Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
24/15.3GGSTB
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: JOGO
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
DISTINÇÃO
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) o cerne da destrinça entre crime e contraordenação na Lei do Jogo assenta num entendimento restritivo da lei vigente por obediência ao princípio da legalidade que obriga o intérprete a limitar o entendimento de crime à natureza de jogo de fortuna e azar como definido no artigo 4.º do diploma e tal como interpretado pelo AUJ n.º 4/2010. Tudo o resto é contra-ordenação.

ii) é de contrariar uma tendência que se vai estabelecendo na jurisprudência portuguesa de alargamento do tipo penal de jogo ilícito com apelo a argumentos de cariz social e moral.

iii) esta tendência tem origem numa leitura não permitida do AUJ n.º 4/2010 e centra a análise em argumentos adjuvantes que no aresto apenas servem como comprovativo de que os jogos previstos no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89 são o objectivo de proibição do legislador mas que passa a ser encarada nessa tese como um conjunto de argumentos que servem para delimitar o tipo penal, obtendo um desmesurado alargamento do tipo penal ao sabor de subjectivismos vários. (sumário do relator)

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Inquérito que correu termos no Tribunal Judicial de Setúbal – Local, Criminal, 5 – foi deduzida acusação pública contra C…, nascido a 18.05.1970, natural de …, solteiro, titular do cartão de cidadão n.º… e residente na …, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de exploração ilícita de jogo do artigo 108.°, n. 1, do Decreto-Lei n. 422/89, de 2 de Dezembro.


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Por sentença de 20-12-2018 o tribunal recorrido decidiu julgar a acusação parcialmente procedente, porquanto parcialmente provada, e consequentemente:

A. Absolveu o arguido C… da prática de um crime de exploração ilícita de jogo do artigo 108.°, n. 1, do Decreto-Lei n. 422/89, de 2 de Dezembro [a respeito dos factos retratados na sobredita peça processual como tendo ocorrido em 19 de Janeiro de 2015];

B. Condenou o arguido C… pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de exploração ilícita de jogo do artigo 108.°, n. 1, do Decreto-Lei n. 422/89, de 2 de Dezembro, na pena de 2 (dois) meses de prisão e na pena de 80 (oitenta) dias de multa Dezembro [a respeito dos factos retratados na sobredita peça processual como tendo ocorrido em 15 de Junho de 2015];

C. Substituiu a pena de 2 (dois) meses de prisão identificada em B. pela pena de 60 (sessenta) dias de multa;

D. Condenou o arguido C… na pena global e única de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o valor total de € 910 (novecentos e dez euros), e que corresponde à soma das penas de multa (principal e substitutiva) referidas em B. e C.;

E. Condenou o arguido C… na satisfação das custas processuais, fixando a taxa de justiça no montante equivalente a duas unidades de conta;

F. Declarou as máquinas "Colorama" apreendidas a fls. 11 e 42-43 perdidas a favor do Estado, determinando a sua destruição;

G. Declarou as quantias apreendidas nos autos perdidas a favor do Estado, determinando a sua atribuição ao Fundo de Turismo.


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Inconformado com uma tal decisão, dela interpôs recurso o arguido com as seguintes conclusões:

A. No que se refere à subsunção da conduta que se imputa ao Recorrente em sede de factualidade tida como provada por referência à apreensão de 15 de Junho de 2015, relativamente à exploração, criminalmente punível, da máquina denominada “Colorama”, entende modestamente aquele que, ao contrário do decidido na douta Sentença sob recurso, não se poderia haver concluído por preenchidos os elementos constitutivos do tipo legal em causa quanto a uma tal máquina.

B. Desde logo porque, uma qualquer variabilidade dos prémios não é “exclusiva” dos jogos de fortuna ou azar, verificando-se, a título de exemplo, em jogos sociais do estado, nos quais nem sequer existe a “garantia” de que todos os prémios se encontrem em jogo, a cada momento do mesmo.

C. A acrescer, o facto de a máquina ora em causa não pagar directamente prémios em fichas ou moedas, e não desenvolver um qualquer jogo do tipo roleta, sendo que apenas o seu modo de funcionamento eléctrico a “distingue” da máquina objecto de fixação de Jurisprudência pelo STJ, no seu douto Acórdão n.º 4/2010, sendo que também aí os prémios poderão ser convertidos em dinheiro.

D. É de aplicar uma tal jurisprudência, fixada pelo STJ, na medida em que, o que interessa é o espírito e pensamento por trás daquela, bem como da própria lei, sendo certo que não seria a máquina ora em causa em que “pensava” o legislador quando decidiu restringir a prática/exploração às zonas de jogo.

E. Até porque, reportando-se a norma proibitiva e punitiva da conduta imputada ao Recorrente ao ano de 1989, e atendendo ao preâmbulo do diploma em causa (D.L. n.º 422/89, de 02/12), o qual é o “espelho” do pensamento e vontade do legislador, sempre teremos que concluir que o “tipo e o modo de jogo” desenvolvido pela máquina ora em causa se encontra fora do âmbito de aplicabilidade daquele aludido art. 108º.

F. Sem descurar que, toda e qualquer norma penal, jamais, e em momento algum, poderá ser alvo de qualquer interpretação extensiva relativamente aos elementos do tipo e às concretas situações de facto a que se reporta, o que deverá ser relevado com o facto de à data da publicação do diploma legal em causa ser totalmente imprevisível ao legislador a existência de máquinas como a ora em causa nos autos, não se subsumindo o seu funcionamento, por isso, a uma tal previsão legal e consequente punibilidade penal.

G. Não se afigura possível uma qualquer viciação num jogo tão rudimentar, sem toda a envolvência dos denominados jogos de casino, sendo que os próprios valores despendidos são de pouca relevância, não influindo o valor de cada jogada, porque sempre igual, num qualquer prémio, além do que, não se trata de um qualquer tema próprio pois que não existe uma qualquer aposta concreta e não são possíveis apostas múltiplas ou dobra de apostas.

H. A possibilidade de uso de uns quaisquer pontos ganhos, a que se alude na factualidade provada, sempre estaria limitada à utilização de 1 (um) ponto de cada vez, sendo por isso impossível de gastar todos os pontos de uma vez, do “tudo ganhar” ou “tudo perder”, sendo certo que o valor pago não mais é do que o “preço” da jogada e não uma aposta.

I. O valor pago não é uma qualquer aposta, mas apenas o “preço” da jogada, sem possibilidade de ela mesmo multiplicar-se, e o prémio a obter é fixo e pré-determinado (Cfr. neste sentido, Acórdãos do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 14.07.1999, proferido no Proc. 9910385 e acessível in www.dgsi.pt, e deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 06.11.1990, disponível in CJ., XV, T.V, pg. 277).

J. Tendo por base o supra referido Acórdão do STJ questiona-se de quais as diferenças existentes entre o jogo ora em causa e aquele outro para além do já referido funcionamento eléctrico, tanto que, fundando-se também em tal douto Aresto, tem sido diversa a Jurisprudência que vem entendendo máquinas como a dos autos como não consubstanciando um jogo de fortuna ou azar,

K. Designadamente, os, doutos, Acórdãos da Veneranda Relação de Coimbra, de 02.02.2011, 25.06.2014 e 18.03.2015, Acórdãos desta Veneranda Relação de Évora, de 31.05.2011 e 10.05.2016, Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa, de 01.06.2011, bem como, Acórdãos da Veneranda Relação do Porto, de 11.12.2013, 12.02.2014, 02.07.2014, 17.09.2014, 24.09.2014, 04.02.2015 e 22.04.2015.

L. Ademais, sendo o tipo legal em causa (exploração ilícita de jogo) dotado de uma certa rigidez, que o constitui como tipo de garantia, sendo essa precisamente uma das manifestações do princípio da legalidade, claramente será de excluir o jogo dos autos das previsões de punição penal decorrentes do preceituado nos arts. 1º, 3º, 4º e 108º da “Lei do Jogo”,

M. Pois que, não obstante exemplificativa, a especificação dos jogos de fortuna ou azar constante da lei, sempre tal especificação é tendencialmente completa e comporta uma certa rigidez, como é próprio de um tipo legal de crime, que é um tipo de garantia, concluindo-se que os diversos tipos de jogos considerados como de fortuna ou azar e que são autorizados nos casinos são os que estão especificados na lei, e não outros.

N. A máquina dos autos não pagava directamente prémios em fichas ou moedas, encontrando-se, por isso, afastada a aplicabilidade da al. f) do n.º 1 daquele art. 4º, sendo que a possibilidade de conversão dos pontos em numerário também não é “suficiente” para se concluir pela integração num tipo de jogo, na medida em que, nas próprias modalidades afins tal conversão se apresenta como possível, “apresentando-se” ela própria como uma contra-ordenação.

O. Porque no mesmo se aborda uma tal matéria por referência a uma máquina com funcionamento/jogo similar à dos presentes autos, sendo uma tal “abordagem” efectuada por referência àquilo que resulta e se “defende” no douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2010 do STJ, será de referir o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18-03-2015 (proferido no âmbito do Proc. 27/10.4EASTR.C1, e disponível in www.dgsi.pt),

P. No qual se conclui «constituir critério diferenciador, fundamental, das modalidades afins, a predeterminação do prémio e a pequena dimensão daquilo que o jogador arrisca, pelo pequeno valor da aposte e pela certeza, pré-definida, dos prémios», com base no que, a final, se decide pela «irrelevância criminal de parte da matéria valorada pela decisão recorrida como constitutiva do crime (jogo “colorama”).» (negrito e sublinhado nossos)

Q. Por fim, e porque igualmente no sentido da aplicabilidade da Jurisprudência fixada pelo STJ ao caso presente, de referir o recente douto Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 10-05-2016 (proferido no âmbito do Proc. n.º 271/11.7ECLSB.E1 da Secção Criminal – ao que se sabe, não “publicado”),

R. No qual se conclui que «não merece a qualificação de crime a exploração de jogos como os desenvolvidos pelas máquinas em apreço nestes autos, ainda que as mesmas atribuam prémios em dinheiro e ainda que as mesmas desenvolvam temas próprios de jogos de fortuna ou azar.», pois que, «o entendimento que está (quanto a nós) subjacente ao Acórdão de Uniformização de jurisprudência nº 4/2010 deve também ser aplicado às máquinas em discussão nos presentes autos». (negrito e sublinhado nossos)

S. Do exposto, de referir que temos por inconstitucional a interpretação das normas contidas nos nºs 4º, 108º e 115º do D.L. n.º 422/89, de 02 de Dezembro, quando efectuada (como sucede no caso dos autos) no sentido de que um qualquer jogo desenvolvido por máquina electrónica, cujo resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte, mas cujos limites máximos de “prémios” a atribuir resultem da conversão dos pontos ganhos, cujas variáveis se encontram definidas desde ab initio e são do conhecimento dos utilizadores, consubstancia um qualquer jogo de fortuna ou azar,

T. Pois que, uma tal interpretação é claramente inconstitucional por violação dos princípios da “igualdade”, da “liberdade individual” e da “proporcionalidade”, designadamente, das normas constantes nos arts. 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, por clara violação do supre referido princípio da “legalidade”, na vertente de “nullum crimen sine lege certa”, logo, por violação do disposto no art. 29º da Constituição da República Portuguesa.

U. A douta Sentença sob recurso violou os arts. 1º, 3º, 4º, 108º, todos do D.L. n.º 422/89, de 02 de Dezembro, e 13º, 18º e 29º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, deverá ser revogada a douta Sentença ora recorrida, a qual deverá ser substituída por outra decisão que absolva o Recorrente da prática do crime de exploração ilícita de jogo pelo qual foi condenado, com o que modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.


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Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto da comarca, concluindo:

1. Considera o recorrente que o Tribunal “a quo" não poderia haver concluído pelo preenchimento dos elementos típicos do crime pelo qual foi acusado e condenado, tendo em conta a natureza e características da máquina elencada na factualidade dada como provada, pugnando pela respectiva absolvição.

2. Atenta a matéria de facto dada como provada e analisado o teor da decisão ora posta em crise, acolhemos, na íntegra, o entendimento aí sufragado e explicitado detalhadamente pelo Mmo. [uíz If a quo", segundo o qual If é inequívoco que no jogo desenvolvido pela sobredita máquina a pontuação obtida depende em exclusivo do próprio funcionamento desta, estando o desfecho da jogada subtraído por completo à perícia do jogador, dependendo antes da sorte, isto é, de factores aleaumoe"

3. Com efeito, tal como se deixou evidenciado na sentença recorrida, a máquina em apreço nos autos diverge das que foram objecto de apreciação e estiveram na origem da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador pelo STJ citado pelo ora recorrente.

4. Apuradas que foram as características e modo de funcionamento da máquina que o arguido possuía e explorava no estabelecimento comercial identificado nos autos, forçoso é, a nosso ver, concluir que a mesma está totalmente dependentes da fortuna ou azar, o mesmo é dizer, que se mostram, in casu, preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos da prática, pelo arguido, em autoria material, de um crime de exploração ilícita de jogo.

5. Pelo exposto, consideramos não terem sido violados os normativos invocados pelo recorrente, ou quaisquer outros, devendo a sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termo

Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso, e, em consequência, ser integralmente confirmada a douta decisão recorrida, mantendo-se nos seus precisos termos.


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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi observado o disposto no n" 2 do art. 417° do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta


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B - Fundamentação:

B.1.a) – Factos provados:

1. O arguido C… explora um estabelecimento de restauração e bebidas, denominado "CAFÉ …", sito no ….
2. Era este arguido a quem cabia a gestão corrente e funcional do estabelecimento, inserindo-se na exclusiva esfera das suas decisões os assuntos relacionados com a exploração de máquinas de jogo e de diversão, o que incluía a decisão quanto ao tipo de máquinas que eram colocadas no estabelecimento, os contactos e a negociação com os proprietários das condições de exploração das máquinas, fazendo também e simultaneamente o atendimento dos clientes.
3. No dia 19 de Janeiro de 2015, pelas 21 h25m, encontrava-se no referido estabelecimento comercial, concretamente em cima do balcão, uma máquina com a inscrição COLORAMA.
4. No dia 15 de Junho de 2015, pelas 16h30m, o arguido possuía no referido estabelecimento comercial, concretamente em cima do balcão, e pronto a ser utilizada pelo público uma máquina com a inscrição COLORAMA.
5. As máquinas em causa eram constituídas por uma estrutura em madeira e continham um visor que regista os créditos introduzidos pelo jogador.
6. Ao centro do painel frontal, a máquina apresenta um círculo onde se visualizam cerca de 64 led's (diodo emissor de luz), que depois de energizados emitem luz visível. O círculo tem oito led's identificados no painel com as inscrições 1, 2, 5, 10, 20, 50, 100 e 200.
7. Ao centro do círculo encontra-se uma janela digital onde surge a pontuação obtida no decurso das jogadas efectuadas.
10. Ainda no painel frontal, e no canto inferior direito, encontra-se um botão que permite que o jogador possa jogar os créditos obtidos em jogadas premiadas.
11. As referidas máquinas tinham o seguinte modo funcionamento:
a) Após a introdução de uma moeda de €0,50 (permite uma jogada), começam de imediato a ser iluminados os led's, até que sem qualquer intervenção por parte do jogador, as luzes se fixam num, ficando determinado qual a pontuação obtida pelo jogador. Quando as luzes se imobiliza num dos led's assinalados, é registado no visor a pontuação obtida. Caso o ponto luminoso pare num dos restantes led's, sem qualquer referência a pontos, o jogador nada ganha e terá de tentar a sorte outra vez.
b) Se o jogador pretender utilizar os pontos ganhos nas jogadas efectuadas, basta pressionar o botão, que se encontra no painel frontal. Por cada ponto (unidade) assinalado no visor a máquina permite efetuar uma jogada;
c) Cada moeda de € 0,50 proporciona um crédito (assinalado na janela digital correspondente com o número 50 - cada ponto custa €0,50);
d) A atribuição de pontos é exclusivamente dependente da sorte, não havendo intervenção por parte do jogador, para além do acto da colocação da moeda no dispositivo de introdução de moedas;
e) A máquina quando atribuiu um prémio, isto é quando a luz pára num dos 8 led's premiados, não liberta nenhum prémio;
f) Cada unidade de bónus, dá origem a duas jogadas, ou seja se a luz pára no led identificado com "2", o número é registado no visor central, e se o jogador decidir jogar esses pontos basta carregar no botão existente no painel frontal e a máquina efectua quatro jogadas;
g) Os pontos possíveis de obter variam de 1 a 200;
h) O ritmo (velocidade) do jogo é rápido e permite ao jogador realizar várias jogadas por minuto.
10. No lapso de tempo compreendido desde a sua colocação até à sua apreensão, em que a máquina identificada em 4. esteve em funcionamento no "Café …", foi proporcionado aos seus clientes a prática do jogo pela mesma desenvolvido.
11. Era o arguido C… ou os seus funcionários que permitiam o acesso à máquina identificada em 4. pelos clientes e entregavam os prémios correspondentes.
12. O estabelecimento "Café …" não possuía licença de exploração de máquinas de jogos de diversão.
13. O arguido, por referência à máquina identificada em 4., agiu ciente da forma como os jogos acima enunciados se processavam, bem sabendo que lhe estava vedada a sua exploração sem a mencionada autorização e licença, e que tais tipos de jogos só podiam ser explorados em zonas de jogo legalmente autorizadas e por entidades concessionadas.
14. O arguido, por referência à máquina identificada em 4., agiu de modo consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas e tinha a liberdade necessária para se conformar com essa actuação.
15. O arguido detém o certificado de registo criminal n. 110951-E, tendo sido condenado:
i. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de abuso contra a Segurança Social dos artigos 105.° e 107.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, cometidos em Junho de 2005, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5, por sentença proferida pelo 1.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal em 30.6.2011 e transitada em julgado em 19.9.2011 (processo n. 9908/05.6TDLSS);
ii. Pela prática de factos que consubstanciam um crime de exploração ilícita de jogo do artigo 108.°, n. 1, do Decreto-Lei n. 422/89, de 2.12., cometidos em 26.10.2015, na pena de um mês de prisão substituída por 30 dias de multa e na pena de 70 dias de multa, ambas à taxa diária de € 5, por sentença do Juízo Local Criminal de Setúbal - Juiz 3 - Tribunal Judicial de Setúbal de 30.1.2017, transitada em julgado na mesma data (processo n. 236/15.0ECLSS).
16. A máquina identificada em 3., quando ligada à corrente eléctrica, não permite que seja colocado em desenvolvimento o jogo mercê de não ser viável aí creditar pontos devido ao mecanismo de introdução de moedas se encontrar danificado.
17. O arguido reside sozinho em casa arrendada pela qual despende mensalmente a quantia de € 300.
18. Explora um estabelecimento comercial (Café) por via do qual percepciona mensalmente e em média € 750.
19. Enquanto habilitações literárias tem o 12º ano de escolaridade.

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B.1.b) - Factos não provados

A. A máquina identificada em 3. era possuída no estabelecimento comercial pelo arguido.
B. A máquina referida em 3. estava pronta a ser utilizada pelo público.
C. Durante o hiato em que a máquina mencionada em 3. esteve colocada no "Café …" e até à sua apreensão, a mesma esteve em funcionamento e foi proporcionado aos seus clientes a prática do jogo pela mesma desenvolvido.
o. Era o arguido C… ou os seus funcionários que permitiam o acesso à máquina identificada em 3. pelos clientes e entregavam os prémios correspondentes.
E. O arguido, por referência à máquina identificada em 3., agiu ciente da forma como os jogos acima enunciados se processavam, bem sabendo que lhe estava vedada a sua exploração sem a mencionada autorização e licença, e que tais tipos de jogos só podiam ser explorados em zonas de jogo legalmente autorizadas e por entidades concessionadas.
F. O arguido, por referência à máquina identificada em 3., agiu de modo consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade das suas condutas e tinha a liberdade necessária para se conformar com essa actuação.

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B.1.c) - Motivacão de Facto do tribunal recorrido

«Conforme resulta do artigo 374.°, n.? 2, do Código Processo Penal, na sentença deve o julgador explicitar, ainda que concisamente, os motivos fundamentadores da decisão, indicando e apreciando criticamente, para tanto, as provas que serviram para formar a respectiva convicção, sendo certo que, segundo o artigo 127.° do mesmo diploma legal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção, não significando isso, todavia, um juízo arbitrário e/ou meramente subjectivo acerca da prova produzida.

No caso vertente cumpre salientar que o arguido não prestou declarações sofre os factos de que vem acusado, somente as prestando a respeito das suas condições pessoais e económicas.

Assim, a respeito de o arguido explorar o estabelecimento comercial denominado "Café …", cumpre salientar que o Tribunal fundou a sua convicção no teor do depoimento da testemunha P…, presentemente inspector tributário e, em Junho de 2015, inspector da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, o qual, apresentando um discurso sereno, espontâneo e, assim, credível, asseverou que no âmbito das suas anteriores funções verificou que no referido estabelecimento se encontrava uma máquina de tipo roleta em cima do balcão, sendo que era C… que se encontrava no estabelecimento e que de imediato se apresentou como seu explorar, o que, aliás, resulta convergente com as declarações que o arguido apresentou acerca da sua situação económica, assumindo que os seus proventos são obtidos mediante a exploração de um Café.

Não se ignora que a factura simplificada de fls. 47, emitida no estabelecimento em referência, alude a D…, ou seja, não ao próprio arguido, mas a seu familiar. Contudo, é de considerar que a testemunha P… também contextualizou essa situação, dando conta que o arguido, no momento em que se apresentou como explorador do estabelecimento, logo referiu que o mesmo ainda se encontrava em nome de seu pai, mas confirmando aquela circunstância, ou seja, que era já ele quem o explorava. Note-se que esta conversa tida pelo arguido com P… é de viável apreciação, não se ignorando que se efectivou logo após a entrada do depoente no sobredito estabelecimento e, por isso, quando ainda não se verificava qualquer circunstancialismo determinativo da constituição de arguido (cfr. artigo 58.°, n.os 1 e 5, da lei processual penal).

Sintetizando, da conjugação da circunstância de o arguido se apresentar ao balcão do estabelecimento comercial denominado "Café …", de auto-intitular explorar desse estabelecimento e de assumir que os seus rendimentos provêm da exploração de um Café, extrai-se a demonstração de que C… efectivamente explora aquele estabelecimento.

Importa, todavia, contextualizar essa exploração do arguido do sobredito estabelecimento no tempo, pois que se a mesma resulta consolidada pelas razões acima aduzidas a respeito da segunda situação narrada na acusação - isto é, a ocorrida em 15.6.2015, temporalmente contextualizada pelo auto de notícia de fls. 40-41 e pelo auto de apreensão de fls. 42-43, ambos subscritos a respeito daquela data e tendo-o sido pelo depoente P... - já não se afere, porém, sedimentada a respeito da primeira situação mencionada naquela peça processual.

Com efeito, é de reter que por referência ao primeiro evento inscrito na acusação intervieram as testemunhas H… e N…, militares da Guarda Nacional Republicana então em funções no Posto Territorial do Poceirão, tendo ambos os depoentes narrado, em mútua convergência, a efectivação de uma acção de fiscalização a propósito do estabelecimento supramencionado, referindo que em tal ocasião a máquina que apreenderam se encontrava acondicionada no balcão desse Café, igualmente contextualizaram que o arguido não se encontrava presente, tendo-lhes sido mencionado que seria ele quem procedia à exploração desse estabelecimento, razão pela qual deixaram indicação para que aquele o mesmo comparecesse no Posto Territorial, sendo que o mesmo aí efectivamente compareceu, assumindo ser explorador do estabelecimento. Ora, neste tocante cumpre assinalar, por um lado e a respeito do primeiro segmento, que o depoimento das testemunhas atém-se a depoimento indirecto e, por outro, que quando o arguido comparece no Posto Territorial devia ser constituído nessa qualidade processual antes de lhe serem tomadas declarações, razão pela qual o Tribunal não pode fundar a sua convicção neste meio de prova, sendo que inexiste qualquer outro do qual se possa extrair que C… já era explorador do estabelecimento a que se tem vindo a fazer alusão em 19.1.2015.

Note-se, ademais, que a testemunha N… referiu que o arguido trazia consigo, na ocasião em que se dirigiu ao Posto Territorial, as chaves das máquinas do cofre das máquinas que foram apreendidas no primeiro momento inscrito na acusação. Efectivamente foram apreendidas em tal contexto duas máquinas, entre elas a primeira máquina identificada na acusação e denominada "Colorama", conforme atesta o auto de apreensão de fls.11, todavia os termos de abertura de fls. 12-13 aludem ao arrombamento dos cofres e, bem assim, que C… não trazia consigo qualquer chave que permitisse a correspondente abertura, pelo que, a esta parte, igualmente não é viável extrair qualquer consideração.

Do que se vem dizendo, resulta tão-só demonstrada a intervenção do arguido a respeito da segunda máquina (ou seja, no tocante ao evento que ocorreu em 15.6.2016), já não relativamente ao primeiro episódio elencado na acusação, daí o que se fez exarar nos factos provados e não provados.

Relativamente às circunstâncias em que as máquinas resultavam acondicionadas no estabelecimento comercial "Café …", é de consignar que se considerou neste tocante os sobreditos depoimentos, ou seja, os de H… e N… a respeito da primeira situação e o de P… no que concerne à segunda, pois que esses depoimentos, a esta parte, se compatibilizam, respectivamente, com as fotografias de fls. 7-10 e fls. 44-45, enfatizando-se que os três depoentes referiram que as máquinas se encontravam em cima do balcão do estabelecimento em referência, sendo que no tocante ao contexto temporal de ocorrência dos factos, para além do referido pelos depoentes em apreço, também se considerou a data inscrita nos autos de notícia de fls. 2-3 e de fls. 40-41, conjugados com o que se fez exarar a este propósito nos autos de apreensão de fls. 11 e de fls. 42¬43.

No que tange à circunstância de o estabelecimento "Café …" não ter licença de exploração a respeito das referidas máquinas, a sua demonstração extraiu-se dos depoimento das testemunhas identificadas no parágrafo antecedente e, bem assim, da circunstância de as mesmas terem diligenciado pela apreensão das máquinas.

Relativamente às características das máquinas e forma de funcionamento, é de consignar que o Tribunal fundou a sua convicção, quanto àquela que foi apreendida em 19.1.2015 no relatório pericial de fls. 117-118, sendo que relativamente à que foi apreendida em 16.6.2015 no relatório pericial que consta de fls. 119-120, importando ainda considerar, quanto a esta segunda situação, o auto de exame directo de fls. 57¬60.

Note-se que não se ignora que no relatório pericial de fls. 117-118 se exarou que não foi possível colocar a máquina objecto de exame em funcionamento. Todavia, ainda assim, o Tribunal dá como provadas as características e forma de funcionamento da máquina a que se atém esse meio de prova, não se olvidando que é em tudo igual à segunda máquina apreendida e que se refere o relatório de fls. 119-120, conforme, aliás, se torna evidente se analisadas conjugadamente as fotografias de fls. 7-8 e as que constam de fls. 44-45.

Importa, contudo, reter que a máquina a que se refere o relatório de fls. 117-118 não foi colocada a funcionar devido à circunstância de o respectivo mecanismo de introdução de moedas estar avariado, obstando assim ao crédito de pontos e, dessa forma, à realização das jogadas, daí que se considere como não provado que a máquina estava pronta a ser utilizada pelo público, circunstância, porém, não extensível à máquina apreendida na segunda ocasião, essa sim pronta a ser utilizada pelo público.

Relativamente à factualidade atinente ao elemento subjectivo e à consciência da ilicitude, cumpre salientar que a mesma resulta demonstrada tendo em atenção a apreciação da demais factualidade consolidada (ou seja, a que respeita ao elemento objectivo) em consonância com as regras da experiência comum. É de considerar, contudo, que essa demonstração atém-se à factualidade decalcada do segundo evento retratado na acusação e já não a propósito do primeiro episódio aí referido, pois que quanto a este não se sedimentou a actuação do arguido e, por conseguinte, igualmente não se demonstrou a factualidade atinente ao elemento subjectivo nesse tocante.

As condenações já sofridas pelo arguido resultam provadas porquanto inscritas no certificado de registo criminal que se lhe refere e que consta defls. 177-181.

Finalmente, as condições pessoais e económicas atinentes ao arguido assim foram consideradas mercê das declarações que a este parte prestou, as quais, ante o respectivo teor, se consideram verosímeis.»


*

Cumpre apreciar e decidir.

B.2 – O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A questão abordada no recurso, reconduz-se a apurar se os factos imputados ao arguido constituem crime ou modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar com a consequente posição a tomar quanto ao destino dos autos. A insatisfação do recorrente está, assim, limitada à análise de uma questão de direito.

Sobre este tema já tomámos posição em acórdão desta Relação de Évora de 03 de Junho de 2008 no processo nº 421/08-1, com o seguinte sumário:

Existe fundamento ético-social para o sancionamento penal do jogo de azar.

Os critérios da “sorte” (que deve ser restritivamente interpretado) e da “oferta ao público” não servem para a delimitação dos tipos penal e contra-ordenacional de jogo.

O que está em causa nos “jogos de fortuna ou azar” é a aposta, o ganho, o prémio. A perspectiva de, apostando pouco, ganhar muito. Por isso se chamam “jogos de fortuna ou azar”. Fortuna para o ganho (existência de prémio). Azar para a perda (ausência de prémio).

A distinção entre os ilícitos deve fazer-se com recurso aos critérios da “natureza do prémio” atribuído ou atribuível e, também, da “natureza do jogo” praticado.

A natureza da máquina utilizada é irrelevante enquanto critério jurídico distintivo e reduz-se à sua natureza de “facto” determinante para apurar da natureza do prémio atribuído ou atribuível e para saber se o tema por ela desenvolvido se insere na previsão do artigo 4º do diploma, isto é, para apurar os factos pertinentes ao critério da natureza do jogo.

Importa rever os fundamentos dessa decisão em função da posterior publicação do AUJ nº 4/2010 – eventualmente a apreciação da jurisprudência das Relações sobre o tema - sem prejuízo de retomarmos a mesma sistemática de análise e os mesmos termos linguísticos de exposição.

A questão reconduz-se à aparentemente fácil distinção entre crime e contra-ordenação. Fácil na medida em que é suposto que o tipo penal o seja, isto é, que se abrigue à sombra do princípio da “tipicidade” dos ilícitos penais, permitindo ao aplicador do direito e à generalidade dos cidadãos a percepção imediata do ilícito e seus elementos componentes. E facilidade será coisa que se não encontrará nesta análise pois que o problema se encontra na lei cuja ânsia punitiva englobadora de toda a realidade deixa o tipo penal com o simples papel de tudo cobrir, numa evidente violação do princípio da legalidade.

Quando se formula um tipo penal, no artigo 1º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 02 de Dezembro da como “Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte” o que se pode dizer deste tipo penal é que não o é (um tipo penal) enquanto o uso de critérios objectivos e racionais o não limitarem no seu indecoro legislativo por obediência ao princípio da legalidade.

Daí que para enfrentar o problema tivéssemos afirmado no acórdão supra citado que, sendo o objecto do recurso a distinção entre a previsão legal do crime de “exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar” contido nos artigos 1º e 108º do citado diploma e a contra-ordenação do artigo 159º do mesmo diploma (prática de “modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo”) haveria que apurar se entre os preceitos citados são fornecidos ao aplicador critérios distintivos das duas diferentes figuras.

Depois de reconhecer as dificuldades da jurisprudência – e já desde os anos 90 do século passado - afirmámos que se perfilavam nos tribunais da Relação os seguintes entendimentos principais:

a) – O critério da sorte.

Se as primeiras normas afirmam que “Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”, a segunda dispõe no universo contra-ordenacional que as “modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.

Destes dois “tipos” se podem retirar, com segurança, que o elemento objectivo “sorte” não serve para qualquer definição ou esclarecimento distintivo. Em breve: se a “sorte” tudo caracteriza, mesmo o que é diferente, nada distingue.

b) – O critério da oferta ao público.

O elemento diferenciador dos jogos de fortuna ou azar relativamente às modalidades afins destes reside na "oferta ao público", que existe nas segundas, mas não nos primeiros; isto é, nas modalidades afins pressupõe-se sempre a oferta ao público pelas respectivas promotoras e não a mera colocação dos jogos em estabelecimentos em que o público aí se dirige para a respectiva prática”.

c) – O critério da distinção formal.

Actualmente, não existe qualquer distinção material entre os conceitos de jogo de fortuna ou azar e de modalidades afins, por isso, o tribunal, para a delimitação dos tipos descritos nos artigos 108º a 111º e 115º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, tem de partir de um conceito formal de jogo de fortuna ou azar, considerando como tal apenas aqueles jogos cuja prática, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 4º daquele diploma, é autorizada nos casinos”.

d) – O critério da natureza do prémio.

A distinção é feita em função da natureza dos prémios.

e) – O critério misto da oferta ao público e da natureza do prémio.

Aqui a distinção para além de atender aos exemplos legais, tem em conta um critério misto, acolhendo como critérios distintivos a natureza do prémio e o “oferecimento ao público” da operação.

f) – O critério da natureza do prémio e do tema do jogo.

Aqui a distinção em função da natureza dos prémios conjuga-se com o tema desenvolvido pelo jogo.

O critério da natureza do jogo confunde-se com o supra indicado critério da distinção formal.


*

Depois de uma apreciação sobre os critérios afirmámos também que

«a definição do tipo penal não está contida apenas nos dois citados preceitos, os artigos 1º e 108º, pois que também o artigo 4º contém parte da definição do crime em presença, numa técnica que podemos apelidar de mista, já que se os dois primeiros contêm uma previsão genérica, o último desce à definição concreta de exemplos-padrão, não exaustivos (o “nomeadamente”) e não obstante contidos numa norma que autoriza os jogos (mera decorrência da previsão do artigo 3º), nos dá um amplo catálogo de jogos ilícitos contidos na previsão lata de jogo de fortuna ou azar penalmente tutelado”.

Esta técnica dos exemplos padrão dá-nos, portanto, um acervo de jogos de fortuna ou azar ilícitos previstos no seu nº 1, a saber:

Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;

Jogos bancados em bancas simples: black jack/21, chukluck e trinta e quarenta;

Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;

Jogo bancado: keno;

Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;

Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;

Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

Se as primeiras alíneas nos dão um acervo exemplificativo muito extenso de “jogos de fortuna ou azar”, deve notar-se que as duas últimas alíneas, não obstante “exemplos padrão”, apresentam uma natureza tão ampla na sua previsão, no que às máquinas de jogo diz respeito, que servem como elemento distintivo relativamente ao tipo contra-ordenacional.

Se as primeiras remetem para específicos jogos (logo, o critério é o da natureza do jogo), as duas últimas apelam para a natureza do jogo (a última) e para a natureza dos prémios (as duas últimas). Ou seja, estes critérios tanto podem funcionar isolada como conjuntamente.»

Em suma, nessa data assumimos como posição nossa que o duplo critério natureza do jogo e natureza dos prémios era o mais indicado.

Dois anos depois era publicado o AUJ nº 4/2010 que fixou a seguinte jurisprudência:

Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos arts. 159º, nº 1, 161º, 162º e 163º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do DL nº 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.

Como se antolha de fácil entendimento após leitura cuidada do aresto este sumário é o resultado de um labor notável e revela que os seus fundamentos são mais relevantes do que o sumário que teve que se ater e, por isso, limitar, ao caso concreto.

Logo, relevante – porquanto é aí que se irá alcançar as bases de jurisprudência que sirvam todos os casos que impliquem a distrinça entre ilícito penal e contra-ordenacional - é saber quais os critérios aceites e os recusados pelo STJ para fundamentar o indicado sumário jurisprudencial face à legislação vigente.

Porque, é certo, quem se limitar à leitura do sumário do AUJ n. 4/2010 não entenderá o seu sentido.


*

B.3 –Por isso o nosso labor passa exclusivamente – e não fundamentalmente, daí que seja desnecessário ir apurar do sentido actual de outros arestos das Relações – pela interpretação dos fundamentos da decisão já que a simples leitura do sumário pode ser meio caminho andado para a incompreensão da jurisprudência fixada, como aliás se constata na leitura de algumas decisões posteriores, algumas muito imbuídas de apreciações moralistas.

Afirma-se no aresto:

8.7. (…)

O problema reside, portanto, em saber qual o critério a adoptar para a distinção dos jogos em máquinas que devem ser considerados ilícito criminal, daqueles que devem ser considerados como ilícito contra-ordenacional.

Quase todos os critérios passados em revista através da jurisprudência não são aceitáveis, pelo menos em pleno, pois não oferecem as características de completude e exaustividade e, sobretudo, não se baseiam nos critérios relevantes que permitiriam distinguir os dois ilícitos. Daí a multiplicidade de soluções jurisprudenciais, cada qual rechaçando os pontos de vista de outra ou outras, de que pretende demarcar-se.

Não está no nosso fito analisar cada um desses critérios. Sempre se dirá, no entanto, que o critério que faz depender o resultado do jogo exclusivamente da sorte foi nitidamente ultrapassado pela legislação, logo a partir da versão originária do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro e, mais marcadamente, a partir da alteração deste pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro.

O critério da distinção pela natureza dos prémios (se consistissem em dinheiro, estar-se-ia em face de um crime; se de outra natureza, em face de uma contra-ordenação) também não serve para operar a destrinça entre os dois ilícitos, pela simples razão de que os jogos em máquinas automáticas considerados de fortuna ou azar, segundo a definição do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na versão do Decreto-Lei n.º 10/95, não se enquadra de modo algum nesse critério distintivo.

O critério das “operações oferecidas ao público” tem dado origem a diversificadas considerações jurisprudenciais. O que sejam “operações oferecidas ao público” é coisa que a lei não define. Deste modo, a jurisprudência ou tem ido para definições mais ou menos simplistas ou mais ou menos complexas, neste caso envolvendo um promotor, uma oferta da operação e, em certos casos, um ou vários prémios previamente definidos, sendo o número de jogadores ilimitado, ao passo que, nos jogos de fortuna ou azar, não haveria nada disso, sendo o número de jogadores limitado.

E depois, alertando para a essencial valoração do princípio da legalidade, afirmou-se ali:

8.8. O critério para se distinguirem os dois tipos de ilícito – ilícito criminal e ilícito de mera ordenação social – não pode deixar de ser material, no sentido de que se há-de partir das próprias categorias legais, em que assumem, quanto aos tipos legais de crime, relevo especial, na respectiva interpretação, o critério teleológico, fundamentalmente ligado à protecção de um bem jurídico, como expressão do princípio da legalidade, não só na sua feição formal, mas também na sua vertente material (nullum crimen sine lege, certa et prior) e a que estão associados princípios de matriz constitucional tão importantes como os da dignidade penal, de carência de pena e de máxima restrição penal. Destes princípios decorre (…)

Uma das realizações do princípio da legalidade é a da definição, tanto quanto possível precisa, dos respectivos elementos do tipo legal de crime, uns dizendo respeito ao tipo objectivo do ilícito e outros, ao tipo subjectivo, pois o tipo legal de crime tem uma função de garantia dos direitos individuais das pessoas, devendo estabelecer com a máxima objectividade a conduta ou omissão que são valoradas como proibidas..

A definição do tipo legal de crime implica, por consequência, a concretização do princípio da máxima determinabilidade, ou seja, de um certo grau de determinação dos respectivos elementos, definição que, por isso, não pode ser tão genérica, que corresponda praticamente a uma indeterminação, nem tão particularista ou casuística, que dissolva na profusão de elementos o que deve ser tido como essencial. Daí que, muitas vezes, o legislador combine elementos generalizadores com elementos concretizadores, nomeadamente por meio do emprego da técnica de exemplos-regra ou exemplos-padrão. Quanto mais grave for a sanção estabelecida, maior determinação se exige na definição dos elementos do tipo legal, em obediência estrita ao princípio da legalidade, que tem ínsito nas suas implicações o princípio constitucional e, portanto, material, da proporcionalidade. O grau de exigência desta determinação é maior na definição dos tipos legais de crime, do que nos tipos contra-ordenacionais.

Uma outra consequência importante do princípio da legalidade é o de que a norma incriminadora deve ser interpretada restritivamente (odiosa restringenda), ao menos quando haja dúvida séria e firme sobre o seu sentido, e de que o direito penal não tem lacunas, forma uma ordem jurídica completa, na medida em que só as acções ou omissões nela previstas são puníveis, não sendo lícito punir outras condutas omissivas ou activas pelo recurso à analogia.

Centrada assim a questão – bem centrada – no exigível respeito pelo princípio da legalidade, retira deste e da legislação vigente as seguintes asserções (ainda no ponto 8.8):

A caracterização dos jogos de fortuna ou azar é essencial para a distinção entre os tipos de ilícito criminal e as denominadas “modalidades afins”. Ora, tendencialmente, os jogos de fortuna ou azar, de resultado contingente, por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte, segundo a formulação genérica do art. 1.º, são os que estão especificados no art. 4.º, n.º 1. Como se afirma no acórdão-fundamento, estes jogos «estão tipificados de modo exemplificativo, mas, no contexto, tendencialmente especificados». Aliás, o referido art. 4.º começa por afirmar que «nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar (…)», enumerando a seguir, com precisão, os diversos tipos de jogos: os bancados nas suas várias modalidades (alíneas a) a d); os não bancados, também concretamente especificados (alínea e) e os jogos em máquinas, caracterizados nos seus elementos essenciais em duas alíneas (as alíneas f) e g).

Ora, o que a redacção do preceito inculca é que os diversos tipos de jogos considerados como de fortuna ou azar e que são autorizados nos casinos são os que estão especificados na lei, embora outros possam vir a ser igualmente autorizados, por apresentarem características análogas

(…)

Por conseguinte, não obstante exemplificativa a especificação dos jogos de fortuna ou azar constante da lei, ela é tendencialmente completa e comporta uma certa rigidez, como é próprio de um tipo legal de crime, que é um tipo de garantia.

Todas as modalidades de jogos que não correspondam às características descritas e especificadas nos referidos artigos 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins, como se defende no acórdão-fundamento.

No caso das máquinas de jogos, só são de considerar como jogos de fortuna ou azar:

- os jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;

- os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

(…)

Ora, os jogos nas máquinas automáticas em causa nos acórdãos em conflito (Cf. supra 6.1. e 6.2)., se apresentavam resultados que dependiam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não desenvolviam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas.

Por conseguinte, não podiam ser enquadradas em qualquer dos tipos de jogos de fortuna ou azar praticados em máquinas automáticas, tal como descritos nas referidas alíneas f) e g) do n.º 1 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/95, revertendo, antes, para as modalidades afins referidas no art. 159.º, pois constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas.

É certo que os referidos jogos proporcionavam também prémios em coisas com valor económico e em dinheiro, ou só em dinheiro, mas tal circunstância, se não é permitida pelo art. 161.º, n.º 3 do referido diploma legal, também não é suficiente, por si só, para integrar a «específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar», como se diz no acórdão-fundamento. Como vimos atrás, o tipo legal de crime é dotado de uma certa rigidez, que o constitui como tipo de garantia, sendo essa precisamente uma das manifestações do princípio da legalidade. Assim, aquela circunstância não retira aos jogos em causa a natureza de modalidade afim.

Resumindo, o cerne da destrinça entre crime e contra-ordenação na Lei do Jogo assenta num entendimento restritivo da () lei vigente por obediência ao princípio da legalidade que obriga o intérprete a limitar o entendimento de crime à natureza de jogo de fortuna e azar tal como definido no artigo 4º do diploma. Tudo o resto é contra-ordenação.

Concluindo este ponto obrigamo-nos a contrariar uma tendência que se vai estabelecendo na jurisprudência portuguesa de alargamento do tipo penal de jogo ilícito com apelo a argumentos de cariz social e moral.

Referimo-nos aos dois parágrafos finais do aresto, que seguem:

«Acresce que a tutela penal adscrita à proibição dos jogos de fortuna ou azar fora dos locais autorizados encontra fundamento, como se viu (Cf. supra 7.1.1.), em valores de relevante ressonância ético-social, nomeadamente pelos efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial, mas também de carácter pessoal (vida, integridade física, ameaça, coacção) que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de descontrole pode acarretar.

Tal não sucede relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente.»

Esta tendência tem origem numa leitura do AUJ n. 4/2010 que centra a análise em argumentos adjuvantes que no aresto apenas servem como comprovativo de que os jogos previstos no artigo 4º do Dec-Lei 422/89 são o objectivo de proibição do legislador mas que passa a ser encarada nessa tese como o conjunto de argumentos que servem para delimitar o tipo penal.

Assim, de uma jurisprudência que tem a grande preocupação de delimitar o tipo penal em obediência estrita do princípio da legalidade expressa na frase já supra citada (“A definição do tipo legal de crime implica, por consequência, a concretização do princípio da máxima determinabilidade, ou seja, de um certo grau de determinação dos respectivos elementos, definição que, por isso, não pode ser tão genérica, que corresponda praticamente a uma indeterminação, nem tão particularista ou casuística, que dissolva na profusão de elementos o que deve ser tido como essencial.”), passamos a uma jurisprudência que “escolhe” quais os comportamentos que integram o tipo criminal olvidando os critérios dados pelo legislador e optando por critérios de cariz social e moral, designadamente a danosidade social genérica do jogo e os comportamentos compulsivos dos jogadores.

E, em vez de obter – como no AUJ n. 4/2010 – uma leitura restritiva do tipo penal, obtém ao invés um desmesurado alargamento do mesmo ao sabor dos subjectivismos vários.

E, por via da existência deste AUJ e com ele concordando em absoluto, alteramos o nosso anterior entendimento (quanto ao abandono do critério da natureza do prémio), como não podia deixar de ser.

Resta saber o que se passa nos autos.


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B.4 – O arguido foi acusado como autor de 2 (dois) crimes de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108º, n. 1 do Dec-Lei n. 422/89, de 02-12.

Veio a ser absolvido de um deles – dos factos de 19-01-2015 – e condenado pelo outro (factos de 15-06-2015), na pena global e única de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o valor total de € 910 (novecentos e dez euros), e que corresponde à soma das penas de multa (principal e substitutiva) referidas em B. e C. do dispositivo.

A máquina a que se reporta este crime está caracterizada nos factos provados 4 a 9 h).

A prova documental que a suporta consiste num auto de exame directo – a fls. 57-60 – e na perícia de fls. 119-120.

Ora, a perícia, apesar de irrelevantes considerandos de direito e já ultrapassadas referências à sorte, integra pela sua descrição a máquina como integrável na al. g), do nº 1, do artigo 4º do Dec-Lei nº 422/89, de 02-12.

Na prática a máquina é uma roleta electrónica, logo desenvolve um tema próprio dos jogos de fortuna e azar, tais como previstos no art.. 4º do mesmo diploma.

No caso e apesar de ser norma repetitiva deste artigo 4º, o nº 3 do artigo 161º do diploma veda a integração no conceito de “modalidades afins” de “temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto”.

E tanto basta para que, o mais objectivamente possível, se integre no tipo penal consagrado no artigo 108º do referido diploma e apenas porquanto o tipo penal – apesar de se mostrar restringido na sua aparente largueza de previsão, integra-se na citada al. g) do n. 1 do artigo 4º do Dec-Lei nº 422/1989, “jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar”.

Por isso o recurso deve improceder.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal – não obstante por razões diferentes das que sustentaram a decisão recorrida - em negar provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Notifique.

Custas pelo recorrente com 4 (quatro) Ucs de taxa de justiça.

Évora, 24 de Setembro de 2019

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso