algum a ter assinado”, há uma incongruência entre estas duas afirmações que não deveria ter, sem mais, conduzido ao indeferimento liminar mas, sim, a um despacho de aperfeiçoamento, prolatado à luz do nº4 do art.º590º do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. AA, Executado nos autos de execução ordinária instaurados por Cabot Securisation (Europe) Limited, deduziu embargos de executado, com fundamento na nulidade do título executivo – livrança - impugnando a genuinidade do documento, nos termos do art.º444.º, do Código de Processo Civil.

Requereu, também, que o recebimento dos embargos tenha efeito suspensivo, sem prestação de caução, ao abrigo do art.º 733.º, n.º1, al.c), do Código de Processo Civil.

Alegou, para tanto e em suma, a factualidade seguinte:
- O Embargante, confrontando com a existência de documento com a designação Livrança, no valor de €13.826,06 afirma, “segundo a sua versão pessoal, que não foi subscrita por si;
-Não recebeu qualquer valor titulado dessa livrança;
-Não reconhece essa assinatura como sua, impugnação da assinatura do documento particular;
-Não se responsabiliza pelo valor, alegadamente, suportado no título executivo, incluindo juros vencidos e vincendos;
Refere estarmos perante um caso em que “o Executado alega a falsidade da sua assinatura, que, em caso de comprovação pericial, gera a nulidade do documento”.

2. Foi proferido despacho indeferindo liminarmente os embargos de executado, com fundamento na sua “manifesta improcedência”.

3. É desta decisão que o embargante recorre, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

1º- O ora Executado – Embargante -confrontando com a existência de um (Documento) com a designação Livrança: - No valor de € 13.826, 06

2º-Alega, segundo a sua versão pessoal, que não foi subscrita por si.

3º- Não recebeu qualquer valor titulado dessa livrança

4º- Não reconhece essa assinatura como sua , impugnação da assinatura do documento particular.

5º- Não se responsabiliza pelo valor, alegadamente, suportada, no título executivo

6º - Incluindo juros vencidos e vincendos

7º- Estamos perante um caso que o Executado alega a falsidade da sua assinatura, em caso de comprovação pericial, gera a nulidade do documento.

8º- Para além do crime de falsificação de documentos Artigo 256.º Falsificação ou contrafação de documento.

B)- Impugnando o Executado- Embargante AA a genuinidade do título executivo, uma vez segundo a sua versão pessoal dos factos, não se recorda de em momento algum o ter assinado.

C)- Segundo a sua versão pessoal dos factos, acresceu dizendo que «não se recorda de em momento algum o ter assinado», é uma mera força de expressão, que habitualmente se diz, meramente conclusiva e que não inquina ou é incompatível com os factos alegados.

D) A realidade factual concretamente alegada foi que a assinatura não foi elaborada por si.

E)) Uma expressão conclusiva, não encerra em si uma dúvida sobre se elaborou a assinatura,

F) Esta afirmação não contém a possibilidade de ter assinado, e não abre uma hipótese para que a elaboração da assinatura tenha sido levada a cabo pelo Executado, é um erro interpretativo, fora do contexto-

G) Não é contraditória com a descrição da causa de pedir.

H))Com todo o respeito o Embargante, Executado, não declara em momento algum em concreto que não sabe se aquele determinado facto é real .

I) A expressão que não se recorda de ter assinado a livrança, não constitui em si matéria de facto contraditória – com os factos concretos alegados -

J) O Tribunal recorrido faz uma interpretação subjetiva e errónea de uma expressão, meramente conclusiva

K)O tribunal recorrido violou na sua interpretação a aplicação ao caso concreto o art.º574.º, n.º1, do Código de Processo Civil e: deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem causa de pedir invocada pelo autor e foi bem definida na matéria facto alegada e não numa mera frase de natureza conclusiva e de força de expressão.

L)O Tribunal recorrido violou a aplicação e interpretação do princípio dispositivo que impõe que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, que têm o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções, invocadas – art.º5.º, n.º1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo dos factos atendíveis ao abrigo da previsão do n.º2- » Os factos concretos foram, alegados pelo Embargante –

Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V.Ex.ª que julguem o presente recurso procedente e por provado em conformidade com as suas conclusões, ordenando a revogação da Douta sentença recorrida.

Em face do exposto deve ser revogada a douta sentença que determinou a improcedência dos presentes embargos de executado, o que, nos termos do art.º732.º, n.º1, al.c), do Código de Processo Civil, que constitui causa de indeferimento liminar, e assim deve ordenar a admissão dos embargos liminarmente, seguindo-se os ulteriores termos até final.”.

4. Não houve contra-alegações.

5. Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – a única questão cuja apreciação as mesmas convocam – consiste em saber se havia fundamento para indeferir liminarmente os embargos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

6. É o seguinte o teor da decisão recorrida:

“ (…) Apreciando, em sede liminar.

O título dado à execução trata-se de uma livrança, nomeadamente na qual o Executado e ora Embargante intervém na qualidade de subscritor.

Os fundamentos da oposição à execução são os permitidos no âmbito da previsão do art.º731.º, do Código de Processo Civil.

O princípio dispositivo impõe que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, que têm o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções, invocadas – art.º5.º, n.º1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo dos factos atendíveis ao abrigo da previsão do n.º2.

No caso, não consegue apurar-se, à partida e com a necessária solidez, o fundamento essencial pelo qual a parte embarga de executado.

As afirmações de que a livrança não foi subscrita por si, nem reconhece a assinatura como sendo de sua autoria, integram a manifestação da negação da elaboração da assinatura.

Contudo, e concomitantemente com estas afirmações, consigna que não se recorda de, em momento algum, ter assinado o título executivo, que é a livrança.

Sendo neste quadro factual que o Embargante assenta a procedência da sua pretensão, por via da demonstração da nulidade do título executivo, desde logo se apresenta como contraditória a descrição da causa de pedir.

É que uma realidade factual é saber que a assinatura não foi elaborada por si. Outra realidade factual, diversa e incompatível, é a dúvida sobre se elaborou a assinatura, pois esta afirmação tanto contém a possibilidade de não ter assinado, como já abre uma hipótese para que a elaboração da assinatura tenha sido levada a cabo pelo Executado.

Ou seja, o Executado, aparentando, primeiramente, comprometer-se com a afirmação de que a elaboração da assinatura não foi feita por si, alega depois haver, afinal, a possibilidade de o ter sido, pois, se não se recorda, tanto pode acontecer que não tenha, efectivamente, subscrito a livrança, como que o tenha feito.

Este é, portanto, um facto cuja invocação tem de estar - porque ele é essencial à causa de pedir -, perfeitamente definida à partida, e não está.

No limite, e se avançássemos, quanto a esta declaração equívoca, para o plano probatório, o art.º574.º, n.º1, do Código de Processo Civil, aplicável no âmbito dos embargos de executado, estabelece que, ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem causa de pedir invocada pelo autor.

Atentando na disciplina do n.º3, deste mesmo art.º574.º, o resultado também deixa antecipar a improcedência. É que o Embargante, Executado, ao declarar que não sabe se aquele determinado facto é real – que é o que faz ao afirmar que não se recorda de ter assinado a livrança, o que não é o mesmo do que afirmar que sabe que não o fez -, a declaração equivale a confissão, por tratar-se de facto pessoal e de que o réu deveria ter conhecimento.

Por conseguinte, por um lado, o Executado afirma que não sabe se é aquela (assinatura da livrança) a realidade dos factos, mas simultaneamente impugna a assinatura, o que são realidades incompatíveis entre si e viciam, de forma insanável, a descrição da causa de pedir; por outro lado, e ainda que não impugnasse, não poderia valer-se da dúvida sobre um facto pessoal e de que deveria ter conhecimento para fundar a sua pretensão.

Estas situações, porque não configuram a exigida posição definida, não podem coexistir na alegação como causa de pedir da defesa, sob pena de colocar o tribunal em situação de ter de decidir não sobre mérito da causa, mas sobre que realidade objectiva a parte quis, afinal, alegar.

E, para mais, no caso concreto, qualquer uma das pretendidas fundamentações conduziria à improcedência da oposição.

É por todo o exposto que se conclui pela manifesta improcedência dos presentes embargos de executado, o que, nos termos do art.º732.º, n.º1, al.c), do Código de Processo Civil, constitui causa de indeferimento liminar.”.

7. Do mérito do recurso

Como se extrai do relato antecedente, foi dada à execução uma livrança subscrita pelo ora embargante.

Ora, dispõe o art.º 78º da LULL que: “O subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra “, o que significa, por força do estatuído no artº 28º da LULL que se obriga a pagá-la na data do vencimento.

O embargante pôs inicialmente em crise tal obrigação na narração do articulado alegando ipsis verbis o seguinte:
“3º- O ora Executado – Embargante -confrontando com a existência de um (Documento) com a designação Livrança: - No valor de € 13.826, 06
4º-Alega, segundo a sua versão pessoal, que não foi subscrita por si.
5º- Não recebeu qualquer valor titulado dessa livrança
6º- Não reconhece essa assinatura como sua , impugnação da assinatura do documento particular.
7º- Não se responsabiliza pelo valor, alegadamente, suportada, no título executivo
8º - Incluindo juros vencidos e vincendos
9º- Estamos perante um caso que o Executado alega a falsidade da sua assinatura, em caso de comprovação pericial, gera a nulidade do documento.
10º- Para além do crime de falsificação de documentos Artigo 256.º Falsificação ou contrafação de documento.”,

Assim, em face da impugnação da assinatura que lhe foi imputada na qualidade de subscritor da livrança, competirá ao embargado que a deu à execução provar que a assinatura dela constante era verdadeira, ou seja, que havia sido feita pelo punho do embargante ( artº374º, nº2 do Cód.Civil).

Efectivamente, ao contrário do que sucede com os documentos autênticos, os documentos particulares não provam por si só a genuidade da sua (aparente) proveniência.

A letra e assinatura , ou a assinatura, só se consideram, neste caso, como verdadeiras se forem expressa ou tacitamente reconhecidas pela parte contra quem o documento é exibido , ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas (art.º 374º, nº1 do Cód. Civil).
Por conseguinte, neste último caso, de impugnação por simples desconhecimento, a autenticidade do documento considera-se também admitida visto ele ser apresentado como um facto pessoal da parte contrária.

Sucede que na conclusão da sua petição de embargos, o executado refere o seguinte: Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V.Exª que receba os presentes embargos, ao abrigo do disposto no Artº 732,nº 2 do Cod. Processo Civil; e o incidente a ser autuado nos próprios autos , previsto no Artigo 444.º (art.º 544.º CPC 1961) Impugnação da genuinidade de documento , devendo ser julgado procedente e por provado:
- Impugnando o Executado- Embargante AA a genuinidade do título executivo, uma vez segundo a sua versão pessoal dos factos, não se recorda de em momento algum o ter assinado. (…)” ( realce nosso).


Há de facto uma notória incongruência entre o afirmado na narração e o dito na conclusão da petição de embargos. Com as consequências que foram assinaladas.

Porém, a questão que se coloca é se tal incongruência deveria ter, sem mais, conduzido ao indeferimento liminar ou, antes, a um despacho de aperfeiçoamento, prolatado à luz do nº4 do art.º590º do CPC, do qual decorre que o juiz deverá “convidar ao aperfeiçoamento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.

É precisamente em casos de incongruência expositiva que um convite desse jaez também se justifica como manifestação do dever de cooperação expresso no art.º 7º, nº1 do CPC que impõe ao juiz que diligencie, com brevidade e eficácia, pela justa composição do litígio.

Mas tal despacho permitirá, também, retirar qualquer equivocidade à conduta do embargante, responsabilizando-o, sendo caso disso, por uma determinada afirmação atinente a um facto pessoal que, vindo a revelar-se falsa, terá as suas inevitáveis consequências processuais, designadamente no âmbito do instituto da litigância de má-fé.

Em suma: o despacho recorrido não se pode manter, devendo ser substituído por outro que convide o executado/embargante a suprir a incongruência assinalada, apresentando novo articulado no qual a mesma se encontre sanada.


III.DECISÃO

Por todo o exposto, julgando procedente a apelação revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro, de aperfeiçoamento, nos termos assinalados.

Custas pela parte vencida a final.

Évora, 2 de Março de 2023
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente