Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1865/13.1TBSTR-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Para a qualificação da insolvência importa que tenha ocorrido uma conduta do insolvente que tenha criado ou agravado o quadro de insolvência, que esse comportamento voluntário e ilícito corresponda a uma actuação dolosa ou cometida com culpa grave e é necessário que a situação causal tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 1865/13.1TBSTR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central de Comércio de Santarém – J2
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
O “Banco (…) (…), SA” e outros vieram requerer a qualificação da insolvência de “(…) e (…), Lda.” como culposa, pedindo a afectação de (…) e de (…), sendo que este interpôs recurso da sentença que o julga afectado pela procedência do incidente.
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A sentença recorrida teve o seguinte sentido decisório:
a) Qualifica a presente insolvência como culposa.
b) Julga afectados pela qualificação da insolvência os gerentes (…) e (…), inibindo-os quer para administrarem patrimónios de terceiros, quer para exercerem o comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 5 (cinco) anos.
c) Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
d) Condena a pessoa afectada a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.
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O recorrente (…) não se conformou com a referida decisão e nas suas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«1. O Tribunal recorrido decidiu em manifesta contradição com a matéria de facto e a prova de todos os elementos constantes do processo que permitem e impõem a alteração de matéria de facto provada, por contraditório com esses elementos do processo.
2. A prova documental, junta aos autos pelo recorrente impunha decisão contraditória, por ter ficado provado e demonstrado que o recorrente, em 30/04/2013 cedeu a sua quota na insolvência à empresa (…), que esta empresa assumiu a responsabilidade pelas dividas, obrigações e responsabilidades contraídas pela empresa insolvente, que todos os livros de actas e documentos contabilísticos referentes aos anos de 2011 e 2012, que antecederam a assinatura do contrato de cessão de quotas ficaram depositados no escritório da sede da adquirente “(…), Lda.”, sendo todos os documentos certificados da empresa insolvente entregues por TOC competente na data desse contrato (30/04/2013).
3. Mais ficou provado, em sede de julgamento no processo-crime Comum Singular nº 175/13.9IDSTR do Juízo Local Criminal de Santarém – Juiz 2, que o contrato de cessão de quotas prevê expressamente (artº 5º) provisão para impostos, em préstimos e garantias que a adquirente “(…), Lda.”, assumiu e tomou conhecimento, que esta é uma empresa de distribuição, munida de capacidade plena para ser titular e para exercer a actividade da insolvente, que o recorrente, com a celebração desse contrato em 30/04/2013, renunciou, com efeito imediato, à gerência que vinha exercendo na empresa insolvente e que o IVA do período de 2013/04 passou para a responsabilidade da nova gerência.
4. Mais existe prova, por documento autêntico no processo, constituído por contrato / título de compra e venda celebrado em 21/12/2015 na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, pelo qual o credor Banco (…), adquiriu o imóvel onde a insolvente deste processo laborava, noutro processo de insolvência de outra sociedade do grupo “(…) Tejo (…), Lda.” processo de insolvência P. colectivo nº 13692/14.4T2SNT do Juízo de Comércio de Santarém – Juiz 2 e que através do crédito hipotecário foi dispensada da parte do preço nos termos dos artigos 164º do CIRE e 815º, sendo o preço deste imóvel de um milhão seiscentos e oitenta mil e três autos e onze cêntimos.
5. O Tribunal recorrido fez “tábua rasa” de toda a documentação autêntica e processos indicados nas conclusões anteriores e, de forma “inquinada”, seguiu a visão dos factos apresentada pelo credor Banco (…), que não “cruzou” com a posição deste credor hipotecário e adquirente do valioso imóvel onde laborava a insolvente no outro processo de insolvência da outra empresa e atrás identificado.
6. O Tribunal recorrido não pesou o facto essencial que esteve na origem do contrato de cessão de quotas da insolvente outorgado pelo recorrente com a empresa “(…), Lda.”. A contrapartida pela aquisição desta por um preço simbólico foi o facto de ter de assumir todos os ónus, encargos, responsabilidades pelas dívidas e obrigações contraídas a qualquer título pela sociedade insolvente.
7. O Tribunal recorrido não atendeu, como devia, à prova (resultante do documento autêntico) do teor da certidão da sentença proferida em 19/02/2016, transitada em julgado em 29/03/2016, no proc. comum singular nº 175/13.9 IDSTR – Juízo Local Criminal de Santarém – Juiz 2, no qual o recorrente viria a ser absolvido do crime de abuso de confiança fiscal relacionado com a insolvente, atenta a matéria de facto provada em sede deste julgamento criminal, em especial de que o ora recorrente só foi gerente de facto e de direito na insolvente até 30/04/2013.
8. Também o Tribunal recorrido não pesou como devia o facto, público e notório, relacionado com a “origem” da crise financeira mundial e com estrondosa repercussão em Portugal desde 2008 a 2012/2013 e que assolou a empresa insolvente e agravou (exacerbadamente) a conjuntura económica mundial e foi um “campo fértil” para insolvências em série, de pequenas e médias empresas e, no caso particular, da insolvente.
9. O Tribunal recorrido deu ainda como não provados factos que já foram, antes, dados como provados no processo-crime atrás indicado e que vão em sentido oposto ao constante da decisão recorrida que violou, assim, a força probatória plena dos documentos autênticos e confundiu “livre apreciação da prova”, com “livre arbítrio”.
10. O Tribunal recorrido decidiu com erro de julgamento de facto, decidindo mal e, pior, contra factos já antes provados, infringindo norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais e violando o direito substantivo e com interpretação e aplicação incorrectas de normas reguladoras no caso ajuizado.
11. Além do que a decisão recorrida é injusta por resultar de uma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes e utilizados abusivamente dos poderes discricionários mais ou menos amplos confiados ao Tribunal.
12. O devedor deve requerer a sua declaração de insolvência se a situação não puder ser ultrapassada, em ponderação dos elementos de hermenêutica interpretativa disponíveis. Mas, no caso concreto, tal decisão caberia à adquirente / cessionária (da insolvente), à empresa “(…), Lda.”, e ao gerente por esta indicado para essas funções na insolvente.
13. No caso dos autos, não se vislumbra a descrição e concretização dos comportamentos de insolvência culposa, por parte do ora recorrente, enquanto exerceu funções na insolvente, para se poder concluir, como o fez o Tribunal recorrido, pela qualificação da insolvência como culposa, olvidando toda a factualidade envolvente e atrás indicada não se podendo, assim, atribuir uma presunção ao ora recorrente, que é excepcional.
14. Da sentença recorrida, não se alcança prova dos pressupostos da culpa por o património da insolvente, garantia geral dos credores, se ter tornado insuficiente para a satisfação das obrigações, sendo esta prova (inexistente “ in casu”) o fundamento legal para a qualificação culposa na presente insolvência, no que concerne ao ora recorrente.
15. Não houve, pois, extravio de quaisquer bens pelo ora recorrente ou qualquer intenção deste de criar (ou agravar), propositadamente, a insolvência da “sua própria” empresa, até à data em que a vendeu / cedeu (30/04/2013).
16. As presunções estabelecidas no artigo 186º, nºs 2 e 3, do CIRE são elidíveis, mediante prova do contrário, o que o está plasmado nos documentos referidos nas conclusões anteriores.
17. A sentença recorrida não discrimina, nem descreve os comportamentos (do ora recorrente) devidamente documentados e fundamentados de modo a poder atribuir, como o fez, sem mais, uma presunção que é excepcional, contra o ora recorrente.
18. O recorrente actuou (até 30/04/2013, repete-se), na gestão da insolvente, com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, apesar de, mesmo assim, não ter tido êxito (é que o recorrente não “fez milagres”, nem tem uma “mão invisível” para dominar a economia de um País – e até mundial – por vezes fundada em razões tão subjectivas como a “falta de confiança no mercado…”.
19. Não pode qualificar-se uma insolvência como culposa de forma indiscriminada (como é o caso de sentença destes autos ora em crise) pois que os gerentes, na gestão das empresas, têm autonomia e livres e amplos espaços de livre apreciação nas decisões que tomam sendo que, o inêxito não pode, sem mais, ser o factor crucial de responsabilização do gerente.
20. O panorama da responsabilização dos gerentes na insolvência é complexo e difícil no plano técnico jurídico, implicando a articulação de regras gerais contidas no Código das Sociedades Comerciais, com regras especiais do CIRE.
21. Só, pois, a experiencia e o “bom senso”, contudo, permitirão, aplicar este regime e a respectiva qualificação jurídica da insolvente “caso a caso”, pelos profissionais do foro e não, de forma “literal” como o fez o Tribunal recorrido,
22. Nos presentes autos não ficou provado que o recorrente (até 30/04/2013, quando cessou funções) deixasse de actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade.
23. A sentença recorrida qualificou a presente insolvência como culposa, sem ponderar toda a factualidade subjacente e (mais parecendo ditada pelo não êxito da gestão, ora recorrente, enquanto exerceu funções na insolvente.
24. Motivo, porque a presente insolvência, atentas todas as conclusões anteriores, deveria ser qualificada como fortuita.
25. Foram pois, violados, entre outros, os artigos 350º, nº 2 e 371º, do Código Civil, o artigo 607º, nº 5, CPC, os artigos 18º, 186º, nºs 1, 2 e 3 e 189º, nºs 1 e 2, do CIRE e os artigos 64º, 72º, 78º, 79º, 197º e 271º do Código das Sociedades Comerciais.
Revogando a sentença recorrida e substituindo-a por outra que contemple as conclusões das presentes alegações, farão V. Exas. a costumada Justiça».
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Houve lugar a resposta do Ministério Público e do “Banco (…), SA”, que defenderam que deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da existência de:
a) erro de facto.
b) erro na interpretação e aplicação do direito quanto à existência de conduta culposa na insolvência. *
III – Decisão de facto:
3.1 – Factos provados:
Com relevância para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:
1) Em 07/03/1983 foi registada a constituição da sociedade “(…) e (…), Limitada”, NIPC (…), com o capital social de 249.398,94 Euros, dividido em partes iguais por dois sócios, (…) e (…), que exerciam conjuntamente a gerência – certidão permanente da insolvente junta aos autos.
2) Em 12/01/2012 foi registada a renúncia de (…) à gerência – certidão permanente da insolvente junta aos autos.
3) Na mesma data foi registada a divisão da quota de (…) em duas partes, sendo uma, no valor de 112.229,53 Euros transmitida a (…), e a outra, no valor de 12.469,94 Euros, transmitida à “(…) e (…), Lda.” – certidão permanente da insolvente junta aos autos.
4) Em 30/04/2013 foram registadas as transmissões das 2 quotas de (…), no valor de € 112.229,53 e de € 124.699,47, à empresa “(…) – Supermercados, Lda.”, NIF/NIPC (…), com sede na Rua (…), nº 2-A, 2680 – 074 Loures – certidão permanente da insolvente junta aos autos.
5) Na mesma data, foi registada a renúncia de (…) à gerência da “(…) e (…), Lda.” – certidão permanente da insolvente junta aos autos.
6) Nos termos do contrato denominado “Contrato de Cessão de Quotas”, celebrado entre (…) e “(…) – Supermercados, Lda.”, representada pelo gerente (…), datado de 30-4-2013, «Pelo presente contrato, o primeiro contratante cede, com todos os ónus e encargos, as participações sociais de que é detentor no capital social da sociedade representativa de 94,98% (…) do respectivo valor do capital social da participação social (conjuntamente com quaisquer créditos do primeiro contratante correspondentes aos suprimentos e/ou às prestações acessórias de capital), à segunda contraente na data da assinatura do presente contrato e pelo preço global da aquisição, ficando a adquirente investida na titularidade da sociedade e assumindo a respectiva gestão e controle» – doc. de fls. 241-246.
7) Nos termos do artigo segundo do contrato «o preço global de aquisição é de € 5.000,00 (cinco mil euros), valor acordado para a venda das participações sociais objecto do presente contrato, incluindo o valor a assumir pelo pagamento das dívidas e o preço a pagar pela cessão dos créditos relativos aos suprimentos e às prestações complementares» – doc. de fls. 241-246.
8) No artigo sexto do referido contrato, «6.1. A segunda contraente assume a responsabilidade pelas dívidas, obrigações e responsabilidades contraídas, a qualquer título, pela sociedade, que passarão a ser da responsabilidade da segunda contraente.
6.2. A segunda contraente declara ter recebido do primeiro contraente todos os livros de actas, escrituras notariais e todos os documentos contabilísticos referentes aos anos de 2011 e 2012 que antecedem à data da assinatura do presente contrato de cessão de quotas…» – doc. de fls. 241-246.
9) A última prestação de contas da (…) e (…) depositada na Conservatória está regista sob o DEP 1727, de 2012/07/24, referente ao ano de 2011 (2011/01/01 a 2011/12/31) – certidão permanente da insolvente junta aos autos.
10) Em 31/07/2013, (…) pediu a insolvência da “(…) e (…), Lda.” – processo principal.
11) Em 20/06/2014 foi proferida sentença de declaração da insolvência da requerida, onde foram julgados provados os seguintes factos (entre outros): – processo principal
«2.1.5. A ora requerida enviou ao requerido o escrito particular cuja cópia consta de fls. 27 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido do qual consta designadamente que, na qualidade de gerente da firma “(…) e (…), Lda.” venho pela presente comunicar a V/Exª, em harmonia com o disposto no nº 3 do art. 360º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, a cessão do seu contrato com efeitos a partir da presente data.
2.1.6. Com data de 14 de Maio de 2013 a ora requerida emitiu o documento particular cuja cópia consta de fls. 28 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, denominado de “Declaração de Dívida”, do qual consta, designadamente, que “(…) e (…), Limitada” (…), declara para os devidos efeitos ser devedora a (…), da quantia de 20.783,07 (…), em resultado de salários em dívida referentes aos meses de Março e Abril e quota-parte de Subsídio de férias e indemnização, quantia esta que se obriga a liquidar até 30 de Agosto de 2013.
2.1.7. Em 14 de Maio de 2013 a ora requerida entregou a todos os seus trabalhadores um documento entregue ao ora requerente e referido no artigo 9º da base instrutória (2.1.6).
2.1.8. Alguns trabalhadores da ora requerida intentaram acções emergentes de contrato individual de trabalho no Tribunal de Trabalho contra aquela.
2.1.9. No âmbito destas acções a requerida não compareceu às audiências de parte que foram designadas.
2.1.10. No início do mês de Maio de 2013, uma pessoa que se identificou como representante da ora requerida, disse ao ora requerente e aos demais trabalhadores daquela que a requerida ia cessar a sua actividade e encerrar as instalações.
2.1.11. E no dia 14/05/2013 entregou, em mão, ao ora requerido e aos demais trabalhadores, os documentos cujas cópias constam de fls. 27, 28 e 29 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
2.1.12. Data a partir da qual a ora requerida deixou de exercer a sua actividade e encerrou as suas instalações.
2.1.13. A ora requerida não procedeu ao pagamento ao ora requerente da quantia enunciada no documento cuja cópia consta de fls. 28 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido».
12) Na mesma sentença foi decidido que «1. Fixo a residência ao gerente da insolvente, (…), em Rua (…), nº 2, 2680-074 Camarate» – processo principal.
13) A sentença de declaração de insolvência transitou em julgado em 18/07/2014 – referência 65647867 do processo principal.
14) Em sede de relatório do artigo 155º do CIRE, o Sr. AI nomeado à insolvente declarou que tinha notificado o gerente da insolvente em 30/07/2014, por carta registada, para lhe facultar documentos e indicar a localização dos bens, não tendo obtido qualquer resposta a essa notificação – processo principal.
15) No mesmo relatório declarou ter apurado que tinha identificado 2 veículos automóveis e 2 semi-reboques em nome da insolvente, desconhecendo o paradeiro dos mesmos – processo principal.
16) No apenso de reclamação de créditos, foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no valor total de € 1.741.084,02 – apenso de reclamação de créditos.
17) No apenso D, de verificação ulterior de créditos, foi reconhecido um crédito sobre a insolvência no valor de € 10.203,97 – apenso D.
18) No apenso F, de verificação ulterior de créditos, foi reconhecido um crédito sobre a insolvência no valor de € 11.153,03 – apenso F.
19) A insolvente entrou em incumprimento, perante o Banco (…), em 27/09/2010 relativamente a contrato de locação financeira mobiliária nº (…), bem como em 24/08/2012, relativamente ao empréstimo nº (…), apresentando igualmente valores a descoberto na conta de depósitos à ordem desde 28/12/2012 e em 13/03/2013 ficou igualmente em incumprimento perante o caucionamento da Garantia Bancária nº (…) – doc. de fls. 17 e seguintes.
20) A insolvente já apresentava dívidas à Fazenda Nacional desde o ano de 2010 bem como à Segurança Social em Outubro de 2012, sendo que foram reclamados por estas instituições valores no total de € 57.036,89 e € 31.074,38 respectivamente, referentes a dívidas vencidas em 2012, 2013 e 2014 – doc. de fls. 94-111 e 183-203.
21) Nos 2 anos anteriores ao início do processo de insolvência, a insolvente era proprietária de mais de 30 veículos, os quais foram transmitidos até à declaração de insolvência.
22) O Sr. AI resolveu contratos de transmissão de diversos veículos automóveis da insolvente, dos quais apenas 3 mereceram sentença de procedência de impugnação da resolução em benefício da massa – Apensos B, E e H.
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3.2 – Factos não provados[1]:
a) Aquando do contrato de cessão de quotas, (…) encontrava-se a levar a cabo a reestruturação da insolvente, com redução de alguns custos operacionais e rentabilização de outros.
b) A “(…), Lda.” era uma firma especializada em distribuição logística e transportes, tendo-se apresentada como a indicada para levar a cabo a reestruturação da ora insolvente.
c) Aquando da cessão de quotas, a ora insolvente tinha perto de 30 matrículas em laboração e em excelente localização.
d) (…) a notificação de 03/07/2014 do Sr. AI, identificada em 14 dos factos provados.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da impugnação da matéria de facto:
4.1.1 – Do vício na fundamentação:
O regime jurídico da repartição do ónus da prova encontra-se consagrado nos artigos 341º e seguintes do Código Civil e 414º do Código de Processo Civil.
A parte sobre a qual impende o ónus da prova tem de alegar o facto e de trazer ao processo os respectivos elementos de prova, que sejam suficientes para formar a convicção do juiz. Se não alcançar tal objectivo, o juiz decidirá contra ela.
Estamos essencialmente no domínio da livre apreciação da prova, sem embargo do valor da prova documental autêntica. E contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
Nesta sede, buscando argumentos na lição de Teixeira de Sousa, «o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado»[2].
A fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objectivo – pacificação social, legitimidade e controlo das decisões; e de carácter subjectivo – garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.
Para cumprir a exigência constitucional, a fundamentação há-de ser expressa, clara e coerente e suficiente. Ou seja, não deve ser deixada ao destinatário a descoberta das razões da decisão, os motivos não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos e a fundamentação deve ser adequada à importância e circunstância da decisão.
A fundamentação da decisão deve, pois, permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não impondo.
Embora referindo-se à jurisdição penal, tem aqui aplicabilidade a afirmação que «o sistema de livre apreciação da prova deve definir-se pelo seu significado positivo que se traduz na valoração racional e crítica que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos e assegurar pelo seu conteúdo as garantias procedimentais concedidas pela lei fundamental. É de salientar que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade»[3].
O núcleo essencial mínimo de motivação demanda que esta seja objectiva e clara e, bem assim, se estruture num raciocínio suficientemente abrangente em relação à apreciação dos problemas fundamentais e necessários à justa decisão da lide[4]. Efectivamente, o exame crítico consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica exterior ao processo com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção[5].
De facto, o exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção»[6] [7].
A exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respectiva apreciação crítica nos seus aspectos mais relevantes[8].
Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (artigo 607º, nº 5) deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos[9].
Analisada a decisão sobre a matéria de facto (fls. 301-303), verifica-se que a motivação segue um modelo descritivo que faz a interligação entre prestações probatórias produzidas em audiência, em associação com os documentos incorporados nos autos, qualificando com suficiência as razões do seu convencimento. E isso permite indiscutivelmente avaliar o motivo por que se considerou consolidada a factualidade a que se reportam os temas da prova.
A decisão sobre a factualidade é suficiente e optimiza o critério da análise crítica das provas produzidas em audiência, fazendo pertinentes associações entre a prova documental (incluindo a sentença proferida nos autos principais) e a demais recolhida nos autos.
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4.1.2 – Do erro na avaliação da matéria de facto:
Diz a exposição de motivos da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidireccional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, (ii) indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, (iii) adiantar qual deve ser a decisão proferida sobre as questões de facto impugnadas e (iv) mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso[10].
No caso concreto não tem aqui aplicação este último ponto por o recorrente fazer apelo somente a prova documental. Todavia, ainda assim, a impugnação da decisão de facto não segue as imposições inscritas na lei, por via do disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil[11].
Neste capítulo o recurso é absolutamente genérico e não permite ao Tribunal da Relação divisar onde se situa o erro cometido pela Primeira Instância. Isto é, onde se estriba a sua discordância para concluir que «o Tribunal recorrido decidiu com erro de facto, decidindo mal e, pior, contra factos já antes provados».
Pergunta-se quais são os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados? E qual deveria ser a decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas? E se esses factos poderiam influenciar o raciocínio silogístico formulado?
Todavia, mesmo que assim não fosse, cumpre referir que o Tribunal «a quo» não poderia ter-se socorrido do título de compra e venda do imóvel, porquanto, tal como resulta da acta incorporada a fls. 288-291, a junção da referida documentação não foi admitida e a referida decisão transitou em julgado, estando, por isso, em sede de formulação do juízo prudencial, vedado o recurso a esse instrumento documental para efeitos de construção do juízo silogístico. Nesta dimensão para que a referida documentação viesse a ser virtualmente ponderada o agora recorrente estava vinculado a interpor recurso autónomo desse despacho intercalar e o Tribunal de Recurso a julgar procedente essa impugnação.
O recurso invoca ainda que a decisão relativa ao processo criminal não foi ponderada. Todavia, o objecto daquela decisão não é coincidente com aquilo que se investiga nesta sede. Estamos num domínio em que a vinculação temática é diferente, os ónus probatórios e os princípios da recolha e da valoração da prova não são similares e onde o princípio constitucional da presunção da inocência não tem valia absoluta. E tudo isto impede que se dê razão à interpretação de que a falta de prova no preenchimento dos elementos constitutivos de um crime de abuso de confiança fiscal impõe que se considere que toda a actividade de gerência se situa no patamar do gestor criterioso e ordenado para efeitos de qualificar como culposa uma insolvência, tal como é sugerido implicitamente pelo recorrente.
Com efeito, a disciplina impressa nos artigos 623º[12] e 624º[13] do Código de Processo Civil não invalida a hipótese que determinada factualidade seja considerada provada em sede de procedimento criminal e seguidamente julgada em sentido aparentemente antagónico em sede de procedimento de natureza civil, quando estes factos não se reportem a relações jurídicas dependentes da prática da infracção. Não existe neste segmento qualquer resquício de contradição entre a matéria fixada e a prova constante dos autos.
Também a alegação da crise financeira e económica não é susceptível de promover qualquer alteração no conspecto factual apurado. Complementarmente, ao invés daquilo que é dito em sede de alegações, o julgador «a quo» fixou na decisão de facto os aspectos relacionados com o contrato de cessão de quotas e a renúncia à gerência do recorrente Jorge Fernando Paredes. E, por conseguimento, a existir aqui algum vício decisório o mesmo está confinado a um erro de direito e não a uma deficiente fixação dos factos.
E analisada toda a prova, o Tribunal da Relação entende que a impugnação efectuada não é idónea a ultrapassar o juízo decisório elaborado pela Primeira Instância. E, assim sendo, não existe o mínimo fundamento para promover a alteração da decisão tomada a respeito dos factos provados e não provados, dado que não há elementos objectivos que impusessem decisão diversa, à luz do regime plasmado no artigo 662º do Código de Processo Civil.
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4.2 – Do erro de direito:
4.2.1 – Da qualificação da insolvência:
A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o nº 2 do artigo 82º (artigo 185º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo (artigo 186º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
A apreciação da culpa deve ser feita à luz da disciplina contida no nº 2 do artigo 186º[14] do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa e o nº 3[15] do mesmo preceito provisiona situações em que a responsabilidade se presume.
Estabelece o nº 4 do presente artigo que «o disposto nos nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso se não opuser a diversidade de situações».
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Sobre esta matéria debruçam-se Carvalho Fernandes[16], Carneiro da Frada[17], Menezes Leitão[18], Maria do Rosário Epifânio[19] [20] e Catarina Serra[21], entre outros.
Para a qualificação da insolvência importa que tenha ocorrido uma conduta do devedor ou dos seus administradores que tenha criado ou agravado o quadro de insolvência, que esse comportamento voluntário e ilícito corresponda a uma actuação dolosa ou cometida com culpa grave e é necessário que a situação causal tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
E, assim, para que a insolvência possa ser considerada culposa é imperioso que se esteja perante uma conduta dolosa ou com culpa grave que apresente um nexo de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento, cometida dentro de um determinado limite temporal.
O nº 2 do artigo 186º elenca, de forma taxativa, nas suas alíneas a) a i) as situações fácticas que implicam a caracterização da insolvência como culposa e ali estão presentes presunções iure et de iure, inilidíveis, que fundamentam a existência de um quadro de culpa grave, da existência do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência[22] [23] [24].
A mera alegação de alguma das situações descritas nos nºs 2 e 3 do artigo 186º do CIRE não é suficiente para a qualificação da insolvência como culposa, exigindo-se, ainda, a alegação e prova do nexo de causalidade entre a actuação ali presumida e a situação da insolvência nos termos previstos no nº 1 do mesmo artigo. Verificada a existência de factos que se reconduzam às situações previstas no nº 2 do artigo 186º do CIRE, extrair-se-á em princípio (a lei extrai, ficciona) a ilação da verificação da insolvência culposa, sem necessidade de comprovação (ou alegação) de outros factos[25].
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A questão da dissipação do património societário está incluída no ponto 21 dos factos provados. No entanto, como é reconhecido pela Primeira Instância a situação é inconclusiva e a mesma não está reflectida na construção da decisão recorrida. Em adição, o incumprimento dos deveres de colaboração do gerente com o AI não ficou demonstrado. E assim estas duas hipóteses factuais não justificaram a procedência do incidente de qualificação, como ressalta da simples leitura da sentença.
Na óptica do julgador de Primeira Instância a insolvência foi julgada culposa por força da sua integração na previsão contida no artigo 186º, nº 2, al. i) e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Da análise integrada da factualidade apurada no binómio passivo e património da insolvente, o Juízo Central de Comércio de Santarém concluiu que «a situação de insolvência da “(…) e (…), Lda.” remontava, se não a 2010 (art. 20º/1-g-i do CIRE), pelo menos a 2012.
Ora, não tendo havido qualquer apresentação à insolvência até que em Julho um credor veio requerer a mesma, há evidente violação da obrigação de apresentação à insolvência, imposta nos termos do art. 18º/1/3 e 20º/1-g-i e ii, ambos do CIRE».
Neste particular a decisão faz apelo às dívidas vencidas em 2010 para a ATA, 2012 para o ISS, IP e para o Banco (…), SA [factos 19 e 20] e responsabiliza ambos os antigos gerentes da insolvente por essa situação, pois «quer um, quer o outro, tiveram mais de 30 dias de conhecimento da situação financeira da insolvente para a apresentarem à insolvência, e essa situação de insolvência remontava já, pelo menos, a 2012».
A entrega das actas e dos documentos contabilísticos referentes aos anos 2011 e 2012 à “(…), Lda.” não afasta a obrigação anterior de apresentação tempestiva à insolvência. É assim lícito o juízo valorativo formulado pelo Tribunal recorrido quando considera que qualquer dos gerentes infringiu esta obrigação injuntiva e que o recorrente tinha na sua disponibilidade a possibilidade de se apresentar à insolvência.
No desenvolvimento do seu raciocínio silogístico, a decisão recorrida fundamenta-se na violação da obrigação de prestação e depósito das contas na CRC competente relativamente ao ano de 2012. Para tanto, ficou exarado na sentença que, por via do contrato de cessão de quotas, «todos os elementos da contabilidade de 2011 e 2012 foram transmitidos à (…), Lda.» e, como tal, a referida violação é exclusivamente imputável a Eduardo Silva, «pois era ele o gerente à data da constituição da obrigação, e era ele que estava na posse dos elementos necessários ao seu cumprimento».
O recorrente invoca que a data do contrato de cessão de quotas desresponsabiliza o recorrente pelos comportamentos apurados. No entanto, o julgador de Primeira Instância estabeleceu o limite de actuação temporal de cada um dos gerentes no prosseguimento do comportamento delituoso e assim a crítica contida nas alegações não tem assim qualquer eficácia prática. O Tribunal limita os comportamentos delituosos de um e de outro gerente tendo em atenção o momento da realização da operação de cessão de quotas.
A concretização dos comportamentos de insolvência culposa, por parte do ora recorrente, enquanto exerceu funções na insolvente, está suficientemente descrita na matéria de facto provada e não estão presentes no acervo factual os elementos que permitam concluir que o contexto de crise financeira teve uma influência na ocorrência do estado de insolvência ou que existe qualquer outra causa de isenção da culpa.
A matéria apurada viabiliza assim a integração dos comportamentos descritos no conceito de insolvência culposa e o Tribunal «a quo» realizou o percurso avaliativo factual e axiológico-normativo relativamente à subsunção da situação no contexto da alínea i) do nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como da violação das obrigações de apresentação à insolvência no que se reporta à actuação do recorrente.
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Segundo as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 189º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na sentença em que se qualifica a insolvência como culposa o juiz deve fixar, entre dois e dez anos, o período de tempo em que o afectado fica proibido de administrar património de terceiros e de exercer o comércio.
A propósito da insolvência culposa, o Tribunal Constitucional emitiu posição no sentido de que «esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do nº 2 do artigo 189º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do nº 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal»[26].
A doutrina também tem entendido que o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do nº 2 ou do nº 3 [27] [28].
Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do nº 2 do artigo 189º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas, atentando que na determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias devem ser utilizados critérios objectivos baseados no grau de ilicitude e de culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.
O recorrente apenas defendia que não existia fundamento para a afectação da sua pessoa mas não transportou para os autos elementos que colocassem em causa a ideia de proporcionalidade na aplicação das medidas sancionatórias impostas e, nesta perspectiva, na avaliação do grau de culpa, não existe fundamento para promover qualquer alteração.
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Assim, nenhum dos argumentos colocados no recurso é idóneo a modificar o anteriormente decidido. De modo que, em conclusão final, a decisão recorrida não viola as disposições normativas invocadas pelo recorrente e entende-se que a sentença foi criteriosa e actuou de acordo com as exigências hermenêuticas adequadas ao caso concreto. E, por isso, a sentença aplicou correctamente a disciplina precipitada nos artigos 185º e 186º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresa e assim mantém-se nessa parte a decisão recorrida.
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V – Sumário:
1. Para a qualificação da insolvência importa que tenha ocorrido uma conduta do insolvente que tenha criado ou agravado o quadro de insolvência, que esse comportamento voluntário e ilícito corresponda a uma actuação dolosa ou cometida com culpa grave e é necessário que a situação causal tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2. O nº 2 do artigo 186º do CIRE elenca, de forma taxativa, situações fácticas que implicam a caracterização da insolvência como culposa e ali estão presentes presunções iure et de iure, inilidíveis, que fundamentam a existência de um quadro de culpa grave, da existência do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
3. Tratando-se de pessoa singular, a qualificação da insolvência como culposa ou fortuita apenas depende da verificação de um comportamento enquadrável na noção geral contida no nº 1 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e/ou das presunções contidas no nº 2, as quais são susceptíveis de aplicação a devedores singulares, atendendo às circunstâncias do caso concreto, não lhe sendo, porém, por natureza, aplicáveis as situações descritas nas als. e) e h) do referido dispositivo.
4. Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do nº 2 do artigo 189º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas, atentando que na determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias devem ser utilizados critérios objectivos baseados no grau de ilicitude e de culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente, face ao disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
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Processei e revi.
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Évora, 12/04/2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
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[1] Ficou consignado na sentença que «com relevância para a boa decisão da causa, não se apuraram quaisquer factos incompatíveis com a factualidade consignada supra».
[2] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa 1997, pág. 348.
[3] José Manuel Tomé de Carvalho, Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português, Julgar 21, Setembro-Dezembro 2013, pág. 84.
[4] José Manuel Tomé de Carvalho, obra citada, pág. 83.
[5] José Manuel Tomé de Carvalho, obra citada, pág. 84.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2006, in www.dgsi.pt.
[7] No mesmo sentido, pode consultar-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2002, in www.dgsi.pt.
[8] Lebre de Freitas e João Redinha, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 628.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, Almedina, pág. 265.
[10] No presente caso e na generalidade, os recorrentes apenas aludem ao início e termo de alguns testemunhos mas ignoram a actual obrigação de mencionar com exactidão as passagens.
[11] Artigo 640º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
[12] Artigo 623º (Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória):
A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção.
[13] Artigo 624º (Eficácia da decisão penal absolutória):
1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
[14] Nos termos do nº 2 do artigo 186º «considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº2 do artigo 188º».
[15] 3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
[16] A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, Themis, edição especial, 2005.
[17] A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, separata da Revista da Ordem dos Advogado, Ano 66, II, Lisboa 2006.
[18] Direito da Insolvência, 5ª edição, Almedina, Coimbra 2013.
[19] Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
[20] O Incidente de qualificação de insolvência, in Estudos em Homenagem ao professor Saldanha Sanches, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra 2001.
[21] Decoctor ergo fraudator? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções), in Cadernos de Direito Privado nº 21, 2008.
[22] Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2º Vol., pág. 14.
[23] Manuel Carneiro da Frada in A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, Ano 66, Set. 2006, pág. 692.
[24] No plano jurisprudencial podem ser consultados, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/11/06, do Tribunal da Relação do Porto de 22/05/07, de 18/06/07, de 13/09/07, de 27/11/07, do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/01/08 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/09/07, todos disponíveis in www://dgsi.pt.
[25] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/02/2011, in www.dgsi.pt.
[26] Acórdão nº280/2015, publicado no DR 115/2015, II Série.
[27] Maria do Rosário Epifânio, obra citada, pág. 137.
[28] Carvalho Fernandes e João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa 2015, págs. 692-698.