Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1988/17.8T8PTM-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em processo cautelar não deve ter-se uma interpretação restritiva dos meios de defesa justamente a alguém que viu decretada contra si providência cautelar, que pode ser muito gravosa, sem nunca ter sido ouvido.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 1988/17.8T8PTM-A.E1 – APELAÇÃO (PORTIMÃO)


Acordam os juízes nesta Relação:


A Requerida/apelante “(…) – Unipessoal, Lda.”, com sede na Quinta do (…), Edifício (…), 1º andar, apartamento 105, em Portimão, vem, nos presentes autos de procedimento cautelar de restituição provisória de posse, que lhe instauraram no Tribunal Judicial da comarca de Portimão, os Requerentes/apelados, (…), residente na Av. (…), n.º 88-8º, Lisboa e (…), residente na Rua de (…), n.º 3, em Lisboa – e onde foi decretada contra si a providência requerida, embora só parcialmente, sem a sua audição, de restituição provisória da posse da servidão de passagem (constituída por um trilho de terreno de terra batida que se inicia no prédio dos Requerentes, junto à casa de habitação e se prolonga no sentido Norte/Sul, em toda a extensão do prédio junto à extrema Poente do prédio dos Requerentes/Nascente do prédio da Requerida, continuando, sem qualquer descontinuidade, pelo prédio da Requerida até terminar em plena …), por douta sentença proferida a 09 de Março de 2018 (ora a fls. 163 a 171 verso dos autos) e onde, depois, se rejeitou liminarmente a oposição por si deduzida contra aquele decretamento, mantendo-se a providência, por douta sentença que foi proferida em 09 de Julho de 2018 (agora a fls. 236 a 237 dos autos), com o fundamento aí aduzido de que a oponente não alegara factos novos ou carreara prova relevante antes não considerada – vem, dizíamos, interpor recurso desta última douta sentença, intentando agora a sua revogação e que a oposição seja recebida, e alegando, para tanto e em síntese, que tal decisão é nula por omissão de pronúncia (ao não se ter pronunciado sobre a questão suscitada e confessada da omissão da promoção do registo da servidão) e por falta de fundamentação (por “não fundamentar de forma clara e suficiente a preterição da questão e da prova relativas à existência de negociações extrajudiciais prévias à celebração da escritura de justificação da servidão pelos recorridos”). No mais, não se pode dizer que não tenham sido alegados factos novos ou apresentadas novas provas para pôr em causa o decretamento da providência, que o foram, de facto (“pois o facto de a colocação da vedação resultar do abortamento intencional por parte dos recorridos de negociações que visavam quer uma resolução extrajudicial equitativa e razoável para o uso da servidão pelos mesmos, quer uma transacção no processo com o n.º 1900/17.4T8PTM, devidamente ajuizado, sempre levaria à conclusão de que não se encontram preenchidos os quesitos do artigo 377.º do CPC ou in limine desembocaria na redução da providência cautelar decretada conforme peticionado”, aduz). E nem o Tribunal teve em conta a alegação feita relativa à utilização hodierna que é dada à servidão, passando de uma utilização meramente familiar e doméstica de acesso à praia para uma utilização comercial e intensiva dos hóspedes/turistas hospedados no alojamento local dos recorridos durante todo o ano com a correlata maior turbação e prejuízo para a recorrente”. Ou mesmo que existe uma alternativa ao trilho em causa, através duma estrada entretanto construída, “que dista cerca de um quilómetro da praia num percurso passível de ser feito a pé por qualquer criança ou idoso que não demora mais de 10 minutos”.
Os Requerentes/apelados (…) e (…) vêm apresentar contra-alegações (a fls. 261 verso a 270 verso dos autos), para dizerem, também em síntese, que não assiste qualquer razão à Apelante, devendo manter-se o que ficou decidido no sentido da rejeição da oposição, pois que a recorrente “não trouxe ao processo a este respeito qualquer facto novo com a sua oposição, nem sobre o mesmo foi indicado qualquer meio de prova não analisado pelo tribunal no momento em que foi decretada a providência”. São, assim, termos, aduzem a concluir, em que se deverá negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão que por ele ora vem impugnada.

E nada obsta a que se decida, estando já solucionada – e bem – a questão prévia suscitada pelos Apelados referente ao efeito do recurso, que a Apelante queria suspensivo, por entender que se tratava aqui de um indeferimento liminar de incidente processado por apenso, nos termos do artigo 647.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil, e os Apelados devolutivo, por entenderem não se tratar de qualquer incidente processado por apenso, antes que de um articulado da própria providência decretada (questão colocada a fls. 261 verso, nas contra-alegações de recurso e, entretanto, solucionada pelo douto despacho de fls. 273 dos autos, que recebeu o recurso e lhe fixou o efeito, no sentido da 2ª posição, defendida pelos Apelados, do seu efeito meramente devolutivo).
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A factualidade necessária e suficiente à decisão do presente recurso é a que consta do relatório supra, para que se remete, a fim de evitar desnecessárias repetições – sendo, em suma, constituída pelo conteúdo da petição da oposição que foi liminarmente indeferida no despacho recorrido e que importará analisar nesta sede. É isso, de resto, que hic et nunc está em causa, como se extrai do teor das conclusões alinhadas no recurso apresentado.

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Quanto às nulidades invocadas e assacadas à douta decisão recorrida, seja por omissão de pronúncia (ao não se ter pronunciado sobre a questão suscitada e confessada da omissão da promoção do registo da servidão), seja por falta de fundamentação (ao “não fundamentar de forma clara e suficiente a preterição da questão e da prova relativas à existência de negociações extrajudiciais prévias à celebração da escritura de justificação da servidão pelos recorridos”) – tudo nos termos e para os efeitos do que se dispõe no artigo 615.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, alíneas d), in fine: ‘É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar’, e b): ‘Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão’ – cremos bem, salva naturalmente melhor opinião, que se não tratará verdadeiramente da arguição de invalidades formais imputadas à decisão recorrida, antes que duma discordância do seu conteúdo de fundo, enquadrável num erro de julgamento realizado, quer de facto, quer de direito.
Pois que essa decisão apenas analisou formalmente a petição da oposição, para concluir que não apresentara nem factos nem provas novas relativamente à situação que já constava dos autos – não se pronunciou, nem tinha que o fazer, sobre as questões concretas abordadas na oposição, que apenas o seriam se esta tivesse sido recebida, o que não ocorreu (assim não havendo qualquer omissão de pronúncia relevante). Quanto à fundamentação do decidido, vêm explicitadas as razões da decisão que foi tomada e todos as podem entender; pode discordar-se, ter havido uma opção errada, de facto ou de direito, um erro de julgamento, mas estão lá explicadas as razões do decidido (assim não havendo ali qualquer falta de fundamentação).
Pelo que a decisão é formalmente válida, não vindo inquinada de vícios.

Questão diversa é, naturalmente, a da bondade da decisão, rectius se o ali plasmado corresponde à melhor solução da problemática jurídica que lhe estava colocada – e é esta verdadeiramente a discordância da Requerida, ora Apelante.
O Mmº Juiz do processo explicou o seu entendimento de que na oposição apresentada não teriam sido deduzidos factos/provas novas em relação ao que já constava do processo e que levou ao decretamento da providência requerida que levantassem a possibilidade de ser alterado o que já vinha decidido, nos termos e para os efeitos do que dispõe o artigo 372º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil: “1 - Quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366.º: b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367.º e 368.º”.

Porém, não se poderá ter deste comando da lei uma interpretação de tal modo restritiva que não permita ao Requerido defender-se cabalmente por meio da oposição, podendo pôr-se mesmo em causa, com tal tipo de interpretação um princípio fundante do Estado de Direito que é o do acesso aos Tribunais, com cobertura constitucional. Para mais opondo-se essa interpretação restritiva dos meios de defesa justamente a alguém que viu decretada contra si providência cautelar, que pode ser muito gravosa, sem ter sido ouvido.
É certo que o Requerido também poderá “Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida”, nos termos da alínea a) do preceito. Mas são bem conhecidas as limitações do recurso que, naturalmente, tem de cingir-se ao que já consta do processo e do decidido, não extravasando o respectivo objecto de pronúncia.
Ora, pode muito bem dar-se o caso da providência ter sido correctamente decretada, com os elementos e provas carreados pelo Requerente – e, por isso, o recurso da decisão que a decretou estar sempre votado ao insucesso –, mas não ser bem assim no caso de o Requerido – em oposição devidamente articulada – trazer ao processo outros elementos/provas que mostrem toda a situação à nova luz que usualmente o contraditório transporta.
Daí que este meio de oposição possa ser mais eficaz que o recurso para alterar o gravoso de uma providência a quem a viu decretada sem ser ouvido.
Para além de poder ainda ser objecto de recurso a decisão tomada sobre a própria oposição, facultando, assim, um meio acrescido de defesa, nos termos do n.º 3 do preceito que se vem citando: “3 - No caso a que se refere a alínea b) do n.º 1, o juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, cabendo recurso desta decisão”.

Decorrentemente, respeitando, claro, os contornos que a lei lhe deu – a fim de se evitarem repetições inúteis –, é preciso não ter uma visão restritiva do mesmo sobre o conceito de factos novos ou provas novas e, assim, cortar logo as possibilidades de reapreciação da situação a quem nem foi ouvido antes.
Note-se que a lei nem fala em factos ou provas novas, antes se reportando a factualidade e meios de prova “não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução”, o que não é a mesma coisa (bastando pensar na situação de o juiz ter desprezado ou não dado o valor devido a determinado facto, porque para tal não foi alertado devidamente, assim não tendo tal facto sido tido em conta pelo tribunal – o que se poderá muito bem ainda fazer em sede de oposição).

Assim, volvendo já ao caso sub judicio, lendo os termos em que foi feita a douta petição inicial da providência, a sentença sobre ela proferida e o teor da douta petição inicial da oposição, sempre se poderá dizer, dentro do espírito de interpretação que supra se definiu, que não há uma coincidência entre o que se avalia em tais peças, pelo que há ainda espaço para uma oposição à providência e a possibilidade de a Requerida poder vir a fazer valer a sua pretensão de ver revogada (ou delimitada em termos bem menos gravosos para si) a providência cautelar decretada de restituição provisória de posse da servidão de passagem a que se reportam os autos.
Com efeito, há alegação na oposição de factualidade que, devidamente analisada, poderá trazer outra luz ao que já ficou determinado na providência – falamos v. g. da problemática da omissão da promoção do registo da servidão (só agora invocada na oposição), ou da dimensão com que era utilizado o trilho de servidão (que foi alegado na petição da providência como sendo usado por familiares, aí se acrescentando também por turistas, segundo por exemplo o teor dos artigos 18º, 40º, 41º, 42º, 43º, 48º, 73º, 84º, 85º ou 90º do mesmo douto requerimento inicial, mas que a douta sentença proferida não tem em conta ao deferir a restituição provisória de posse da servidão e a que a oponente regressa veementemente na oposição), ou quanto às alternativas à passagem por tal trilho (que na petição inicial da providência se diz não existirem ou serem onerosas para quem atravessa para a praia, por exemplo nos seus artigos 46º e 74º, que a douta sentença não utiliza, mas a que a oposição volta com novos dados – e só agora os poderia a Requerida trazer, naturalmente, pois nunca fora ouvida antes – sobre os concretos contornos dessa alternativa à passagem da servidão.
Dir-se-á: nada disso irá alterar o que já ficou decidido no processo.
Não podemos afirmá-lo já, havendo que deixar prosseguir a oposição.

Pelo que tendo a Apelante razão para se insurgir contra a decisão posta em causa com o recurso, naquele enquadramento fáctico e jurídico, ora se terá que retirá-la da ordem jurídica, e procedendo o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao recurso e revogar douta sentença recorrida.
Custas pelos Recorridos.
Registe e notifique.
Évora, 13 de Setembro de 2018
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral