Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
341/21.3GDPTM.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
AMEAÇA
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Analisada a factualidade dada como provada, na sua globalidade complexiva, verifica-se que o arguido, de modo repetido, praticou diversos atos sobre a pessoa da assistente, que vão das injúrias à violência física, atos que, em nosso entender, constituem atitudes de degradação, humilhação e secundarização da vítima, afetando-a, de modo significativo e relevante, não só no seu bem-estar (físico e psíquico), como também na sua dignidade humana.
A reiteração e a gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido permitem-nos, sem dúvidas ou hesitações, considerar a existência, in casu, de um grau de ilicitude que não se compadece com a eventual condenação do arguido por outros crimes (parcelares) que não o de violência doméstica (por exemplo, pelo crime de injúria ou pelo crime de ofensa à integridade física qualificada).

Dos factos provados resulta, pois, demonstrado um estado de agressão (física e verbal) muito persistente e intenso, que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio do arguido sobre a vítima, com vista a diminuir a sua dignidade como pessoa.

Em resumo: considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos estar preenchido o tipo legal de crime de violência doméstica, porquanto as condutas levadas a cabo pelo arguido contra a assistente constituem um atentado à dignidade pessoal da mesma.

Como bem se escreve no Ac. deste T.R.E. de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), “a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Ora, neste caso, repete-se, as condutas do arguido, pela sua gravidade e reiteração, constituem um atentado, relevante, à dignidade pessoal da assistente.

Quanto ao critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação (ou a prejudicar a liberdade de determinação), e como bem esclarece Taipa de Carvalho (ob. e local citados), tal critério é “objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do gente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “subcapacidades” do ameaçado). Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser considerada adequada (não adequação, segundo um critério exclusivamente objetivo), mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas (....). Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça (....), nem exige a ocorrência do resultado/dano (....), e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é a de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)”.

Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo, que pode assumir as modalidades de direto, necessário ou eventual (artigo 14º do Código Penal), bastando o carácter genérico do mesmo, traduzido na consciência (representação e conformação) por parte do agente da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, sendo “irrelevante que o agente tenha, ou não, intenção de concretizar a ameaça” (Taipa de Carvalho, ob. citada, pág. 351).

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 341/21.3GDPTM, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), e mediante pertinente sentença, foi decidido absolver o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica e de um crime de ameaça agravada, decidindo-se, porém, condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada (na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, acompanhada de regime de prova, que deverá incidir na problemática de ingestão de bebidas alcoólicas).

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, formulando na respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“1 - Vem o presente recurso interposto da douta sentença, a qual em suma, absolveu o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do Código Penal e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, e 155, nº 1, b), do CP, condenando-o, porém, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, b), do Código Penal, na pena de cinco meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, acompanhado de regime de prova, que deverá incidir na problemática de ingestão de bebidas alcoólicas.

2 - Face à absolvição do arguido, o Tribunal a quo efetuou uma errada qualificação dos mesmos, pois estamos perante a autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código Penal, estando descritos os elementos subjetivos deste tipo, bem como um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, e 155º, nº 1, b), do CP.

3 - O que resulta da factualidade apurada é que, em duas situações, o arguido teve vários comportamentos atentatórios da dignidade da ofendida, ocorridos em datas diversas;

4 - Quando a assistente estava grávida de7 meses, na sequência de uma discussão motivada pelos consumos alcoólicos do arguido, o mesmo desferiu chapadas na cara da assistente, causando um hematoma junto ao olho; apertou-lhe o pescoço, junto à nuca; e desferiu-lhe pontapés nas nádegas.

5 -Também durante a gravidez, quando se encontrava sob o efeito do álcool, o arguido disse à assistente: “Tu não vales nada, és uma porcaria, és uma cabra, és uma puta”.

6 - No dia 21 de maio de 2021, pela hora do almoço, o arguido empurrou a assistente, jogando-a ao chão, e, momentos depois, no âmbito da discussão, o arguido voltou a empurrá-la, batendo a mesma com a cabeça na porta, causando-lhe dores ligeiras.

7 - Ao contrário da Mmª Juiz, entendemos que este “pedaço de vida” que nos é apresentado reveste uma clara situação de violência doméstica, pois que relata uma situação de humilhação e grave afetação da assistente no seio da relação conjugal, ainda mais quando uma parte das agressões é infligida quando a mesma estava grávida de 7 meses. E realce-se que não foram agressões leves, pois que a assistente ficou com um hematoma no olho e dores nos locais atingidos.

8 - Saliente-se a humilhação de sofrer agressões, físicas e verbais, durante a gravidez já avançada de 7 meses, onde a barriga já era proeminente, o que colocou em causa o bem-estar, autoestima e dignidade de qualquer pessoa que partilhe com outra a sua vida, bem como a do feto.

9 - Desta forma, entendemos que os factos dados como provados deverão levar a conclusão diversa da decidida pela Mmª Juiz, considerando-se que o arguido, com as suas condutas, preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo de violência doméstica previsto no art.º 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), 4 e 6 do Código Penal.

10 - Devendo a douta sentença ser alterada, condenando-se o arguido pelo crime de violência doméstica, e em pena que reflita este novo enquadramento penal e esta diferente perspetiva dos factos, a qual deverá ser fixada em período nunca inferior a 2 anos.

11 - Alega a Mmª Juiz que, a acusação é omissa na descrição dos elementos subjetivos correspondentes ao crime de violência doméstica.

12 - Ora, mais uma vez discordamos da Mmª Juiz, pois que entendemos que a Acusação descreve os elementos subjetivos do tipo de crime de violência doméstica.

13 - Ao analisarmos o preceito legal em causa, o artigo 152º, nº 1, b), e nº 2, do C.P., facilmente concluímos que estão descritos na acusação todos os elementos subjetivos do ilícito em causa.

14 - Se assim fosse, sempre teria a Mmª Juíza, ao analisar a Acusação, rejeitado a mesma, o que não fez, antes admitindo-a nos seus precisos termos.

15 - Por último refira-se que, caso a Mmª Juiz entendesse que não estava descrito o elemento subjetivo, sempre deveria remeter os autos ao MP, dando a possibilidade de apresentar nova acusação, em que suprisse a deficiência apresentada - Veja-se Acs. TRE de 10.04.2018 (P. 1559/16.6GBABF.E1), de 23.06.20 e de 12.01.2021.

16 - A Mmª Juiz absolveu, igualmente, o arguido da prática do crime de ameaça agravada contra a filha.

17 - Da simples leitura da matéria de facto provada impõe-se concluir que o arguido agiu com dolo. Na verdade, está provado que o mesmo conhecia a ilicitude da sua conduta, tal como está provado que o mesmo quis praticar os factos descritos na pessoa da filha. O arguido quis ameaçar a filha, com a prática de um mal futuro, de um crime de homicídio.

18 - O argumento da Mmª Juiz, que apenas pretendia, através da ameaça, corrigir o comportamento da filha, não pode colher. Estamos a falar da ameaça com a prática de um crime de homicídio e não de ameaça com umas meras palmadas no rabo.

19 - O que o arguido disse, ameaçando a própria filha de morte, só transmite modelos desadequados, desumanos e degradantes.

20 - Tudo isto ainda é mais grave, quando a violência é exercida sobre uma criança. Não só pelo sofrimento que lhe inflige e que prejudica o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, mas também pela mensagem e modelo educacional que lhe transmite.

21 - Desta forma, entendemos que os factos dados como provados deverão levar a conclusão diversa da decidida pela Mmª Juiz, considerando-se que o arguido, com a suas condutas, preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ameaça agravada previsto no artigos 153º, nº 1, e 155º , nº 1, b), do Código Penal, dando-se como provado o facto que a Mmª Juiz deu como não provado (facto 5).

22 - Devendo a douta sentença ser alterada, condenando-se o arguido pelo crime de ameaça agravada, e dando-se como provado o facto 5 dos factos não provados e em pena que reflita este novo enquadramento penal e esta diferente perspetiva dos factos.

Termos em que se entende, salvo melhor e douta apreciação, que a douta sentença deverá ser revogada e substituída por outra que condene o arguido nos termos supra pugnados”.

*

Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo no sentido da procedência parcial do recurso: o recurso deve proceder quanto à pretendida condenação pela prática do crime de violência doméstica, e deve improceder relativamente à pretendida condenação pelo cometimento do crime de ameaça.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do C. P. Penal, o arguido respondeu, entendendo que deve ser mantida a sentença recorrida, improcedendo totalmente o recurso interposto pelo Ministério Público.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Atendendo às conclusões extraídas da motivação do recurso, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem (nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal), são três, em breve síntese, as questões suscitadas:

1ª - Saber se, perante os factos dados como provados na sentença revidenda sob os nºs 1 a 16, o arguido incorreu (ou não) na prática de um crime de violência doméstica (a Exmª Juíza entendeu que não, e a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente entende que sim).

2ª - Saber se a acusação é (ou não) omissa quanto à descrição dos elementos subjetivos do tipo legal de crime de violência doméstica.

3ª - Determinar se o arguido, quando disse à filha (de … anos de idade) que a “mataria” se voltasse “a roubar”, cometeu (ou não) um crime de ameaça agravado (e, em relação a isso, saber se deve dar-se como provado o facto tido como não provado na sentença revidenda sob o nº 5).

2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados -):

“Factos provados:

1. O arguido e a assistente, BB, iniciaram uma relação de namoro, em 2010.

2. Em 2013, o casal decidiu ter um filho, tendo a assistente engravidado.

3. Numa ocasião, em data concretamente não apurada, quando a assistente estava grávida de 7 meses, estando ambos em casa do arguido, na sequência de uma discussão motivada pelos consumos alcoólicos do arguido, o mesmo desferiu chapadas na cara da assistente, causando um hematoma junto ao olho; apertou-lhe o pescoço, junto à nuca; e desferiu-lhe pontapés nas nádegas.

4. Também durante a gravidez, em mais do que uma ocasião, quando se encontrava sob o efeito do álcool, o arguido disse à assistente: “Tu não vales nada, és uma porcaria, és uma cabra, és uma puta”.

5. A filha do casal, CC, nasceu em … de 2014.

6. Após o nascimento da CC, a assistente foi morar para a casa do arguido, sita na Rua …, em …, passando ambos a viver como se fossem casados.

7. Em 2017, o casal separou-se, tendo a assistente saído de casa.

8. Após 10 meses de separação, o casal reatou a relação, embora cada um continuasse a viver em sua casa, o que sucedeu até 2019, altura em que a assistente voltou a viver com o arguido, em casa deste.

9. Desde 2017, quando o casal discutia, o arguido e a assistente insultavam-se mutuamente.

10. No dia 21 de maio de 2021, pela hora do almoço, a assistente ligou ao arguido, para lhe contar que a CC tinha tirado uns carimbos à professora, na escola.

11. Ao chegar a casa, pelas 18h30m, o arguido, furioso, disse à filha que se voltasse a roubar que a matava.

12. A assistente interveio, dizendo-lhe que não eram modos de falar com uma criança, altura em que o arguido a empurrou, jogando-a ao chão, enquanto dizia à filha para roubar, já que a mãe achava que era certo.

13. Tendo a assistente continuado a dizer-lhe para não falar assim, o arguido voltou a empurrá-la, batendo a mesma com a cabeça na porta, causando-lhe dores ligeiras.

14. O arguido, nas ocasiões em que atingiu o corpo da assistente, agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

15. O arguido trabalha como …, auferindo cerca de 800 euros mensais; vive em casa própria; paga cerca de 200 euros mensais para empréstimos bancários; tem uma filha (a CC), para cujo sustento contribui com 150 euros mensais; tem o 11º ano de escolaridade.

16. O arguido já foi condenado, por sentença proferida em 24-04-2018, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 50 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses (por factos praticados em 06-04-2018), penas, essas, extintas pelo cumprimento.

Factos não provados:

1. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre novembro de 2020 e 25 de maio de 2021, o arguido AA ao chegar a sua casa dirigiu-se a BB dizendo “caralho, foda-se, não vales nada”.

2. No dia 21 de maio de 2021, o arguido, ao empurrar a assistente contra a porta da cozinha, fê-lo com força, e ainda atirou a mesma contra a cama e, de seguida, contra o chão, tendo envolvido as suas mãos no pescoço desta, apertando-o com força.

3. Desde o dia 22 de maio de 2021 até 09 de junho de 2021, o arguido enviou, todos os dias, mensagens de texto ou de voz para a assistente, dizendo que iria buscar a filha e ficar com a mesma independentemente da decisão do tribunal.

4. O arguido, ao enviar mensagens de texto e de voz, previu e quis amedrontar a assistente, com o intuito concretizado de a fazer recear pela sua vida e perturbá-la no seu sentimento de segurança e na sua liberdade de movimentação e atuação, bem sabendo que essa conduta era apta a produzir esse efeito, o que não o impediu de agir do modo descrito.

5. o arguido, ao proferir a expressão supra (se voltasse a roubar que a matava), dirigida à sua filha, nas circunstâncias em que o fez, e no tom sério e credível em que a proferiu, anunciando prática de um crime de homicídio, sabia que a sua conduta era adequada a fazer a menor sentir receio pela sua vida e a perturbá-la, o que quis, representou e conseguiu”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Do crime de violência doméstica.

Alega a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente, em breve resumo, que a factualidade tida como provada na sentença revidenda sob o nºs 1 a 16 configura a prática de um crime de violência doméstica perpetrado pelo arguido sobre a pessoa da assistente.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “violência doméstica”, dispõe o artigo 152º, nºs 1 a 3, do Código Penal:

“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”.

Quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação, e como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.

Mais esclarece o mesmo ilustre Professor (ob. e local citados), que a ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.

No dizer de Plácido Conde Fernandes (in “Violência Doméstica - Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305), “o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”.

A nosso ver, preenche este tipo legal de crime a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima (no caso, o cônjuge ou aquele que vive em condições análogas às dos cônjuges), diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.

O crime pode, pois, realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afete a sua dignidade pessoal.

Porém, é exigível, sempre, que os atos praticados (plúrimos ou isolados, reiterados ou não), apreciados à luz da vida em comum, possam, de modo relevante, colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade.

À luz do exposto, e conforme bem salienta Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

Ora, em conformidade com o que vem de dizer-se, os factos dados como provados nestes autos são suficientes para o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica.

Com efeito, analisada a factualidade dada como provada, na sua globalidade complexiva, verifica-se que o arguido, de modo repetido, praticou diversos atos sobre a pessoa da assistente, que vão das injúrias à violência física, atos que, em nosso entender, constituem atitudes de degradação, humilhação e secundarização da vítima, afetando-a, de modo significativo e relevante, não só no seu bem-estar (físico e psíquico), como também na sua dignidade humana.

Na verdade, e em breve síntese:

- Quando a assistente estava grávida de 7 meses, estando ambos em casa do arguido, na sequência de uma discussão motivada pelos consumos alcoólicos do arguido, o mesmo desferiu chapadas na cara da assistente, causando um hematoma junto ao olho; apertou-lhe o pescoço, junto à nuca; e desferiu-lhe pontapés nas nádegas.

- Também durante a gravidez, em mais do que uma ocasião, quando se encontrava sob o efeito do álcool, o arguido disse à assistente: “tu não vales nada, és uma porcaria, és uma cabra, és uma puta”.

- No dia 21 de maio de 2021, pela hora do almoço, o arguido empurrou a assistente, jogando-a ao chão, enquanto dizia à filha para roubar, já que a mãe achava que era certo.

- Tendo a assistente continuado a dizer-lhe para não falar assim, o arguido voltou a empurrá-la, batendo a mesma com a cabeça na porta, causando-lhe dores ligeiras.

Ou seja, e em resumo, o arguido, mais de uma vez, injuriou a assistente, nomeadamente chamando-a de “puta” e de “cabra”, e, durante a gravidez da filha de ambos, desferiu chapadas na cara da assistente (causando-lhe um hematoma junto ao olho), apertou-lhe o pescoço e desferiu-lhe pontapés nas nádegas; numa outra ocasião, já após o nascimento da filha, o arguido empurrou a assistente, por duas vezes, na última das quais a assistente bateu com a cabeça numa porta (o que lhe causou dores).

Com o devido respeito por diferente opinião, a reiteração e a gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido permitem-nos, sem dúvidas ou hesitações, considerar a existência, in casu, de um grau de ilicitude que não se compadece com a eventual condenação do arguido por outros crimes (parcelares) que não o de violência doméstica (por exemplo, pelo crime de injúria ou pelo crime de ofensa à integridade física qualificada).

Dos factos provados resulta, pois, demonstrado um estado de agressão (física e verbal) muito persistente e intenso, que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio do arguido sobre a vítima, com vista a diminuir a sua dignidade como pessoa.

Em resumo: considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos estar preenchido o tipo legal de crime de violência doméstica, porquanto as condutas levadas a cabo pelo arguido contra a assistente constituem um atentado à dignidade pessoal da mesma.

Como bem se escreve no Ac. deste T.R.E. de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), “a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Ora, neste caso, repete-se, as condutas do arguido, pela sua gravidade e reiteração, constituem um atentado, relevante, à dignidade pessoal da assistente.

Como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto (no seu “parecer”), “o arguido agiu no habitat doméstico, onde a confiança e o respeito devem imperar mutuamente entre os cônjuges e entre pais e filhos. A vítima-cônjuge encontrava-se em situação de vulnerabilidade por via da gravidez, o que não impediu o arguido de a agredir intensamente em várias partes do corpo, manifestando desprezo pela situação da esposa-companheira, grávida, além dos insultos que lhe dirigiu, que não podem deixar de ser tidos por humilhantes, quando deveria ser suposto o afeto conjugal e a confiança, a igualdade e o respeito pela integridade física e moral do cônjuge. Todo o comportamento do arguido foi mais do que a mera ofensa à integridade física do cônjuge, pois não foge à valoração global de uma conduta indigna, arbitrária, abusiva, prepotente, despótica, caprichosa e injusta para com a vítima, que atinge foros de alguma malvadez ou egoísmo, até crueldade, como originalmente o Código Penal adjetivava este tipo de crime. A indiferença emocional perante o sofrimento, dor ou humilhação causado à vítima não podem deixar de ser considerados global e especialmente desvaliosos, na ação e no resultado, pelo que não se compreende que a decisão recorrida tenha qualificado a conduta imputada e dada por provada como integradora do crime de ofensa à integridade física qualificada e, de caminho, tenha ficado indiferente à valoração global dos factos no sentido e com as consequências aqui defendidos”.

Em conclusão: os factos dados como provados na sentença revidenda preenchem, pois, todos os elementos (objetivos e subjetivos) do crime de violência doméstica de que o arguido vinha acusado (crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal).

*

Impõe-se proceder à determinação da medida concreta da pena (perante a agora operada condenação do arguido pelo crime de violência doméstica - crime cuja moldura penal abstrata é de 2 a 5 anos de prisão -).

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).

Por outro lado, o artigo 71º do mesmo Código Penal estipula que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como escreve Claus Roxin, em passagens perfeitamente consonantes com os princípios basilares do nosso direito penal (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, Tradução da 2ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada. (…) A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade”.

Mais acrescenta o mesmo autor (ob. citada, pág. 101): “certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.

Por fim, salienta ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103) que “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.

Passemos, visto o caso em apreço nestes autos, à concretização destes enunciados, sendo certo que, para o efeito, o tribunal deverá atender “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (artigo 71º, nº 2, do Código Penal).

Assim, tem de ponderar-se:

- O grau de culpa (o arguido atuou com dolo direto e intenso).

- O grau de ilicitude com que o arguido agiu (ponderando o modo de atuação do arguido, o desvalor da sua ação e os resultados da sua conduta, a ilicitude é mediana).

- O facto de o arguido estar inserido, do ponto de vista social e laboral, e não possuir antecedentes criminais por crime de violência doméstica (o arguido possui uma condenação anterior, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, datada de 2018, em pena de multa).

Sopesados todos esses elementos, na sua globalidade complexiva, entendemos adequado aplicar ao arguido a pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova (nos precisos termos decididos, a esse propósito, na sentença sub judice - decisão essa, aliás, não questionada, minimamente, no presente recurso -).

Face ao que vem de dizer-se, e nesta primeira vertente, o recurso do Ministério Público é de proceder.

b) Da descrição (na acusação) dos elementos subjetivos do crime de violência doméstica.

Na sentença recorrida a Exmª Juíza entendeu, além do mais, que a acusação era omissa relativamente à descrição dos elementos subjetivos do tipo de crime de violência doméstica, entendimento esse do qual a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente discorda.

Cabe decidir.

Lida a acusação formulada no presente processo, e com o devido respeito por diferente opinião, entendemos que a mesma contém factos que consubstanciam, com suficiência, os elementos subjetivos do tipo legal de crime de violência doméstica.

Com efeito, escreve-se na referida “acusação” (quanto aos elementos subjetivos do crime em causa), e indo ao essencial, que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e que, ao agir da forma descrita, previu e quis o resultado conseguido, sabendo que a sua conduta era apta a produzir esse resultado, o que não o impediu de agir.

A nosso ver, analisando o preceito incriminador (preceito acima transcrito - artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal -), é de concluir que estão descritos na acusação os elementos subjetivos do crime em causa (tendo sido cumprido o disposto no artigo 283º, nº 3, al. b), do C. P. Penal: “a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada”), sendo ainda certo que foram sempre assegurados e respeitados, no presente processo, quer o princípio do acusatório, quer o princípio do contraditório (com todas as garantias de defesa do arguido).

Por conseguinte, também neste ponto o recurso é de proceder, nada obstando a que o arguido seja condenado pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado (condenação essa já acima ponderada e decidida).

c) Do crime de ameaça agravada.

Alega a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente que, perante os factos dados como provados na sentença recorrida, e operando-se a alteração fáctica relativamente ao facto tido como não provado sob o nº 5 (que deve dar-se por provado), o arguido deve ser condenado pela prática do crime de ameaça agravada de que vinha acusado (crime de que foi vítima a filha menor do arguido).

Há que decidir.

Lida (e relida) a motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, verifica-se que, em bom rigor, não foi interposto recurso em matéria de facto, não tendo sido, minimamente, cumpridos os dispositivos legais contidos no artigo 412º, nº 3, al. b), e nº 4, do C. P. Penal.

Perante essa falta de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, este Tribunal ad quem dá, pois, por assentes os factos considerados como provados e como não provados em primeira instância.

Mais: a questão suscitada nesta sede, e a nosso ver, está relacionada com a qualificação jurídica dos factos e não com os factos propriamente ditos.

Com efeito, a expressão dirigida pelo arguido à sua filha menor foi dada como provada (o arguido disse à filha que “se voltasse a roubar que a matava”), e, bem assim, os motivos e as circunstâncias do proferimento de tal expressão foram devidamente dados como assentes (cfr. factos provados na sentença em análise sob os nºs 10 e 11: “no dia 21 de maio de 2021, pela hora do almoço, a assistente ligou ao arguido, para lhe contar que a CC tinha tirado uns carimbos à professora, na escola. Ao chegar a casa, pelas 18h30m, o arguido, furioso, disse à filha que se voltasse a roubar que a matava”).

Resta saber, mas é coisa diferente, se essa expressão do arguido, atenta a idade da filha (7 anos de idade), era (ou não) adequada a fazer a menor sentir receio pela sua vida e a perturbá-la.

Comete um crime de ameaça, conforme disposto no artigo 153º, nº 1, do Código Penal, “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.

O bem jurídico protegido pelo tipo de crime em causa é a liberdade de decisão e de ação.

Como bem escreve Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 342), “as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade”.

Como claramente flui da redação da citada norma, são dois os elementos do tipo objetivo do crime de ameaças:

- O anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

- Que esse anúncio seja adequado a provocar, na pessoa a quem se dirige, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

É necessário, repete-se, que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação da pessoa visada (ou a prejudicar a sua liberdade de determinação).

Como escreve Taipa de Carvalho (ob. citada, pág. 348), “é necessário que a ameaça seja adequada a provocar-lhe (no ameaçado, isto é, no sujeito passivo do crime de ameaça) medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Exige-se apenas que a ameaça seja suscetível de afetar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação”.

Quanto ao critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação (ou a prejudicar a liberdade de determinação), e como bem esclarece Taipa de Carvalho (ob. e local citados), tal critério é “objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do gente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “subcapacidades” do ameaçado). Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser considerada adequada (não adequação, segundo um critério exclusivamente objetivo), mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas (....). Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça (....), nem exige a ocorrência do resultado/dano (....), e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é a de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)”.

Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo, que pode assumir as modalidades de direto, necessário ou eventual (artigo 14º do Código Penal), bastando o carácter genérico do mesmo, traduzido na consciência (representação e conformação) por parte do agente da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, sendo “irrelevante que o agente tenha, ou não, intenção de concretizar a ameaça” (Taipa de Carvalho, ob. citada, pág. 351).

Feito este excurso teorético sobre os elementos típicos do crime de ameaça, entendemos que, à luz dos princípios expostos, os quais sufragamos em pleno, além de se suscitarem dúvidas sobre a adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação na filha do arguido (apenas com 7 anos de idade), verifica-se, na presente situação, que a Exmª Juíza considerou que o arguido, e em breve resumo, não agiu com dolo, mas com intuito corretivo, ainda que excessivo, e que o arguido foi agressivo em demasia, face à tenra idade da sua filha, mas não atuou com qualquer propósito ameaçador.

Por palavras mais simples: a Exmª Juíza, na sentença revidenda, considerou que o contexto da expressão proferida pelo arguido era de correção educativa para futuro (caso a filha voltasse a “roubar”), ainda que a expressão tenha sido excessiva e proferida em modos desadequados, e sendo certo que o foi num momento de fúria do arguido perante um facto concreto praticado pela menor (o facto de a mesma ter tirado “carimbos” à professora).

A nosso ver, o entendimento da Exmª Juíza está totalmente correto, porquanto, ponderando todo o contexto antecedente e contemporâneo do proferimento pelo arguido da expressão em causa, a ameaça verbal contida nessa expressão (de que “matava” a filha se ela voltasse a “roubar”) não possui potencialidade intimidatória suficiente para o preenchimento do crime de ameaça.

Ou, dito de outro modo, a expressão proferida pelo arguido (dirigida à sua filha de 7 anos de idade), analisada de modo conjugado, global e complexivo com as circunstâncias que envolveram o seu proferimento, não é suscetível de afetar ou lesar a paz individual ou a liberdade de determinação da menor em causa.

Como bem escreve o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, “dependendo a integração típica - e o caráter futuro do anúncio do mal - do contexto e do circunstancialismo em que foi efetuado, e fazendo apelo ao critério objetivo-individual acima referido, a formulação do juízo sobre se a expressão é idónea a provocar no visado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação não nos parece verificado no caso dos autos, sobretudo atendendo aos factos dados por não provados, que o Ministério Público não impugnou devidamente, mostrando-se correta e isenta de dúvida a absolvição operada na sentença”.

Em conclusão: não se mostra preenchido o tipo legal do crime de ameaça agravado, do qual o arguido foi (e bem) absolvido na sentença recorrida.

Em consequência, e nesta última vertente, o recurso do Ministério Público não merece provimento, sendo de manter o decidido em primeira instância (absolvição do arguido do crime de ameaça).

Por tudo o que fiou dito, o recurso do Ministério Público merece parcial provimento, sendo de condenar o arguido, pela prática de um crime de violência doméstica agravada (p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal), na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova (nos demais crimes, o arguido vai absolvido).

III - DECISÃO

Pelo exposto, e concedendo parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

1º - Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, que deverá incidir na problemática da ingestão de bebidas alcoólicas (o regime de prova mantém-se nos precisos termos e com o exato alcance decididos e estabelecidos na sentença recorrida).

Face à agora operada condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, fica prejudicada (dada sem efeito) a condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada (condenação constante da sentença sub judice).

Quanto às custas do processo (taxa de justiça, encargos legais e pagamento da compensação devida à Defensora Oficiosa), mantém-se o decidido na sentença revidenda.

2º - Negar provimento ao recurso quanto ao mais, mantendo-se, consequentemente, a absolvição do arguido da prática de um crime de ameaça agravada.

Recurso sem tributação (foi interposto pelo Ministério Público).

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de setembro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Edgar Gouveia Valente