Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
37/19.6YREVR
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA DE JUIZ
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – A circunstância de um juiz ordenar a extracção de certidão para efeitos de investigação de um eventual crime de falsidade de depoimento, por factos relativos à prestação de um depoimento no âmbito de um julgamento a que presidiu, não o impede de intervir posteriormente em processo criminal originado por essa mesma certidão.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. O Senhor Juiz de Direito AA, a exercer funções na Comarca de Setúbal, veio requerer a sua escusa de intervir no processo comum singular n.º ----/17.OT9STB, que corre termos no Juízo Local Criminal de Setúbal, contra acusado de um crime de falsidade de depoimento.

Para tanto, alegou:
“AA, Juiz de Direito em funções no Juízo Local Criminal de Setúbal (J4L vem junto de Vossa Excelência apresentar pedido de escusa de intervenção no processo comum singular n.º ---/17. OT9STB, distribuído a este juízo, e no qual é arguida BB.
O pedido tem os seguintes fundamentos:

1) Em 29/01/2019 foi distribuído ao ora signatário o processo comum singular n.º ---/17.0T9STB, no qual é arguida BB.

2) Na acusação deduzida pelo Ministério Público, após sequenciada por decisão instrutória de pronúncia, é imputada à arguida a prática de factos suscetíveis de consubstanciarem a autoria material de 1 (um) crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360°, n.os 1 e 3 do Código Penal;

3) Os factos indiciados reportam-se à prestação de depoimento falso no âmbito do julgamento tido lugar no processo n.º ---/15.5T9STB deste Juízo Local;

Sucede que:

4) No referido processo n.º…/15.5T9STB foi igualmente o signatário a presidir ao julgamento, tendo sido de resto a extração e envio de certidão ao DIAP deste Tribunal para investigação de crime de falsidade de depoimento ordenada em sentença por mim subscrita;

5) Tal circunstância poderá fazer evidenciar na arguida, e junto da comunidade em geral, o sentimento de dúvida em redor da imparcialidade para o julgamento do signatário, que se concluiu ter já firmado um juízo crítico quanto às declarações prestadas pela agora arguida, então como testemunha, em tais autos;

Assim, suscita perante V. Exa. o pedido de escusa da intervenção no processo n.º ----/17.0T9STB, o que faz nos termos previstos nos artigos 43.°, n.º 1,2 e 3, 44.° e 45.°, todos do Código de Processo Penal.”

Juntou cópia da acusação com rol de testemunhas e do despacho judicial que a recebeu.

O Senhor Procurador-geral Adjunto nesta Relação pronunciou-se no sentido da improcedência do pedido, referindo, em síntese, “afigurar-se-lhe não dever proceder a pretensão formulada pelo senhor juiz requerente, sob pena de se banalizar um mecanismo que só em caso extremo deve obstar o magistrado ao exercício das funções e poderes que a Constituição da República e o seu Estatuto lhe conferem”.

Teve lugar a Conferência.

2. O art. 6º da Convenção Europeia do Direitos Humanos consagra a garantia de um processo equitativo, na qual se inclui o direito, reconhecido a qualquer pessoa, a que a sua causa seja julgada por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei.

Daqui decorre que é vedada a criação de tribunais ad hoc, bem como a escolha do juiz e a desafectação de um processo do juiz competente para o julgar.

Resulta, também, que o tribunal deve ser independente relativamente ao poder executivo, a grupos de pressão e/ou de influência, bem como às próprias “partes” do processo, exigindo-se, para tanto, que o juiz se mantenha objectiva e subjectivamente imparcial.

A Constituição da República Portuguesa consagra também o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP) assegurada por tribunais independentes e sujeitos apenas à lei (art. 203º da CRP).

Como nota Cavaleiro de Ferreira, “a organização judiciária é toda vertida no sentido de obter as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição”. E “não basta a exigência efectiva de imparcialidade. Importa que tenha lugar a confiança geral na objectividade da jurisdição. Por isso, naqueles casos em que a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é fundadamente periclitante, o juiz não pode funcionar no respectivo processo” (Curso de Processo Penal, I, 234).

Costuma identificar-se uma vertente interna da imparcialidade e uma vertente externa, tendo a primeira uma configuração subjectiva – no sentido da especial ligação do juiz ao caso ou a algum sujeito processual do caso – e a segunda uma configuração objectiva – no sentido de, independentemente da existência desse especial comprometimento do juiz, assim poder ser entendido pela comunidade em geral.

Por isso o art. 43°, nº 1, do CPP preceitua que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. A lei acentua esta seriedade e gravidade do motivo e a recusa pode ser requerida pelos sujeitos processuais (Ministério Público, arguido, assistente ou partes civis - n° 3 do art. 43º). Já o juiz, não podendo declarar-se voluntariamente suspeito, pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2 do art. 43º do CPP (nº 4 do art. 43º).

A jurisprudência tem vindo a considerar, justamente e sem dissídio, que a seriedade e a gravidade do(s) motivo(s) gerador(es) da desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz só conduzirão à sua recusa ou à sua escusa quando objectivamente diagnosticados num caso concreto. O puro convencimento subjectivo por parte de um sujeito processual não vale com suficiência para fundamentar a suspeição.

Também a exigência de que o(s) motivo(s) seja(m) grave(s) e sério(s) afasta a operância de um qualquer outro fundamento, eventualmente gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, mas situado abaixo daquele patamar mínimo de importância. O motivo sério e grave, apropriado a gerar a desconfiança, há-de resultar de uma concretização material, assente em razões objectivamente valoradas, à luz da experiência comum e conforme um juízo de pessoa-média.

Impõe-se, por tudo, um diagnóstico positivo no sentido de que um cidadão médio possa fundadamente suspeitar de que determinado juiz deixe de ser imparcial por força da influência de uma concreta circunstância ou de um concreto facto invocados.

“As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar”, importando também aferir se a situação em causa “pode ser entendida, pelo lado externo das aparências dignas de tutela, como potenciadora de um espaço de dúvida quanto à existência de riscos para a apreensão objectiva da imparcialidade” (acórdão do STJ de 13.04.2005, Rel. Henriques Gaspar).

Porém, do que se trata não é de acautelar eventuais incómodos pessoais do julgador. “Os incómodos que o juiz poderá sentir em tal situação mais não são que os ónus de ser juiz” (Decisão nº4/2007 do Presidente do TRP, de 17-09-2007). Sendo ainda certo que “o afastamento do juiz (natural) do processo só pode ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o princípio do juiz natural visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal” (STJ de 23-09-2009, Maia Costa).

Os motivos da escusa terão, assim, de ser sempre graves e sérios, atentos os princípios a que fizemos alusão, e que estarão sempre em causa na decisão sobre a desafectação de um juiz a um processo.

No caso, o senhor juiz veio deduzir o incidente de escusa com fundamento em situação que, adianta-se, é de considerar concreta e objectivamente inatendível. Assim se considera, compreendendo-se embora as razões da dedução do pedido em causa, pedido que apresenta a vantagem de permitir clarificar a situação e afastar quaisquer dúvidas que pudessem eventualmente surgir no processo na decorrência dos factos relatados pelo senhor juiz no pedido que formula.

Na verdade, considera-se que a circunstância de um juiz ordenar a extracção de certidão para investigação de um crime de falsidade de depoimento, por factos relativos à prestação de um depoimento no âmbito de um julgamento a que presidiu, não o impede de poder julgar depois, com total imparcialidade e isenção, a referida testemunha, quando já arguida no segundo processo.

No acórdão desta Relação de 02.11.2004 (Rel. Pires da Graça), citado pelo senhor Procurador-geral Adjunto no parecer, decidiu-se que “o juiz que, no desempenho da sua função, ordena a extracção de certidão de determinadas peças de um processo e remessa da mesma ao Ministério Público, não fica, por isso, impedido de intervir posteriormente em processo criminal originado por essa mesma certidão”.

E ali se desenvolveu, em argumentação que é inteiramente de acompanhar e por isso se transcreve:

“Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de pois resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo Requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.

Ora, perante os factos invocados como fundamento da escusa requerida, não é de admitir a susceptibilidade, do ponto de vista do cidadão médio da comunidade onde se insere o julgador, face á motivação apresentada e documentada, de ocorrer desconfiança sobre a imparcialidade do Mmº Juiz Requerente, pois que a actuação impetranda, insere-se na actividade normal do requerente como Juiz de Direito, e, este agiu de harmonia com a sua função no desempenho da justiça, de forma objectiva, sendo ele o juiz do tribunal a seu cargo, podendo e devendo despachar e julgar os processos do tribunal no qual é Juiz, sendo que a sua função não é arbitrária, rege-se por regras processuais e de forma objectiva, sendo possível a sindicância funcional do modo do seu desempenho.

Obviamente que não é aceitável para o cidadão comum, nomeadamente da comunidade onde se situa o julgador, que o juiz no desempenho do seu cargo se escuse a desempenhá-lo de forma isenta e imparcial.

Se não for contestada a imparcialidade pessoal dos juízes nem indicados com precisão factos verificáveis que autorizem a dela suspeitar, não é caso de pedido de escusa ou de recusa, pois que “a imparcialidade do tribunal é uma exigência que resulta da Constituição da República e direito a que uma causa seja decidida por um tribunal imparcial está expressamente consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artº 6º § 1º)” (v. Acórdão do S.T.J. de 6-11-96 in Colectânea de Jurisprudência Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo III 1996, p. 187 e segs.)

Como escreve GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, ed. Verbo, 1996, p. 199, “A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição.”

E, como ressalta do acórdão desta Relação (in processo nº 343/98), é intenção do legislador de “não cair em excesso de garantismo em matéria de imparcialidade da jurisdição deduzida da muito acentuada restrição dos impedimentos até no que toca a parentesco e afinidade, por exemplo - fr. o artº 39º nº 1, a) e b), do actual Código de Processo Penal”

“O CPP/87 utilizou técnica diferente da do CPP/29, mas as relações que neste constituíam motivo de suspeição continuam naturalmente a ser motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.” G. MARQUES DA SILVA, ibidem, p. 203

Ora, a actuação de um Juiz de Direito no desempenho da sua função, quando ordena a extracção de certidão de determinadas peças de um processo e remessa da mesma ao Ministério Público, não confere ao mesmo Juiz escusa de continuar a desempenhar essa mesma função, nomeadamente a intervir posteriormente em processo criminal originado por essa mesma certidão.

Não sendo caso do disposto no artigos 39º e 40º do CPP, tal actuação funcional do Juiz, não constitui motivo sério e grave para fundamentar um pedido de escusa nos termos do artigo 43º do CPP.

No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou como princípio sagrado e inalienável o do juiz natural. – pressupõe tal princípio que intervirá na causa o juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito. O mesmo princípio só é de remover em situações-limite, ou seja, unicamente e apenas quando outros princípios ou regras, porventura de maior dignidade, o ponham em causa, como sucede por exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu múnus. – Ac. do STJ de 5 de Abril de 2000 in proc. nº 156/2000- 3ª, SASTJ, nº 40, 44 e Col. Jur., Acs do STJ, VIII, tomo I, 244.”

Em suma e para concluir, o facto ora invocado não é susceptível de ser visto como adequado a poder influenciar a imparcialidade do senhor juiz no caso concreto. Por essa razão, não constitui fundamento de escusa.

3. Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o pedido formulado, não se concedendo a escusa.

Sem tributação.

Évora, 12.03.2019


Ana Maria Barata de Brito
Maria Leonor Vasconcelos Esteves
António João Latas