Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
638/15.1GBTMR.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
FIEL DEPOSITÁRIO
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Comete o crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. b) do CP, o arguido que, tendo-lhe sido apreendido o motociclo e tendo-lhe o mesmo sido entregue na qualidade de fiel depositário, mediante a obrigação expressa de não o utilizar, por qualquer forma, sob pena de incorrer num crime de desobediência, vem a transportá-lo, num veículo ligeiro de mercadorias, da sua habitação para outro local com o fim de aí ser mostrado a eventuais compradores.
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 638/15.1GBTMR.E1

Acordam, em conferência, na 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1 - Nos Autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular N.º 638/15.1GBTMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Local Criminal de Tomar, foi realizada audiência de discussão e julgamento, sendo arguido:
BB (…)
tendo, sequencialmente, sido proferida sentença, do seguinte teor:
“a) condenar o arguido BB, pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.°, n." 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante de 275€ (duzentos e setenta e cinco euros);
(...).”

1.1 - O arguido, inconformado com essa decisão, dela interpôs recurso. Nas suas alegações, apresentou as seguintes conclusões:
“A.-Resultou também provado que o arguido não tinha consciência da ilicitude do acto que praticou, já que o mesmo apenas tinha consciência de que não podia circular com o motociclo.
B.-É o que resulta das declarações do arguido, as quais se encontram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09 horas e 46 minutos e teve a duração de 50 segundos e transcritas no artigo 7º destas alegações;
C.- Para o arguido, a apreensão do veiculo significa a proibição de o conduzir, apenas e tão somente. Nunca o arguido equacionou estar a desobedecer.
D.- Acrescente-se que o arguido tem apenas a 4.ª classe, como habilitações literárias.
E.- O arguido actuou convicto da legalidade da sua condução, sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa;
De todo o modo sempre se diz…
F.- Aquando da apreensão do veículo em apreço, o mesmo foi entregue ao arguido na qualidade de fiel depositário, mediante a obrigação expressa de não o utilizar.
G.- Utilizar o veículo significa usar a coisa para o fim a que se destina, isto é, no caso vertente, usar o veículo como meio de transporte.
H.- Porém, no caso dos autos, o arguido não fez do motociclo um meio de transporte, já que, apenas e tão-somente e transportou em cima de um veículo de mercadorias de caixa aberta.
I.- Assim, o arguido não desobedeceu à ordem,
J.- Pelo que, não estão reunidos os pressupostos para que o arguido seja condenado, devendo o mesmo ser absolvido.
L.- Porque assim se não decidiu, foi violado o preceituado no artigo (art 17º nº 1, do Código Penal e 348º nº 1 alínea b) ambos do C. Penal).
Decidindo de acordo com o alegado, suprindo, doutamente, o que há a suprir, VV.
Excelências farão como é hábito, a CORRECTA E SÃ JUSTIÇA !”.

2 - O recurso foi recebido, tendo o MºPº, junto do tribunal “ a quo”, apresentado a sua resposta, com as conclusões seguintes:
Pretende o recorrente que “utilizar o veículo significa usar a coisa para o fim a que se destina, isto é, no caso vertente usar o veículo como meio de transporte. Porém no caso dos autos, o arguido não fez do motociclo um meio de transporte já que apenas e tão somente o transportou em cima de um veículo de mercadorias de caixa aberta pelo que não desobedeceu à ordem”.
O recorrente poderia ter razão se, por exemplo, se tivesse provado que transportara o motociclo apreendido num veículo de caixa aberta por necessidade de o mudar de local, designadamente por ter mudado de residência.
Porém, o que se provou foi que transportou o motociclo para o mostrar a um eventual comprador (actuação que também lhe estava vedada na qualidade de depositário do veículo pois que para além de não o poder usar/utilizar por qualquer forma também não o podia alienar).
Da prova produzida resulta ainda que o motociclo não foi apenas transportado para ser mostrado.
De facto, depois de transportado o motociclo foi deixado num terreno pertencente à testemunha CC, testemunha esta que afirmou ter disponibilizado o seu terreno para que o motociclo ali ficasse a fim de ser mostrado a eventual comprador.
E tendo ficado durante tempo não determinado naquele terreno, o motociclo veio a ser encontrado no dia 12.09.2015 estacionado na via pública, influenciando a circulação de outros veículos e a passagem de pessoas, tendo ainda “a ignição intacta”, como resulta expressamente do auto de notícia.
(…)
São elementos objectivos do tipo de crime a falta de obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados provenientes de autoridade ou funcionário competente.
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um tipo doloso, que exige a verificação de dolo genérico em qualquer das suas modalidades.
No presente caso, a ordem foi transmitida pela autoridade policial (GNR) que para tal tem competência; a ordem é legítima e foi comunicada ao recorrente que foi ainda advertido de que a falta de obediência à ordem o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
Estão pois reunidos todos os elementos do tipo legal de crime já que, da conjugação dos elementos de prova produzidos ter-se-á que concluir, como o fez a douta sentença recorrida, que o motociclo apreendido e do qual o recorrente era fiel depositário, não foi apenas transportado como medida necessária à sua preservação e guarda mas sim deixado em local diverso daquele onde habitualmente se encontrava, mais precisamente na via pública, o que configura uma efectiva utilização, sabendo o recorrente que não o podia fazer.
Deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a douta sentença recorrida.
Mas, V. Exas decidindo, farão a habitual JUSTIÇA.”.

3 - Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo:
“Concordo com o entendimento do MºPº em 1ª instância, constante da resposta de fls. 151 a 154, que se dá por reproduzida.
Entendo que a sentença recorrida deverá ser mantida. ”.

4 - Foi cumprido o preceituado não art. 417º n.º 2 do C.P.P.

5 - Foram colhidos os vistos legais.

6 - Cumpre decidir.


II - Fundamentação
2.1 - O teor da decisão recorrida, na parte que interessa, é o seguinte:
“Factos provados
Discutida a causa, encontram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. Em data não concretamente apurada, mas no período compreendido entre o dia 01 de Setembro de 2015 e o dia 12 desse mesmo mês e ano, o arguido BB fazendo uso do veículo ligeiro de mercadorias de marca Nissan, de cor branco, de caixa aberta e matrícula … procedeu ao transporte do motociclo de sua propriedade, de marca "Yamaha ", modelo "DT 25 R ", de cor azul e de matrícula …, da sua casa de habitação para a Rua …, Tomar.
2. A intenção do arguido era levar o referido motociclo para um local onde o pudesse mostrar a DD, uma vez que tencionava vender-lho.
3. No entanto, o referido veículo motociclo encontrava-se apreendido desde o dia 14 de Junho de 2004, uma vez que, nessa data, o arguido havia sido interceptado, a conduzi-lo, pelas autoridades policiais, sem que fosse titular de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
4. Assim, nessa ocasião, a Guarda Nacional Republicana de Tomar, além de ter procedido à referida apreensão, entregou aquele motociclo ao arguido na qualidade de fiel depositário e mediante a obrigação expressa de não o utilizar, por qualquer forma, sob pena de incorrer num crime de desobediência.
5. Apesar de conhecer essa obrigação, o arguido veio a utilizar o referido motociclo, pelo menos, na ocasião supramencionada.
6. O arguido tinha conhecimento dos factos descritos e quis faltar à obediência devida a ordem emanada de autoridade policial competente e que lhe fora regularmente comunicada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
7. O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punidas por lei penal e contra-ordenacional.
Mais se provou que:
8. O arguido é carpinteiro mas está desempregado há cerca de 10 anos.
9. Presta serviços esporádicos de construção civil e aufere cerca de 300€ mensais.
10. Vive em casa da mãe, com esta, que aufere cerca de 200€ mensais, a título de pensão de reforma.
11. Tem a 4.ª classe, como habilitações literárias.
12. O arguido foi condenado, no processo sumário n." 2ll/16.7GBTMR, deste juízo, por decisão de 27.06.2016, transitada em julgado em 12.09.2016, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 24.05.2016.
Factos não provados
Não existem factos não provados, com interesse para aferir da responsabilidade criminal.
Motivação
O Tribunal fundou a sua convicção com base nas declarações do próprio arguido, que confirmou ter procedido ao transporte do veículo apreendido nos moldes descritos na acusação, o que fez para mostrar a comprador que se mostrara interessado. Mais referiu que a intenção era regularizar a falta de seguro, caso a pessoa interessada concretizasse a compra e que "pensou" que só estava proibido de circular com o veículo e já não transportá-lo noutro veículo nos termos descritos.
A testemunha DD confirmou a versão do arguido, dizendo estar interessado em ver o veículo para possível compra e ter combinado com o arguido aquele local para visualização do mesmo, tendo, porém, desistido do negócio assim que soube que o veículo estava apreendido. Esta testemunha depois de forma clara e objectiva, merecendo credibilidade.
Por seu lado, a testemunha CC, amigo do arguido e do eventual comprador, assegurou que disponibilizou o seu terreno para estacionamento do veículo, a fim do mesmo ser mostrado a eventual comprador e que aquele veio a aparecer junto à via pública de modo que desconhece. Este depoimento foi prestado de forma simples e objectiva, tendo sido valorado.
Foi, ainda, ponderado o auto de notícia, junto aos autos, bem como e o auto de apreensão de veículo, do qual decorre a cominação efectuada, o resultado da pesquisa referente às características do motociclo de matrícula … e da pesquisa informática referente ao proprietário do motociclo de matrícula ….
No que concerne ao elemento subjectivo, o mesmo resulta dos factos objectivos dados como provados, dos quais resulta que necessariamente o arguido quis comportar-se do modo descrito, sabendo que praticava um crime, pois o veículo "encontrava-se na via pública", "influenciando a circulação de outros veículos e a passagem de pessoas", tendo ainda "a ignição intacta", como resulta do auto de notícia, razão pela qual o mesmo não se encontrava simplesmente estacionado mas foi efectivamente utilizado/deslocado, mesmo que para venda que não se tivesse concretizado.
A situação pessoal e sócio-económica do arguido decorre das suas próprias declarações, que se consideraram merecedoras de crédito.
No que diz respeito aos antecedentes criminais, teve-se em atenção o certificado de registo criminal, junto aos autos.”.

2.2 - O registo magnetofónico da prova permite, ao tribunal de recurso além de sindicar a matéria de facto (desde que o recorrente dê cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P.) apreciar as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º n.º 1, do mencionado compêndio adjectivo) e fazer a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas. E, dentro destes parâmetros, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.
São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.
As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, facilmente se constatará que o recorrente alega que “resultou também provado que o arguido não tinha consciência da ilicitude do acto que praticou” e ainda que “actuou convicto da legalidade da sua condução sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa – art. 17º, nº 1 do Código Penal).
Conclui que, para além da citada norma legal a douta sentença recorrida violou ainda o art. 348º, nº 1, al. b) do CP e pugna pela sua absolvição.

2.4 - Conhecimento do objecto do recurso
2.4.1 - Da pretensão de impugnação da matéria de facto relativa à intenção consciente de desobedecer.
Nos termos do disposto no artigo 428º, do C.P.P., o Tribunal da Relação, em fase de recurso, pode apreciar da matéria de facto e de direito, nos termos retro apontados.
No que respeita ao objecto de recurso sobre a questão de facto, a apreciação da prova, baseada nas regras da experiência comum e na livre convicção feita pelo tribunal de 1ª instância poderia ser censurada por este tribunal, pois existe documentação das declarações prestadas no decurso da audiência de discussão e julgamento.
O recorrente alega não tinha consciência da ilicitude do acto que praticou” e ainda que “actuou convicto da legalidade da sua condução sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa.
Contudo, a pretensão de impugnar a matéria de facto provada, relativa a à falta de intenção consciente de desobedecer, impõe o dever do ónus intrínseco à mesma, no que respeita à prova testemunhal, isto é, a indicação das passagens determinantes para tal fim.
Sendo, ainda, necessário verificar se o que o recorrente deu, ou não, cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P.
O n.º 3, deste preceito legal - 412º, do C.P.P. estabelece que, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto - no caso em análise não o fez - deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim as provas que impõe decisão diversa da recorrida e as que devem ser renovadas.
O n.º 4, refere que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c), do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2, do ar. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.”.
A lei é exigente relativamente a essa impugnação.
O julgamento efectivo foi realizado no Tribunal da 1ª instância.
Neste Tribunal de recurso o que releva é a apreciação da regularidade do julgamento e não a realização de um efectivo e verdadeiro segundo julgamento. Tanto assim é que a própria lei, no art. 430º, do C.P.P., só permite a renovação da prova quando se verifiquem os vícios do art. 410º n.º 2, do referido compêndio adjectivo, portanto, quando do teor do texto da decisão judicial decorra a verificação de qualquer dos vícios aí apontados, v.g., insuficiência, contradição ou erro.
O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.
E tal exigência é dada, como é referido nos Acs. desta Relação Ns. 2542/01 e 2870/02, pelas seguintes imposições:
Especificação, e não mera referência, dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, sendo necessário precisar com clareza o ponto que se tem por erroneamente apurado;
especificação das provas, não sendo suficiente a menção genérica de toda a prova e dos depoimentos das testemunhas, etc;
indicação concreta das provas que impõem decisão diversa;
especificação dos suportes técnicos, da prova documentada, com vista a facilitar a sua localização.
O recorrente questiona que não tinha consciência da ilicitude do acto que praticou” e ainda que “actuou convicto da legalidade da sua condução sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa.”.
Tece críticas e questiona essa matéria de facto, porém, não apontando os pontos concretos da mesma que pretende impugna, limitando-se a indicar partes sectoriais do seu depoimento, que valoriza de modo distinto do tribunal “a quo”, algo distinto de prova que impõe decisão diversa.
Ora, o determinante, como já aludido, era especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nomeadamente, os nºs 5 a 7, da matéria de facto provada, que referem à intenção livre, consciente e voluntária de desobedecer e ao conhecimento ilícito dessa conduta, e bem assim, as provas que impõe decisão diversa da recorrida, isto é, não a impugna, verdadeiramente, pois não dá cumprimento, cabal, ao preceituado nos citados n.ºs. 3 e 4 daquele preceito, porquanto, o mesmo apesar de mencionar o conteúdo de depoimentos de testemunhas, prestados no decurso da audiência de julgamento, não indica, com precisão, os pontos específicos que considera incorrectamente julgados, tecendo comentários sobre a valoração da prova feita pelo Tribunal, argumentando com considerações todas elas, apenas e exclusivamente, relativas a uma apreensão diversa da prova, valorando-a, de modo diverso, colocando dúvidas e interrogações, sem contudo, conseguir fundamentar e concretizar as provas que impõem decisão diversa.
Como já referido, o que a lei pretende ao vincular o recorrente á indicação das provas que impõem decisão diversa, não é, certamente, formular uma outra versão da prova produzida.
Isto é, no caso presente, o recorrente questiona a factualidade provada, sem a indicar com precisão, pretendendo, apenas, credibilizar e dar destaque a uma fracção das declarações do arguido, que escolhe e contextualiza como entende, omitindo a restante prova à qual o tribunal “a quo” deu credibilidade, nomeadamente aos depoimentos das testemunhas, não fundamentando convenientemente quais as provas que, no seu entender, levariam a conclusão diversa da obtida na sentença recorrida.
Isto bastaria para se considerar, manifestamente, improcedente o recurso, no que concerne à impugnação da matéria de facto.
Todavia, dir-se-á que a apreciação da prova constante do acórdão ou sentença, por imposição do art. 374º n.º 2, do C.P.P., não basta ser dúbia ou duvidosa, é necessário que seja, de modo óbvio, errónea impondo-se a qualquer homem ou cidadão mediano e fundamenta a existência do vícios a que alude o art. 410º n.º 2, al. c), do aludido compêndio adjectivo, ou não. Neste caso, deve cumprir-se as regras de impugnação supra mencionadas.
No nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127° do CPP, que estatui" salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.". A este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: " Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo..."
E adianta, o Conselheiro Marques Ferreira; Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, " Meios de Prova", Livraria Almedina, pág. 227/228.: " Por outro lado, livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação das decisões que conheçam a final do processo de modo a permitir-se um controlo efectivo da sua motivação".
Sobre esta questão, o Prof. Marques da Silva, In “ Curso de Direito Processual Penal, vol. II, pág. 126 e 127 refere:" O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente de imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente aplicáveis (v.g. a credibilidade eu se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente á valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.".
Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal, anotado", 9.ª ed., pág.322, refere "... livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica... ".
Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", II, pág. 126 e segs. a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração "racional e critica, de acordo com as regras, comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...; com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim.
Como já referido, a convicção do julgado há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ".
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes planos.
Em primeiro lugar trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).
Seguidamente, na valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
E, tal como se refere no Ac. desta Relação de 29/03/2000 – Rec. N.º 180/2000: “Dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise dos textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim, através de contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal “a quo”.
Tal como afirma Figueiredo Dias “Direito Processual Penal”, vol. I, 1974, ed.ª de 1974, pág. 204, existe sempre um determinado cunho pessoal, originando uma convicção pessoal, pois ela é condiciona não só pela actividade puramente cognitiva, mas também por factores inexplicáveis, racionalmente.
Esta doutrina, com a qual concordamos, leva a concluir que os julgadores, no tribunal de recurso, a quem está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, perante duas ou mais versões dos factos, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.° 374º n.º 2, do citado compêndio adjectivo.
Mesmo estando a prova documentada, não se pode deixar de considerar que os mencionados princípios de imediação e da oralidade facultam e permitem ao julgador percepcionar e apreciar, de modo distinto, de quem, como o tribunal de recurso, apenas contacta com a transcrição dos depoimentos gravados, ou mesmo até com a audição do registo magnetofónico.
As provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que o tendo sido ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida. Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão.
Analisando a sentença recorrida verifica-se que o tribunal “a quo” baseou-se numa apreciação crítica, explicita, esclarecedora e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
A fundamentação da prova está em total consonância com o registo da mesma e os aludidos princípios e as regras da lógica e da experiência comum.
A questão básica, como já referido, é a valoração distinta que o recorrente lhe atribui, nomeadamente, no que concerne ao elemento subjectivo deste tipo de crime, vertido, em concreto, nos aludidos pontos nºs. 5 a 7, da matéria de facto provada, que o arguido não especifica. Pois que, quando não haja confissão por parte dos arguidos, como ocorre no caso “sub judice” intervêm, para além do comportamento do infractor, esclarecedor da sua intenção, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Conforme escreve o Sr. Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira em "Direito Penal Português” - Parte Geral I - Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão...
Ora recorrendo a regras de experiência e porque para se aferir ou não da existência da intenção criminosa, se há-de retirar os elementos confirmativos da sua verificação, da matéria fáctica dada como provada.
Por outro lado, o conhecimento do carácter proibido da conduta do infractor é do conhecimento do homem médio, até de qualquer pessoa, e portanto, do arguido.
O arguido/recorrente alega, que não tinha consciência da ilicitude do acto que praticou” e ainda que “actuou convicto da legalidade da sua condução sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa.”
Porém, atendendo à fundamentação explicativa e o raciocínio clarividente e lógico reproduzidos, o que resultou provado, relativamente a esta questão, foram os factos vertidos nos pontos nºs 5 a 7, da matéria de facto provada - “Apesar de conhecer essa obrigação, o arguido veio a utilizar o referido motociclo, pelo menos, na ocasião supramencionada. O arguido tinha conhecimento dos factos descritos e quis faltar à obediência devida a ordem emanada de autoridade policial competente e que lhe fora regularmente comunicada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punidas por lei penal e contra-ordenacional - “.
Desses factos, dados como provados, resulta que necessariamente o arguido quis comportar-se do modo descrito, sabendo que praticava um crime, pois o veículo "encontrava-se na via pública", "influenciando a circulação de outros veículos e a passagem de pessoas", tendo ainda "a ignição intacta", como resulta do auto de notícia, razão pela qual o mesmo não se encontrava simplesmente estacionado mas foi efectivamente utilizado/deslocado, mesmo que para venda que não se tivesse concretizado.”
De novo, reafirmamos que a questão posta globalmente, sem concretização ou indicação concreta das provas que impõem decisão diversa, reconduz-se ao da apreciação da prova por parte do tribunal recorrido de que trata o art.° 127°, conforme já afirmado.
Ora, reafirmamos que os julgadores, no tribunal de recurso, a quem está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.° 374º n.º 2, do CPP.
O tribunal recorrido apreciando criticamente os seus depoimentos e conjugando-os com, a demais prova produzida, como se fez constar da respectiva fundamentação. Todos estes elementos de prova confirmam a matéria apurada.
Portanto, no caso, em análise, a conjugação de toda a prova aponta no sentido vertido na sentença recorrida.
A matéria fáctica apurada é a que se mostra supra descrita, nomeadamente a vertida nos seus pontos n.ºs 5 a 7.
Assim, não se modifica tal matéria de facto, nos termos preceituados no art. 431º n.º 1 al. b), do C.P.P.

2.4.2 - Do crime de desobediência
O arguido vem acusado da prática, como autor material, de um crime de desobediência, p. e p., pelo art. 348.º n.º 1, do C.P. revisto (Cfr. art.ºs. 161.°, n.º 1, alínea e) e 162.°, n.º 1, alínea f), e n.ºs. 2 e 3 do Código da Estrada).
Subsumindo os factos apurados ao direito, atentos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, cumpre de seguida apreciar o tipo de crime imputado ao arguido.
Dispõe o art.º 348 do Código Penal revisto que:
“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.
Desobedecer, diz a lei, é não cumprir, não respeitar a ordem ou mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.
Temos, assim, a considerar vários elementos:
- Ordem ou mandado;
- Legalidade substancial e formal da ordem ou mandado;
- Competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
- Regularidade da sua transmissão ao destinatário.
A ordem “é a imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto. A ordem contém, portanto, como a lei penal, uma norma de conduta.
A ordem vai assim equiparada à norma penal.“ (LUÍS OSÓRIO, Código Penal Anotado, comentário ao art. 188.º)
A ordem ou mandado têm que se revestir de legalidade substancial, isto é, tem que ter atrás de si uma disposição legal que autorize a sua emissão. Com efeito, não se pode transmitir uma ordem ou mandado sem que uma lei anterior confira ao emitente poderes para tal, a menos que essa possibilidade se compreenda nos poderes discricionários do funcionário ou da entidade expedidora.
Por outro lado, exige-se para ambos legalidade formal, o que significa que só poderá existir desobediência quanto a ordens ou mandados emitidos com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão. Se assim não for a ordem ou mandado deixam de ter validade, não lhes sendo então devida obediência.
Ainda se requer que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, isto é, que aquilo que pretendem impor caiba na esfera das suas atribuições. Cada funcionário ou autoridade detém uma parcela do poder, um tempo para o seu exercício e uma área de jurisdição.
No caso “sub judice”, a ordem foi transmitida pela autoridade policial (GNR) que para tal tem competência; a ordem é legítima e foi comunicada ao recorrente que foi ainda advertido de que a falta de obediência à ordem o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
Finalmente os destinatários têm que ter conhecimento da ordem ou mandado a que ficam sujeitos, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido. Com a cominação prévia e expressa por parte da autoridade já o destinatário sabe que, se não cumprir, pratica o crime de desobediência.
Com efeito, a ordem transmitida pela autoridade policial era legítima, porquanto fundada no disposto nos artigos 161.°, n." 1, alínea e) e 162.°, n.º 1, alínea f), e n.º 2 e 3 do Código da Estrada e foi comunicada ao arguido tal como resulta dos factos provados.
São elementos objectivos do tipo de crime a falta de obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados provenientes de autoridade ou funcionário competente.
No que concerne ao elemento subjectivo desse tipo de ilícito, trata-se de um tipo doloso, que exige a verificação de dolo genérico em qualquer das suas modalidades.
Portanto, face à matéria fáctica assente, parece que não surgem dúvidas quanto ao preenchimento dos elementos desse tipo de delito criminal.
Efectivamente, subsumindo os factos apurados ao direito, atendendo aos elementos objectivos e subjectivos do tipo, supra analisados, conjugados com a factualidade apurada seguinte:
“- o motociclo de matrícula …, propriedade do recorrente, encontrava-se apreendido desde o dia 14 de Junho de 2004, data em que a Guarda Nacional Republicana de Tomar para além de ter procedido à referida apreensão, lhe entregou o veículo na qualidade de depositário e mediante a obrigação expressa de não o utilizar, por qualquer forma, sob pena de incorrer num crime de desobediência;
- apesar de ciente dessa obrigação, em data não concretamente apurada, mas no período compreendido entre o dia 01 de Setembro de 2015 e o dia 12 desse mesmo mês e ano, o recorrente, fazendo uso do veículo ligeiro de mercadorias de marca Nissan, de cor branco, de caixa aberta e matrícula … procedeu ao transporte do mencionado motociclo da sua casa de habitação para a Rua…, Tomar;
- a intenção do arguido era levar o referido motociclo para um local onde o pudesse mostrar a DD, uma vez que tencionava vender-lho;
- apesar de conhecer a obrigação que tinha, o arguido veio a utilizar o referido motociclo, pelo menos, na ocasião supramencionada e quis faltar à obediência devida a ordem emanada de autoridade policial competente e que lhe fora regularmente comunicada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal,
a conclusão é a do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos desse tipo legal de crime.
Porém, o recorrente argumenta que “utilizar o veículo significa usar a coisa para o fim a que se destina, isto é, no caso vertente usar o veículo como meio de transporte. Porém no caso dos autos, o arguido não fez do motociclo um meio de transporte já que apenas e tão somente o transportou em cima de um veículo de mercadorias de caixa aberta pelo que não desobedeceu à ordem”.
Não esquecer que o termo “utilizar” é sinónimo de: explorar, dispor, gastar, ajudar, consumir, empregar, ocupar, adotar, aproveitar, beneficiar, fruir, colocar, contar, lidar, manipular, manusear, puxar, aplicar, desfrutar, lograr, valer, operar, usar, recorrer e servir (vide Dicionário Online de Português).
Contudo, como se refere no dicionário de sinónimos online, existem sinónimos para três sentidos da palavra utilizar:
Fazer uso de:
Usar, empregar, operar, aplicar, manusear, manipular, lidar, colocar.
Tirar utilidade ou proveito:
Aproveitar, servir-se, valer-se, usufruir, fruir, desfrutar, dispor de, contar com, recorrer, beneficiar, lograr.
Obter como ganho:
Ganhar, lucrar, auferir, receber.”
Portanto, é vasto o sentido da palavra utilizar.
Acresce que, o arguido, de acordo com o auto de apreensão de veículo automóvel, fora notificado, na qualidade de fiel depositário do mencionado veículo – motociclo de matrícula … - cuja cópia se mostra junta a fls. 41 e 41vº, que recebera esse veículo, “com a obrigação de não o utilizar nem o alienar, por qualquer forma, e do entregar quando lhe for exigido, ficando notificado de que a sua utilização ou alienação o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível nos termos do disposto na al. b), do nº 1, do art. 348º, do CP”.
Portanto, estava proibido de o utilizar, por qualquer forma.
É, pois, óbvio, que o utilizou, dado que “fez transportar o veículo para eventual venda, e estacionou-o na via pública condicionando o trânsito, pelo que se considera que utilizou o mesmo, desobedecendo à ordem emanada de "não utilização do veículo", sendo certo que a eventual comprador sempre se podia ter deslocado a casa do arguido para o efeito.
O arguido alega que não tinha consciência da ilicitude do acto que praticou” e ainda que “actuou convicto da legalidade da sua condução sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa – art. 17º, nº 1 do Código Penal).
Este preceito, sobre a epígrafe “Erro sobre a ilicitude”, preceitua:
“1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”
No Ac. TRG, de 25-02-2015, proferido no Proc. N.º 20/08.3GCBGC-A.G1.P1 , disponível em www.dgsi.pt, este erro sobre a ilicitude foi analisado, constando do seu sumário, o seguinte: “I – O erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade que exclui o dolo (artº 16º1 CP) apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos. II - Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao art.º 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. III - A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social. IV - O comum dos cidadãos não ignora que é proibido (…).”
Porém, entendemos, em consonância com as regras da lógica e da experiência comum e os juízos lógicos e objectivos em que se baseou a factualidade provada, que se mostra excluída a verificação do erro sobre a ilicitude, na actuação do arguido/recorrente, não sendo admitida ou excluída a sua falta de consciência da ilicitude, pois que, o arguido transportou o motociclo para o mostrar a um eventual comprador (actuação que também lhe estava vedada na qualidade de depositário do veículo pois, como consta do auto de apreensão já transcrito, que para além de não o poder usar/utilizar por qualquer forma também não o podia alienar). Acresce que, o referido motociclo não foi apenas transportado para ser mostrado. O mesmo, depois de transportado ficou num terreno pertencente à testemunha CC, testemunha esta que afirmou ter disponibilizado o seu terreno para que o motociclo ali ficasse a fim de ser mostrado a eventual comprador. Aí permaneceu até a ser encontrado no dia 12.09.2015 estacionado na via pública”.
O elemento subjectivo do tipo, dolo, como se refere na sentença recorrida: “resulta dos factos objectivos dados como provados, dos quais resulta que necessariamente o arguido quis comportar-se do modo descrito, sabendo que praticava um crime, pois o veículo "encontrava-se na via pública", "influenciando a circulação de outros veículos e a passagem de pessoas", tendo ainda "a ignição intacta", como resulta do auto de notícia, razão pela qual o mesmo não se encontrava simplesmente estacionado mas foi efectivamente utilizado/deslocado, mesmo que para venda que não se tivesse concretizado.”
É acertada a condenação do arguido/recorrente, de acordo com a imputação a título de dolo que é feita na acusação, uma vez que não nos encontramos perante erro relevante sobre as proibições, que excluísse o dolo nos termos do art.º 16º nº1, do CP, nem perante erro não censurável sobre a ilicitude que excluísse a culpa, nos termos do art. 17º, do mesmo compêndio substantivo.
Como, bem, refere o MºPº, na sua resposta: “O recorrente poderia ter razão se, por exemplo, se tivesse provado que transportara o motociclo apreendido num veículo de caixa aberta por necessidade de o mudar de local, designadamente por ter mudado de residência.
Porém, o que se provou foi que transportou o motociclo para o mostrar a um eventual comprador (actuação que também lhe estava vedada na qualidade de depositário do veículo pois que para além de não o poder usar/utilizar por qualquer forma também não o podia alienar).
Da prova produzida resulta ainda que o motociclo não foi apenas transportado para ser mostrado.
De facto, depois de transportado o motociclo foi deixado num terreno pertencente à testemunha CC, testemunha esta que afirmou ter disponibilizado o seu terreno para que o motociclo ali ficasse a fim de ser mostrado a eventual comprador.
E tendo ficado durante tempo não determinado naquele terreno, o motociclo veio a ser encontrado no dia 12.09.2015 estacionado na via pública, influenciando a circulação de outros veículos e a passagem de pessoas, tendo ainda “a ignição intacta”, como resulta expressamente do auto de notícia.
Estão pois reunidos todos os elementos do tipo legal de crime já que, da conjugação dos elementos de prova produzidos ter-se-á que concluir, como o fez a douta sentença recorrida, que o motociclo apreendido e do qual o recorrente era fiel depositário, não foi apenas transportado como medida necessária à sua preservação e guarda mas sim deixado em local diverso daquele onde habitualmente se encontrava, mais precisamente na via pública, o que configura uma efectiva utilização, sabendo o recorrente que não o podia fazer.”
Carece, mais uma vez, de razão o recorrente.
Pelos fundamentos expostos, ao condenar o arguido, pelo crime de desobediência, o tribunal “a quo” não violou o preceituado nos artigos art 17º nº 1 e 348º nº 1 alínea b), ambos do C. Penal).


III - Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes, em declarar improcedente o recurso interposto, mantendo o decidido na sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em quatro unidades de conta, a taxa de justiça, e demais acréscimos.
(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 20/03/2018
Maria Isabel Duarte (relatora)
José Maria Simão