Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
600/04.0TBSTB.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE TRABALHO
ACTIVIDADES PERIGOSAS
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Nada se sabendo sobre um interveniente de um acidente não se pode estabelecer uma relação de comissão, nos termos do art.º 500.º do Código Civil, com o dono da obra ou com qualquer empreiteiro que nela trabalhe.
2. Ter um plano de segurança de uma obra não é o mesmo que estar a obra segura; sempre a entidade responsável se presume culpada, nos termos do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 600/04.0TBSTB.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) intentou a presente acção de processo comum sob a forma ordinária, para efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente contra
1. Lisnave Infraestruturas Navais, SA
2. Somague Engª, SA
3. Império Bonança-Companhia de Seguros, SA.
Alega ter sofrido um acidente que consistiu em ter sido atingido por um andaime e certo tipo de ferros porque um manobrador de grua embate com esta no dito andaime, fazendo cair a carga que transportava. O acidente ocorreu numa obra a cargo das duas primeiras RR..
*
Nos articulados, foi suscitada a intervenção provocada da (…), Lda., como entidade patronal directa do A., e da (…) – Sociedade Fornecedora de Máquinas Industriais, Lda. enquanto sub-empreiteiro da R. Somague, SA.
Foi também pedida, pela R. Somague, a intervenção de (…).
*
Finda a fase dos articulados, foi proferido despacho a convidar o A. a apresentar nova p.i. indicando que factos imputa a cada uma das RR..
*
Foi apresentada nova p.i.
*
Houve desistência do pedido de intervenção de (…).
*
O A. peticiona a condenação das RR. no pagamento ao A. de € 600.000,00 a titulo de danos morais; de € 58.800,00 a titulo de danos patrimoniais vencidos; € 460.600,00 a fim de suprir a diferença para o futuro tendo em conta uma esperança de vida de 75 anos, ou em alternativa o valor mensal de € 700,00; do capital de € 222.000,00 a fim de suprir os danos emergentes vencidos e vincendos tendo em conta a esperança de vida de 75 anos , ou em alternativa o valor mensal de € 500,00; eventuais danos futuros materiais ou morais nos quais o A. venha a incorrer decorrentes do acidente objecto destes autos;
Mais peticionou a condenação das RR. a suportar todos os danos patrimoniais futuros decorrentes do acidente indicando, entre outros, a perda mensal supra indicada; bem como a actualização deste valor tendo em conta a progressão na carreira do A. e a taxa de subida do custo de vida e da expectativa de maior ganho do A.; acrescidos dos correspondentes juros de mora vincendos calculados à taxa legal até efectivo e integral pagamento do devido, bem como procuradoria e custas de parte nas quais o A. venha a incorrer.
Além do que já se deixou exposto, alegou que a Somague tinha encarregado o gruista de garantir que de manobrar a carga com os cuidados devidos e que tal manobra seria feita em segurança e que a carga não colidiria com quaisquer objectos.
*
As RR. contestaram.
*
O processo seguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
1- Absolve-se do pedido a R. Lisnave Infraestruturas Navais, AS;
2-Absolve-se do pedido a R. (…) –Sociedade Fornecedora de Máquinas Industriais, Lda.;
3- Condena-se a R. Império Bonança-Companhia de Seguros AS (hoje Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A.) no pagamento ao A., a título de indemnização por danos morais, a quantia de € 297.500,00 (85% de 350.000,00);
4- Condena-se a R. Império Bonança-Companhia de Seguros SA no pagamento ao A. da quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativa aos montantes referentes a lucros cessantes e a danos emergentes com os limites das quantias peticionadas nos autos, descontando-se o valor da franquia do seguro cujo pagamento é a cargo da R. Somague;
5- Reconhece-se à R. Lisnave o direito a ser reembolsada do valor pago ao A. em sede de arbitramento de compensação provisória, valor esse a cargo da R. Somague e a descontar do montante indemnizatório a liquidar em execução de sentença;
6- Do cômputo indemnizatório global será descontado o montante pago a título de reparação provisória arbitrada no processo cautelar apenso;
7- Absolve-se a R. Somague do restante peticionado.
*
Desta sentença recorrem o A. e a R. Fidelidade, impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito.
*
A R. conclui o seu recurso nestes termos:
3ª – Analisados os depoimentos testemunhais prestados em julgamento e, em especial, o da testemunha (…), impunha-se outro julgamento.
4ª – Impunha-se julgar demonstrado que a obra em questão dispunha de um plano de segurança que foi escrupulosamente aplicado e cumprido por todos os intervenientes na obra.
5ª – E, consequentemente, que as Rés empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos.
6ª – não foi feita qualquer prova da existência de uma qualquer relação de comissário/comitente entre o operador da grua e a Somague.
7ª – com base na matéria de facto a considerar provada, impunha-se a absolvição da Império Bonança, S.A., hoje Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A..
8ª – Ainda que assim se não entenda, atenta a natureza do contrato de seguro, impunha-se a condenação solidária entre a Fidelidade (até ao limite do capital seguro) e o responsável pelo acidente.
9º - Caso contrário e atenta a condenação em quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativa aos montantes referentes a lucros cessantes e a danos emergentes com os limites das quantias peticionadas nos autos, descontando-se o valor da franquia do seguro cujo pagamento é a cargo da Ré Somague, a Fidelidade corre o risco de ver esgotado o capital da apólice ou, em última análise, de ter de pagar montante superior àquele que a sua obrigação contratual determina.
10ª – Não obstante, o Autor não logrou provar os danos patrimoniais alegados pelo que se impunha a absolvição do pedido.
11ª – Das condições especiais resulta que «002-Responsabilidade Civil Cruzada (…) a Seguradora não indemnizará o segurado ou terceiros ao abrigo desta clausula relativamente a (…) 3. Danos decorrentes de lesões corporais ou morte de empregados efetivos ou contratados temporariamente ao serviço do segurado que estejam ou devam estar seguros de acordo com o estabelecido na lei de Acidentes de Trabalho.»
12ª – Assim, nos termos do contrato de seguro celebrado, não pode a seguradora ser condenada a pagar qualquer verba a título de danos patrimoniais.
13ª – Danos patrimoniais esses que se encontram a ser ressarcidos pela seguradora de Acidentes de Trabalho.
14ª – O montante fixado na sentença a título de danos morais é manifestamente exagerado e não justificado.
15ª – Não tendo sido respeitados os critérios legais e jurisprudenciais para fixar o montante indemnizatório a título de danos morais, pelo que deve o mesmo ser reduzido ao montante de € 100.000,00.
16ª – Foram violadas as disposições dos artigos 341º, 342º do Código Civil, 494º e 496º do Código Civil e o Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
*
O A. conclui desta forma:
II. Atento o teor do contrato de empreitada, no qual é à Lisnave como dono da obra, a definir e a encarregar o empreiteiro da execução da mesma.
III. Não se pode assim alhear a Lisnave da produção deste acidente e absolver a mesma.
IV. Assim, deve ser dado como provado que a Lisnave encarregou a Somague de realizar a obra, não se podendo face a terceiros alhear desta decisão.
V. De facto, o contrato de empreitada e as exclusões de responsabilidade da Lisnave tem efeitos internos entre as partes, mas não pode impor-se face a terceiros como a vítima, ora A.
VI. Assim, a Lisnave deve ser solidariamente condenada com a Somague.
VII. No presente sinistro, constata-se a existência de um seguro facultativo e, por isso, nunca poderia ser absolvido o próprio segurado, devendo segurado e segurador ser solidariamente demandados e condenados.
VIII. Dito de outra maneira, o legislador nacional não obriga o dono de uma obra a celebrar ou exigir aos empreiteiros um seguro de "all risks". O presente contrato de seguro foi celebrado no âmbito da autonomia da vontade entra as seguradoras, os empreiteiros e o dono da obra para cobrir de forma voluntária riscos empreitada perigosa e de uma obra complicada a realizar.
IX. O Tribunal, provavelmente atento o hábito de julgar acidentes de viação, fez um raciocínio e uma aplicação analógica do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, logo de seguro de responsabilidade civil obrigatório, ao presente sinistro.
X. Como dissemos acima, a legitimidade passiva exclusiva da seguradora é uma situação somente prevista na lei para certos tipos de seguro, e tem por fim evitar que em todo e qualquer acidente de viação, ou acidente de trabalho, o autor tivesse que demandar simultaneamente o segurado, o causador e a seguradora.
XI. Trata-se de uma situação excepcional com um regime de legitimidade processual expressamente previsto na lei, que não se aplica ao presente caso.
XII. De facto, louvamos a lei do contrato de seguro que reproduz o regime em vigor à data do sinistro, e que deve ser aplicado.
XIII. Remetemos para o preâmbulo da LCS e remetemos para o artigo 146º:
XIV. No seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador.
XV. Não pode, o A e lesado, ver prejudicada a sua indemnização, recebendo apenas 85%, quando foram demandados os responsáveis e estamos face a um seguro facultativo.
XVI. Assim e por ser um seguro facultativo, no qual a Lisnave e empreiteiros são segurados, devem responder seguro e segurados solidariamente pela totalidade dos danos causados.
Assim, a presente decisão deve ser alterada devendo a Lisnave e a (…) ser condenadas solidariamente com a Somague e Império.
Deste modo, todos os Réus devem ser condenados solidariamente nas Indemnizações, respondendo a Império apenas na proporção da quota para si transferida.
*
O A. contra-alegou.
*
A Lisnave e a Somague também contra-alegaram.
Esta última requereu a ampliação do objecto do recurso.
*
A recorrente especifica (pp. 3-4 das alegações) qual a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas:
a. Deve dar-se como provado que no dia 9/09/1999, pelas 17 horas, ocorreu um acidente em que foi interveniente o Autor;
b. Tal acidente foi provocado por facto estranho à obra que se encontrava a realizar e à actividade que, em concreto era exercida no local, nomeadamente, e que as Rés e, em especial, a Ré Somague, tomaram todas as providências necessárias e exigíveis para a realização da obra em segurança;
c. Não estão provados factos dos quais se possa concluir que existe uma relação de comissão entre o gruista e a Somague.
d. Deve julgar-se provado que o contrato de seguro exclui, do âmbito da sua cobertura, os danos decorrentes de lesões corporais …de empregados efectivos ou contratados temporariamente ao serviço do segurado que estejam ou devam estar seguros de acordo com o estabelecido na lei de Acidentes de Trabalho.
Em relação à al. a), está provado (n.º 3) que no dia 9/9/99, pelas 17h00, nos estaleiros da Lisnave – Infraestruturas Navais, SA, da Mitrena ocorreu um acidente em que foi interveniente o A.; as únicas diferenças são que na sentença indica-se o local e nas alegações acrescenta-se a hora.
Cremos que não há qualquer necessidade de introduzir este último elemento. Com efeito, a indicação do momento do acidente não tem quaisquer consequências jurídicas e, a haver alguma, a recorrente não a indica.
Tudo o mais é conclusivo.
Na verdade, é da matéria de facto que se há-de concluir se o acidente foi provocado por um facto estranho à obra; daí também de deve concluir se as empresas em questão tomaram todas as providências necessárias e exigíveis para a realização da obra em segurança, etc.. Da mesma forma, as cláusulas do contrato estão descritas na matéria de facto (veja-se o n.º 239) e, por isso, elas serão analisadas noutra sede que não a da impugnação que agora temos em vista.
O mesmo se dirá quanto aos factos não provados, melhor dizendo, quanto à falta de factos em ordem a apurar se pode existir ou não uma relação de comissão entre o gruista e a Somague.
*
Esta R. também impugna a matéria de facto no que diz respeito ao n.º 95 onde está provado o seguinte: a obra em causa nos autos encontrava-se dotada de um plano de segurança. Pretende que seja acrescentado o seguinte: «preparado ao pormenor, especificamente criado e implementado para a execução desta obra, tendo sido feito tudo quanto era exigível para evitar o acidente ocorrido».
No entanto, é manifestamente impossível concordar com a recorrida dada a natureza conclusiva da parte final do texto que, a nosso ver, seria o fundamental. Necessário seria, ao invés, que se dissesse o que foi efectivamente feito.
*
Assim, nada se altera.
*
A matéria de facto é a seguinte:
1) O A., à data do acidente era trabalhador da (…) – Empresa de Trabalho Temporário, Lda..
2) A Lisnave – Infraestruturas Navais, SA era a dona da obra onde o mesmo trabalhava e a Somague e a (…), empreiteiras na mesma.
3) No dia 9/9/99, pelas 17h00, nos estaleiros da Lisnave – Infraestruturas Navais, SA, da Mitrena ocorreu um acidente em que foi interveniente o A..
4) No Tribunal de Trabalho de Lisboa correu termos o processo n.º 53081/08.8TTLSB, referente ao acidente descrito nos presentes autos, tendo nesse processo sido fixada por sentença de 06.12.2002 uma pensão anual no valor de € 3.053,98 a pagar pela Companhia de Seguros Bonança com início em 09.01.2001. 5) Em 02 de Fevereiro de 2004 foi firmado acordo, devidamente homologado nos autos de acidente de trabalho, entre o A. e a Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A. tendo as partes acordado que face ao desejo de o A. regressar ao Brasil para junto da sua família, as partes acordavam em que a Companhia de seguros continuaria a «efectuar as prestações pecuniárias a que se encontra vinculada por sentença proferida nos autos.
6) Mais acordaram que «Para fazer face aos custos de assistência medica de que carece o 2.º outorgante designadamente despesas de cuidados de saúde de rotina (serviços de enfermagem, fisioterapia, consultas da especialidade, medicamentos, cadeiras de rodas, fraldas, algálias, almofadas anti-escaras e outros consumíveis necessários) é acordado um pagamento mensal de € 1.000,00.»; a efectuar em conjunto com a pensão por transferência bancária.
7) Entre a R. Lisnave – Infraestruturas Navais, SA e as empresas consorciadas Somague e (…) foi celebrado um contrato de empreitada de “Construção do Hydrolift no Estaleiro da Mitrena”.
8) Do contrato de empreitada consta sob a epigrafe Disposições Gerais – Outros Encargos do Empreiteiro: 1.10.1.1 «O empreiteiro é o único responsável pelas indemnizações por perdas e danos e as despesas resultantes de prejuízos pessoais, doenças, impedimentos permanentes e/ou temporários ou morte, decorrentes ou relacionados com a execução dos trabalhos da empreitada; estas indemnizações e despesas abrangerão, obrigatoriamente, terceiros em actuação no local dos trabalhos, incluindo o próprio dono da obra e o concedente (…)».
9) (…) 1.10.1.2 «O empreiteiro é o único responsável pela reparação e indemnização de todos os prejuízos materiais que, por motivos a si imputáveis, sejam sofrido por terceiros, incluindo o próprio dono da obra e o concedente até à recepção da empreitada, designadamente os prejuízos materiais resultantes : a) Da actuação do pessoal do empreiteiro ou dos seu empreiteiros; b) Do deficiente comportamento dos equipamentos ou da falta de segurança nos trabalhos e/ou maquinas utilizadas como auxiliares na execução dos trabalhos (…)».
10) (…) 1.10.1.5 «O empreiteiro é o único responsável pelas coberturas dos riscos resultantes de circunstâncias fortuitas e/ou imprevisíveis e, bem assim, de quaisquer outras, para as quais o dono da obra não haja contribuído directa ou indirectamente.» (…).
11) Do contrato de empreitada consta sob a epígrafe 1.10.2.3 Seguro de Construção e Montagens (Seguro de Obras) que «O dono da obra contratou um seguro global de obras e montagens, do tipo CAR “Contractors All Risks”, incluindo responsabilidade extracontratual (…)».
12) (…) «Neste seguro figuram como segurados o concedente, o dono da obra e os empreiteiros, incluindo subempreiteiros, fornecedores e montadores, exercendo a sua actividade no local do risco, para os trabalhos objecto do seguro».
13) (…) «as franquias relacionadas com eventuais sinistros cuja responsabilidade lhe não seja imputável (…) serão cobradas a cada um dos empreiteiros e/ou outras empresas intervenientes na obra (…)”.
14) Entre a R. Lisnave – Infraestruturas Navais, SA e a R. Companhia de Seguros Império Bonança (então denominada Companhia de Seguros Império, SA), foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice nº (…), em regime de co-seguro com a Ocidental – Companhia de Seguros, SA, através do qual a primeira transferiu para a segunda a responsabilidade civil decorrente de todos os riscos resultantes da execução da empreitada.
15) A Apólice foi emitida em regime de Co-Seguro com distribuição de responsabilidades conforme documento anexo à apólice: 85%-Companhia de Seguros Imperio; 15% Ocidental Companhia de Seguros.
16) Da cláusula de Co-Seguro 20-B resulta que «Fica estabelecido que este contrato vigora em regime de co-seguro, entendendo-se como tal a assunção conjunta do risco por duas ou mais Seguradoras, denominadas co-seguradoras e de entre as quais uma é “leader”, através de um contrato único, com iguais garantias e período de duração e com um premio global.» (…).«O presente contrato é titulado por uma apólice única emitida pela Império SA na qualidade de “leader” (…)».
17) Consta da cláusula de co-seguro 20-B n.º 4 que «Os sinistros decorrentes deste contrato serão liquidados por cada uma das co-seguradoras pela importância proporcional à quota parte do risco que garantiu ou à parte percentual do capital assumido».
18) O contrato de seguros celebrado tem como âmbito de cobertura «os danos materiais causados ao objecto seguro» e a «responsabilidade civil extra-contratual».
19) São segurados, nomeadamente, a tomadora do seguro, a Lisnave – Infraestruturas Navais, SA, e «Todos os empreiteiros, sub-empreiteiros tarefeiros e/ou montadores e entidades fiscalizadoras a trabalharem para a obra objecto do seguro no local da sua realização ainda que não expressamente referidos e na medida dos seus interesses».
20) Resulta do estipulado na Secção II – “Responsabilidade Civil” das Condições Particulares que o capital seguro para danos a terceiros é de PTE 1.000.000.000 como limite máximo de indemnização pelo período do seguro, com um sublimite de PTE 250.000.000 (€ 1.246.994,74), limite máximo de indemnização por sinistro.
21) A franquia para danos materiais a terceiros em geral foi fixada, por lesado, em PTE 250.000 (€ 1.246,99).
22) Das condições particulares da apólice resulta que no tocante à secção II (Responsabilidade civil extra contratual) são aplicáveis as condições Especiais a seguir indicadas: 002-Responsabilidade Civil Cruzada (…)».
23) Das condições especiais resulta que «002-Responsabilidade Civil Cruzada (…) a Seguradora não indemnizará o segurado ou terceiros ao abrigo desta clausula relativamente a (…) 3. Danos decorrentes de lesões corporais ou morte de empregados efetivos ou contratados temporariamente ao serviço do segurado que estejam ou devam estar seguros de acordo com o estabelecido na lei de Acidentes de Trabalho».
24) Resulta do art.º 2 n.º 2 das Condições Gerais da Apólice que a seguradora garante as indemnizações que sejam exigidas ao segurado «(…) a título de reparação civil extracontratual em consequência de danos resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em virtude de acidente directamente relacionado com a execução de trabalhos objecto do seguro e ocorridos no local do risco».
25) Foi intentada pelo A. contra Lisnave Infraestruturas Navais, SA, Somague Engª, SA e (…) – Sociedade Fornecedora de Máquinas Industriais, Lda. providência cautelar de arbitramento de compensação provisória com o n.º 7821/03.0TBSTB, apensada aos presentes autos, que terminou por acordo homologado judicialmente, em 05.01.2004, em que as requeridas Somague e Lisnave se comprometeram ao pagamento mensal a favor do A. da quantia de € 750,00, sendo € 500,00 pela Somage e € 250,00 pela Lisnave Infra-Estruturas, pagamento que efectuam até ao momento.
26) Na sequência do acidente correu termos processo crime n.º 231/99.4GCSTB, tendo sido proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos, e o consequente arquivamento dos autos.
27) No dia do acidente, o A. exercia funções de manobrador de martelo pneumático e tinha como função picar com o martelo pneumático a secção de betão de onde se iriam erguer os paredões da doca.
28) Nessa actividade, foi-lhe ordenado pelo encarregado da obra, que limpasse uma parte da muralha, na qual se encontrava um andaime.
29) Na construção em causa foram usados andaimes autoportantes.
30) Depois de se proceder à montagem de estrutura de ferro que é o “esqueleto” dos paredões laterais da doca, o andaime era movido para o troço seguinte até se construir a totalidade do paredão em ferro armado, sendo depois feita a cofragem e o enchimento em betão.
31) No dia 9/9/99 foi ordenado ao A. que fosse limpar o espaço em frente ao andaime, pois já tinha sido picado aquele troço.
32) O A. estava a realizar a tarefa descrita, entre os dois paredões e no meio da doca, quando o andaime situado à sua direita foi embatido pela carga da grua e tombou para o meio da doca caindo sobre o A..
33) O A. ficou coberto de ferros e placas de ferro.
34) O andaime autoportante em causa era de ferro, com placas transversais também de ferro, tendo cerca de 30m de comprimento e 1m a 1,20m de largo.
35) A grua estava a transportar um molho de vergas de ferro com uma tonelada.
36) O acidente deu-se na área de construção civil da responsabilidade da Somague.
37) À (…) estava adjudicada a parte mecânica da obra que ainda não havia tido início, decorrendo os trabalhos preparatórios de construção civil.
38) A (…) iniciou os trabalhos da parte mecânica em data posterior a 9 de Setembro de 1999.
39) O gruista levantou um feixe com varas de ferro.
40) Cabia aos funcionários da Somague a direcção e a execução da obra.
41) Imediatamente após a queda do andaime sobre si, o A. ficou inconsciente.
42) O A. foi transportado para o Hospital de São Bernardo, sendo depois enviado para o Hospital de São José, onde foi operado em 29-06-99.
43) Em 16/09/99 foi operado no Hospital de S. José (UVM), tendo-se procedido a estabilização da lesão vertebral com VSP D12/L2.
44) Em 22-10-1999 foi sujeito a nova intervenção, em virtude de infecção da cicatriz (lesão purulenta).
45) Em 29-11-99 o A. deu entrada no centro de Alcoitão e apresentava um quadro de paraplegia incompleta a nível motor L1 e a nível sensitivo L3.
46) O tónus era flácido nos membros inferiores.
47) O A. estava algaliado em drenagem contínua e tinha treino intestinal instituído em dias alternados com medicação.
48) O revestimento cutâneo apresentava foliculite na região do sacro e face posterior da perna direita.
49) Durante o internamento o A. realizou Exame de Raio X do Tórax.
50) E exame de Raio X à coluna dorso lombar, sequela da Fractura de L1, material de osteossíntese D12/L2 bem posicionado.
51) E raio X da bacia óssea sem alterações.
52) E ecografia – reno vesical.
53) E estudo urodinâmico.
54) E provas funcionais respiratórias.
55) Em 14-01-2000 foi dada alta ao A. do Centro do Alcoitão, estando o mesmo independente a nível de cadeira de rodas.
56) O A. foi instruído que tinha que auto-algaliar-se de 4 em 4 horas, sendo que ainda tinha perdas de urina à noite.
57) Ao A. foi indicada a reabilitação da função motora por períodos na área da residência.
58) E a reavaliação da função urológica de 6 em 6 meses.
59) Bem como consulta no Centro do Alcoitão.
60) Em virtude da lesão o A. perdeu toda e qualquer mobilidade abaixo da vértebra L1, ou seja, sensivelmente abaixo da cintura.
61) O A. ainda não recuperou a mesma, nem tem perspetivas de a vir recuperar, apesar de ter feito fisioterapia.
62) Por causa desta lesão o A. perdeu o controle das suas funções urinárias e intestinais.
63) Pelo que para urinar teve que aprender a algaliar-se.
64) E para obrar teve que aprender a controlar o funcionamento intestinal por meio de medicação.
65) As lesões do A. não têm cura.
66) O A. nunca mais vai poder andar.
67) O A. não mexe, nem sente toda a parte inferior do corpo.
68) O A. tem que tomar especial cuidado nos locais onde se senta.
69) O A., dado não ter sensibilidade na parte do corpo abaixo da vértebra L1, pode-se queimar, cortar, ferir, sangrar, que nada sente, tendo queimado o pé direito ao tomar banho.
70) Daí que o A. tenha que realizar um exame diário do seu corpo com um espelho a fim de verificar o estado da pele.
71) O A. está especialmente sujeito a problemas de infeções urinárias e renais.
72) E à formação de escaras.
73) E a problemas respiratórios decorrentes da imobilidade das costas e da acumulação de secreções.
74) E edemas (inchaços) nas articulações.
75) E à calcificação das articulações.
76) Que causam grandes dores peri-articulares.
77) Bem como dores nas costas.
78) E retrações musculares.
79) E tem de auto mobilizar-se.
80) O A. necessita de assistência médica de revisão no mínimo anual.
81) O A. tem que usar sondas para retirar a urina.
82) E proceder a treino intestinal vesical.
83) O A. vai necessitar de tratamentos e assistência médica e medicamentosa futura, como medicamentos e algálias para obrar e urinar.
84) O A. tem como habitações literárias o 9º ano de escolaridade.
85) O A. sempre trabalhou em trabalhos manuais e como operador de máquinas.
86) Em virtude das lesões sofridas no acidente o A. não poderá trabalhar nessas actividades.
87) O A. está desde 09 de Janeiro de 2001 afectado de uma Incapacidade Parcial Permanente para o Trabalho de 60% com incapacidade absoluta para o trabalho habitua.
88) O A. após ter alta do centro de Alcoitão foi internado num lar, Lar Associação Quinta do (…), sito na Rua (…), nº 15, 1º andar, 1250-008 Lisboa.
89) O A. esteve no lar desde Junho de 2000 até Dezembro de 2003, com assistência de pessoal clínico e de enfermagem.
90) Que lhe davam de comer, faziam a cama, lavavam e tratavam de toda a sua roupa, comida e assistência.
91) O A. estava rodeado de idosos que, dado já não poderem viver sozinhos, tinham sido colocados tal como ele num lar, a fim de que outros tomassem conta deles.
92) Em Janeiro de 2004 o A foi transferido para o Lar (…) da Amadora.
93) O A. auferia à data do acidente a remuneração mensal de € 324,22 (PTE 65.000,00) catorze vezes por ano.
94) Em 2003 era-lhe paga a pensão de € 254,50.
95) A obra em causa nos autos encontrava-se dotada de um plano de segurança.
96) O andaime era montado antes da própria estrutura de ferro.
97) Esta não tinha capacidade para suportar o andaime caso este caísse.
98) O A. foi seguido pelos Serviços clínicos da seguradora regularmente e de acordo com o plano estabelecido para os sinistrados paraplégicos, incluindo programas de fisioterapia, consultas de urologia e as demais consultas julgadas necessárias.
*
Depois de afirmar a «verificação dos pressupostos de imputação do acidente à R. Somague por via da aludida presunção legal» (a do art.º 493.º, n.º 2, Cód. Civil), a sentença, num salto lógico que não acompanhamos, parte para a análise da relação de comissão entre o manobrador da grua e a Somague (recorde-se que A. estava a realizar uma tarefa quando o andaime situado à sua direita foi embatido pela carga da grua e tombou para o meio da doca caindo sobre o A.). Depois de citar doutrina pertinente, conclui pela «afirmação de uma relação de comissão estabelecida entre a R. Somague e o condutor da grua que estava a trabalhar na obra respondendo a Somague, solidariamente, nas relações externas, pelas consequências do sinistro que vitimou o A. visto que o acidente ocorreu na área de construção civil da responsabilidade da R. Somague (…)».
Contra este entendimento insurge-se a recorrente nestes termos:
«Relativamente ao gruista apenas resultaram provados os factos indicados sob os n.ºs 32), 35) e 39) na matéria de facto dada como provada.
«Factos que são manifestamente insuficientes para dos mesmos retirar uma qualquer relação entre gruista e Somague.
«Mantém-se a questão: era o gruísta empregado da Somague ou da (…)? Era o gruísta empregado da Lisnave»?
Temos de notar que a sentença descreveu a relação de comissão, tal como ela flui do art.º 500.º, Cód. Civil, mas em nada se debruçou sobre o caso concreto. Queremos dizer: depois de citar a doutrina, e sem analisar o caso que tinha entre mãos, conclui pela existência da comissão.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar.
Nada se sabe sobre o manobrador da grua (de quem era trabalhador e o que estava ele a fazer) nem sobre a grua (era de quem?). Repare-se que, na 2.ª p.i., o A. ainda tentou descortinar uma relação entre o manobrador da grua e a Somague (alegando, como se disse, que esta o tinha encarregado de efectuar as manobras com o devido cuidado) mas fê-lo de tal forma vaga, sem nunca identificar a qualidade jurídica do gruista, que o saneador a não acolheu, isto é, não quesitou aquilo que foi alegado nos art.ºs 37.º e 38.º do seu articulado. Não foram alegados quaisquer outros factos que possibilitassem ou sequer indiciassem uma relação de comissão.
Que elementos, então, temos aqui para neles assentarmos numa relação de comissão? Esta tem por base a «situação de alguém encarregar outrem de uma comissão ou, se se quiser, o acto e efeito de comitir» (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, vol. II, t. III, Almedina, Coimbra, 2010, p. 607). Na mesma linha de ideias, Antunes Varela sublinha a ideia de que o «termo comissão tem aqui o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem» (Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 1986, p. 598). Aprofundando estas ideias gerais, Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira escrevem que é «essencial que o comitente disponha de um poder de controlo sobre o comissário e que este, por sua vez, se encontre numa situação de subordinação ou dependência em relação àquele» (Anotação ao art.º 500.º em Comentário ao Código Civil Direito das Obrigações Das Obrigações em Geral, UCP, 2018, p. 386).
No caso concreto, nada sabemos que nos permita concluir que existia uma relação de comissão entre o manobrador da grua (ou a sua entidade patronal, se fosse esse o caso — o que também não sabemos) e a Somague. O que a este respeito se alegou na nova p.i. é absolutamente inconcludente. Como, então, se pode aplicar o regime do citado art.º 500.º? A sentença, parece-nos, considerou que o empreiteiro geral, só por o ser, é o responsável objectivo por tudo o que aconteça na obra, seja perante terceiros, seja perante trabalhadores que lá exercem a sua actividade. No entanto, não vemos que a lei, em parte alguma, estabeleça tal responsabilidade objectiva. Pelo contrário, é pacífico afirmar-se que não existe relação de comissão entre o empreiteiro e o dono da obra (ac. da Relação de Guimarães, de 3 de Maio de 2011) ou entre o empreiteiro e o subempreiteiro (ac. do STJ, de 17 de Junho de 2014).
Isto significa que não há elementos que permitam condenar a R. Fidelidade, nos termos da responsabilidade pelo comitente, com base no contrato de seguro celebrado entre ela e a R. Somague, por um lado, e com base no facto de esta ser a empreiteira geral, por outro.
*
Mas, como se disse, a sentença começou por enquadrar a actividade desenvolvida pelas RR. como sendo uma actividade perigosa, nos termos do art.º 493.º, n.º 2, Cód. Civil; logo, há presunção de culpa. Daqui conclui que a R. Somague, como líder do consórcio, é a responsável (embora o A. fosse trabalhador de outra empresa). Sendo esta a situação, «resta afirmar a verificação dos pressupostos de imputação do acidente à R. Somague por via da aludida presunção legal».
O citado preceito legal prevê a situação de serem causados danos «no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados». Neste caso, a obrigação de indemnizar os danos só não existe se o lesante «mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir».
A sentença analisa bem este ponto e, por isso, permitimo-nos transcrever (pp. 27-29):
«A lei não indica, porém, um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos da norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade como a natureza dos meios utilizados. Por esse motivo é aceite que a perigosidade tem de ser apurada caso a caso, em função das características casuísticas da actividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida.
«Para definir o conceito de “atividade perigosa”, o Prof. Vaz Serra pronunciou-se no sentido de considerar “actividades perigosas” as «que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades».
«Assim, actividade perigosa, para o efeito, é aquela que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes, e que essa perigosidade deve ser aferida a priori e em abstracto e não em função dos resultados danosos, em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade ou risco dessa actividade (cfr. Ac. STJ 29.04.2008, in www.dgsi.pt).
«A jurisprudência também tem apreciado, com frequência, que a actividade da construção civil não é em si mesma, intrinsecamente, sempre perigosa (cfr. Ac. STJ 13.11.2012 in www.dgsi.pt). Tudo depende da tarefa concreta no decurso da qual ocorreram os danos, da forma como a mesma está organizada, do perigo inerente a essa tarefa, dos meios e equipamentos afectos à sua realização, da sua dimensão e envergadura, dos materiais que estão a ser empregues, do risco inerente ao manuseio desses meios, equipamentos e materiais.
«In casu, resultou provado que uma grua a ser utilizada na obra de construção de hydrolift na Mitrena, executada pela Somague, ao transportar um feixe de ferro embateu no andaime que se encontrava junto a paredão que estava a ser erigido tendo este tombado atingindo o A. que em resultado da queda do andaime sobre si ficou paraplégico.
«A obra de construção de hydrolift é complexa e de grande envergadura, sendo usadas na obra várias gruas em permanência durante a execução dos trabalhos na obra e grande numero de trabalhadores o que transparece bem do conteúdo do contrato de empreitada e do respectivo contrato de seguro celebrado e foi confirmado pelas testemunhas que depuseram. A grua não deixa de ser tecnicamente uma máquina complexa, cuja funcionalidade depende, em grande medida, da arte e habilidade do seu manobrador até porque faz movimentar na obra cargas de grande dimensão, como foi referido pelas testemunhas a grua pela sua dimensão abarcava toda a área da obra. «Acresce que, na execução das diversas tarefas em que é usada há questões técnicas fundamentais a tomar em consideração, nomeadamente, a velocidade a que a elevação da carga é realizada, o tipo e peso de carga que pode ser elevado, as alturas mínimas e máximas regulamentares a que essas cargas podem ser elevadas, a sua forte exposição ao ambiente circundante e sobretudo como e onde a instalar, para garantir a máxima segurança».
Como exemplo, (além do que são indicados por Menezes Cordeiro, ob. cit., pp. 585-587) podemos apontar o caso da utilização de uma retroescavadora (ac. do STJ, de 17 de Maio de 2017), ou o do transporte de uma grua (ac. do STJ, de 7 de Abril de 2016, que confirmou o ac. desta Relação, de 25 de Junho de 2015). E se é assim para o transporte deste tipo de máquinas, o que dizer da sua própria utilização? Também aqui o STJ decidiu que «é de considerar perigosa pela sua própria natureza e ainda pela natureza dos meios utilizados, para efeitos do disposto no artº. 493º, nº 2, do CC, a actividade parcelar que envolve a utilização de auto-gruas telescópicas pesadas para remoção e alteamento de cofragens conexas com a betonagem de estruturas da barragem» (ac. de 9 de Julho de 2015, citado na sentença e onde se encontra uma ampla exposição sobre a matéria).
A consequência disto é a inversão do ónus da prova o que, por sua vez, dita que, como acima se disse, a obrigação de indemnizar os danos só não existe se o lesante «mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir».
E em nada vemos que alguma das RR. tenha demonstrado que tudo fez para que o acidente tivesse sido evitado. Não temos na matéria de facto qualquer elemento que demonstre que todas as providências foram tomadas para afastar a probabilidade de sinistro sendo certo que caberia aos onerados a prova dessas concretas medidas. Defende a recorrida Somague que o «Tribunal a quo apesar de fazer uma descrição pormenorizada dos termos em que o acidente se terá verificado, em nenhum momento diz o que é que a Ré deveria ter feito (e não fez) para evitar o acidente. E não o diz, porque na prova produzida o que resulta à saciedade é que nada poderia ter feito de modo diferente ao que foi feito para assegurar que o acidente não sucedesse. Tanto assim que, após o acidente, nada foi alterado na execução da obra, tendo esta continuado a ser executada nos exactos termos que o havia sido até aquele momento, porquanto, da análise realizada resultou que não era possível implementar nenhum outro método mais seguro de executar a obra do que aquele que já estava implementado». Não vemos, de maneira nenhuma, que isto consubstancie o assegurar de todas as providências para evitar o sinistro. Ter um plano de segurança não é o mesmo que estar a obra segura; ter um plano de segurança não é garantia que ele seja observado e é isto o que se exige, mediante fiscalização adequada (e para mais numa obra desta dimensão e natureza). Assim, o argumento é improcedente.
Estando a situação prevista neste preceito na franja da responsabilidade objectiva (embora impuríssima, como lhe chama Pinto Oliveira, apud, Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira, loc. cit., p. 324), só a demonstração cabal de que todos os cuidados foram tidos, tendo em consideração as circunstâncias do caso específico, exoneraria o «quem» a que se refere o art.º 493.º, n.º 2, da obrigação de indemnizar.
Mas isto não aconteceu.
*
Embora se pudesse afirmar que o art.º 493.º, n.º 2, protege apenas terceiros que são alheios à actividade perigosa, não temos dúvidas em afirmar que a actividade dos autos é, toda ela, composta de diversas actividades perigosas em que cada um é terceiro face ao trabalho dos outros. O A., tanto quanto sabemos, nada tem que ver com o manobrador da grua, nem juridicamente (isto, sem qualquer relação entre si) nem em termos de facto (desenvolviam, cada um, actividades completamente diferentes e alheias mutuamente).
Estando todos a trabalhar em benefício Lisnave – Infraestruturas Navais, AS, que era a dona da obra e sendo a Somague e a (…), empreiteiras da mesma, seriam estas que desenvolviam, por si ou por intermédio de outrem, a actividade em questão. Acontece que a R. (…) apenas começou a trabalhar nesta obra depois da data do acidente (n.º 38 dos factos provados). Se assim é, parece-nos claro que ela não pode ser responsabilizada. Não exercendo actividade no local sai fora da previsão do artigo 493.º.
*
Concluímos, assim, que as RR. mencionadas, salvo a (…), são civilmente responsáveis (nos termos do artigo 497.º, n.º 1) pelos danos que o A. sofreu em consequência deste acidente.
E do mesmo modo a R. seguradora, por força do respectivo contrato.
*
Aqui entramos na matéria que serve de fundamento às alegações do A..
São dois os pontos em questão: se as RR. mencionadas respondem directamente perante o A. ou só a seguradora; e se, no caso afirmativo, se o A. pode ver prejudicada a sua indemnização, recebendo 85%, quando foram demandados os responsáveis e estamos face a um seguro facultativo.
Quanto ao primeiro, ele discute-se se pelo facto de não estarmos perante um seguro obrigatório.
A sentença não explica a absolvição das RR. não seguradoras. Eventualmente, teve em conta o regime do seguro de responsabilidade civil por acidentes de viação em cujos artigos 22.º e 64.º, n.º 1, (do Decreto-Lei n.º 291/2007) se estabelece, no caso de o «pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório», que a só a seguradora responde. O art.º 146.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, por seu turno, dispõe que o «lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador» não querendo com isto dizer que proíbe que seja demandado o segurado.
A R. Somague defende que o contrato de seguro tem natureza obrigatória porque ele, «no que respeita aos seus termos, condições e coberturas foram impostas pelo Estado Português enquanto concessionário, i.e., sem a existência da apólice em questão nos termos em que foi subscrita a obra nunca poderia ter sido realizada, o que é bem demonstrativo do seu caracter obrigatório e não facultativo». No entanto, o carácter obrigatório resulta da lei e não da actuação do Estado enquanto sujeito de uma relação de Direito Administrativo sendo de notar que a recorrida não indica qualquer diploma no sentido que defende.
Independentemente disto, temos por certo que a obrigatoriedade do contrato de seguro não determina a exclusão da responsabilidade do tomador do seguro. Dado o caracter especial da regra do citado art.º 64.º, esta só se aplica aos acidentes de viação não sendo legítima a sua aplicação analógica a outros casos de seguro obrigatório. Neste sentido é claro o ac. do STJ, de 3 de Maio de 2016, em que estava em questão o seguro previsto no art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 312/2003 sobre regime jurídico de detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos como animais de companhia (entretanto substituído pelo Decreto-Lei n.º 315/2009). O Supremo entendeu o seguinte: «Tratando-se de obrigações solidárias, o lesado pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (cfr. arts. 518º e 519º do CC, mas à seguradora apenas no limite do seguro), propondo a acção contra o segurado ou contra a seguradora, ou contra ambos em simultâneo, como ocorreu no caso, em litisconsórcio voluntário. E continua a ser essa a solução, como tem sido entendido, mesmo após a consagração legal da possibilidade de acção directa do lesado contra a seguradora (artigo 146.º, n.º 1, da LCS)».
Por este motivo, entendemos que as RR. são solidariamente responsáveis, sendo que a seguradora o é até ao limite da responsabilidade para si transferida.
*
Em relação ao segundo ponto, cremos que flui da exposição antecedente que o tomador do seguro responde solidariamente com a seguradora e até ao montante contratado e responde desacompanhado da seguradora pelo valor que seja superior.
*
Entrando no montante da indemnização, temos que a recorrente Fidelidade alega que não estão abrangidos pelo seguro os danos patrimoniais. Cremos que a este respeito, a sentença é clara e correcta. De novo se transcreve (pp. 47-48):
«No domínio laboral só são reparáveis os danos patrimoniais, e nem todos, só relevando o dano patrimonial da frustração das utilidades que resultavam para o trabalhador e seus familiares da regular colocação no mercado da sua força de trabalho, sendo a reparação deste atribuída em abstracto, com base em tarifas legais que não cobrem senão uma parte do dano sofrido de acordo com a lei de acidentes de trabalho. Estas derrogações ao princípio geral da reparação integral (artigo 562.º CC) em sede de reparação de acidente de trabalho não excluem a ressarcibilidade dos restantes danos, significando, tão só, que a reparação por danos não patrimoniais ou por outros danos patrimoniais aqui não abrangidos ficará dependente da verificação dos normais pressupostos da responsabilidade civil.
«E é só esta responsabilidade na reparação de danos por acidente de trabalho que se encontra abrangida pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil, a transferir pela entidade patronal para uma seguradora.
«Assim, em caso de acidente que é também de trabalho, o devedor final é o terceiro responsável, in casu, a título de responsabilidade pelo risco e não o responsável a título de acidente de trabalho, no caso em apreço será pois a Ré seguradora, atento o contrato de seguro de tipo CAR celebrado para garantir toda a execução da empreitada, sendo segurados todos os empreiteiros e subempreiteiros e restantes trabalhadores, porquanto o acidente ocorreu durante a execução da obra, local de risco previsto no contrato.
«Cabe, pois, apreciar neste momento a invocada clausula de exclusão da responsabilidade da mesma pelo sinistro, visto que a R. Seguradora alega que a apólice de seguro prevê que das condições especiais resulta que «002-Responsabilidade Civil Cruzada (…) a Seguradora não indemnizará o segurado ou terceiros ao abrigo desta clausula relativamente a (…) 3. Danos decorrentes de lesões corporais ou morte de empregados efetivos ou contratados temporariamente ao serviço do segurado que estejam ou devam estar seguros de acordo com o estabelecido na lei de Acidentes de Trabalho.»
«No entanto, da leitura da cláusula invocada resulta tão só que se mostra excluída da cobertura da apólice a responsabilidade da R. no que concerne a indemnização por acidente de trabalho, pois que tais sinistros terão que ser cobertos por cada uma das entidades patronais relativamente a cada trabalhador, o que se compreende dada a natureza da relação laboral. No entanto, in casu, não está peticionada nem em apreço qualquer cobertura/indemnização por acidente de trabalho, aliás já foi até concedida indemnização pelo tribunal do trabalho. O que o A. peticiona nos autos é a indemnização pelos danos sofridos pelo A. para além do sinistro laboral, pelo que improcede a invocada exclusão de responsabilidade da R. seguradora ao abrigo da referida cláusula».
As indemnizações fixadas por acidente de trabalho visam compensar a perda da capacidade de ganho e só este dano é pela legislação específica garantido (sem prejuízo de situações em que existe violação das normas de segurança pela entidade patronal). Outros danos patrimoniais resultantes do acidente são indemnizáveis nos termos gerais.
Por estes motivos, não tem a recorrente razão.
*
Ainda neste âmbito dos danos patrimoniais, a recorrente alega que não se provou que (1.º) o Autor tenha danos futuros – lucros cessantes, (2.º) que o Autor careça de ajuda de terceira pessoa e (3.º) que o Autor careça de indemnização por assistência médica e medicamentosa.
Em parte nenhuma tem razão.
A sentença é clara sobre este aspecto pelo que, mais uma vez, nos permitimos transcrever:
«A título de lucros cessantes vencidos desde o momento do acidente até à dedução do pedido (sendo que nessa altura já havia decorrido 6 anos e 2 meses desde a data do acidente) e por forma a suprir a diferença de futuro entre o valor da pensão que recebe e o salário que auferiria cabe ter em conta que o A. alegou, mas não logrou provar, que o vencimento real de um trabalhador com as capacidades e habilitações do A. com horas extra ascende a 700,00 a 1.100,00 €/mês, porém resultou provado que o A. no momento em que ocorreu o acidente auferia o vencimento de 65.000,00 (€ 324,22) catorze vezes por ano acrescido de subsidio de alimentação, sendo que de acordo com os dados fornecidos pelo PORDATA-Portugal o salário mínimo nacional em 1999 era de € 356,7 assim sendo, atendendo à evolução do salário mínimo nacional que em 2019 é de € 700,00, e dado que o salário auferido pelo A. em 1999 rondava o salario mínimo nacional, podemos considerar que é devida ao A. pelo menos, a titulo de lucro cessante, a diferença entre o valor da pensão recebida pelo A. fixada em sede laboral e o valor do salario mínimo nacional, sucede que não reúnem os autos elementos que permitam aferir do montante da pensão auferida ao longo dos anos e sucessivas actualizações, pelo que se remete para liquidação de sentença o apuramento de tal montante, sendo certo que é devido ao A. o valor da diferença entre a pensão recebida mensalmente pelo A. e o montante do salario mínimo nacional respectivamente em cada ano, mais sendo devido o pagamento de tal diferença a titulo de dano futuro considerando a idade de 78 anos (cálculo actual de esperança média de vida para os homens), a apurar em liquidação de sentença.
«Mais peticionou o A. a fixação de indemnização por dano emergente referente à necessidade de ser acompanhado na sua vida diária por terceira pessoa, dano esse que resultou provado dado que o A., pelas limitações físicas inerentes à sua condição de paraplégico necessita em permanência de ser acompanhado por terceira pessoa nos actos da vida diária, quantia cujo apuramento se remete para liquidação em execução de sentença a titulo de dano emergente vencido e vincendo».
Em relação ao terceiro ponto, não temos qualquer dúvida que o A. necessitará até ao fim dos seus dias de assistência médica e medicamentosa; não vemos sequer como possa ser de outra forma uma vez que milagres são só fruto de imaginações poderosas.
*
Alega ainda que a indemnização fixada por danos morais é manifestamente exagerada; não o é pois que os danos sofrido pelo A. são manifestamente enormes. Tanto basta para arredar o argumento. Por outro lado, não podemos mitigar o facto de o A. ter 23 anos à data do acidente e ter ficado paralisado da cintura para baixo o que o impede e impedirá de trabalhar no que sabia fazer (o ac. do STJ, de 30 de Maio de 2019, citado pela recorrente, tratou de uma caso em que a lesada foi uma jovem de 17 anos; mas está bem de ver que as lesões são bem inferiores às do A.).
*
Por último, e retomando as alegações do A., quanto à determinação da quota parte entre os responsáveis.
Como acima se disse, a seguradora deverá responder por 85% do valor dos danos, dado que é esta a responsabilidade que para si foi transferida (n.º 15 da exposição da matéria de facto); até esta percentagem, a seguradora responderá solidariamente com as responsáveis Lisnave Infraestruturas Navais, AS, Somague Engª, SA; para além de tal percentagem, estas RR. responderão.
*
Pelo exposto:
I- julga-se improcedente o recurso da R. Fidelidade.
II- julga-se procedente o recurso do A. em função do que:
1.º- revoga-se a sentença na parte em que absolveu as RR. Lisnave Infraestruturas Navais SA e Somague Engª, SA dos pedidos contra si formulados;
2.º- condenam-se as RR. Lisnave Infraestruturas Navais, SA, Somague Engª, SA, e Fidelidade Companhia de Seguros S.A. a pagar solidariamente a quantia de € 350.000,00, sendo a responsabilidade desta última até 85% deste valor; quanto aos restantes 15%, o seu pagamento é devido pelas demais RR. solidariamente.
3.º- condenam-se as RR. Lisnave Infraestruturas Navais SA, Somague Engª, SA, e Fidelidade Companhia de Seguros S.A. no pagamento ao A da quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativa aos montantes referentes a lucros cessantes e a danos emergentes com os limites das quantias peticionadas nos autos, descontando-se o valor da franquia do seguro cujo pagamento é a cargo da R. Somague, na proporção e nos termos definidos no parágrafo antecedente.
4.º- no mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente Fidelidade.
Évora, 14 de Julho de 2020
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos

Sumário: (…)