Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1643/15.3T9STB.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: BURLA QUALIFICADA
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 07/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Comete o crime de falsificação aquele que em email enviado para o email do Mandatário da ofendida, junta um documento comprovativo de uma suposta transferência do valor de €1.000,00, para a conta daquela, a partir da sua conta bancária, o que não tinha qualquer correspondência com a realidade, porquanto a conta não possuía fundos suficientes para a efetivação da operação, visando, dessa forma, obter um benefício ilegítimo que consistia em conservar a quantia de que se apropriara e protelar no tempo a possibilidade de devolver os valores a que se comprometera e evitar que intentassem contra si os meios legais ao dispor.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Setúbal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o arguido PP foi pronunciado, pela prática dos factos descritos na acusação do Ministério Público, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 1, por referência à alínea a) do art. 202.º, todos do Código Penal (CP), e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea a), do CP.

T., Lda. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 8.400,00, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido e até integral e efectivo pagamento.

Proferiu-se despacho de homologação da desistência de queixa quanto ao crime de burla qualificada e de extinção da instância cível por inutilidade superveniente da lide.

O arguido apresentou contestação, defendendo, em síntese, que familiares lhe garantiram fazer uma transferência para a sua conta bancária, do que estava convencido, quando deu a ordem de transferência em apreço nos autos, mas que tal não ocorreu; que nos autos inexiste qualquer documento, mas mera fotocópia de um comprovativo de transferência, o qual não cria nenhuma convicção de pagamento e que não obteve qualquer benefício ilegítimo ou enriquecimento injustificado.

Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se julgar a acusação procedente e, em conformidade, condenar o arguido pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea d) - e não pela alínea a) do mesmo preceito -, do CP, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à razão diária de € 5,20 (cinco euros e vinte cêntimos).

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:

1. A douta sentença de fls. … a fls. …, objecto do presente recurso fez uma deficiente aplicação do direito e desconsiderou matéria de facto provada, que a ser tida em conta conduziria a uma solução diversa da proferida.

2. Existem três questões essenciais a decidir:

a. Se o arguido/recorrente praticou um crime de falsificação ideológica do documento enviado.

b. Se a declaração que o mesmo incorporou é ou não um facto juridicamente relevante.

c. E se o arguido/recorrente obteve com isso benefícios ilegítimos.

3. O arguido/recorrente dirigindo-se ao seu banco emite a seguinte declaração: “proceda à transferência da quantia de 1.000,00€ para a conta com NIB …”

4. Em consequência de tal declaração, o sistema informático do Banco emite um comprovativo de tal ordem.

5. Assim sendo este documento comprovativo não é elaborado pelo arguido/recorrente, mas sim por terceiro, que é o Banco segundo as suas declarações.

6. O que impede a sua punibilidade criminal no âmbito da falsidade ideológica, conforme doutrina e jurisprudência uniforme.

7. Neste sentido e por mero exemplo, Acórdão da Relação de Évora no proc1649/13.7TDLSB.E1 do douto relator CLEMENTE LIMA – in www.dgsi.pt, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26/3/2014, relatado pela Sra. Desembargadora Maria Pilar Oliveira, proferido no processo 18/10.5TATND.c1, in www.dgsi.pt, Acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça (FJ), de 01/19/2000 (DR ISA, de 17/2/2000), do Tribunal da Relação do Porto, de 01/21/2015 (Proc. 7640/13, como os demais citandos disponível em www.dgsi.pt), e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/26/2014 (Proc. 18/10), e de 12/18/2013 (Proc. 18/13) e, de par, Helena Moniz, seja no «Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial», Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pp. 674 e segs., seja em «O Crime de Falsificação de Documento», Coimbra Editora, 2004 (2.ª reimpressão), pp. 208 e segs.

8. No caso em apreço o arguido/recorrente apenas transmitiu uma declaração de vontade, que o Tribunal “a quo” considerou inverídica.

9. O Banco narrou no documento o que o arguido/recorrente lhe transmitiu, e este foi fiel e o documento reproduz o que realmente lhe foi transmitido/ordenado.

10. O documento não é falso, pois é autónomo ou independente das declarações prestadas serem ou não verdadeiras.

11. Na douta sentença proferida a Meritíssima Juiz “A Quo” para fundamentar a condenação do arguido/recorrente foi-se socorrendo de vários conceitos, sobre o documento, distintos e até opostos, pois tanto diz que o arguido criou o documento, como diz que o arguido o extraiu, como diz que o arguido o emitiu e ainda que fez constar facto falso em documento regular.

12. Esta manifesta incoerência e imprecisão do Tribunal “a quo” origina a que o ponto 13 dos factos dados como provados, na parte onde se diz que “Do mesmo modo ao criar o documento referente à transferência…“ terá necessariamente que ser alterado para não provado nessa parte.

13. A Meritíssima Juiz “a quo” apenas poderia considerar provado que o arguido/recorrente anexou a um email um comprovativo de ordem de transferência emitido pelo Banco e nunca que o criou, pois o mesmo é criado pelo sistema bancário após a sua declaração.

14. De igual forma, errou a Meritíssima Juiz “a quo” considerar que tal documento continha um facto “juridicamente relevante para a relação jurídica em causa (pagamento de dívida)

15. O documento em causa (comprovativo de ordem de transferência), não é um pagamento, mas sim uma ordem de pagamento.

16. As transferências efetuadas, após as 15 horas de um dia (como foi a dos autos) apenas são processadas no dia útil seguinte, o que poderá originar que não se concretizem.

17. Tal resulta de fls 19, 23, 26, 162 e seguintes e 306 dos autos.

18. O comprovativo de uma transferência mais não é do que uma ordem de transferência e por tal será com esse pressuposto que se poderá aferir do efeito jurídico de tal comprovativo.

19. Tal documento nunca poderá incorporar um facto juridicamente relevante, conforme sobejamente defendido pela doutrina e jurisprudência

20. “…Por isso, Helena Moniz, refere que seguindo este rumo, a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, apenas daquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. - HELENA MONIZ, Comentário Conimbricense, II, 683., In Acórdão da Relação de Évora no proc1649/13.7TDLSB.E1 do douto relator CLEMENTE LIMA – in www.dgsi.pt” e TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, Procº NUIPC 4840/13.2T3SNT.L 1 do douto relator Agostinho Torres in www.dgsi.pt

21. Mesmo considerando que o arguido/recorrente sabia que não tinha fundos, só poderia dar como provado que este prestou uma declaração, com elementos inexatos perante o Banco, e esta indução em erro não é punida.

22. No mesmo sentido do reportado; entre outros:
- ac. RP de 2-7-2014, proc. 4741/10.6T3SNT.P1;
- ac. RP de 7-5-2014, proc. 6041/13.OTAVNG.P1
- ac. RC de 26-3-2014, proc. 18/10.5TATND.C1;
- ac. RC de 18-12-2013, proc. 18/13.3TAVLF.C1:
- ac. RP de 4-5-2011, proc. 663/07.6TAFAF.P1.

23. O envio de tal documento (comprovativo de ordem de transferência) é incapaz de constituir, modificar ou extinguir a relação jurídica entre ambos.

24. Para que um arguido/recorrente seja condenado criminalmente, ainda que de um crime de natureza pública, o Tribunal nunca poderá dissociar o eventual comportamento e as suas consequências no caso concreto.

25. O envio de um comprovativo de uma ordem transferência não é um facto juridicamente relevante pois que em todas as situações, para qualquer bom pai de família ou homem médio apenas cria na sua esfera jurídica a expectativa de recebimento.

26. O envio do comprovativo da ordem de transferência no caso concreto foi totalmente inócuo.

27. Diferente seria se, com tal documento evitasse a prescrição do procedimento criminal, ou originasse qualquer quitação ou qualquer ato da ofendida que prejudicasse e diminuísse o seu direito.

28. A ofendida não praticou qualquer facto, diferente do que teria praticado se tal comprovativo não tivesse sido enviado.

29. A queixa dos presentes autos apenas foi apresentada em 13/04/2015 e já no dia 26 de Outubro de 2014, a ofendida tinha conhecimento que a ordem de transferência não se tinha concretizado.

30. O envio de tal documento não fez protelar no tempo o que quer que fosse, uma vez que a ofendida mesmo após a não concretização da ordem de transferência não agiu de imediato.

31. Assim e face ao exposto, também deverão V. Exªs alterar a redação do ponto 11 da matéria dada como provada, na parte onde se diz “tinha pago aquele montante” para “tinha dado ordem de pagamento”

32. E em consequência dar não provado que o arguido/recorrente tenha obtido um benefício ilegítimo.

33. Por tal, não existiu qualquer falsificação do documento, nomeadamente a prevista e punida nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 256 do Código Penal.

34. Outrossim há uma clara violação do referido preceito legal, ao condenar o arguido/recorrente.

35. Devendo o arguido/recorrente ser absolvido da prática do crime de falsificação.

TERMOS EM QUE, JULGANDO PROCEDENTE POR PROVADO O PRESENTE RECURSO ALTERANDO A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, E EM CONSEQUÊNCIA ABSOLVENDO O RECORRENTE DO CRIME PELO QUAL FOI CONDENADO, SE FARÁ INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, sem extrair conclusões, no sentido do não provimento do recurso e da manutenção integral da decisão recorrida.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em idêntico sentido.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido veio, no essencial, reiterar a sua posição.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, nºs 2 e 3, do CPP, designadamente de harmonia com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995.

Delimitando-o, reconduz-se a apreciar:
A) - da alteração da matéria de facto;
B) - do não preenchimento do crime de falsificação de documento.

Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida:

Factos provados:

a) Da pronúncia:
1) O arguido PP exerceu funções como trabalhador na sociedade “V…, Lda”, sociedade com o NIPC …., cujo objeto social é o de atividade de consultoria, promoção e marketing nas áreas de transporte aéreo, terrestre, marítimo e marketing turístico, com sede na Av. Defensores de Chaves…, em Lisboa”, o que fez desde data não concretamente apurada, mas até Novembro de 2014.

2) A «T…, Lda” recorreu aos serviços daquela sociedade para tratamento de vistos e marcação de viagens, porquanto os seus trabalhadores deslocavam-se com regularidade para o estrangeiro, designadamente para Angola, para aí prestar funções.

3) Com vista a diligenciar pela marcação dessas viagens e respetivos vistos, a sociedade ofendida contactou e negociou com o arguido PP.

4) Assim, entre o final do mês de Agosto e início do mês de Setembro de 2014, a ofendida solicitou ao arguido, enquanto, trabalhador da “V…”, a reserva/marcação de sete viagens de ida e volta para Angola e respetivos vistos.

5) Em ordem a tratar de todo o processo relacionado com as viagens em questão foram trocados diversos mails entre a ofendida e o arguido e desta forma a ofendida estava convencida que o arguido tinha providenciado pelas reservas e emissão dos vistos.

6) Tanto assim, que no dia 8 de Outubro de 2014, o arguido remeteu para o legal representante da ofendida, CC um mail com o itinerário das viagens e onde esclarece que só conseguiu voos para o dia 17.10.2014 e no qual solicita o respetivo pagamento para avançar com a emissão dos bilhetes.

7) Para o efeito e por solicitação do arguido, a ofendida transferiu os seguintes montantes, para o NIB 0079…., indicado pelo arguido:

a. No dia 24.09.2014 foi transferido o montante de €9.350,00;
b. No dia 08.10.2014 foi transferido o montante de €1.400,00;
c. No dia 09.10.2014 foi transferido o montante de €1.650,00.

8) O NIB acima descrito corresponde à conta do “BANCO BIC PORTUGUÊS S.A.”, na qual o arguido é cotitular.

9) Sucede que contrariamente ao acordado, o arguido não agiu em conformidade com o que tinha sido acordado com a ofendida e não emitiu os bilhetes de avião e respetivos vistos.

10) A sociedade ofendida contactou, então, a “V…”, sendo que o arguido se comprometeu a ressarcir a ofendida dos valores descritos em 7.

11) Assim, com esse propósito o arguido enviou, no dia 25.10.2014, do email “p….@hotmail.com” para o email do I. Mandatário da ofendida, um documento comprovativo da transferência do valor de €1.000,00, efetuada a 24.10.2014, fazendo crer na ofendida que tinha pago aquele montante.

12) Sucede que aquele documento não corresponde a qualquer transferência bancária efetivamente efetuada, porquanto nenhum valor foi transferido para a conta da sociedade ofendida.

13) Do mesmo modo ao criar o documento referente à transferência do montante de €.1000,00, o arguido atuou com o propósito concretizado de fazer uso do mesmo, cujo conteúdo sabia não corresponder à realidade, colocando em causa a confiança que esses documentos merecem, fazendo crer ao ofendido que a dívida estava a ser paga obtendo um benefício ilegítimo que de outra forma não lograria alcançar, mas quis, ainda assim, atuar.

14) Agiu o arguido sempre de modo livre, deliberado e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

b) Da Contestação:
15) O arguido é trabalhador e respeitado e considerado por todos os amigos, vizinhos e restantes familiares.

c) Da Audiência de discussão e julgamento:
16) Posteriormente, o arguido ressarciu a «T…» da totalidade dos montantes apropriados.

17) O arguido é empresário e aufere mensalmente o valor de €516,00.

18) Vive em união de facto com companheira, empresária, com rendimento mensal no valor de €516,00.

19) Vive em casa própria da companheira, suportando cada um o montante de €150,00 relativo ao crédito bancário correspetivo.

20) O arguido tem averbado ao seu certificado de registo criminal as seguintes condenações:

a. Por Sentença de 21/09/2017, proferida no processo nº ---/16.0IDLSB e transitada em julgado em 21/09/2017, foi o arguido condenado pela prática, em 16/11/2015 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de € 5,50.

b. Por Sentença de 30/11/2017, proferida no processo nº ----/16.5IDLSB e transitada em julgado em 02/01/2018, foi o arguido condenado pela prática, em 01/03/2015 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT, na pena de 80 (oitenta dias) dias de multa à taxa diária de € 6,00.

c. Por Sentença de 11/05/2018, proferida no processo nº ---/16.6IDLSB e transitada em julgado em 30/05/2018, foi o arguido condenado pela prática, em 16/05/2015 de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 6 e 7 do RGIT, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 6,50.

Factos não provados:
a) Da Contestação:
a) O arguido quando deu a ordem de transferência no valor de €1.000,00, no dia 24/10/2014, às 19h01 estava convencido de que alguns familiares lhe teriam efetuado uma transferência que cobria tal montante e tinha a certeza e a convicção legítima de que a mesma poderia ser efetuada.

Motivação da matéria de facto:
O tribunal formou a sua convicção quanto a todos os factos, provados e não provados, mediante a análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, designadamente no cruzamento das declarações do arguido e das testemunhas, apreciadas segundo o princípio da livre convicção do julgador e as regras da experiência comum e do normal acontecer, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. Tais meios de prova foram ainda conjugados com a prova documental existente nos autos, nomeadamente conteúdos de emails enviados e recebidos pelo arguido (cfr. fls. 7 a 26, 29 a 35, comprovativos de transferências bancárias, documentação bancária (cfr. fls. 162 e ss) e certidão comercial (cfr. fls. 39 a 47).

Concretizando.
a) Da matéria de facto provada:
O arguido optou por falar ao tribunal e embora tendo confirmado os factos porque se encontrava pronunciado, apresentou uma justificação no sentido de que no momento em que ordenou a transferência em causa nos autos, pensava que a conta bancária teria fundos suficientes para a sua concretização, facto que não se verificou por motivos alheios à sua vontade. Todavia, esta explicação do arguido foi contrariada pela demais prova, nomeadamente pela prova documental como infra se demonstrará.

O arguido não colocou em crise os factos 1) a 10) da pronúncia, donde resulta a confirmação de que trabalhou para a empresa «V…» e, nessa qualidade, prestou serviços para a «T…» relacionados com a reserva de marcação de viagens para Angola e dos respetivos vistos. Nesse contexto trocou emails com essa empresa e recebeu na conta bancária do Banco BIC Português, da qual é cotitular, as quantias indicadas no ponto de 7, para pagamento de viagens e vistos para Angola de trabalhadores da «T….», as quais nunca chegaram a ser emitidas. Por esse motivo, o arguido comprometeu-se a ressarcir a «T…» das indicadas quantias recebidas.

A factualidade acabada de referir, encontra também suporte na demais prova produzida, nomeadamente prova documental (emails, certidão comercial e documentação bancária) e declarações das testemunhas PB e CC, que não obstante se tratarem de funcionário e administradora da «T…», depuseram de forma desapaixonada e neutra, sem indiciar qualquer interesse na demanda, até porque já se encontram ressarcidos das quantias que reclamavam do arguido, sendo assim os seus testemunhos credíveis e valorados positivamente pelo tribunal. Especificamente quanto ao fixado em 8) considerou-se a informação bancária constante de fls. 67 - deve ler-se fls. 167 -, onde expressamente consta o nome do arguido.

Consigna-se que da prova produzida resulta que as quantias que o arguido se comprometeu a ressarcir são as constantes no ponto 7) da pronúncia e não do ponto 5) como expressamente indicado no ponto 10) da acusação. Aliás, como o ponto 5) não indica qualquer quantia em dinheiro, conclui-se se trata de lapso de escrita da acusação e nessa medida se procedeu à alteração da redação do facto provado 10) in fine.

Por todo o exposto, se deu como provada a factualidade constante dos pontos 1) a 10) da pronúncia, a qual não sendo absolutamente relevante para a prova do crime de falsificação de documento em causa nos autos, permite todavia a sua contextualização.

O facto provado sob o ponto 12) também não se revela controvertido, desde logo porque o próprio arguido assume que a indicada transferência no valor de € 1000,00 nunca ocorreu, explicando que tal se deveu ao facto da sua conta bancária não ter fundos suficientes. A prova deste facto extrai-se também do teor do email enviado pelo arguido ao advogado da empresa «T…», constante de fls. 35, em que expressamente assume que o primeiro pagamento (correspondente à ordem de transferência no valor de € 1000,00, porquanto única operação bancária em questão nos autos) não se tratou de fraude mas apenas foi devida a falta de fundos por o banco do arguido ter debitado a prestação da casa.

O facto provado sob o ponto 11) também não merece controvérsia, excepto o último segmento onde se refere “fazendo crer na ofendida que tinha pago aquele montante”, pois que o arguido, tanto em julgamento como em sede de contestação (factos 5) e 7)) assume que no dia 24/10/2014, às 19h01, deu uma ordem de transferência no valor de € 1000,00 que não veio a concretizar-se e que posteriormente enviou um email com o comprovativo da transferência. Mas a prova deste facto resulta também da demais prova produzida, nomeadamente as declarações da testemunha CC, legal representante da «T…», que convicta e desinteressadamente confirmou ter tido conhecimento do email em questão. DS e ML, funcionários da «T…», de forma convicta e escorreita, também confirmaram a receção do email com comprovativo de transferência, que não chegou contudo a efectivar-se. Donde, a controvérsia entre a versão do arguido e a imputada na acusação reside na factualidade indicada nos pontos 11) in fine, 13) e 14), porquanto a acusação afirma que o arguido criou o documento comprovativo de transferência realizada no valor de € 1000,00 para fazer crer à «T…» que efetivamente tinha pago a indicada quantia e que a dívida se encontrava a ser paga, o que sabia não corresponder à verdade e que tinha enviado tal documento bem sabendo que o conteúdo não correspondia à realidade, colocando, desta forma, em crise a confiança que os documentos merecem.

Diversamente, em sede de contestação e em audiência o arguido afirma que não produziu qualquer documento falso porque quando deu a ordem de transferência, cujo comprovativo anexou ao email que enviou para o advogado da «T…», pensava que a conta bancária tinha fundos suficientes em virtude de ter recebido a garantia de um empréstimo de dinheiro, por familiares que se comprometeram a, previamente, lhe transferir essa quantia para a sua conta.

Analisada criticamente e de forma conjugada toda a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a prova documental, o tribunal considerou provados os indicados factos 11) in fine, 13) e 14) por não ter qualquer dúvida da sua ocorrência nos exatos termos constantes da pronúncia, não tendo a versão do arguido merecido acolhimento, porque contrariada pela demais prova e pelas regras da experiência comum e normalidade do acontecer.

Por relevante, comecemos pela análise da sequência e do conteúdo dos emails (apenas os que têm relevância para a falsificação em apreço nos autos) trocados entre o arguido e a «T…», enviados quer para os colaboradores quer para o advogado da empresa.

Em 23/09/2014 o arguido envia e-mail a CC, funcionário da «T…», a solicitar a transferência para NIB correspondente à sua conta (o que resulta de fls. 162 onde consta tal NIB associada à conta bancária co-titulada pelo arguido) informando que posteriormente remeterá a respetiva fatura por se encontrar a renovar o programa de faturação, cfr. fls. 18.

Em 24/09/2014, «T…» efetua transferência para conta do arguido, cfr. documento comprovativo de fls. 19. Em 21/10/2018 - deve ler-se 21/10/2014 -, JB, advogado da «T…», envia email ao arguido a referir que, na sequência de conversa telefónica, indicava o NIB para que arguido procedesse à devolução das quantias apropriadas, até ao dia 24/10/2014 (cfr. fls. 32). No aprazado dia 24/10/2018 - deve ler-se 24/10/2014 -, JB envia novo email ao arguido a informar que não conseguiu falar com ele via telemóvel, pelo que solicitava o envio do comprovativo da transferência, impreterivelmente naquele dia. Já no dia 25/10/2014, às 04h12 o arguido responde ao email, enviando em anexo o comprovativo da transferência no valor de € 1000,00, que efetuou pelas 19h01 do dia anterior, e em que se compromete nos meses seguintes a pagamentos do mesmo valor (cfr. fls. 33 e 34). E em 03/11/2014, o arguido envia email a CC, legal representante da «T…» a referir que o insucesso do primeiro pagamento (relativa ao comprovativo em causa nos autos) «não foi nenhuma fraude, não saiu pois entretanto o banco debitou-me a prestação da casa e o valor não foi transferido» (fls. 39) - deve ler-se (fls. 35).

A tese do arguido, apresentada em sede de contestação e de audiência de julgamento e suportada nas declarações da companheira, centrada na afirmação de que não produziu qualquer documento falso porque estava convencido que a conta bancária possuía fundos suficientes para que a transferência se efetivasse, porque os familiares assim lho haviam prometido, não encontra arrimo em qualquer prova, tando dos autos como da audiência.

Desde logo, não foram inquiridos como testemunhas os tais familiares, que poderiam ter vindo aos autos explicar o sucedido.

Por outro lado, diz-nos a experiência comum que a normalidade do acontecer, em casos como o dos presentes autos, seria que os familiares contactados pelo arguido, na eventualidade de não conseguirem emprestar-lhe a quantia peticionada, o avisassem desse facto. E, ainda que assim não fizessem, certamente que o arguido antes de dar a ordem de transferência, contactaria os ditos familiares para se inteirar se sempre haviam transferido a quantia peticionada. Nenhuma destas diligências foi tomada no caso dos autos, o que contraria as regras da experiencia comum e do normal acontecer. É certo que companheira do arguido, testemunha PN, prestou declarações no mesmo alinhamento do arguido, as quais não mereceram credibilidade por parte do tribunal, por não se revelarem isentas porquanto proferidas de forma parcial e interessada, sendo nítida a vontade de beneficiar a posição do arguido, o que bem se compreende face à relação análoga à dos cônjuges que mantêm. Acresce que tal versão dos factos é contrariada pela demais prova produzida como se explanará. E nesta medida considera o tribunal que o arguido não pediu qualquer quantia a familiares não sendo verdade que só fez a transferência por estar convencido que os familiares garantiriam a existência de provisão. Tal conclusão encontra ainda apoio no conteúdo dos emails supra referidos, nomeadamente do email enviado em 03 de novembro (cfr. fls. 39) - deve ler-se (cfr. fls. 35) - em que o arguido afirma que «não foi nenhuma fraude, não saiu pois entretanto o banco debitou-me a prestação da casa e o valor não foi transferido» (fls. 39) - deve ler-se (fls. 35) - Ou seja, contrariamente à tese que agora apresenta da suposta ajuda dos familiares (em que a conta não tinha dinheiro, mas ia passar a ter), naquele email assume que a transferência não terá ocorrido devido ao facto de ter deixado de ter fundos em virtude de o banco ter debitado a prestação da casa (ou seja, inversamente, a conta tinha fundos, mas deixou de ter). Todavia, tudo indica que também esta versão consiste numa mentira do arguido, apresentada apenas como forma de tentar protelar no tempo a devolução das quantias em questão e evitar a denúncia da situação às autoridades competentes. A suportar esta conclusão está, por outro lado ainda, a documentação bancária da conta do arguido, de fls. 162 e ss conjugada com as declarações que prestou em audiência. Vejamos. Em audiência o arguido, quando declarou as suas condições de vida afirmou que reside em casa própria da companheira, suportando todavia metade do crédito bancário sobre aquele imóvel, no valor de €150,00. Ora, sendo o imóvel um bem próprio da companheira, tal significa que é sobre a mesma que recai o respetivo crédito bancário, pelo que o débito se encontrará associado a uma qualquer conta bancária daquela, mas nunca do arguido. Este facto é confirmado pela análise dos elementos bancários juntos aos autos, referentes aos meses de setembro e outubro de 2014, onde se constata que inexiste qualquer saída de quantias relacionadas com créditos à habitação.

Acresce ainda o facto de a referida conta no mês de Outubro apresentar um saldo bem inferior a € 1000,00, o que conjugado com a circunstância de no mês anterior existirem essencialmente movimentos de débito e tendo-se ainda em conta as dificuldades económicas do arguido naquela época, permite concluir que o arguido bem sabia que naquele dia de Outubro não tinha, nem iria ter saldo suficiente para ordenar a transferência bancária e que ainda assim deu a ordem de transferência e emitiu e enviou o respectivo comprovativo à sua credora, precisamente para criar a ilusão, no último dia do prazo, de que o pagamento havia sido realizado.

Tudo conjugado, o tribunal não teve dúvidas que o arguido quando deu ordem de transferência no valor de € 1000,00 bem sabia que não tinha na conta bancária fundos suficientes que permitissem a sua efetivação, pelo que quando extraiu o comprovativo de transferência, que anexou ao email e enviou ao advogado da «T…», bem sabia que o mesmo não tinha qualquer correspondência com a realidade e que apesar disso quis usá-lo, colocando em causa a confiança que os documentos merecem e fazendo criar a expetativa nos seus interlocutores que a dívida se encontrava a ser paga, o que bem sabia não corresponder à verdade. E fê-lo no último dia do prazo acordado para assim conseguir pelo menos protelar no tempo a resolução do problema e evitar que nesse momento o advogado recorresse às vias legais como expressamente afirmara na troca de emails efetuada. Por todo o exposto, o tribunal deu como provados os factos 11) in fine, 13) e 14).

O facto provado sob 15) resultou das declarações de PR, amigo de longa data do arguido, mas que prestou depoimento sereno, convicto e credível, sendo assim considerado positivamente pelo tribunal.

O que consta de 16) resultou da prova produzida em audiência de julgamento, em especial dos legais representantes da «T…» que assim o confirmaram em audiência, sendo considerados credíveis, pelos motivos já indicados.

A matéria exarada de 17) a 19), relativa às condições de vida do arguido teve por base as declarações do arguido que nesta sede se revelaram conformes à realidade e consentâneas com o quadro de dificuldades económicas apresentado pelo arguido.

O facto exarado em 20), relativo aos antecedentes criminais do arguido, teve por base o seu certificado de registo criminal, constante de fls. 323 e 324.

No que se reporta ao elenco da matéria de facto não provada a sua fixação resultou da ausência que qualquer prova que a confirmasse, ou da prova do contrário ou ainda sua contradição com o elenco dos factos provados.

O facto não provado e referido em a) foi assim considerando em face da prova do contrário referida a propósito dos factos provados 11) in fine, 13) e 14) donde resultou que o arguido jamais poderia ter qualquer certeza e convicção legítima que poderia efetuar a dita transferência, com base na expetativa de que familiares teriam depositado fundos, porquanto se demonstrou pelas regras da experiência e demais prova que o arguido não contava com a ajuda de quaisquer familiares.

Apreciando, conforme ao definido objecto:

A) - da alteração da matéria de facto:
O recorrente, embora, expressamente, não impugnando a matéria de facto, seja por via dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, seja na vertente da reapreciação da prova por referência ao art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, vem colocar em crise o provado em 11) e 13).

Quanto provado em 11) - “Assim, com esse propósito o arguido enviou, no dia 25.10.2014, do email “p…@hotmail.com” para o email do I. Mandatário da ofendida, um documento comprovativo da transferência do valor de €1.000,00, efetuada a 24.10.2014, fazendo crer na ofendida que tinha pago aquele montante” -, preconiza que, na parte onde consta tinha pago aquele montante, deve passar a mencionar-se que tinha dado ordem de pagamento.

Relativamente ao provado em 13) - “Do mesmo modo ao criar o documento referente à transferência do montante de €.1000,00, o arguido atuou com o propósito concretizado de fazer uso do mesmo, cujo conteúdo sabia não corresponder à realidade, colocando em causa a confiança que esses documentos merecem, fazendo crer ao ofendido que a dívida estava a ser paga obtendo um benefício ilegítimo que de outra forma não lograria alcançar, mas quis, ainda assim, atuar” -, propõe que seja eliminada a parte inicial, onde se lê que Do mesmo modo ao criar o documento referente à transferência do montante de €.1000,00.

Fá-lo, em ambas as situações, por apelo às características da transferência bancária, invocando, no essencial, que o documento em causa não foi elaborado pelo arguido/recorrente, mas sim pelo sistema informático da entidade bancária com base nas declarações prestadas pelo arguido/recorrente.

Deste modo, a sua discordância haverá de ser suportada por eventual erro-vício, uma vez que diferente perspectiva não suscita, restando, por isso, analisar se, em face da motivação decisória em matéria de facto, o tribunal avaliou de forma incorrecta o significado desse documento nas concretas circunstâncias que se provaram.

Assim, no que respeita à questão dessa transferência bancária, constante de fls. 34, ter servido para fazer crer à ofendida que o pagamento havia sido efectuado, há que realçar que acompanhou o e-mail enviado pelo aqui recorrente, conforme fundamentado (“Já no dia 25/10/2014, às 04h12 o arguido responde ao email, enviando em anexo o comprovativo da transferência no valor de € 1000,00, que efetuou pelas 19h01 do dia anterior, e em que se compromete nos meses seguintes a pagamentos do mesmo valor (cfr. fls. 33 e 34), e na sequência dos anteriores contactos, referidos, com a ofendida, também via mail, versando esse pagamento.

Sintomático, pois, de que a transferência não podia deixar de ser interpretada como meio do pagamento em causa, reside a circunstância de que no e-mail em apreço, de fls. 32, o recorrente ter feito constar que junto em anexo comprovativo da transferência conforme combinado, o que, segundo a linguagem corrente, outro sentido não consente senão o de que a ofendida ficasse ciente de que a transferência havia sido efectivada, tanto mais que desta decorria Operação concluída com sucesso.

Através deste raciocínio, que se afigura lógico e, implicitamente, subjacente à convicção do tribunal, não se descura, contudo, que a transferência, só por si, significasse, como o recorrente alega, uma ordem emitida ao banco para que determinado montante, em conta do ordenante (conta-origem), fosse transferido para outra conta bancária (conta-destino), não sem que, todavia, não se lhe possa atribuir, à luz do beneficiário da transferência e, como aliás, decorre do e-mail aludido, meio de dar-lhe a conhecer do respectivo conteúdo, o mesmo é dizer, da realização dessa transferência.

Nem mesmo, de forma diversa, se compreenderia a utilidade do envio, pelo recorrente, de tal documento como comprovativo, afinal, da transferência, sobre a qual, a ofendida, nenhuma intervenção poderia ter.

Em sintonia com o explicitado, identicamente a menção a que esse documento de transferência teria sido criado pelo recorrente, tem de interpretar-se, nas circunstâncias, como tendo tido exclusiva origem na sua actuação, uma vez que o pedido respectivo só a si é imputado e, assim, se o sistema informático do banco o emitiu, tal foi desencadeado inevitavelmente por esse mesmo pedido.

A tanto não se opõe a circunstância de que o tribunal, na sua motivação, tenha mencionado que o recorrente “extraiu o comprovativo de transferência”, na medida em que isso corresponde ao normal procedimento e, no caso, sucedeu, mas, reitera-se, não significando que a transferência tivesse surgido do nada ou de acção alheia, mas sim decorrente da sua intervenção.

Deste modo, analisada a motivação na globalidade, e especificamente sobre os factos em apreço, não se descortina qualquer incongruência com a prova examinada e produzida, conforme se reflectiu no que ficou fundamentado.

A existir algum vício, teria de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, por um lado, apenas com apelo a elementos intrínsecos e endógenos à decisão e, por outro, em razão das máximas da experiência reconhecidas pelo homem de formação média.

Feitos os necessários esclarecimentos, conclui-se, sem esforço, que, além de inexistir algum vício, a fundamentação da sentença acolhe os legais critérios, permitindo, além do mais, discernir como foi alcançada a convicção do tribunal, através de caminho trilhado de forma consentânea com o que a experiência e o normal acontecer plenamente suportam.

Outras considerações, neste âmbito, não se justificam, devendo, pois, a matéria de facto fixada pelo tribunal ter-se como assente.

B) - do não preenchimento do crime de falsificação:
A conduta do recorrente foi integrada no crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, alínea d), do CP, resultando da sentença, nesta sede:

a) Do enquadramento jurídico
O artigo 255.º, al. a) do Código Penal sob a epígrafe «Definições Legais» dispõe:

«Para efeito do disposto no presente capítulo considera-se: a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta;»

O artigo 256º, do Código Penal, sob a epígrafe «Falsificação de Documento» prescreve:

«1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…).»

A apreensão da correta noção de documento revela-se imprescindível para o dissídio dos presentes autos, pelo que, se impõe a respetiva análise tendo em vista determinar se existe ou não nos autos um documento.

Para efeitos da lei penal a noção de documento delimita o campo da ilicitude, porquanto não integra o tipo uma “qualquer falsificação de uma declaração, mas apenas a falsificação de uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (Moniz, Helena, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, p. 666).

A noção de documento tem variado e evoluído ao longo dos tempos, tendo começado por se considerar documento apenas o escrito em si mesmo (noção do Código Penal de 1886).

Depressa evoluiu para uma noção mais ampla abrangendo a declaração de vontade que expressa um facto juridicamente relevante, desde que possua idoneidade probatória.

Posteriormente, a doutrina alemã veio a atribuir à noção de documento, além da referida função probatória, uma função de perpetuidade e outra de garantia.

A noção constante do nosso Código Penal absorveu toda esta evolução e fornece-nos um conceito de documento que engloba as três mencionadas funções (perpetuação, probatória e garantia) exigíveis a qualquer documento para que se possa subsumir ao tipo de ilícito em apreço.

“Documento, para efeitos da lei Penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizado (…) o que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, que têm força probatória plena, mas qualquer outro – escrito, registo de em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico – que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante (…)”.

Donde, sem necessidade de outros desenvolvimentos, se constata que documento é a própria declaração humana destinada a provar um facto juridicamente relevante, que em regra estará corporizada num suporte, mas que se não confunde com ele, podendo tal suporte ser uma fotocópia ou qualquer outro, “(…) na verdade, a utilização da fotocópia é a utilização do documento falsificado e neste sentido deve ser subsumível ao crime de falsificação de documentos” (Idem, p. 671).

No âmbito deste tipo de crime impõe-se proceder ainda e com muito relevo no caso dos autos, à distinção entre a falsificação material e a falsificação ideológica. Nesta confluência, “Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.

Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando-o ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico.

Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, isto é, uma declaração escrita integrada no documento distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante; trata-se, pois, de uma narração de facto falso (…).” (Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, p. 676).

Em suma, na falsificação material «o documento não é genuíno», ocorrendo uma alteração do próprio documento, que podendo ser total ou parcial, consiste em se alterar ou imitar um documento original por forma a dar-lhe a aparência ou semelhança deste, ou seja, o documento é modificado na sua essência; na falsificação ideológica «o documento é inverídico», correspondendo a todos os casos em que um documento incorpore uma declaração falsa, uma declaração distinta da efetivamente prestada, pelo que neste caso o documento é modificado na sua essência.

No caso dos autos, o arguido sabendo que não tinha fundos suficientes que lhe permitissem realizar uma transferência, emitiu uma declaração – comprovativo de transferência - destinada ao seu interlocutor a dar conta de que tinha procedido ao pagamento da primeira «tranche» acordada no valor de € 1,000,00, a qual sabia não corresponder à verdade, não sendo sua vontade transferir qualquer quantia de dinheiro que sabia não ter e que não cuidou de providenciar. Quis o arguido levar o seu interlocutor a acreditar que tinha pago tal valor e dessa forma protelar no tempo a resolução do diferendo e devolução da quantia e evitar o recurso aos meios legais. Pelo que a declaração produzida pelo arguido integra todos os elementos da noção de documento falso, sendo irrelevante o meio em que o arguido corporizou tal declaração, não se podendo confundir as duas realidades.

O bem jurídico protegido pelo crime em apreço começou por ser a fé pública, mas depressa evoluiu para a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório relativo à prova documental, donde se retira que “não é toda segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger mas apenas a relacionada com os documentos”( Idem, p. 680).

Encontram-se consagradas distintas modalidades de conduta, ou seja, vários tipos de falsificação, a saber:

a) Fabricar documento falso;
b) Falsificar ou alterar documento;
c) Abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
d) Fazer constar falsamente facto jurídico relevante;
e) Usar documento falso (de algumas das antecedentes formas) fabricado ou falsificado por outra pessoa.

Quanto à al. a), fabricar documento falso consiste no «… acto de fabricar um documento a falsificação intelectual em que o documento, isto é, a declaração documentada idónea a provocar um facto juridicamente relevante, é distinta da declaração realizada. Procede-se a uma “contrafacção total, isto é, a feitura “ex novo” e “ex integro» (Idem, p. 682).

A al. b) corresponde à falsificação material, em que se “verifica uma falsificação posterior do documento, mediante uma alteração posterior de documento. Normalmente o agente do crime de falsificação material é uma pessoa distinta da que realizou o documento”( Idem, p. 682 e 683).

Quanto à al. c) a falsificação traduz-se na circunstância de se abusar da assinatura, consistindo numa fraude na identificação, incluindo por um lado os casos em que o assinante não é o autor do documento e usa a assinatura de terceiro ou a situação inversa, em que é autor do documento mas não lhe apõe a sua assinatura mas de um terceiro. Neste caso, estamos perante documento que é exato mas que é inautêntico, na medida em que a declaração, mesmo sem ter sofrido qualquer alteração, não foi proferida pela pessoa que assina, a qual abusa dessa assinatura.

A al. d) diverge das demais porquanto a conduta aqui descrita consiste em fazer constar falsamente facto juridicamente relevante, pelo que não é qualquer declaração falsa que preenche esta modalidade de ação, mas apenas quando a declaração falsa se reporte a um facto que crie, modifique ou extinga uma relação jurídica. No caso desta al. d) não se “contempla qualquer falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração em documento regular. A ficar, tornar-se-á necessária uma interpretação restritiva, papel a desempenhar pela doutrina” (Actas 1993 298”(Idem, p. 683).

A al. e) consagra a modalidade de uso de documento falso, na qual se subsumem apenas os casos em que a utilização do documento falso é efetuada por pessoa distinta do falsificador, porquanto na situação inversa estaremos perante uma situação de concurso aparente de normas.

A al. f) consagra a modalidade de circulação de documento falso, consubstanciada na detenção e cedência de documento falso por terceiro distinto do falsificador.

Fazendo a subsunção dos factos ao direito, resultou provado que o arguido no dia 25.10.2014, enviou do email “p…@hotmail.com” para o email do I. Mandatário da ofendida, um documento comprovativo da transferência do valor de €1.000,00, efetuada a 24.10.2014, fazendo crer que tinha pago aquele montante. Mais se provou que tal documento não corresponde a qualquer transferência bancária efetivamente efetuada, porquanto nenhum valor foi transferido para a conta da sociedade ofendida, nem poderia ter sido porquanto o arguido não dispunha dessa quantia. Ao atuar da forma descrita o arguido emitiu uma declaração, consubstanciada no comprovativo de transferência supostamente realizada, em que afirma ter procedido à transferência do valor de € 1.000,00 a partir da sua conta bancária, o que não tinha qualquer correspondência com a realidade, porquanto a conta não possuía fundos suficientes para a efetivação da operação.

Ora, conforme explicita Helena Moniz a respeito da alínea d) do preceito em apreço (in ob. Cit., p. 682), “… apenas nestes casos se pode considerar que existe uma falsidade em documento. Aliás, tal como referiu FIGUEIREDO DIAS, a al. b) “não contempla qualquer falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração em documento regular. Seguindo este rumo a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica (…). Além disto, não é toda e qualquer falsa declaração que pode ser punida à luz deste dispositivo, mas apenas aquela que uma vez incorporada no documento acrescente algo mais à ilicitude da conduta que a simples declaração oral (…).” (Helena Moniz, ob. cit., p. 683).

A conduta do arguido integra assim os elementos do tipo objetivo do crime de falsificação constante da al. d) do artigo 256.º do Código Penal, porquanto o arguido fez constar um facto falso (falsidade intelectual) e juridicamente relevante para a relação jurídica em causa (pagamento de dívida), num documento regular (comprovativo de transferência bancária).

Declaração esta que uma vez incorporada no documento acrescente algo mais à ilicitude da conduta que a simples declaração oral, sendo exatamente este o objectivo do arguido posto que o seu credor, em face dos factos anteriores, já não confiaria na mera comunicação de que a transferência havia sido realizada e por isso mesmo o arguido juntou o comprovativo bancário.

Quanto elemento subjetivo do tipo, o crime de falsificação de documento está previsto na forma dolosa em qualquer uma das suas modalidades: dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 256º, 13º e 14º, todos do Código Penal. O dolo direto refere-se à intenção criminosa, em que o agente prevê e tem como finalidade a realização do facto criminoso; o dolo necessário em que o agente sabe que da sua conduta resultará um facto que preenche um tipo de crime, e, não obstante isso, não se abstém de realizar tal conduta; e o dolo eventual que se traduz na circunstância de o agente admitir que, da sua ação, possa resultar uma determinada consequência, não obstante não pretender tal ocorrência e nem sequer a configure como uma consequência necessária do seu ato.

Todavia, tratando-se de crime intencional, o tipo em apreço exige um elemento adicional do dolo consubstanciado na circunstância do agente atuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou de preparar, facilitar ou encobrir outro crime. Benefício ilegítimo será toda a vantagem, quer patrimonial quer não patrimonial, que se obtenha do ato da falsificação ou da utilização do documento falsificado. Mas esta concreta intenção não significa que o crime em causa proteja o património ou a confiança no conteúdo dos documentos, mas como supra se referiu, a segurança no tráfico jurídico probatório.

Mas para que se verifique preenchido o elemento subjetivo, imperativo se torna que o agente, no momento da falsificação ou do uso de documento falso, tenha conhecimento que fabrica ou usa documento falso e vontade de o produzir ou de o utilizar, o “que implica um conhecimento dos elementos normativos do tipo” mas “apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção jurídica, maxime, da noção jurídico-penal.” (Idem, p. 685).

Da factualidade dada como provada resultou que o arguido quando remeteu o documento referente à transferência do montante de €.1000,00, atuou com o propósito concretizado de fazer uso do mesmo, cujo conteúdo sabia não corresponder à realidade, pois que o enviou aos seus interlocutores a quem fez acreditar que se encontrava a pagar os montantes a que se comprometera. E com tal atuação o arguido colocou em causa a confiança que os documentos merecem bem sabendo que o fazia e, ainda assim, pretendeu atuar. Mais se provou que o arguido pretendeu com a indicada atuação obter um benefício ilegítimo que consistia em conservar a quantia de que se apropriara e protelar no tempo a resolução do diferendo com os seus interlocutores e evitar que recorressem aos mecanismos legais, como expressamente referido no email enviado pelo Il. Advogado da «T…» exigindo o pagamento da quantia até ao dia 24/10/2014. E também se provou que o arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

Nestes termos agiu o arguido com dolo directo e com a intenção de obter para si um benefício ilegítimo, correspondente ao protelamento no tempo da possibilidade de devolver os valores a que se comprometera e evitar que intentassem contra si os meios legais ao dispor, verificando também preenchido o elemento específico do dolo.

Pelo exposto, verificam-se assim preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do tipo legal do crime apreço e inexistem causas de exclusão da ilicitude do ato ou da culpa do arguido, pelo que se conclui que o arguido cometeu o crime de falsificação de documento previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d) do Código Penal, devendo ser condenado pelo seu cometimento.”.
*
A argumentação do recorrente incide, tal como menciona, em três aspectos, no sentido de alegadamente suportar, contrariamente ao decidido, o não preenchimento do crime de falsificação de documento, por que foi condenado.

Assim, contesta que (i) se esteja em presença de falsidade intelectual, (ii) se trate de ter feito constar facto juridicamente relevante e (iii) tivesse obtido benefício ilegítimo.

Analisa-se, então, o que veio aduzir, por confronto com a fundamentação do tribunal, sendo que, relativamente a esta, porque contendo adequada pormenorização, dispensa desenvolvimento da questão para além do estritamente necessário.

Na vertente da (i) falsidade intelectual, o recorrente invoca que o documento em causa não foi elaborado pelo arguido/recorrente, mas sim pelo sistema informático da entidade bancária com base nas declarações prestadas pelo arguido/recorrente, o que impede a sua punibilidade no âmbito da falsidade ideológica.

Acrescenta que o documento não é falso, pois é autónomo ou independente das declarações prestadas serem ou não verdadeiras e a Meritíssima Juiz “a quo” na sua douta sentença para tentar justificar a condenação do arguido/recorrente (no nosso entendimento injusta e sem qualquer sustentação legal ou doutrinal) socorreu-se de vários conceitos distintos e até opostos (extrair comprovativo, elaborar comprovativo, fazer constar facto falso em documento regular) e é exatamente esta manifesta incoerência que o recorrente põe em causa.

Ora, afigura-se que parte de inadequada interpretação, por manifestamente incompleta defronte da factualidade dada por provada, essencialmente no que aqui interessa, do provado em 11) a 13), e do que a experiência e a realidade consentem.

Na verdade, aquele documento, tal como provado em 12), “não corresponde a qualquer transferência bancária efetivamente efetuada”, não obstante o recorrente o tivesse enviado à ofendida como suposto comprovativo do pagamento, tendo em conta o email referido como provado em 11).

A existência do documento só é concebível mediante a acção do recorrente, que o fez emitir informaticamente, com os elementos que forneceu ao sistema, pelo que as diversas referências atribuídas ao tribunal não são senão resultado dessa realidade de que foi o recorrente quem deu origem ao documento e dele extraiu a utilidade de que se serviu, no caso, como aludido comprovativo.

Conforme Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, tomo II, pág. 676, sabendo que documento, para efeitos do crime de falsificação, é a declaração e não o objecto em que esta é incorporada (cfr. art. 255º § 12 s.), fácil é compreender que aquilo que constitui a falsificação de documentos é não a falsificação do documento enquanto objecto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento.

E tal como referido na fundamentação do tribunal, “Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, isto é, uma declaração escrita integrada no documento distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante; trata-se, pois, de uma narração de facto falso (…).” (Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, p. 676).

E ainda, “Em suma, na falsificação material «o documento não é genuíno», ocorrendo uma alteração do próprio documento, que podendo ser total ou parcial, consiste em se alterar ou imitar um documento original por forma a dar-lhe a aparência ou semelhança deste, ou seja, o documento é modificado na sua essência; na falsificação ideológica «o documento é inverídico», correspondendo a todos os casos em que um documento incorpore uma declaração falsa, uma declaração distinta da efetivamente prestada, pelo que neste caso o documento é modificado na sua essência”.

Além de que se tem em conta que a falsificação intelectual ou falsidade integra não só os casos de desconformidade entre o que se declarou e o que está escrito, como também os casos de “inexactidão do relato” e quer na falsificação intelectual quer na falsidade em documento, o documento é inverídico (…) quer num caso, quer no outro, estaremos perante uma falsificação ideológica: o escrito não é materialmente falsificado, mas ideologicamente falsificado, isto é, apenas o conteúdo é que é falso: ou porque integra uma declaração diferente da realizada, ou porque integra uma narração de um facto falso (Helena Moniz, in “O Crime de Falsificação de Documentos, Da Falsificação Intelectual e Da Falsidade em Documento”, Almedina, Coimbra, 1993, págs. 93 e 223).

Em concreto, a aludida transferência, enquanto servindo como comprovativo do pagamento, tal como o recorrente a fez emitir e utilizou, não correspondia à verdade, comportando, pois, objectiva falsidade, que transmitiu à ofendida.

Por isso, o tribunal explicitou, e bem, que “tal documento não corresponde a qualquer transferência bancária efetivamente efetuada, porquanto nenhum valor foi transferido para a conta da sociedade ofendida, nem poderia ter sido porquanto o arguido não dispunha dessa quantia” e é neste contexto, não noutro, que tem de ser visto.

De nada vale, pois, ao recorrente, dissociar-se do conteúdo do documento, como se tivesse sido alheio ao necessário domínio sobre a produção do mesmo, uma vez que, apesar do esforço em trazer à colação diversa jurisprudência, a situação em análise, conforme ao provado, conflui para a perspectiva acolhida pelo tribunal.

Se bem que se reconheça, acompanhando, designadamente, o citado, pelo recorrente, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.03.2014, no proc. n.º 18/10.5TATND.C1, in www.dgsi.pt, que o segmento normativo da alínea d) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal "fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante" apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem e que o tipo de crime de falsificação prevê e pune é a falsa declaração de quem materialmente a incorpora em escrito, bem como o, também citado, acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 26.04.2016, no proc. n.º 1649/13.7TDLSB.E1, in www.dgsi.pt, de que a tipicidade em referência, decorrente na fracção «fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante», inscrito na alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º, do CP, alcança, tão-apenas, a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, não abrangendo aquela de quem debita factos inverídicos para documento elaborado por outrem, na situação dos autos, como já se assinalou, foi o recorrente quem desencadeou a emissão do documento.

Não decorre, assim, razão válida para afastar a fundamentada falsificação intelectual/ideológica.

Quanto à problemática de que (ii) se trate de ter feito constar facto juridicamente relevante, o recorrente refere que a Meritíssima Juiz “a quo” ignorou também e muito uma discussão essencial durante todo o julgamento, que foi o facto de o documento em causa (comprovativo de ordem de transferência), não ser um pagamento, mas sim uma ordem de pagamento e por tal será com esse pressuposto que se poderá aferir do efeito jurídico de tal comprovativo, além de o arguido/recorrente não ter o domínio na elaboração do documento.

Sobre isso, o tribunal mencionou “conforme explicita Helena Moniz a respeito da alínea d) do preceito em apreço (in ob. Cit., p. 682), “… apenas nestes casos se pode considerar que existe uma falsidade em documento. Aliás, tal como referiu FIGUEIREDO DIAS, a al. b) “não contempla qualquer falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração em documento regular. Seguindo este rumo a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica (…). Além disto, não é toda e qualquer falsa declaração que pode ser punida à luz deste dispositivo, mas apenas aquela que uma vez incorporada no documento acrescente algo mais à ilicitude da conduta que a simples declaração oral (…).” (Helena Moniz, ob. cit., p. 683)”.

Com efeito, é protegido por este tipo de crime o documento enquanto meio de prova. Isto é, deve-lhe ser dado no momento da sua realização, ou posteriormente, um destino de prova. O documento é, portanto, destinado a provar um facto – facto este que terá de ser juridicamente relevante. Mas o que será facto juridicamente relevante? Segundo VON LISZT seria um facto que, por si só ou ligado a outros dá origem a relações jurídicas, as extingue ou altera (Helena Moniz, in “O Crime de Falsificação de Documentos …” cit., pág. 167).

Ora, ainda que o recorrente apelide o documento de ordem de transferência, o que se provou foi, sim, que o fez constar, perante a ofendida, como comprovativo do pagamento, assim havendo de ter sido interpretado por aquela de acordo com todo o contexto, a que se junta a circunstância de que, como a experiência ensina e não seria desconhecido para o recorrente, a suposta diversa realidade do significado que vem colocar não tem sentido útil, na medida em que o conteúdo desse tipo de documento se resume, em qualquer caso, isto é, fosse ou não concretizada a transferência, à identificação das contas e do valor respectivo.

O pressuposto de que parte é, contrariamente ao sentido conferido pelo tribunal, inadequado em razão do que se apurou, o mesmo cumprindo dizer quanto à elaboração do documento, como já se deixou explicitado.

E para além disso, o documento destinava-se, pois, a provar o referido pagamento, embora tal não correspondesse à verdade.

Se assim é, entende-se, em sintonia com o tribunal, que o pagamento em causa se assumia como juridicamente relevante no domínio da relação comercial estabelecida com a ofendida, o qual não dependia de específico meio probatório, que não se bastasse com a actuação revelada pelo recorrente.

Relativamente à questão de que (iii) tivesse obtido benefício ilegítimo, desde logo, note-se, segundo o provado em 13), resultou resposta afirmativa.

Contudo, o recorrente alega que apenas quase ao fim de 6 meses, do conhecimento da não concretização da ordem de transferência é que a ofendida efetuou a queixa dos presentes autos e o envio do comprovativo da ordem de transferência no caso concreto foi totalmente inócuo, sendo que a relação jurídica, entre ambos, manteve-se na exata mesma medida da que se encontrava então.

Neste âmbito, o tribunal fundamentou que “se provou que o arguido pretendeu com a indicada atuação obter um benefício ilegítimo que consistia em conservar a quantia de que se apropriara e protelar no tempo a resolução do diferendo com os seus interlocutores e evitar que recorressem aos mecanismos legais, como expressamente referido no email enviado pelo Il. Advogado da «T…» exigindo o pagamento da quantia até ao dia 24/10/2014”.

A argumentação do recorrente não infirma, minimamente, o que ficou fundamentado em sede desse benefício ilegítimo, uma vez que, no essencial, a alegada ausência do mesmo não pode suportar-se no comportamento da queixosa/ofendida, nem na circunstância de que a acção do recorrente não tivesse tido qualquer conteúdo ou finalidade.

Tanto mais, ainda, quando, para a consumação do crime, basta o simples acto de falsificação e o benefício ilegítimo reside em toda a vantagem (patrimonial ou não) que se obtenha através do acto de falsificação (Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense …” cit., págs. 682 e 685).

Perante o que ficou sublinhado, a que acresce que, relativamente ao dolo e à intenção com que o recorrente agiu, tal se reflectiu nos factos provados, outra conclusão não resta senão considerar que o tribunal andou bem ao condená-lo pelo crime de falsificação de documento, e nos termos em que o fez.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, assim,
- manter integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).

Processado e revisto pelo relator.

2.Julho.2019
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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)