Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
202/15.5GBODM.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - A responsabilidade pelo risco implica que o veículo esteja em circulação. Trata-se do risco de uma máquina que circula.

II - Se ocorreu um embate entre um veículo automóvel e um velocípede que estavam em circulação, se inexiste culpa dos condutores e se os dois embateram entre si, não pode concluir-se que os danos foram causados “somente por um dos veículos”, havendo, assim, lugar à repartição do risco.

III - A medida da repercussão do risco criado por cada um dos veículos intervenientes na colisão será a que resulta das características próprias de cada um desses veículos e do conjunto das circunstâncias relevantes. Impõe-se proceder sempre a uma avaliação em concreto, na aferição da contribuição/repartição do risco.

IV - É de reconhecer, no caso, a maior potencialidade danosa do veículo automóvel, a qual se concretizou (realmente) mais intensamente. E que essa sua maior contribuição para o dano deve ser, em concreto, mesurada em 85%, reservando-se os 15% de risco para o velocípede.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo comum singular n.º 202/15.5GBODM, da Comarca de Beja, foi proferida sentença a absolver o arguido DD da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, do art. 148.º n.º 1 do CP, de uma contra-ordenação do artigo 22.º n.º 2 al. a) e n.º 7 e de uma contra-ordenação do artigo 13.º n.º 1 e n.º 4, ambas do Código da Estrada.

Foi ainda julgado totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. e, em consequência, condenada a demandada civil S..., S.A. a pagar ao demandante civil a quantia global de 17.670,21 Euros (dezassete mil seiscentos e setenta euros e vinte e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil em vigor, desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento; e parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes e demandantes civis ML e JJ e, em consequência, condenada a demandada civil S…, S.A. a pagar aos demandantes civis uma indemnização no valor de: a. 20.870,00 Euros (vinte mil oitocentos e setenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil em vigor, desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento. b. 10.000,00 Euros (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil em vigor, desde a data da presente decisão até efectivo e integral pagamento.

Inconformada com o decidido, recorreu a demandada S…, S.A., concluindo:

“1ª. – Ficou provado que o menor RL conduzia um velocípede num caminho vicinal, de terra batida, de cabeça em baixo, a efectuar uma descida e ao descrever uma curva para a direita, próximo do meio da faixa de rodagem, deparou-se com o veículo automóvel do arguido pela sua frente e em aproximação, circulando em sentido contrário.

2ª. – O velocípede era antigo, com rodas 26, com travões e pneus que não se encontravam nas melhores condições, segundo declarou o próprio menor RL, como consta de fls. 21 e 21 vºs. da sentença.

3ª. – O caminho vicinal apresentava alguma pedra solta, constituía uma descida para o menor, nalguns pontos apresentava uma pendente considerável e o local do embate correspondia a uma curva para a direita para o velocípede, encadeada em curvas e contra-curvas em S, o que foi verificado pelo próprio Tribunal, que se deslocou ao local (vide fls. 21 e 21 vºs. da sentença).

4ª. – Também ficou provado que o arguido, DD, condutor do veículo automóvel seguro na Recorrente, conduzia o mesmo nesse caminho vicinal, em sentido contrário ao do menor RL e pela metade direita da sua faixa de rodagem e que, na tentativa de evitar o embate com o velocípede, direccionou o veículo automóvel para a via da esquerda, considerando o seu sentido de marcha, tendo esse embate ocorrido em ponto da faixa de rodagem não concretamente apurado.

5ª. – Dos factos apurados e ainda de acordo com os dados da experiência comum, imperioso se torna concluir que o menor foi o único culpado na eclosão do acidente.

6ª. – Com efeito, este conduzia um velocípede antigo, com travões e pneus em condições deficientes, num caminho vicinal em terra batida, com alguma pedra solta, numa descida com declive acentuado nalguns pontos, com curvas e contra-curvas em S, de cabeça em baixo e próximo do eixo da via.

7ª. – Em sentido contrário circulava o arguido, na metade direita da faixa de rodagem e que direccionou o veículo automóvel para a via de sentido oposto, onde circulava o velocípede, numa tentativa de evitar o embate com o velocípede.

8ª. – Se o arguido seguia na sua mão de trânsito e, a dado momento, tentou evitar o embate com o velocípede, para o que direccionou o automóvel para a semi-faixa de rodagem contrária, é porque o velocípede circulava na semi-faixa de rodagem do automóvel (se o velocípede circulasse na sua mão de trânsito, o veículo automóvel não tinha necessidade de se desviar para a semi-faixa de rodagem contrária).

9ª. – Os factos provados conduzem à conclusão de que o menor RL foi o único culpado na eclosão do acidente.

10ª. – Ainda que se conclua que não está provada a culpa do menor nem a culpa do condutor do automóvel seguro e se aplique o disposto no art. 506º do Cód. Civil, a consequência não pode ser a da sentença, no sentido de, apesar de não se provar a culpa de nenhum desses condutores, a obrigação de indemnizar 100% dos danos sofridos caber apenas a um deles.

11ª. – No caso dos autos, o risco criado pelo velocípede é igual ou até superior ao risco criado pelo automóvel, embora se admita que possa ser fixado em 60% para o veículo automóvel e 40% para o velocípede.

12ª. – A Recorrente responde na proporção do risco criado pelo veículo automóvel seguro, ou seja, terá, eventualmente, a obrigação de indemnizar no máximo 60% dos danos sofridos pelo menor e pelo Centro Hospitalar.

13ª. – Não pode merecer acolhimento a interpretação do nº. 1 do artº. 506 do Cód. Civil no sentido de um dos condutores não culpado num acidente entre 2 veículos ter de ressarcir 100% dos danos sofridos pelo outro condutor.

14ª. – A Recorrente responde pelos danos emergentes do acidente mas de acordo com a percentagem de responsabilidade do condutor do veículo automóvel seguro e até ao limite da mesma.

15ª. – A Lei, que se supõe justa, não pode dispor que é igual a obrigação de indemnização para um condutor cujo comportamento é censurável e eventualmente criminal e para outro condutor a quem nada haverá a apontar (o 1ª. terá de ser sancionado e o 2º. não).

16ª. – Quanto à questão da responsabilidade na eclosão do acidente, houve um erro de julgamento.

17ª. – Os factos dados como provados conduziam a que fosse atribuída a culpa no acidente ao velocipedista, como já foi referido.

18ª. – No caso de não ser considerada a existência de culpa deste, então deve ser fixada a percentagem de risco de cada um dos veículos e fixar a indemnização de acordo e tendo como limites tal percentagem.

19ª. – Neste caso houve uma errada interpretação do nº. 1 do artº. 506 do Cód. Civil.

Deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência:

a) – Deve ser revogada a sentença e declarada a culpa exclusiva no acidente ao menor RL, com a inerente absolvição da Recorrente.

b) – Se assim se não entender, o que por mera hipótese se admite, deve ser fixado o risco para a eclosão do acidente, no máximo, em 60% para o veículo automóvel e em 40% para o velocípede e, seguidamente, serem fixadas as indemnizações de acordo com essa percentagem, quer quanto ao menor quer quanto ao Centro Hospitalar.

c) – Deve ser revogada a sentença também quanto às custas e juros, como consequência da revogação da sentença.”

O Ministério Público e os assistentes/demandantes cíveis ML e JJ responderam ao recurso, pronunciando-se ambos no sentido da improcedência, e concluindo os últimos:

“a) A ora Apelante delimitou o objeto do seu recurso, mormente quanto, à existência de culpa exclusiva no acidente pelo menor RL, que impunha a inerente absolvição da Recorrente ou caso assim não se entendendo, deveria ser fixado o fixado o risco para a eclosão do acidente, no máximo, em 60% para o veiculo automóvel e 40% para o velocípede e, seguidamente serem fixadas as indemnizações de acordo com essa percentagem, enquanto fundamento para a revogação da Sentença nos termos peticionados.

b) No que respeita à primeira questão, pretende a Recorrente, sem sindicar ou indicar quais os factos se encontram incorretamente julgados e/ou invocar a sua eventual contradição, se agora beneficiada com uma alteração da decisão a proferir pelos Venerandos Desembargadores a seu favor.

c) Na verdade, a sindicância da Recorrente ao douto Tribunal “a quo “, limita-se ao princípio da livre apreciação da prova ou, pelo menos, a forma como tal utilização se materializou na Douta Sentença, isto é, na forma como o tribunal ponderou a prova produzida em tribunal e o resultado que alcança.

d) É entendimento unanime na jurisprudência superior e doutrina que o “princípio da livre apreciação da prova” não significa a possibilidade de apreciação subjetiva, arbitrária, ou baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação. Antes, pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica, bem assim, objetivamente motivável, harmonizada com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos.

e) Como bem informa o Meritíssimo Juiz “a quo”, na sua douta Sentença, que para a determinação da matéria de facto descrita, teve uma análise critica e conjugada à luz das regras de experiência e critérios na normalidade, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mormente das declarações prestadas pelo próprio arguido e dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência de discussão e julgamento, em conformidade com o que resulta da ata. Tendo ainda em consideração, a analise global e pormenorizada, do teor dos documentos juntos aos autos.

f) Todavia, atento os factos dados como provados constantes dos números 1 a 10 e 16 a 19.º, constantes da douta Sentença e supra ficaram transcritos, é manifestamente impossível fazer um juízo conclusivo pela culpa exclusiva do menor no sinistro em apreço nos autos como pretendido pela Apelante.

g) Assim e sem mais considerandos reforça-se que a douta Sentença colocada em crise não merece qualquer reparo quanto à sua fundamentação e decisão, no que a esta matéria releva, devendo a Apelação apresentada ser julgada totalmente improcedência mantendo-se afastada qualquer culpa por parte do menor RL no acidente.

h) Quanto ao segundo segmento das conclusões apresentadas pela apelante (errada interpretação do 506.º do Código Civil), salvo o devido respeito por entendimento contrário, não lhe assistirá igualmente qualquer razão.

i) Constitui entendimento corrente na Doutrina e na Jurisprudência que a responsabilidade pelo risco exige verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à exceção da ilicitude e da culpa, ou seja, para que se afirme a responsabilidade pelo risco basta a ocorrência de um facto naturalístico (lícito ou ilícito) e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

j) Ora, não se tendo provado culpa - efetiva ou presumida – por parte do Arguido (o condutor do outro veículo interveniente no acidente), importa determinar se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade pelo risco relativa à circulação automóvel.

k) Dispõe o nº 1 do artigo 503º C.C., aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, ainda que ele não se encontre em circulação.

l) Assim, em matéria de acidentes causados por veículos, não logrando o lesado provar culpa efetiva ou presumida do condutor do veículo interveniente no acidente, verifica-se responsabilidade pelo risco, que, nos termos do artigo 505º CC, que apenas é excluída se o responsável nos termos do artigo 503º, nº1, CC, demonstrar que o acidente é imputável ao lesado ou a terceiro, ou que resultou de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

m) Por outras palavras, não havendo culpa, efetiva ou presumida, do condutor do outro veículo interveniente no acidente, nem se provando que este se deveu a facto do lesado ou de terceiro, ou a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, situamo-nos no campo da responsabilidade pelo risco, ainda que o lesado não identifique o risco concreto que originou o acidente.

n) Ainda que não se trate de estabelecer qualquer presunção de culpa contra o condutor do veículo segurado na Apelante, certo é que ficou dado como provado que: 5. O RL desferiu a curva próximo do meio da faixa de rodagem; 6. Na aproximação ao velocípede, o arguido não buzinou para sinalizar a sua presença à frente no caminho, nem imobilizou o veículo automóvel que conduzia. 7. Na tentativa de evitar o embate, o arguido direcionou o veículo automóvel para a via de sentido oposto, ou seja, para a via da esquerda, afeta à circulação do velocípede.”

o) Por outro lado, matéria de facto assente, uma vez que não foi colocada em causa pela apelante a intervenção do seu segurado (arguido) no sinistro em apreço.

p) Como muito bem sustenta o M. Juiz “a quo” na fundamentação da sua Sentença: “Neste conspecto, não estando sustentada a culpa efetiva de algum dos condutores dos veículos intervenientes no embate em causa nos autos, não estando nenhum deles onerado pela presunção de culpa do n.º 3 do art.º 503.º do Código Civil e não estando também comprovada a culpa do lesado, ou por facto de terceiro, ou por causa de força maior estranha ao funcionamento dos veículos (artigo 505.º do CC), o presente caso de colisão de veículos deverá ficar sujeita à disciplina do art.º. 506.º do código civil.”

q) Concluindo mais à frente o M. Juiz “a quo” que: “É o que, a nosso ver, sucede no caso concreto, na medida em que, quanto aos danos comprovados nos autos, os mesmos foram causados somente pelo veículo automóvel conduzido pelo arguido, já que o sinistrado, RL, foi projetado, em consequência da colisão, sofrendo as lesões físicas que lhe demandaram a prestação de assistência hospitalar, os danos morais.

r) Assim, bem andou o M. Juiz “a quo” na aplicação da mencionada norma.

s) Por outro lado, independentemente de culpa, as citadas normas indicam que a responsabilidade pelo risco em caso de colisão de veículos, são repartidas na proporção em que cada um deles tiver contribuído efetivamente para os danos, o que poderá determinar a aplicação de 100% de responsabilidade para um dos condutores, em função do caso concreto atento os factos dados como provados.

t) No caso concreto, relembramos, que foi dado como provado que: “O menor circulava num velocípede, próximo do meio da faixa de rodagem, na aproximação ao velocípede o arguido não buzinou para sinalizar a sua presença à frente no caminho, não imobilizou o veiculo automóvel, na tentativa de evitar o embate direcionou o veiculo para a via de sentido oposto, ou seja para a via da esquerda, afeta à circulação do velocípede, indo embater com a parte da frente do seu veiculo automóvel, junto à ótica direita do veiculo, contra a roda dianteira do velocípede, no local do embate, a faixa de rodagem tinha à data do embate 4,20 metros de largura e comportava uma via para cada sentido, cada uma com 2,10 metros de largura, permitia uma visibilidade normal, na medida em que permite avistar quem nela circule a, pelo menos, 50 metros de distância, o veiculo do arguido tinha seguramente uma largura inferior a 2,10, o arguido sabia que tinha em aproximação o velocípede conduzidos pelo jovem RL e que o mesmo circulava próximo do meio da faixa de rodagem e, apesar disso, não buzinou, nem imobilizou o seu veiculo automóvel (vide pontos 5 a 8 e 16 a 19 dos factos dados como provados).

u) Termos em que a atribuição da totalidade de responsabilidade pelo M. Juiz “a quo”, não é merecedora de qualquer reparo, nem existiu qualquer erro na aplicação do mencionado artigo 506.º n.º 1 do C.C. como invocados pela Recorrente.

v) Não assiste assim qualquer razão nas conclusões 10.ª a 19.ª, formuladas pela Recorrente, devendo assim improceder as alegações formuladas.

w) A douta Sentença em crise não merece qualquer reparo quanto à sua fundamentação e conclusão, devendo a apelação apresentada merecer total improcedência.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se referindo que “a absolvição penal deve ser mantida”. Não houve resposta, e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. No dia 8 de Julho de 2015, pelas 08h30m, o arguido DD conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca e modelo Suzuki Vitara, com a matrícula --LE, no caminho vicinal, de terra batida, que dá acesso ao sítio do Moinho da Asneira, próximo da localidade do Galeado, em Vila Nova de Milfontes.

2. O arguido conduzia pela metade direita da faixa de rodagem, vindo do sítio do Moinho da Asneira e em direcção à localidade do Galeado.

3. No mesmo caminho, circulava um velocípede, conduzido pelo ofendido RL, no sentido de marcha oposto, ou seja, vindo da localidade do Galeado e em direcção ao sítio do Moinho da Asneira.

4. O velocípede conduzido pelo RL, encontrando-se a efectuar uma descida e ao descrever uma curva para a direita que se inicia próximo de um sinal C21 que ali existe, deparou-se com o veículo automóvel do arguido, pela sua frente e em aproximação.

5. O RL desferiu a curva próximo do meio da faixa de rodagem.

6. Na aproximação ao velocípede, o arguido não buzinou para sinalizar a sua presença à frente no caminho, nem imobilizou o veículo automóvel que conduzia.

7. Na tentativa de evitar o embate, o arguido direccionou o veículo automóvel para a via de sentido oposto, ou seja, para a via da esquerda, afecta à circulação do velocípede.

8. Indo embater com a parte da frente do seu veículo automóvel, junto à óptica direita do veículo, contra a roda dianteira do velocípede.

9. O embate ocorreu num ponto da faixa de rodagem não concretamente apurado.

10. Em função do embate, o RL foi projectado para cima do capô e vidro pára-brisas do automóvel, aí embatendo violentamente, após o que ficou caído, prostrado no solo.

11. Em resultado, directo e necessário, do embate, o RL sofreu traumatismo crânio encefálico com perda de conhecimento e amnésia, traumatismo da face com fractura dos ossos próprios do nariz, traumatismo torácico fechado e traumatismo do membro inferior direito com fractura exposta do fémur e ossos da perna (mais especificamente, fractura osteocondral do condilo externo joelho direito, exposta, rotura completa do tendão quadricipital à direita, exposta e fractura do 1/3 distal dos ossos da perna direita), tendo o RL recebido tratamento e cuidados médicos no Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria e na Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano.

12. O RL deu entrada no Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria, no dia 8 de Julho de 2015 e foi submetido a cirurgia ortopédica na mesma data, tendo aí ficado internado até ao dia 13 de Julho de 2015, após o que foi transferido para a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, onde ficou internado por mais 3 dias.

13. Como consequência, o RL ficou com cicatriz horizontal acima da face anterior da rótula direita com vestígios de pontos de sutura que mede 23 cm e três cicatrizes superficiais da perna direita, sendo que a maior mede 7 x 2 cm e com limitação da flexão do tornozelo a 90º, não se conseguindo manter em posição de cócoras.

14. A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo RL ocorreu a 21 de Julho de 2016.

15. Tais lesões acarretaram para o RL um período de défice funcional temporário total de 186 dias, um período de défice funcional temporário parcial de 191 dias, um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 93 dias, um período de repercussão temporária na actividade profissional parcial de 287 dias, um quantum doloris de grau 4/7, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos, um dano estético permanente de grau 1/7, uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 1/7, sendo ainda tais sequelas compatíveis com o exercício da actividade física habitual, mas implicam esforços suplementares.

16. No local onde ocorreu o embate, a faixa de rodagem tinha, à data do embate, 4,20 metros de largura e comportava uma via para cada sentido de trânsito, cada uma com 2,10 metros de largura.

17. E permitia uma visibilidade normal, na medida em que permite avistar quem nela circule a, pelo menos, 50 metros de distância.

18. O Suzuki Vitara que o arguido conduzia tinha uma largura não concretamente apurada, mas seguramente inferior a 2,10 metros, correspondentes à via de trânsito onde circulava.

19. O arguido sabia que tinha em aproximação o velocípede conduzido pelo jovem RL e que o mesmo circulava próximo do meio da faixa de rodagem e, apesar disso, não buzinou, nem imobilizou o seu veículo automóvel.

Do pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E.:

20. O Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. é uma pessoa colectiva que integra o Serviço Nacional de Saúde.

21. Em consequência do embate descrito, o demandante civil prestou, no exercício da sua actividade, a seguinte assistência hospitalar ao RL:

- Cuidados de saúde em episódio de urgência e internamento, do dia 08/07/2015 a 13/07/2015, importando o valor de 17.494,21 Euros, titulado pela factura n.º 20181/5252, emitida em 28/02/2018;

- Cuidados de saúde em episódio de consulta externa de cirurgia pediátrica-trauma, do dia 25/09/2015, no valor de 31,00 Euros, titulado pela factura n.º 20181/5255, emitida em 28/02/2018;

- Cuidados de saúde em episódio de consulta externa de ortopedia-ortopedia infantil, dos dias 12/01/2016, 08/06/2016 e 03/11/2016, bem como meios complementares de diagnóstico e terapêutica, dos dias 12/01/2016 e 08/06/2016, no valor de 114,00 Euros, titulado pela factura n.º 20181/5268, emitida em 28/02/2018;

- Cuidados de saúde em episódio de consulta externa de ortopedia-ortopedia infantil, do dia 23/11/2017, no valor de 31,00 Euros, titulado pela factura n.º 20181/5269, emitida em 28/02/2018;

22. À data do embate, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo com a matrícula --LE encontrava-se transferida para a S., S.A., por apólice com o n.º ----.

Do pedido de indemnização civil dos assistentes:
23. À data do embate ocorrido entre o veículo conduzido pelo arguido e o velocípede conduzido por RL Leitão, o tempo encontrava-se bom.

24. Na sequência do embate, o RL foi assistido no local, pelo Bombeiros Voluntários e INEM que se deslocaram ao local.

25. Em face das lesões apresentadas, o RL foi helitransportado para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para os serviços de cirurgia pediátrica.

26. Ali, o RL foi submetido a intervenção cirúrgica, com intervenção de anestesia geral, para redução cruenta e fixação com fios de Kirscher da fractura osteocondral exposta do condilio externo do joelho direito, tenorratia do tendão quadricipital direito, redução incruenta e fixação com fios Kirscher da fractura do 1/3 distal dos ossos da perna direita e realização de tábua gessada moldada cruro-podática.

27. Após as mencionadas intervenções cirúrgicas, manteve-se hemodinamicamente estável, inicialmente muito queixoso, com necessidade de analgésica frequente e analgésicos em SOS.

28. Em face das suas lesões, esteve algaliado desde o dia 8 de Julho de 2015 até, pelo menos, o dia 12 de Julho de 2015, data em que foi reiniciado treino vesical para posterior desalgaliação.

29. Posteriormente, em face da sua estabilização, foi o mesmo transferido para o Hospital da sua residência, para continuação de cuidados.

30. No Hospital do Litoral Alentejano, permaneceu internado mais 3 dias, tendo obtido alta para a sua residência, com aparelho gessado e imobilizado.

31. A 13 de Setembro de 2015, o RL apresentava sinais de intolerância de material usado para fixação de fractura distal da tíbia por traumatismo directo, carecendo de remoção de material (fios K).

32. Nesse mesmo dia, foi remetido para o bloco operatório e, com recurso a anestesia, foi efectuada a remoção dos fios K, no bloco operatório.

33. Em data não concretamente apurada foi retirada a pala gessada, sendo o RL acompanhado em Ortopedia.

34. O RL reiniciou a marcha, através de recurso à fisioterapia.

35. Tendo necessidade, inicialmente, de fazer o mesmo com apoio a canadianas.

36. Em Outubro de 2015, o RL regressou às aulas, sendo que, na altura, fazia a marcha com apoio de uma canadiana.

37. Até ao início do mês de Outubro de 2017, o RL necessitou de ajuda de terceira pessoa para lhe prestarem as necessidades mais elementares, como vestir, lavar-se, alimentar-se e caminhar.

38. Em face dessa necessidade, a sua mãe, ML, faltou ao seu trabalho, na AG, para assistência ao seu filho, entre os dias 8 de Julho de 2015 e 17 de Outubro de 2015, sendo que, na referida empresa, auferia um salário base de 435,00 Euros.

39. Nesse período, a mãe do RL auferiu apenas a quantia de 136,56 Euros.

40. Nos meses de Agosto e Setembro de 2015, a mãe do RL não auferiu qualquer vencimento, nem qualquer subsídio de assistência por parte da Segurança Social.

41. O RL nasceu no dia 11 de Janeiro de 2003.

42. Era alegre, saudável e activo.

43. Praticava todos os tipos de deporto, escolar e ocupacional de tempos livres, designadamente, canoagem, no Clube de Canoagem de Vila Nova de Milfontes.

44. Fazia as suas refeições de forma autónoma, tratava da sua higiene.

45. Corria, saltava, brincava, jogava à bola, praticava canoagem, andava de bicicleta e estudava.

46. Posteriormente e em consequência das lesões sofridas no embate, o RL, até pelo menos ao mês de Janeiro de 2016, não pode mais praticar qualquer desporto e outra actividade que envolvesse a componente física.

47. Apresentava, até essa data, marcha claudicante e com recurso a ajudas técnicas.

48. Em exame de avaliação médico-legal, realizado em Janeiro de 2016, ainda apresentava membro inferior direito, edema e hipersensibilidade da base do pé direito, cinco cicatrizes da perna e joelho direito, com vestígios de pontos de sutura, ainda em consolidação com tecido rosado, limitações da mobilidade do tornozelo por subjectivos dolorosos, tendo marcado o início da realização de carga a partir de 12 de Janeiro de 2016.

49. O RL teve alta da fisioterapia em Setembro de 2016.

50. Durante o período de um ano, o RL foi submetido, inicialmente, a realização de cinco sessões por semana e, nos dois últimos meses, a, pelo menos, duas sessões por semana.

51. A 19 de Julho de 2017, o RL foi novamente submetido a exame de avaliação no Gabinete Médico-Legal Forense do Baixo Alentejo, em Beja, tendo sido observado e apresentava ainda, no membro inferior direito, uma cicatriz horizontal acima da face anterior da rótula direita, com vestígios de pontos de sutura, que mede 23 cm, cicatrizes na perna direita e limitações da flexão do tornozelo a 90º, não se conseguindo pôr de cócoras, nem se segurar sobre o joelho direito.

52. Na presente data, o RL permanece com subjectivos dolorosos no joelho direito, quando se apoia de cócoras, exercendo actividade física normalmente, com excepção da corrida e salto no trampolim, nem jogo futebol.

53. Sente dores e limitações da flexão do joelho direito, principalmente quando corre ou anda mais.

54. O facto do RL não poder realizar aquelas actividades, deixa-o triste.

55. As cicatrizes apresentadas pelo RL na sequência do embate afectam o seu comportamento junto de todos os seus colegas.

56. Na sequência do embate, o RL, por vezes, queixa-se de dores na zona lombar, perna e pé.

Das contestações:
57. O RL conduzia o velocípede de cabeça em baixo.

Mais se provou que:
58. O arguido não tem antecedentes criminais.

59. O arguido é treinador de canoagem, dedicando-se, actualmente, em exclusividade, a uma empresa própria com aquele objecto social, auferindo um rendimento mensal de cerca de 650,00 Euros.

60. Vive em casa arrendada, com a companheira e com um filho recém-nascido.

61. O arguido tem outro filho, com 4 anos de idade, a quem paga uma pensão de alimentos de 150,00 Euros mensais.

62. Suporta a renda de casa, no valor de 300,00 Euros.

63. Tem ainda despesas de alimentação e despesas com água, luz e gás, referentes a habitação, num valor aproximado de 150,00 Euros mensais.

64. O arguido tem, como habilitações literárias, um mestrado em Ensino e Educação Física.”

E a fundamentação da decisão em matéria cível foi a seguinte:
“Por força do disposto no artigo 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos resultantes de crime é regulada pela lei civil.

Os pedidos formulados pelos demandantes civis visam a declaração de um crédito indemnizatório a seu favor com base na responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana emergente da conduta criminosa do arguido.

Este direito de crédito funda-se no disposto no artigo 483.º n.º 1 do Código Civil que postula que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.

Para que procedam os pedidos dos assistentes e do demandante civil, há, assim, que verificar se há factos dados como provados que preencham, cumulativamente os seguintes pressupostos:

- A existência de um facto voluntário do agente;
- A ilicitude desse facto;
- Que haja um nexo de imputação do facto ao lesante (culpa do lesante);
- Que da violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenham danos;
- Que se verifique a existência de um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima. O facto voluntário do agente terá que se traduzir numa conduta humana do agente que é pensada e controlada pelo próprio agente, podendo configurar-se como uma acção ou omissão, sendo que neste último caso, pressupõe-se a existência de um dever legal de praticar o acto omitido, o qual, se fosse praticado, seguramente ou, pelo menos, muito provavelmente, teria evitado o dano. A ilicitude do facto traduz-se num juízo de desvalor objectivo do facto voluntário do agente em resultado da violação de um direito de outrem ou de uma norma destinada a proteger interesses alheios (as chamadas normas de protecção), aqui se integrando as normas penais. Por seu turno, a culpa consiste num juízo de censura (subjectivo) centrado na conduta do agente, sendo imprescindível, por um lado, que o agente seja susceptível de um juízo de censura e, por outro lado, que a sua conduta seja efectivamente censurável, isto é, que nas circunstâncias concretas do caso se possa afirmar que o agente podia e devia ter actuado de outra forma.

Por outro lado, para haver obrigação de indemnizar é necessário que ocorra um dano, sendo que o mesmo é, na perspectiva da responsabilidade civil, todo o prejuízo ou desvantagem que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não, em função da sua susceptibilidade de avaliação pecuniária.

No que tange aos danos patrimoniais, são indemnizáveis não apenas os danos emergentes, ou seja, o prejuízo imediatamente sofrido pelo lesado, mas também os lucros cessantes, isto é, as vantagens que deixaram de entrar no património do lesado, como consequência da lesão (artigo 564º, n.º 1, do Código Civil).

Quanto aos danos não patrimoniais, e embora os mesmos não possam ser matematicamente contabilizados, o seu ressarcimento, por mais simbólico que seja, sempre servirá para minorar e compensar os danos sofridos pelo lesado, pois conforme explanado por Antunes Varela não há, de facto, a intenção de pagar ou indemnizar o dano, muito menos o intuito de facultar o comércio com valores de ordem moral; há apenas o intuito de atenuar um mal consumado (in Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, pág. 615). O legislador entendeu, no entanto, limitar a ressarcibilidade destes danos àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496.º n.º 1 do Código Civil).

Exigindo-se um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, nos termos do artigo 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, aqui se consagrando a teoria da causalidade adequada em termos que a indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito, na altura do evento danoso, prever que não ocorressem, se não fosse o evento lesivo.

Emergindo a obrigação de indemnizar, necessário se torna proceder à fixação da indemnização correspondente aos danos sofridos em consequência da acção ilícita e culposa. O princípio geral nesta matéria encontra-se formulado no artigo 562.º do Código Civil que privilegia a reconstituição natural da “situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Apenas haverá lugar à fixação da indemnização em dinheiro “… sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” (artigo 566.º do Código Civil).

Esta indemnização em dinheiro há-de, porém, conter-se nos limites resultantes do disposto no n.º 2 do citado artigo 566.º do Código Civil, que consagra a teoria da diferença, ou seja, na medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem os danos.

No caso de não ser possível averiguar o valor exacto dos danos, o Tribunal definirá aquele valor equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados (cfr. art. 566.º n.º 3 do Código Civil).

É a este critério da equidade que se terá que recorrer, não só para fixar o valor dos danos não patrimoniais que resultaram provados, mas também, o valor dos danos patrimoniais demonstrados, mas não quantificáveis. Isto posto, considerando os factos dados como provados, bem como toda a argumentação jurídica desenvolvida a propósito do não preenchimento do tipo incriminador da ofensa à integridade física por negligência por parte do arguido, também aqui, coerentemente, teremos que concluir que não se encontram preenchidos os apontados pressupostos cumulativos da responsabilidade civil aquiliana.

Com efeito, dos factos dados como provados, nada aponta para qualquer comportamento culposo imputável ao arguido, enquanto condutor do veículo sinistrado que possa fundar uma obrigação de indemnizar os demandantes civis com base na responsabilidade civil por facto ilícito (artigo 483.º a 498.º do Código Civil). A mesma factualidade exclui qualquer juízo de censura ou de reprovação da conduta do arguido, pois nenhum outro comportamento se poderia exigir, em abstracto, ao mesmo. A apreciação da questão civil não pode, porém, quedar-se por aqui, visto que, como é sabido, “a causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, proc. 07B1710, Santos Bernardino, in www.dgsi.pt).

No mesmo sentido, “IV – Quando o lesado exerce o direito de indemnização invocando a culpa do lesante, não pretenderá, em regra, prescindir da responsabilidade pelo risco em que o lesante terá, a caso, incorrido, mas só acentuar que este até por culpa é responsável. V – Se o tribunal não julgar procedente a acção com base na responsabilidade por culpa, verificando-se, porém, os pressupostos de responsabilidade pelo risco, deve julgar-se procedente a acção com fundamento nesta responsabilidade” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/1997, proc. 9720158, Soares de Almeida, in www.dgsi.pt). Ora, nestes termos, caberá aqui considerar que, não se apurando qual o concreto local da faixa de rodagem onde o embate se produziu, nem a trajectória do velocípede (nomeadamente se chegou a invadir a via de trânsito contrária) é de concluir que não se encontra comprovada a culpa de qualquer um dos condutores dos veículos intervenientes na colisão. Neste conspecto, não estando sustentada a culpa efectiva de algum dos condutores dos veículos intervenientes no embate em causa nos autos, não estando nenhum deles onerado pela presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil e não estando também comprovada a culpa do lesado, ou por facto de terceiro, ou por causa de força maior estranha ao funcionamento dos veículos (artigo 505.º do Código Civil), o presente caso de colisão de veículos deverá ficar sujeito à disciplina do artigo 506.º do Código Civil.

Dispõe o n.º 1 deste artigo que “se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.”.

E no número seguinte diz-se que “em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos…”.

É pacífico na jurisprudência e na doutrina portuguesa que o âmbito deste dispositivo legal abrange todos e quaisquer veículos capazes de causar danos por via da sua circulação terrestre, aqui se compreendendo, automóveis, motociclos, velocípedes/bicicletas e, de forma genérica, todos os meios de transporte de circulação rodoviária. Temos presente que não se trata nesta disposição legal da distribuição dos riscos dos veículos (e suas características), em termos estatísticos, na ocorrência dos acidentes, mas sim da “proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos”, isto é, trata-se de uma distribuição em concreto, conforme decorre da norma em referência. Atende-se aqui à proporção do risco concreto de cada veículo para os danos.

Neste pressuposto e em face dos dados factuais tidos como provados, é fácil concluir que os danos resultam de uma maior segurança do condutor do veículo automóvel – protegido pela carroçaria, pelo tamanho e em geral pela estrutura do automóvel – na colisão com o velocípede/bicicleta. Sendo certo que desta colisão resulta, consabidamente, um risco maior de danos do que o que resultaria da colisão de dois automóveis ou de duas motorizadas, ou ainda de dois velocípedes/bicicletas. Sucede, porém, que, além dessa distribuição dos riscos, há que ter em conta o disposto na parte final desta norma: “se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar”. É o que, a nosso ver, sucede no caso concreto, na medida em que, quanto aos danos comprovados nos autos, os mesmos foram causados somente pelo veículo automóvel conduzido pelo arguido, já que o sinistrado, RL, foi projectado, em consequência da colisão, sofrendo as lesões físicas que lhe demandaram a prestação de assistência hospitalar, os danos morais no mesmo sinistrado, consistentes no sofrimento e dores decorrentes do processo de recuperação, no dano estético consistente com as cicatrizes sofridas, no dano biológico e, finalmente, nas perdas salariais da assistente, mãe do lesado.

Emergindo desta forma um direito dos assistentes, lesados, a serem indemnizados, cumpre apreciar os danos alegados por forma a apurar o respectivo quantitativo.

Para o efeito, considerar-se-á que resultou provado, quanto aos danos patrimoniais, que, até ao início do mês de Outubro de 2017, o RL necessitou de ajuda de terceira pessoa para lhe prestarem as necessidades mais elementares, como vestir, lavar-se, alimentar-se e caminhar e que, em face dessa necessidade, a sua mãe, ML, faltou ao seu trabalho, na AG, para assistência ao seu filho, entre os dias 8 de Julho de 2015 e 17 de Outubro de 2015, sendo que, na referida empresa, auferia um salário base de 435,00 Euros.

Mais se demonstrou que, nesse período, a mãe do RL auferiu apenas a quantia de 136,56 Euros e que, nos meses de Agosto e Setembro de 2015, a mãe do RL não auferiu qualquer vencimento, nem qualquer subsídio de assistência por parte da Segurança Social.

Nesse sentido, a título de perdas salariais da assistente, ML, tem a mesma direito a ser indemnizada num total de 870,00 Euros, nos termos peticionados. Por outro lado, no campo dos danos de natureza não patrimonial, caberá considerar que o RL, na sequência do acidente, sofreu traumatismo crânio encefálico com perda de conhecimento e amnésia, traumatismo da face com fractura dos ossos próprios do nariz, traumatismo torácico fechado e traumatismo do membro inferior direito com fractura exposta do fémur e ossos da perna (mais especificamente, fractura osteocondral do condilo externo joelho direito, exposta, rotura completa do tendão quadricipital à direita, exposta e fractura do 1/3 distal dos ossos da perna direita), tendo o RL recebido tratamento e cuidados médicos no Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria e na Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano.

Em resultado destas lesões, o RL deu entrada no Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria, no dia 8 de Julho de 2015 e foi submetido a cirurgia ortopédica na mesma data, tendo aí ficado internado até ao dia 13 de Julho de 2015, após o que foi transferido para a Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, onde ficou internado por mais 3 dias.

E que, como consequência, o RL ficou com cicatriz horizontal acima da face anterior da rótula direita com vestígios de pontos de sutura que mede 23 cm e três cicatrizes superficiais da perna direita, sendo que a maior mede 7 x 2 cm e com limitação da flexão do tornozelo a 90º, não se conseguindo manter em posição de cócoras.

Relevará, ainda, nesta sede, as dores e o sofrimento do RL ao longo de todo o processo de recuperação, sendo aqui de considerar a extensão temporal do mesmo.

Finalmente, ainda no campo dos danos não patrimoniais, importará considerar que, de acordo com o relatório elaborado pelo INML, a consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo RL ocorreu a 21 de Julho de 2016 e que àquele foi fixado um:

- Período de défice funcional temporário total de 186 dias;
- Período de défice funcional temporário parcial de 191 dias;
- Período de repercussão temporária na actividade profissional total de 93 dias;
- Período de repercussão temporária na actividade profissional parcial de 287 dias;
- Quantum Doloris fixável no grau 4/7; e um
- Dano Estético Permanente fixável em 1/7.

Todos estes danos de natureza não patrimonial são, pela sua gravidade, merecedores de tutela do direito, nos termos do artigo 496.º n.º 1 do Código Civil, sendo que “a indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixada segundo critérios de equidade, tomando em consideração a culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso e as exigências do princípio da igualdade” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/2010, proc. 935/06.7TBPTL.G1.S1, Maria dos Prazares Pizarro Beleza, in www.dgsi.pt).

«I. A indemnização pelo dano não patrimonial deve englobar a consideração do “dano moral”, propriamente dito, na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais), a ansiedade sentida em relação a básicos actos da vida corrente, os sofrimentos emocionais permanentes, em suma o prejuízo de afirmação pessoal.» (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/05/2012, proc. 11/08.8TBSJM.P1, Vieira e Cunha, in www.dgsi.pt).

Assim, considerando a gravidade dos danos sofridos pelo RL e a própria dinâmica do acidente que resultou demonstrada, num juízo de equidade a desenvolver nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, reputa-se adequado fixar uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos em 10.000,00 Euros. Quanto aos danos patrimoniais decorrentes da perda da capacidade de ganho de que o RL ficou afectado – “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos” – e aos danos não patrimoniais futuros decorrentes duma “repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 1/7, sendo ainda tais sequelas compatíveis com o exercício da actividade física habitual, mas implicam esforços suplementares”, caberá recordar que, nos termos do artigo 564.º n.º 2 do Código Civil, devem-se ter em conta os danos futuros, desde que previsíveis, quer correspondam a danos emergentes, quer se traduzam em lucros cessantes (artigo 564.º n.º 1 do Código Civil).

Neste contexto, importará recordar, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/09/2008, proc. 07B2469, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, in www.dgsi.pt, que «… a lei determina que, quando a responsabilidade assenta em mera culpa do lesante (artigo 494º do Código Civil), ou quando não é possível averiguar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do mesmo Código), como tipicamente sucede quando se pretende arbitrar uma indemnização por danos futuros, o tribunal recorrerá à equidade para julgar. No caso da responsabilidade por mera culpa, a lei permite que a indemnização seja “equitativamente” reduzida em função do “grau de culpabilidade do agente”, da “situação económica” do lesante e do lesado e das “demais circunstâncias do caso”. Quanto à hipótese de impossibilidade de avaliação exacta dos danos, o julgamento segundo a equidade tem de respeitar os “limites que [o tribunal] tiver por provados”. Baseando-se em mera culpa a responsabilidade em que incorreu o causador do acidente e estando agora em causa a determinação do montante a pagar para ressarcimento de danos futuros, como aliás o Supremo Tribunal de Justiça tem repetidamente afirmado (cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 28 de Outubro de 1999, proc. nº 99B717, de 2 de Fevereiro de 2002, proc. nº 01B985, de 25 de Junho de 2002, proc. nº 02A1321, de 27 de Novembro de 2003, proc. nº 03B3064, de 15 de Janeiro de 2004, proc. nº 03B926, de 8 de Março de 2007, proc. nº 06B4320 ou de 14 de Fevereiro de 2008, proc. nº 07B508, disponíveis em www.dgsi.pt), a equidade desempenha um papel corrector e de adequação da indemnização decretada às circunstâncias do caso, nomeadamente quando, como é frequente, os tribunais recorrem a “cálculos matemáticos e [a] tabelas financeiras” (expressão do acórdão de 27 de Novembro de 2003 acabado de citar). Esse recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso.». Isto sem prejuízo de, quanto às referidas tabelas indemnizatórias, parecer ser hoje jurisprudencialmente consensual que «os valores a que se reportam as tabelas indemnizatórias da Portaria n.º 377/08 (e daquela que a substitui, Portaria n.º 679/09), são valores que, na esteira das Directivas Automóvel, visam a solução rápida de litígios e a prevenção do litígio judicial, estabelecendo critérios orientadores de “propostas razoáveis” a apresentar pelas Seguradoras, que não quaisquer critérios (nunca por nunca derrogadores de lei) que se impusessem de per se aos tribunais.» (acórdão do Tribunal da Relação do porto de 22/05/2012, proc. 11/08.8TBSJM.P1, Vieira e Cunha, in www.dgsi.pt).

Levando em conta os considerandos descritos, haverá, in casu, que atender que, além do mais, resultou provado que: - O RL nasceu a 11 de Janeiro de 2003 e, nesse sentido, à data do acidente tinha 12 anos; - O RL encontra-se ainda em fase escolar. A acrescer a estes factos importará, ainda, considerar que: - A relevância da lesão não pode ser avaliada apenas com referência à vida activa provável do lesado, mas antes se há-de considerar também o período posterior à normal cessação de actividade laboral, com referência à esperança média de vida, que, actualmente, para os indivíduos do sexo masculinos, é de 77,4 anos (cfr. www.pordata.pt); – Que, recorrendo, agora, ao regime geral de Segurança Social em vigor à data do acidente, a idade “regra” da reforma era fixada em 65 anos; -

Apelando a um critério comparativo de casos jurisprudenciais, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/12/2016, proc. 2194/12.3TBGDM.P1, Vieira e Cunha, in www.dgsi.pt, entendeu-se que “I – No caso de ressarcimento de dano biológico, de natureza patrimonial, enquanto dano futuro, considerando um esforço acrescido de 3 pontos percentuais, 12 anos de idade do Autor, à data do acidente, a previsível entrada futura no mercado de trabalho e os habituais critérios jurisprudenciais, justifica-se o montante ressarcitório de €10.000,00, com apelo à equidade. II – Quanto aos padecimentos morais, vista a incapacidade permanente geral de 3% e o ‘pretium doloris’ (ressarcimento da dor física sofrida – grau 4, em 7), com dano de vida de relação e prejuízo de afirmação pessoal, justifica-se a atribuição ao Autor de um montante de €12.000,00.”.

Assim sendo, num juízo de equidade a desenvolver nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, reputa-se adequado fixar uma indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da perda da capacidade de ganho do RL em 20.000,00 Euros. Os demais danos futuros alegados pelo autor não foram objecto de concretização e, consequentemente, comprovação, pelo que não serão de computar no valor indemnizatório fixado, sendo certo que, quanto aos danos morais futuros, os mesmos nunca seriam passíveis de serem relegados para execução de sentença, visto que, nessa fase, nunca seriam os mesmos passíveis de serem quantificados.

Pelo pagamento de tal indemnização é responsável a demandada civil, S…, S.A., para a qual se achava transferida a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo com a matrícula --LE, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ---.

A este valor acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, no caso dos danos patrimoniais, desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento, nos termos do disposto nos artigos 559.º, 804.º, 805.º n.º 1 e 806.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

No caso da indemnização fixada pelos danos morais, considerando que os valores compensatórios fixados já se encontram actualizados face ao valor da inflacção da moeda, a esta quantia apenas acrescerão os respectivos juros de mora à taxa legal em vigor, a contar da data da presente decisão e até efectivo e integral pagamento, nos termos do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil e em conformidade com a jurisprudência uniformizada no acórdão 4/2002 (cfr. o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, de 09/05/2002, publicado no Diário da República n.º 146, Série I-A, de 27/06/2002).

No que respeita ao pedido de indemnização civil apresentado pelo Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E., o mesmo, tendo sido deduzido no âmbito do disposto no artigo 6.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, corresponde à cobrança de créditos hospitalares, em virtude dos cuidados de saúde prestados (ou melhor a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, como é o caso do Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E.).

Quanto ao preço dos tratamentos importa mencionar que, nos termos do n.º 1 do artigo 25.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, “os limites mínimos e máximos dos preços a cobrar pelos cuidados prestados no quadro do SNS são estabelecidos por portaria do Ministério da Saúde, tendo em conta os custos reais directos e indirectos e o necessário equilíbrio de exploração”. Tais custos encontram-se, actualmente, definidos na Portaria n.º 207/2017, de 11 de Julho. De resto, sempre ficou demonstrado que o Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E. prestou ao RL os serviços clínicos discriminados nas facturas com os n.ºs 20181/5252, 20181/5255, 20181/5268 e 20181/5269, respectivamente nos valores de 17.494,21 Euros, 31,00 Euros, 114,00 Euros e 31,00 Euros e que tais tratamentos ministrados àquele lesado foram prestados em face das lesões que esta apresentou em consequência directa, necessária e imediata do sinistro dos autos. Pelo pagamento daquelas quantias é, assim, civilmente responsável a demandada civil, S…, S.A., nos termos expostos. Às quantias aqui fixadas acrescerão os respectivos juros de mora à taxa legal em vigor, a contar da data da notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento, nos termos do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil..”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar circunscreve-se à decisão em matéria cível e, nesta, à decisão de direito.

Na verdade, a recorrente demandada não procedeu à impugnação da “decisão de facto”, nem por via do recurso amplo (art. 412º, nº 3, do CPP), nem por via da invocação de qualquer vício de texto (art. 410º, nº 2, do CPP). Pelo que, na ausência de detecção oficiosa de vício ou de nulidade de sentença que se pudesse repercutir na factualidade, a matéria de facto provada da sentença é de considerar definitivamente estabilizada.

Daqui resulta que todas as considerações efectuadas no recurso sobre uma alegada culpa do condutor do velocípede carecem de base factual de sustentação. Ou seja, não tendo sido manifestada prévia discordância relativamente à decisão em matéria de facto – através de uma das duas vias de impugnação legalmente previstas, que a recorrente não utilizou – de nada serve sustentar oposição a este segmento decisório apenas tendo por base factos que não estão nos factos provados da sentença.

De acordo com o recurso, a culpa do condutor do velocípede decorreria de determinados factos ou circunstâncias, que se enunciam no recurso, mas que não constam dos factos provados da sentença, repete-se. O mau estado da via (com pedras soltas), a elevada velocidade a que circularia o velocípede, o mau estado das rodas do velocípede, a que se alude agora para sustentar uma alegada culpa do menor RL, não integram os factos provados da sentença. Daí que não tenha correspondência com a realidade do processo a afirmação, feita em recurso, de que “os factos provados conduzem à conclusão de que o menor RL foi o único culpado na eclosão do acidente”, quando os factos que a recorrente enuncia como “provados” não o estão.

Assim sendo, a argumentação desenvolvida neste ponto não conduz à detecção de qualquer erro de decisão, no sentido de que não só a sentença se encontra devidamente sustentada – de facto e de direito – na parte em que ali se considerou afastada a culpa (tanto do arguido como do menor), como as razões que agora se invocam para a infirmar se alicerçam exclusivamente em factos que não encontram correspondência nos factos da sentença. Assim, neste ponto há apenas que consignar a correcção do decidido ao ter enquadrado os factos provados no âmbito da responsabilidade pelo risco, uma vez que pouco mais se logrou demonstrar para além de um embate entre os dois veículos, nas demais (poucas) circunstâncias concretizadas nos factos provados. Daí que bem se conclua pela ocorrência de uma colisão de veículos sem apuramento de culpa de qualquer dos dois condutores.

Impunha-se, assim, resolver a questão à luz do art. 506º, nº1, do CC, que trata da distribuição das responsabilidades pelo risco na produção dos danos, como se fez na sentença.

Mas a recorrente questiona também a repartição da responsabilidade pelo risco, argumentando que “ainda que se conclua que não está provada a culpa do menor nem a culpa do condutor do automóvel seguro e se aplique o disposto no art. 506º do Cód. Civil, a consequência não pode ser a da sentença, no sentido de, apesar de não se provar a culpa de nenhum desses condutores, a obrigação de indemnizar 100% dos danos sofridos caber apenas a um deles”.

Adita que “o risco criado pelo velocípede é igual ou até superior ao risco criado pelo automóvel, embora se admita que possa ser fixado em 60% para o veículo automóvel e 40% para o velocípede”.

Pretende assim, com o seu recurso, responder “apenas na proporção do risco criado pelo veículo automóvel seguro, ou seja, terá, eventualmente, a obrigação de indemnizar no máximo 60% dos danos sofridos pelo menor e pelo Centro Hospitalar.”

A demandada insurge-se contra a interpretação do nº. 1 do artº. 506 do CC, plasmada na sentença, no sentido de um dos condutores não culpado num acidente entre dois veículos ter de ressarcir 100% dos danos sofridos pelo outro condutor.

E, adianta-se, assiste-lhe razão.

O Ministério público contrapôs em recurso que a sentença é de confirmar, posição sustentada também pelos assistentes demandantes, que argumentam que “a responsabilidade pelo risco em caso de colisão de veículos, são repartidas na proporção em que cada um deles tiver contribuído efetivamente para os danos, o que poderá determinar a aplicação de 100% de responsabilidade para um dos condutores, em função do caso concreto atento os factos dados como provados”.

Reconhecendo-se a bondade abstracta desta afirmação, por encontrar suporte legal, considera-se, no entanto que nela não se enquadra o caso presente.

Mas cumprindo sempre partir da sentença, recorde-se como se justificou ali o “ponto de direito” agora em crise, ou seja, a (não) repartição da responsabilidade pelo risco e a sua atribuição in totum ao segurado condutor do veículo automóvel.

Justificou-se na sentença:
Neste conspecto, não estando sustentada a culpa efectiva de algum dos condutores dos veículos intervenientes no embate em causa nos autos, não estando nenhum deles onerado pela presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil e não estando também comprovada a culpa do lesado, ou por facto de terceiro, ou por causa de força maior estranha ao funcionamento dos veículos (artigo 505.º do Código Civil), o presente caso de colisão de veículos deverá ficar sujeito à disciplina do artigo 506.º do Código Civil.

Dispõe o n.º 1 deste artigo que “se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.”.

E no número seguinte diz-se que “em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos…”.

É pacífico na jurisprudência e na doutrina portuguesa que o âmbito deste dispositivo legal abrange todos e quaisquer veículos capazes de causar danos por via da sua circulação terrestre, aqui se compreendendo, automóveis, motociclos, velocípedes/bicicletas e, de forma genérica, todos os meios de transporte de circulação rodoviária. Temos presente que não se trata nesta disposição legal da distribuição dos riscos dos veículos (e suas características), em termos estatísticos, na ocorrência dos acidentes, mas sim da “proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos”, isto é, trata-se de uma distribuição em concreto, conforme decorre da norma em referência. Atende-se aqui à proporção do risco concreto de cada veículo para os danos.

Neste pressuposto e em face dos dados factuais tidos como provados, é fácil concluir que os danos resultam de uma maior segurança do condutor do veículo automóvel – protegido pela carroçaria, pelo tamanho e em geral pela estrutura do automóvel – na colisão com o velocípede/bicicleta. Sendo certo que desta colisão resulta, consabidamente, um risco maior de danos do que o que resultaria da colisão de dois automóveis ou de duas motorizadas, ou ainda de dois velocípedes/bicicletas.

Sucede, porém, que, além dessa distribuição dos riscos, há que ter em conta o disposto na parte final desta norma: “se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar”. É o que, a nosso ver, sucede no caso concreto, na medida em que, quanto aos danos comprovados nos autos, os mesmos foram causados somente pelo veículo automóvel conduzido pelo arguido, já que o sinistrado, RL foi projectado, em consequência da colisão, sofrendo as lesões físicas que lhe demandaram a prestação de assistência hospitalar, os danos morais no mesmo sinistrado, consistentes no sofrimento e dores decorrentes do processo de recuperação, no dano estético consistente com as cicatrizes sofridas, no dano biológico e, finalmente, nas perdas salariais da assistente, mãe do lesado.” (itálicos nossos)

No excerto transcrito destacaram-se três segmentos em itálico.

Sobre o primeiro, nada se oferece dizer, consignando-se o acerto.

Sobre o segundo, cumpre esclarecer que o raciocínio a desenvolver sobre uma repartição do risco em caso de colisão entre um automóvel e uma bicicleta não se apresenta assim tão simples e linear. Ou seja, se por um lado, os danos resultam (podem resultar) “de uma maior segurança do condutor do veículo automóvel – protegido pela carroçaria, pelo tamanho e em geral pela estrutura do automóvel – na colisão com o velocípede/bicicleta” e que “desta colisão resulta um risco maior de danos do que o que resultaria da colisão de dois automóveis ou de duas motorizadas, ou ainda de dois velocípedes/bicicletas”, como se disse na sentença, na colisão entre um automóvel e uma bicicleta os danos podem resultar também da maior fragilidade do velocípede, da maior exposição em que se encontra o seu condutor, entre outras. Impõe-se assim proceder sempre a uma avaliação em concreto na aferição da contribuição/repartição do risco.

O último segmento do excerto da sentença transcrito não é, de todo, de aceitar.

Aqui, a sentença fez aplicação, ipsis verbis, dos acórdãos do TRL de 26.02.2013 e do TRC de 3.12.2013 (acórdão que reproduz e cita o anterior), em que se concluiu: “No entanto, além dessa distribuição dos riscos, há que ter em conta o disposto na parte final desta norma: “se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar”.

Ora, no presente caso, nenhum dos condutores teve culpa, e os danos foram causados somente pelo automóvel, já que o sinistrado foi projetado, em consequência da colisão, sofrendo traumatismos, fraturas e contusões diversas (…).

Como os danos foram provocados somente pelo automóvel seguro na ré, somente esta é responsável pela indemnização, ainda que a distribuição dos riscos esteja correta: 25% para o velocípede e 75% para o automóvel.” (itálicos nossos)

Com todo o respeito, discorda-se desta solução, que a sentença também seguiu.

Ou seja, fica por explicar, e por perceber, como se pode concluir que, em caso de colisão/embate entre dois veículos, sem apuramento de culpas de qualquer dos dois condutores e em que o sinistrado é projectado em consequência da colisão (entre os dois), “os danos foram causados somente por um dos veículos”.

A responsabilidade pelo risco implica que o veículo esteja em circulação. Trata-se do risco de uma máquina que circula. E no caso presente, ambos os veículos se encontravam em circulação.

Se ocorreu um embate, se os dois (veículo e velocípede) circulavam, se inexiste culpa dos condutores e se os dois embateram entre si, não pode concluir-se que os danos foram causados “somente por um dos veículos”.

A propósito preceito legal (indevidamente) invocado e aplicado na sentença - última parte do nº 1, do art. 506º, do CC -, Pires de Lima e Antunes Varela explicam-no através de um exemplo: “Se apenas um dos veículos causou o dano (caso típico do veículo em marcha que embate num outro parado ou devidamente estacionado) (CC anotado, vol. I, 3ª ed. P. 492).

De tudo resulta que inexiste base factual que permita concluir que “os danos foram causados só por um dos veículos”, havendo assim lugar à repartição do risco.

A medida da repercussão do risco criado por cada um dos veículos intervenientes na colisão será a que resulta das características próprias de cada um desses veículos e do conjunto das circunstâncias relevantes. Impõe-se proceder sempre a uma avaliação em concreto, na aferição da contribuição/repartição do risco.

“Os riscos próprios do veículo analisam-se nos perigos especiais que encerra para as pessoas e para os bens patrimoniais: a elevada velocidade, o peso, a potência motriz, o perigo de explosão, o ruído do motor, de rebentamento dos pneus, o risco de se desintegrar, a dificuldade de manobra, a instabilidade, a possibilidade de ficar desgovernado e insubmisso ao comando do seu condutor etc.” (Manuel de Oliveira Matos, in CE anotado, ed. 1991, p. 496 e 497).

No caso presente, releva, por um lado e como se disse na sentença, “a maior segurança do condutor do veículo automóvel protegido pela carroçaria, pelo tamanho e em geral pela estrutura do automóvel”, o risco maior de danos atenta a desproporção de “forças” entre os veículos. Mas releva também a maior fragilidade e instabilidade do velocípede, a maior exposição ao perigo do seu condutor (o lesado).

É de reconhecer, no caso, a maior potencialidade danosa do veículo segurado, a qual se concretizou (realmente) mais intensamente. E que essa sua maior contribuição para o dano deve ser, em concreto, mesurada em 85%, reservando-se os 15% de risco para o velocípede.

Por tudo se conclui que a segurada recorrente deve responder apenas pelo pagamento de 85% das quantias indemnizatórias arbitradas na sentença (cujos montantes não estão em discussão no presente recurso).
4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso em matéria cível, fixando-se em 85% a responsabilidade pelo risco do veículo conduzido pelo arguido, respondendo a demandada S, S.A., apenas pelo … de 85% das indemnizações fixadas na sentença.

Custas cíveis na proporção do decaimento.
Évora, 24.09.2019
(Ana Maria Barata de Brito)
(António João Latas)