Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4375/12.0TBPTM-D.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PRESTAÇÃO
TERCEIRO
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O facto de o Tribunal a quo, na decisão recorrida, ter tido um entendimento diferente do sufragado pela Apelante quanto à relevância do pagamento de despesas da criança por terceiros não é passível de fundamentar a existência de uma decisão inesperada ou “decisão-surpresa”, por não estar concretamente em causa na mesma a consideração de questões (de facto ou de direito), não suscitadas ou contraditadas pelas partes nos autos previamente à decisão final, mas apenas uma perspectiva diferente sobre a sua (ir)relevância com base em diversa argumentação;
2 - Apenas a falta absoluta de indicação dos fundamentos de facto e/ou de direito da decisão pode produzir nulidade de sentença, sendo que a sua insuficiência, ou mediocridade pode afectar o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade;
3 – Tendo a avó materna da criança e o companheiro daquela agido no âmbito de uma obrigação natural no que tange às prestações que pagaram entre Junho e Agosto de 2019, bem como relativamente à mensalidade do colégio da criança, a Apelante não ficou desobrigada de pagar a pensão que foi provisoriamente fixada judicialmente;
4 – Só existe abuso de direito quando o exercício do direito de que é titular o agente revele manifesta ou excessiva contrariedade aos ditames da boa-fé, aos “bons costumes” e ao fim social e económico do direito em causa, o que não se verifica no caso vertente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4375/12.0TBPTM-D.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Família e Menores de Portimão – Juíz 3
Apelante: (…)
Apelado: (…)
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Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663º, nº 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes da 1 ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO

(…) suscitou em representação de seu enteado (…), a cuja guarda e cuidados a criança se encontra, o presente procedimento tutelar cível de incumprimento de regulação do exercício das responsabilidades parentais, alegando, em síntese, que a progenitora do (…), (…), não procedeu ao pagamento da prestação de alimentos devida ao filho de Junho (inclusive), a Agosto (inclusive), de 2019, no total de € 300,00.
Notificada, com a advertência de que nada dizendo o tribunal julgava verificado o incumprimento alegado, a dita progenitora veio alegar que tem sido a avó materna e o companheiro desta a suportar as despesas com o (…), pelo que nada deve.
O Ministério Público teve vista dos autos e exarou parecer no sentido de se considerar verificado o incumprimento suscitado.
Após foi proferida decisão final com o seguinte teor:
“Estabelece o artigo 41º, n.º 1, do RGPTC que se algum dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido quanto ao exercício das responsabilidades parentais, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa a favor do menor ou do requerente ou de ambos.
A situação prevista neste dispositivo legal configura um incidente do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais que corre por apenso aos autos de regulação ou de alteração conforme a situação, não configura qualquer acção de condenação.
O exercício das responsabilidades parentais foi fixado em 09.05.2019 nos termos do qual ficou estipulada uma prestação de alimentos a cargo da progenitora, no valor mensal de € 100,00, a pagar até ao dia 08 de cada mês, atualizada anualmente em 2% (fls. e ss. dos autos).
A requerida, notificada, com a advertência de que nada dizendo o tribunal julgava verificado o incumprimento alegado, vem alegar que tem sido a avó materna e o companheiro desta a suportar as despesas com a criança, pelo que nada deve.
Ora, em face do que fica exposto, resulta que a requerida não tem pago a prestação de alimentos devida ao filho, por entender que as necessidades alimentares deste estão a ser pagas por terceiros, pelo que se desobriga do pagamento a que ficou obrigada. Todavia, sempre se dirá que não lhe assiste razão, pois que a obrigação de alimentos impende em primeira linha aos progenitores e, mesmo a comprovar-se que terceiros possam cobrir as necessidades da criança, ainda assim, tal facto não desonera os pais das obrigações legais que têm para com os filhos, pois que os alimentos são um direito indelével dos filhos e, as obrigações legais são para cumprir.
Por conseguinte, decido julgar comprovada a situação de incumprimento alegada no referido requerimento, no que concerne ao montante global de € 300,00 (trezentos euros), relativo às prestações de alimentos não pagas em Junho, Julho e Agosto de 2019, a cargo da progenitora.
Custas a cargo da requerida, no mínimo legal.
Registe e notifique.”
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Inconformada com a decisão a Requerente apresentou requerimento de recurso aduzindo as seguintes conclusões:
“V - CONCLUSÕES:
1º- Vem o presente Recurso interposto da douta Sentença de fls., que determinou que determinou a situação de incumprimento, no montante de Eur. 300,00, relativo às prestações não pagas em junho, julho e agosto de 2019.
2º- Entende a Recorrente, com a devida vénia por douto entendimento, que se verificam, no processo de formação da convicção do MM. Juiz a quo, para além de erros na aplicação do Direito, mas igualmente erros de Julgamento, incluindo violações de regras e princípios de direito probatório.
3º- Cabendo, por isso, a este Venerando Tribunal da Relação, fazer uma sindicância do apuramento dos factos apurados em 1ª instância e da fundamentação feita da decisão por via destes e, fundamentalmente, analisar o processo de formação da convicção do julgador e concluir, como se espera, e a final determinar- se a anulação da douto Sentença Recorrida.
4º- Como questão prévia ao presente recurso, é entendimento da Recorrente que a douta Sentença
recorrida viola o disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa.
5º- A não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 201.º, 1, do CPC, obedecendo a sua arguição à regra geral prevista no artigo 205.º do CPC (vide Acórdão da Relação de Évora de 1.4.2004).
6º- Antes de proferir a decisão a quo devia o Tribunal a quo ter concedido às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, sendo proibidas as decisões surpresas, como no caso.
7º- Contudo, o Tribunal a quo decidiu-se por termo aos autos, sem realizar qualquer audiência de
julgamento, e sem se pronunciar quanto aos requerimentos de prova apresentados pela Recorrente.
8º- Salvo melhor opinião, não podia o Tribunal recorrido decidir a questão em mérito sem prévia audição da parte contrária, sem a produção de qualquer prova, e sem realizar audiência de julgamento, sob pena de se violar o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa.
9º- Razão pela qual, se está in casu, perante uma nulidade que influiu na decisão da causa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, devendo por isso, declarar-se a nulidade processual em apreço.
10º- Com o devido respeito que é muito pelo Tribunal a quo, mas a Recorrente entende que a Decisão recorrida não se encontra fundamentada, nem em termos de facto, nem de Direito.
11º- A referida decisão não se encontra fundamentada em termos de facto; ou seja, de não especifica, como devia. Constata-se que essa especificação não foi feita, não se especificaram os eventos factuais relevantes para a tomada da decisão em apreço.
12º- A decisão em apreço é absolutamente omissa na expressão dos factos julgados provados que a justificaram. A Sentença em Recurso, é nulo por falta de fundamentação, devendo o mesmo ser revogada.
13º- Entende a Recorrente, e sempre com a devida vénia por entendimento diverso, e salvo melhor douta opinião, o Tribunal a quo julgou incorretamente como PROVADO o seguinte ponto: «(…) resulta que a Requerida não tem pago a prestação de alimentos devida ao filho, por entender que as necessidades alimentares deste estão a ser pagas por terceiros, pelo que se desobriga ao pagamento a que ficou obrigada…)»
14º- Assim, a Recorrente impugna expressamente a matéria de facto que acima indicada, que deverá ser reapreciada por este Venerando pelo Tribunal da Relação. Entende a Recorrente, que a matéria de facto impugnada, assim indicada deverá ser modificada, e alterar-se em sentido NEGATIVO.
15º- Entende a Recorrente que a convicção expressa pelo ilustre Tribunal a quo não tem o mínimo suporte razoável na prova produzida nem alegada.
16º- Alegado a Recorrente foi que: tem sido a avó materna e companheiro desta a pagar a pensão de alimentos, e ainda as despesas escolares do colégio privado, e não estes que têm vindo a suportar as despesas com a criança.
17º- Daqui resulta que, o Tribunal de 1ª instância, fez constar na douta Sentença um texto diferente do que a Recorrente alegou. Porque são factos diferentes!
18º- Pelo que, violou o Tribunal a quo, incorrendo num error in iudicando, no julgamento da matéria de facto supra impugnado, porquanto, por erro, considera não provado e, portanto, necessitado de prova.
19º- Acresce que, na fundamentação da convicção do Tribunal a quo, limitou-se a enunciar de forma errada as Alegações da Recorrente, isto é, na qual se fundamentou o Tribunal a quo para fundamentar a matéria de facto que deu como provada ou não provada, sustentando-se num pressuposto totalmente errado.
20º- E nem sequer procedeu ao “exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção do tribunal”, e sem sequer se pronunciar quanto aos requerimentos de prova apresentados pela Recorrente.
21º- Com efeito, a fundamentação de facto não deve limitar-se à mera indicação de factos que não foram alegados sequer pela Recorrente, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo MM Juiz a quo ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto, tudo dependendo do meio probatório em causa, o que não se verifica na Decisão recorrida.
22º- Do exposto, e estando este Venerando Tribunal da Relação em condições de revogar a Decisão recorrida, e ao abrigo dos poderes que lhe são atribuídos podendo a apreciar as demais questões que são suscitadas pelo presente Recurso.
23º- Parece que é pacífico que a pensão de alimentos foi paga pela avó materna e o companheiro desta. Daqui resulta, embora não tenha sido a Recorrente a pagar diretamente as prestações mensais, e tendo sido a progenitora desta, e, portanto, a avó materna do menor, facto é que o guardião da criança, recebeu a pensão, e por deste modo nada incumpriu a Recorrente.
24º- Entende a Recorrente que sua progenitora, avó materna do menor, pagou a dívida, realizando o pagamento das prestações (alheias – por conta da Recorrente), valendo, a regra geral do artigo 767º, nº 1, do Código Civil, segundo a qual a prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, e verificando-se, nestas circunstâncias, a extinção da obrigação.
25º- Ainda que assim não se entenda, no caso presente, sempre estaríamos perante o instituto da sub-rogação, na medida, que a substituição do credor (guardião em representação do menor) na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro (avó materna) que cumpre em lugar do devedor (Recorrente) ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento, designadamente quando, apesar de ser o devedor a cumprir, o faz com dinheiro ou outra cousa fungível emprestada por terceiro.
A sub-rogação é inclusive voluntária, porque decorre da manifestação expressa da vontade do devedor.
26º- Se o terceiro (avó materna), realiza a prestação alheia e o credor a aceita (porque já recebeu as prestações e não a devolveu), verificando-se a extinção da obrigação.
27º- E por fim, entende a Recorrente, que no prazo presente, o comportamento do guardião da criança até configura um abuso de direito (de conhecimento oficioso), vir alegar que não recebeu as prestações da pensão de alimentos, só porque não recebeu diretamente da Recorrente, quando na verdade já recebeu por intermédio da progenitora Recorrente.
28º- Ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, da prova produzida sem julgamento, tendo o guardião recebido pontualmente as prestações de alimentos, pagas pela avó materna, em substituição da Recorrente, não se pode considerar que a mesma tenha incumprido o regime vigente.
29º- Do exposto, violou o Tribunal a quo, o disposto no Artigo 205º, nº 1, da CRP; Artsº 3º, nº 3, 201º, n.º 1, 154º, 607º, n.º 3, 518º, todos do CPC; Artigo 767º, nº 1, Artigos 589º, 590º, 591º, 592º, nº 1, in fine, e Artigo 334º do CC.”
O progenitor Apelado (…) não apresentou resposta ao recurso.
O Ministério Público respondeu ao recurso constando deste as seguintes conclusões:
“III. CONCLUSÃO
1ª. No presente caso estamos perante um incidente de incumprimento da decisão de regulação das responsabilidades parentais previsto no art. 41º, do RGPTC, em que a lei apenas exige que se notifique a requerida para, em cinco dias, contraditar querendo os factos alegados pela outra parte.
2ª. Pode também ser convocada uma conferência de pais, mas o Juiz não está obrigado a fazê-lo, tanto mais que, como é consabido, estamos em face de um processo de jurisdição voluntária (artºs 986º e segs. do CPC e 12º do RGPTC), em que predomina o princípio do inquisitório, ao dispor do tribunal, em detrimento do princípio do dispositivo (nº 2 do citado artº 986º), e o princípio da equidade sobre o princípio da legalidade estrita (artº 987º do CPC) e da simplificação instrutória e oralidade (artigo 4º, nº 1, alínea b), do RGPTC), em que o Juiz deve procurar uma solução de conveniência e de oportunidade, motivo por que dada a simplicidade da questão em apreço nos autos, o Tribunal “a quo” optou por notificar a requerida e ora apelante para contraditar, querendo, os factos alegados, em detrimento da convocação da conferência.
3ª. Assim, tendo sido dada a oportunidade à requerida de, dentro do prazo legalmente previsto, se pronunciar e contraditar os factos alegados pelo requerente, e tendo-o esta, aliás, feito confessando não ter cumprido a obrigação de pagamento de alimentos ao filho a que estava obrigada naqueles três meses, é evidente que não se pode dizer que não lhe foi concedida a possibilidade de exercer o contraditório e, portanto, de afirmar a sua violação.
4.ª Em face do exposto, parece-nos evidente que se não verifica nenhuma violação do princípio do contraditório, e muito menos qualquer decisão surpresa, em face da confissão do incumprimento da obrigação de pagamento de alimentos ao filho por parte da requerida.
5.ª Uma sentença é nula nos termos da alínea b) do art.º 615º, do CPC, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, resultando a nulidade da inobservância do dever de fundamentar, previsto genericamente no art.º 154º do CPC, e com reporte ao princípio constitucionalmente previsto no n.º 1 do art.º 205º da CRP.
6.ª Contudo, as exigências de fundamentação são passíveis de variar em função da menor ou maior complexidade da questão em análise, compreendendo-se também que possa estar subentendida, numa adesão, mais ou menos expressa ao requerido, mas ainda assim percetível em toda a sua extensão, e como tal passível de ser sindicada pela parte que o pretenda fazer.
7.ª No presente caso estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, onde a solução mais adequada ao caso concreto se deve impor aos critérios de legalidade estrita (cfr. art.º 1409º e seguintes do CPC), a que acresce ainda o facto de estarmos perante uma decisão no âmbito de um incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais (cfr. art.º 12º do RGPTC), pelo que as exigências de fundamentação de tal decisão não poderão ser as mesmas que as de uma sentença final que regulamentasse tais responsabilidades parentais.
8.ª A decisão recorrida encontra-se suficientemente fundamentada, pois é bem entendível em toda a sua extensão por todos e passível de ser sindicada, não padecendo, portanto, da nulidade prevista na alínea b), do nº 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
9.ª Encontrando-se a requerida e ora apelante obrigada a prestar alimentos ao filho, que se encontra entregue aos cuidados do padrasto, a mesma só poderia desobrigar-se do pagamento da prestação de alimentos fazendo prova do seu pagamento por si ou por terceiros.
10.ª Assim, tendo a requerida sido notificada para se pronunciar sobre o incidente de incumprimento e não tendo comprovado o pagamento das pensões de alimentos a que se encontra obrigada, tal como lhe incumbia, nos termos previstos no art. 342º, nº 2, do Código Civil, não vislumbramos como pode considerar-se extinta tal obrigação.
11.ª Efetivamente, não tendo a apelante comprovado o pagamento das pensões de alimentos fixadas relativas aos meses de junho, julho e agosto de 2019, no montante global de € 300,00 (3x€100,00), nos termos previstos no artigo 41º, nº 1, do RGPTC, bem andou o tribunal ao dar por verificado o incumprimento.
12.ª Não foi, pois, violado “o disposto no Art.º 205º, n.º 1, da CRP; Art.ºs 3º, n.º 3, 201º, n.º 1, 154º, 607º, n.º 3, 518º, todos do CPC; Art. 767º, nº 1, Arts. 589º, 590º, 591º, 592.º, n.º 1, in fine, e Art.º 334º do CC”, ou quaisquer outras disposições legais.”
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O recurso foi recebido na 1ª Instância como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito fixado.
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Correram Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as questões que importa decidir respeitam ao seguinte:
1- Nulidade processual por alegada violação do principio do contraditório;
2- Nulidade de sentença por falta de descriminação dos fundamentos de facto e de direito da decisão;
3- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
4- Convicção do julgador;
5- Reapreciação de mérito;
6- Abuso de direito.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Nesta sede haverá que considerar o já acima descrito no segmento atinente ao relatório.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Quanto à primeira questão objecto do recurso:
Sustenta a Apelante que a sentença recorrida proferida pelo Tribunal a quo traduz-se em “decisão-surpresa”, que viola o principio do contraditório e o disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC, o que consubstancia a prática de uma nulidade processual, com influencia no exame e na decisão da causa.
Apreciando:
Resulta do artigo 3º, nº 3, do CPC, o seguinte:
“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Esta norma consubstancia o anúncio por excelência do principio do contraditório no CPC, sendo certo que ao longo de todo o diploma legal em apreço é lhe feito constante apelo.
Neste sentido pode dizer-se que “[…) o processo está estruturado para facultar o debate sempre que o mesmo se justifique e dentro do condicionalismo previsto na lei, a cada uma das partes se permitindo formular as suas pretensões, aduzir os fundamentos de facto e de direito, oferecer as provas e contraprovas e discorrer sobre o seu valor, proferir alegações, bem assim sindicar o conteúdo das decisões.” (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Fernando Pereira Rodrigues, Almedina, 2ª edição, 2019, pág. 31).
Em comentário ao disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 3º do CPC, dizem-nos ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2ª Edição, 2020, pág. 21), o seguinte:
“Ao princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham. Posto que a necessidade de observância do contraditório seja replicada em diversos preceitos avulsos, tal não diminui o relevo da sua enunciação como principio geral que se impõe em todas as fases processuais, especialmente nos articulados e na apresentação e produção de meios de prova (artº 415º).”
E acrescentam, a propósito da possibilidade de dispensa do contraditório, que: “[…] Tal dispensa é prevista a título excecional, apenas se justificando quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final” (idem, pág. 22).
O princípio do contraditório proíbe, assim, que o tribunal resolva um conflito de interesses que lhe tenha sido apresentado sem que proceda previamente à audição da parte contrária contra quem tal conflito venha a ser resolvido, envolvendo deste modo, por ser uma das suas dimensões, a proibição da prolação de decisões inesperadas, ou “decisões-surpresa”, facultando-se, por essa via, a possibilidade da parte cujo interesse é susceptível de ser afectado pela decisão a proferir pelo tribunal se pronunciar, querendo, sobre determinado sentido da decisão que a mesma ainda não tenha efectuado no processo.
Sobre a “decisão-surpresa” dizem-nos José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 4ª edição, 2018, pág. 31-32), o seguinte:
“Esta vertente do princípio do contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objeto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade. Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso).”
É vasta e uniforme a jurisprudência sobre a proibição da decisão inesperada em violação do nº 3 do artigo 3º do CPC salientando-se, por todos, os acórdãos proferidos pelo STJ de 15/03/2018 (Processo 2057/11), 19/05/2016 (Processo 6473/03) e de 27/09/2011 (Processo 2005/03), todos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt.
Aqui chegados, retornemos ao caso concreto.
Invoca a apelante que o Tribunal a quo não assegurou o cumprimento do princípio do contraditório e proferiu uma “decisão-surpresa”, sem previamente ter assegurado a produção da prova por si requerida e realizado audiência de julgamento.
Vejamos se lhe assiste razão.
Estando em causa um procedimento tutelar cível de incumprimento de regulação do exercício das responsabilidades parentais impulsionado pelo ora Apelado, impunha-se que a ora Apelante fosse notificada da sua instauração nos termos e para os fins do disposto no artigo 41º, nº 3, do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (doravante apenas RGPTC).
E tal foi cumprido como se alcança do despacho proferido nos autos em 02/10/2019, devidamente notificado em 08/10/2019.
A ora Apelante apresentou a sua alegação em 21/10/2019 e nela veio pugnar pela improcedência do incumprimento sustentando nada dever por virtude de a avó materna (e companheiro da mesma), da criança seu filho (…), estarem a assegurar o pagamento da pensão alimentícia devida ao mesmo, mais requerendo a notificação do ora Apelado e de uma instituição de ensino para apresentarem documentação que concretamente identificou.
O ora Apelado nada disse e o Ministério Público teve Vista dos autos e pugnou no sentido do proferimento de decisão de procedência do incidente por virtude de resultar da alegação da ora Apelante não ter cumprido com o pagamento da pensão alimentícia a que estava obrigada afigurando-se-lhe ser irrelevante estarem terceiros a assegurar as necessidades do (…).
Logo de seguida foi proferida pelo Tribunal a quo a decisão recorrida.
Compulsando devidamente o teor da dita decisão afigura-se que as questões apreciadas na mesma pelo Tribunal a quo foram previamente suscitadas e debatidas nos autos, concretamente o não pagamento pela Apelante da pensão alimentícia devida ao Marley e a satisfação de necessidades da criança por parte da avó materna da criança e companheiro daquela, suportando estes despesas do mesmo.
Na verdade, logo no requerimento inicial a Apelante deixou claro não estar ela a pagar a pensão alimentícia devida ao (…), por virtude do pagamento da mesma e da mensalidade do colégio frequentado pela criança estar a ser asseguradas pela sua mãe e companheiro da mesma, dessa forma entendendo nada dever ao Apelado.
Por conseguinte, o facto de o Tribunal a quo na decisão recorrida ter tido um entendimento diferente do sufragado pela Apelante quanto à relevância do pagamento de despesas da criança por terceiros não é passível de fundamentar a existência de uma decisão inesperada ou “decisão-surpresa”, por não estar concretamente em causa na mesma a consideração de questões (de facto ou de direito), não suscitadas ou contraditadas pelas partes nos autos previamente à decisão final, mas apenas uma perspectiva diferente sobre a sua (ir)relevância sustentada em diversa argumentação.
A Apelante sustenta ainda nesta sede que o facto de não ter havido pronuncia por parte do Tribunal a quo quanto aos requerimentos de prova que apresentou e não ter sido realizada audiência de julgamento viola igualmente o principio do contraditório “na vertente da proibição da decisão-surpresa.”, estando-se “perante uma nulidade que influiu na decisão da causa”.
É certo que no final do requerimento inicial a Apelante requereu se notificasse o ora Apelado, bem como se requisitasse junto do colégio frequentado pelo (…) para um e outro juntarem aos autos extractos bancários desde Junho de 2019.
Quanto à notificação ao Apelado desde logo se verifica não ter sido apresentado qualquer fundamento específico para o pretendido, não tendo, desse modo, sido cumprido o previsto na parte final do nº 1, do artigo 429º do CPC.
Se é certo que não foi proferido um despacho que se debruçasse especificamente sobre tais requerimentos probatórios, o que a nosso ver deveria ter sucedido, não é menos certo que se depreende com mediana clareza do teor da decisão recorrida que o Tribunal a quo até equacionou a verificação do facto que a Apelante pretenderia comprovar com a requisição da informação bancária junto do colégio frequentado pelo (…), concretamente que a mensalidade do mesmo estava a ser paga desde Junho de 2019 pela avó materna da criança e companheiro daquela (o que, aliás, não surpreende, visto não ter sido apresentada qualquer reacção de oposição a tal factualidade), pese embora entendendo ser o mesmo irrelevante para afastar a obrigação do pagamento da pensão alimentícia por parte da Apelante.
Já no que tange à preterição de audiência de discussão e julgamento há que considerar o seguinte:
No caso concreto o Tribunal a quo na aplicação do nº 3 do artigo 41º do RGPTC entendeu enveredar pela via excepcional da notificação da Requerida, ora Apelante, para alegar o que tivesse por conveniente, desse modo preterindo a realização da conferência de pais.
Mas justificou essa opção conforme se alcança da parte inicial do primeiro despacho proferido nos autos em 02/10/2019.
Assim, por ter sido apresentada alegação por parte da Requerida, ora Apelante, passou a ser aplicável o disposto na 2ª parte do nº 7 do referido artigo 41º que no caso vertente nos remete precisamente para o disposto no nº 7 do artigo 39º do dito RGPTC (os nºs 1 a 5 pressupõem ter sido realizada conferência de pais e mediação, ou audição técnica especializada, enquanto o nº 6 que não tenham sido apresentadas nos autos alegações ou provas).
Diz-nos o referido nº 7 do artigo 39º do RGPTC, que:
“Se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias.”
Começando pela questão das provas constata-se que no caso vertente não foram propriamente “apresentadas” provas pela Apelante, mas sim requerida pela mesma a obtenção de determinados meios probatórios (documentos), o que não é exactamente o mesmo.
Por outro lado, estando nós perante um procedimento tutelar cível a que o artigo 12º do RGPTC reconhece a natureza de jurisdição voluntária, mostra-se aplicável o disposto nos artigos 986º a 988º do CPC, sendo que a parte final do nº 2 do artigo 986º prevê expressamente que “só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias”.
Expressão muito semelhante encontramos, aliás, no próprio nº 5 do artigo 39º do RGPTC quando se menciona “e sempre que o entenda necessário”.
Já sabemos que no caso concreto o Tribunal a quo não proferiu antes da decisão final um despacho específico sobre os dois requerimentos de prova formulados pela ora Apelante no final da sua alegação de resposta. Porém, também já concluímos supra que um dos requerimentos apresentados não foi devidamente fundamentado, por falta de especificação dos factos concretos que se pretenderia provar e que a factualidade que o outro requerimento visava comprovar foi equacionada como verificável na decisão recorrida, concluindo, não obstante, o Tribunal a quo (e bem desde logo porque a mensalidade do colégio não ficou contida na pensão alimentícia acordada pagar pela ora Apelante), pela sua irrelevância face ao peticionado pelo ora Apelado, sendo, como tal, de retirar a ilação de que a prova pretendida obter através do mesmo foi, afinal, entendida pelo Tribunal a quo como desnecessária.
Fica por saber se o facto de terem sido apresentadas alegações em resposta ao requerimento inicial obrigava no caso concreto o Tribunal a quo a realizar audiência de discussão e julgamento.
A norma do nº 7 do artigo 39º do RGPTC tem carácter imperativo e refere “alegações” em alternativa à apresentação de provas.
No entanto, faria sentido agendar uma audiência de julgamento no caso vertente posto que não foi apresentada em tempo prova por confissão das partes, nem prova testemunhal?
Vejamos o que nos diz sobre isto Tomé de Almeida Ramião (“Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentado”, Quid Juris, 3ª edição, 2018, pág. 129):
“Repare-se que no nº 7 se faz depender o julgamento da apresentação de alegações ou apresentação das provas, em alternativa, pelo que bastaria apresentar alegações sem provas ou estas sem aquelas. Mas a verdade é que não faz sentido apresentar alegações sem provas ou estas sem aquelas, já que as provas servem para demonstrar os factos alegados e alegações sem provas são inúteis. Daí entender tratar-se de um lapso do legislador, pelo que se exige a apresentação de alegações e provas.”
Concordamos com este entendimento, por eivado de lógica, não podendo, todavia, deixar de se referir que no caso da alegação apresentada sem provas no limite sempre se poderia considerá-la como suficiente para justificar o agendamento de audiência de discussão e julgamento por virtude de o artigo 29º, nº 1, al. b), do RGPTC, prever expressamente, tendo ou não sido requerida, a tomada de declarações às partes a efectuar nessa mesma audiência.
Acresce que no caso em apreço afigura-se que tal diligência seria inócua pois tais declarações apenas poderiam relevar em termos confessórios quanto ao não pagamento pessoal da pensão alimentícia por parte da ora Apelante, o que a mesma não refutou dado que alegou expressamente estar a pensão alimentícia devida ao (…) a ser paga por terceiros, concretamente pela avó materna da criança e pelo companheiro da dita avó.
Do exposto se conclui que no caso vertente a omissão do acto de audiência de discussão e julgamento não influiu no exame ou na decisão da causa, sendo, por conseguinte, negativa a resposta à questão supra colocada.
Improcedem, pois, as conclusões recursivas quanto à questão em apreço.
Entrando na abordagem da segunda questão objecto do recurso, entende a Apelante que a decisão recorrida não se encontra fundamentada de facto e de direito por ser absolutamente omissa quanto à especificação dos factos julgados provados que a justificaram.
Vejamos:
Decorre do artigo 205º, nº 1 – da Constituição da República Portuguesa que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Por seu turno, resulta do artigo 154º do CPC epigrafado “Dever de fundamentar a decisão” que: “1- As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.”
2- A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
Já na parte do CPC atinente à sentença, deparamos com o artigo 615º, que no seu nº 1 prevê o seguinte:
“É nula a sentença quando:
[…]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;”
Dito isto, será que a decisão recorrida peca por falta de fundamentação de facto e/ou de direito, que assuma relevância para se declarar a sua nulidade como pretende a Apelante?
Como acima se ilustrou, se é certo que a consequência do vicio da falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito alicerçantes da decisão é a nulidade, não é menos certo que alinhamos com a doutrina e jurisprudência dominantes que consideram que só a falta absoluta de motivação e não a motivação meramente deficiente, incompleta, ou não convincente, conduz àquela nulidade.
Lembrando a lição do Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág.140), só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, sendo que a insuficiência ou a mediocridade da motivação afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.
Por seu turno, em douto Parecer (Col. Jur., 1995, 1º - 7), o Prof. Calvão da Silva defendeu que na sentença o tribunal tem de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, sob pena de se verificar falta de fundamentação de direito.
Jurisprudencialmente podemos a este respeito destacar, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 05/05/2005, Procº 05B839; 21/12/2005, Procº 05B2287; 18/05/2006, Procº 06B1441; 19/12/2006, Procº 06B3791; 10/04/2008, Procº 08B396 e 06/07/2017, Procº 121/11.4TVLSB.L1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.net, reportando-se os indicados, à excepção do último, ao artigo 668º, nº 1, b), do CPC, anterior ao NCPC, cuja redacção, todavia, é idêntica à do actual artigo 615º, nº 1, b).
Neste último aresto do STJ de 2017 refere-se a propósito da nulidade prevista no supra citado normativo que “A nulidade apontada tem correspondência com o nº 3 do artigo 607º do mesmo C.P. Civil que impõe ao juiz o dever de, na parte motivatória da sentença, «descriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes…».
Significa tal que não basta que o Juiz decida a questão que lhe é colocada, tornando-se indispensável que refira as razões que o levaram a ditar aquela decisão e não outra de sentido diferente; torna-se necessário que demonstre que a solução encontrada é legal e justa”.
Regressando ao caso concreto, verificamos que a sentença recorrida não segmentou, como seria desejável à face designadamente do disposto no artigo 607º, nº 3, do CPC, os fundamentos de facto e de direito em que estribou a decisão tomada.
Não obstante tal, entendemos que possui o mínimo que permite salvaguardar a sua validade formal.
Na verdade, da sua análise descortinamos que a decisão se baseou nos seguintes factos enunciados na mesma:
O exercício das responsabilidades parentais foi fixado em 09.05.2019 nos termos do qual ficou estipulada uma prestação de alimentos a cargo da progenitora, no valor mensal de 100 €, a pagar até ao dia 08 de cada mês, atualizada anualmente em 2% (fls. e ss. dos autos).”
“[…] a requerida não tem pago a prestação de alimentos devida ao filho, por entender que as necessidades alimentares deste estão a ser pagas por terceiros”, (concretamente “a avó materna e o companheiro desta.”), “pelo que se desobriga do pagamento a que ficou obrigada.”
Já no que tange aos fundamentos jurídicos socorre-se a decisão recorrida do disposto no artigo 41º, nº 1, do RGPTC, nos seguintes termos:
“Estabelece o artigo 41º, n.º 1 do RGPTC que se algum dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido quanto ao exercício das responsabilidades parentais, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa a favor do menor ou do requerente ou de ambos.
Não se verifica, pois, o vício de falta absoluta de motivação quer no plano factual, quer no plano jurídico.
Improcedem, em consequência, as conclusões recursivas também no que tange à questão ora apreciada.
Continuando na apreciação das questões objecto do recurso sustenta a Apelante que o Tribunal a quo julgou incorrectamente como provado que “a Requerida não tem pago a prestação de alimentos devida ao filho, por entender que as necessidades alimentares deste estão a ser pagas por terceiros, pelo que se desobriga ao pagamento a que ficou obrigada…”, entendendo que tal deve ser modificado e “alterar-se em sentido negativo”.
Sobre a reapreciação da matéria de facto e sua eventual modificabilidade estatuem os artigos 640º e 662º, ambos do CPC.
Dispõe o artigo 662º, nº 1, do CPC, que “A relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Sobre este normativo refere o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, pág. 287), o seguinte:
“O actual artigo 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava …através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Já o artigo 640º, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prevê que:
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…]”
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (obra acima citada, a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação “, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado nº 1 e 2, a), do artigo 640º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Regressando de novo ao caso concreto constata-se que a Apelante não cumpriu devidamente o ónus de impugnação especificada previsto no supra referido artigo 640º, nº 1, do CPC.
Na verdade, não logrou nem na motivação, nem nas conclusões recursivas, referir de forma expressa e inequívoca qual a decisão de facto que no seu entender deveria ser proferida sobre a questão de facto impugnada limitando-se a referir dever a mesma ser modificada e “alterar-se em sentido negativo”, ficando por saber o que pretendeu expressar exactamente com tal.
Pretendeu que se considerasse como provado o contrário do que foi entendido como assente?
Ou pretendeu que se considerasse como não provado?
Subsistindo manifesta ambiguidade impõe-se concluir no sentido do não cumprimento do ónus relativo ao disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC.
Mas ainda que o vício apontado não se verificasse a verdade é que também é patente que a Apelante tão pouco cumpriu na motivação (e menos ainda nas conclusões recursivas), o ónus de concretização dos meios probatórios que suportariam decisão diversa sobre o ponto de facto que impugnou, limitando-se a insurgir-se sobre o exposto pelo Tribunal a quo na sentença recorrida por ter referido concretamente “despesas com a criança”, na certeza de que essa passagem da sentença não consubstancia um facto concreto atendível pelo Tribunal a quo, mas apenas um resumo da alegação de resposta da ora Apelante.
Os factos a que atendeu foram os que supra salientamos em itálico, sendo certo que o conceito de “necessidades alimentares” não pode deixar de se relacionar directamente com a pensão alimentar ou alimentícia.
Pelo exposto improcedem, ainda, as conclusões recursivas no que tange a esta terceira questão objecto do recurso atinente a impugnação da decisão de facto.

Prosseguindo na apreciação do objecto do recurso, impõe-se de seguida aludir à questão da errada motivação dos factos atendíveis na decisão recorrida.
No que respeita a esta questão sustenta a Apelante que o Tribunal a quo “limitou-se a enunciar de forma errada as Alegações da Recorrente”.
Decorre do nº 4 do artigo 607º do CPC que: “[…]; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito…”.
Por seu turno resulta do artigo 662º, nº 2 – do mesmo diploma legal que “A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
[…]
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.”
No caso em apreço embora o Tribunal a quo não tenha seguido o modelo legalmente mais apropriado para expressar a sua motivação/convicção quanto aos factos que considerou atendíveis para a decisão tomada (precisamente os que supra destacámos em itálico), é possível extrair da decisão recorrida que o mesmo baseou a sua convicção quanto ao primeiro no teor da decisão (provisória), devidamente transitada em julgado, proferida em 09/05/2019 e documentada em acta dessa mesma data no processo (apenso) nº 4375/12.0TBPTM-A, enquanto o segundo resultou precisamente da confissão feita pela Apelante na sua alegação de resposta de que deixou de pagar pessoalmente o montante da pensão alimentícia devida ao (…) por tal ser efectuado pela sua mãe e companheiro desta.
Na verdade, sublinhamos, nenhuma dúvida subsiste de que a Apelante confessou na respectiva alegação de resposta não efectuar por si tal pagamento ao ora Apelado.
Se isso no contexto evidenciado, que contempla a intervenção de terceiras pessoas no pagamento do montante da dita pensão e da mensalidade do colégio do (…), igualmente assumida pela Apelante, permite, ainda, responsabilizar a mesma como devedora, por incumpridora, da pensão alimentícia, ou não, é matéria com implicação eminentemente jurídica, que abordaremos infra.
Do exposto, resultam igualmente improcedentes as conclusões recursivas quanto a esta questão.

Impõe-se, neste momento, apreciar a próxima questão objecto do recurso que se prende com a reapreciação do mérito da decisão.
Entende a Apelante que a avó materna do (…) e o companheiro daquela pagaram ao Apelado as pensões alimentícias que o mesmo reclama no caso vertente à Apelante pelo que nada deve àquele e como tal não se encontra em incumprimento.
Invoca para o efeito o disposto no artigo 767º, nº 1, do Código Civil (doravante apenas CC), bem como o instituto da sub-rogação.
Todavia, também aqui não lhe assiste razão.
Vejamos:
No caso em apreço, já o sabemos, foi fixada provisoriamente por decisão judicial em contexto de responsabilidades parentais uma pensão alimentícia a favor e no interesse da criança (…), a pagar pela Apelante, sua progenitora e pelo progenitor da criança, ao Apelado, que é padrasto da criança e a cuja guarda e cuidados o (…) foi ainda provisoriamente entregue por força da dita decisão judicial.
Como tal essa prestação alimentícia funda-se inequivocamente no disposto nos artigos 1878º, nº 1, 1907º, 2003º, 2007º e 2009º, nº 1, c), todos do CC, 28º, nº 1, do RGPTC e 112º-A da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), decorrendo com mediana clareza designadamente dos preceitos do CC indicados que recaí sobre os progenitores a obrigação legal de assegurar os alimentos dos filhos, em regra através de uma prestação pecuniária mensal (cfr. ainda o artigo 2005º, nº 1, do CC).
Tal afasta desde logo a aplicação ao caso vertente do regime do artigo 767º, nº 1, do CC.
Por outro lado, o direito a alimentos no caso do alimentando ser menor, como sucede no caso vertente, é um direito do próprio e não do adulto, a cuja confiança e cuidados o mesmo é entregue. A este último compete, nessa dimensão patrimonial do exercício das responsabilidades parentais, administrar e gerir, no superior interesse da criança, o quantitativo a título de pensão alimentícia que a criança tiver direito a receber do, ou dos, obrigados ao pagamento dos alimentos.
Donde, ainda que se admitisse como possível (e não se admite como infra já clarificaremos), a sub-rogação contratual pelo credor, ou pelo devedor, ou ainda a sub-rogação legal, de tal crédito de alimentos do menor, conforme argumenta a Apelante, sempre a validade da mesma dependeria de decisão judicial que autorizasse esse acto por força do disposto no artigo 1889º, nº 1, i), do CC.
Sucede, porém, que o artigo 2008º, nº 1, do CC prevê expressamente a indisponibilidade do direito a alimentos deixando bem claro que o mesmo não pode ser renunciado ou cedido, sendo que esta cessão deve ser considerada no sentido amplo de transmissão do crédito a alimentos.
Ora, sendo o instituto da sub-rogação de créditos uma das formas de transmissão de créditos prevista na nossa lei substantiva (cfr. artigos 577º a 594º do CC), tal revela-se suficiente para afastar mais esse argumento avançado pela Apelante.
A satisfação das necessidades alimentares do (…) e da mensalidade do colégio frequentado pelo mesmo por parte da avó materna da criança e do companheiro da mesma deve, ao invés, enquadrar-se no âmbito das obrigações naturais previstas precisamente no artigo 402º, do CC.
Estatui o referido normativo que: “A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”.
A este propósito defende esclarecidamente Mário Júlio de Almeida Costa (“Direito das Obrigações”, Almedina, 12ª edição, 2018, pág. 175), o seguinte:
“As obrigações naturais constituem, assim, casos intermédios entre os puros deveres de ordem moral ou social e os deveres jurídicos. Os primeiros fundamentam liberalidades, os últimos consubstanciam obrigações civis munidas de acção. No campo delimitado pelas duas fronteiras é que se situam as hipóteses a qualificar como obrigações naturais.”
E acrescenta ainda o insigne professor na mesma obra (pág. 178), que:
“Resulta, portanto, inadequada qualquer enumeração limitativa dos possíveis casos de obrigações naturais. Note-se que o legislador prevê algumas hipóteses: o caso das dívidas prescritas, o das dívidas de alimentos que não constituam obrigações civis…”
E complementa a ideia logo de seguida (pág. 179), nos seguintes termos:
“É no art. 495º, nº 3, que se pressupõe uma obrigação natural de alimentos, a propósito da lesão ilícita de que resulte a morte ou a incapacidade do respectivo devedor. Constituem exemplos: as prestações com esse carácter feitas a familiares próximos que não tenham o direito de exigi-las, ou pelo patrão ao empregado que se inutiliza ou envelhece ao seu serviço. O dever moral ou social e de justiça alicerça-se, então, em relações de sangue, de convivência ou de serviços, evidentemente, fora do âmbito do art. 2009.º, onde se referem verdadeiras obrigações civis de alimentos.”
Concordamos com esta posição que sufragamos, apenas sublinhando que mesmo nos casos que em abstracto possam enquadrar obrigação civil de prestar alimentos, por passíveis de inclusão na extensa lista de pessoas vinculadas a alimentos descritas nas várias alíneas do artigo 2009º, nº 1, do CC, será em concreto necessário que a mesma obrigação esteja “munida de acção”, o que não sucederá relativamente a ascendente de um grau mais afastado do beneficiário dos alimentos caso o(s), ascendente(s) de grau mais próximo estiver(em) em condições de prestar esses mesmos alimentos e forem judicialmente obrigados a fazerem-no.
É precisamente essa a situação que retrata o caso concreto relativamente à avó materna do (…) pelo que entendemos e reiteramos que quer o seu companheiro, quer a mesma, agiram no âmbito de uma obrigação natural no que tange às prestações que pagaram entre Junho e Agosto de 2019, bem como relativamente à mensalidade do colégio da criança, não ficando a Apelante desobrigada de pagar a pensão que lhe foi provisoriamente fixada judicialmente.
Do exposto retira-se a conclusão de que apenas no caso de ter sido judicialmente proferida outra decisão ainda com carácter provisório, ou já de sentido definitivo, homologatória de acordo, ou não, que reconhecesse fundamentadamente total impossibilidade de obrigar a Apelante ao pagamento de pensão alimentícia ao filho, seria possível vincular a avó materna do (…) a tal pagamento, o que não sucedeu, nem sucede, de acordo com os elementos que os autos fornecem.
Improcedem, pois, também quanto a esta questão as conclusões recursivas.

Resta, pois, abordar a última questão objecto do recurso respeitante a alegado abuso de direito por parte do Apelado.
E nesta sede sustenta a Apelante que se verifica tal abuso no caso concreto por virtude do Apelado ter dito não ter recebido as prestações que vem peticionar a título de pensão de alimentos apenas porque não recebeu directamente da Apelante “quando na verdade já recebeu por intermédio” da progenitora da Apelante.
Vejamos então:
Dispõe o artigo 334º do CC, epigrafado “Abuso de direito”, o seguinte:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta norma consagra o princípio do abuso de direito cuja essência pode ser precisada ou através do recurso a uma teoria subjectiva, que coloca a tónica na intenção do agente, ou objectiva, que se debruça sobre o alcance objectivo do comportamento do agente, ou ainda através de fórmulas intermédias que procuram combinar um critério com o outro.
A redacção do artigo 334º do CC aceitou a concepção objectiva do abuso de direito não sendo necessário que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido, bastando que tal acto revele essa contrariedade, mas num contexto de abuso nítido, dado que o titular do direito tem de ter excedido manifestamente os limites impostos ao seu exercício (neste sentido Mário Júlio de Almeida Costa, obra acima citada, págs. 84 a 86).
A boa fé revela-se, antes demais, como princípio geral de direito, sendo que numa perspectiva jurídico-positiva exprime-se através de cláusulas gerais, traduzindo o apelo que o legislador faz directamente a tal princípio na regulamentação de certos domínios, existindo no direito obrigacional outras como por exemplo os bons costumes. Tais cláusulas gerais, a par dos conceitos indeterminados, destinam-se a conferir ao julgador uma generosa margem de liberdade de apreciação em cada caso concreto.
De todo o modo, agir segundo os ditames da boa fé pressupõe que os membros de uma comunidade jurídica adoptem “uma linha de correcção e probidade, tanto na constituição de relações entre eles como no desempenho das relações constituídas[…]que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes, proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (obra citada, pág. 122-123).
Já no que tange ao conceito dos “bons costumes”, tratando-se igualmente de cláusula geral a preencher casuisticamente através do labor jurisprudencial , sempre será de entende-lo como um “conjunto de regras de convivência, de práticas de vida, que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente” (idem, pág. 88), pelo que o exercício de um direito será contrário aos mesmos quando tiver laivos de imoralidade ou de violação das normas básicas impostas pelo decoro social.
No que concerne ao último conceito determinativo da legitimidade ou ilegitimidade do exercício de um direito atinente precisamente ao “fim social ou económico”, deve salientar-se que se prende com a função instrumental própria que cada direito possui, a qual justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício.
A propósito do exposto veja-se pelo seu interesse, entre outros, o Acórdão do STJ de 19/10/2005 (in Acórdãos Doutrinais, 531º - 549).
Verificando-se abuso de direito e uma vez que a norma constante do artigo 334º do CC apenas alude a ilegitimidade do exercício abusivo de direito compete ao juiz determinar casuisticamente as consequências sancionatórias que derivam de tal acto abusivo, podendo sancionar-se, “[…] por um lado, com a nulidade, a anulabilidade, a inoponibilidade ou a resolubilidade, nos termos gerais, do próprio acto ou negócio abusivo e por outro lado, com o restabelecimento de actos ou negócios conexionados, recusando-se a acção de anulação, concedendo-se a excepção de dolo[…]“ ( ibidem pág. 90).
Regressando ao caso concreto entendemos não assistir razão à Apelante igualmente quanto a esta questão, na medida em que não se vislumbra que o ora Apelado tenha, ao instaurar contra a Apelante o presente procedimento tutelar civil de incumprimento e peticionado o que concretamente peticionou, exercido de forma ilegítima algum direito de que seja titular.
Desde logo porque, em rigor, o Apelado não exerceu um direito próprio dado que, (como supra já deixamos claro), o titular do direito a alimentos em causa é uma criança que o Apelado representa por lhe ter sido judicialmente confiada a sua guarda e cuidados.
Mas ainda que assim não fosse o caso em apreço não revela, a nosso ver, que tenha existido um manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico do direito em causa (direito a alimentos).
Na verdade, nada nestes autos, ou noutros apensos, cujo processo virtual pudemos consultar electrónicamente, concretamente e para o que interessa ao caso o apenso A de promoção e protecção onde foi judicialmente decidida a título provisório a pensão alimentícia a favor do (…), nos permite concluir que o Apelado tenha agido contra os ditames da boa-fé ao reclamar da Apelante o pagamento do montante equivalente a três pensões alimentícias vencidas devidas ao filho daquela, a que a mesma ficou obrigada por via da referida decisão judicial e que seguramente não o fez por si.
Desde logo, porque nada se evidencia nos autos acima assinalados que permita concluir que a avó materna do (…) e companheiro daquela tenham pretendido efectuar pagamentos em lugar, ou em substituição, da Apelante por forma a desobrigarem a mesma de os fazer e bem assim que tenham inteirado o Apelado disso e menos ainda que entre a Apelante e este último tenha havido algum tipo de acordo, ou conversação, sobre essa possibilidade.
Neste capítulo e ainda que a talhe de foice anote-se que resulta do teor da decisão judicial proferida em 09/05/2019 no apenso A de promoção e protecção, precisamente a que, além do mais, fixou os alimentos para o (…), ter ficado expresso que a avó materna da criança apoiaria o Apelado no exercício do poder/dever de confiança e cuidados atribuído ao mesmo sobre a criança.
Ora neste contexto não é de considerar perfeitamente admissível que a referida avó (e seu companheiro), tenham pretendido, além do mais, que tal apoio se evidenciasse também a título patrimonial?
Parece-nos perfeitamente razoável admitir que sim!
Donde, não se descortina a existência de manifesto excesso de incorrecção, na quebra de palavra assumida, de falta de lealdade, ou de honestidade, passível de atentar contra expectativas geradas, por parte do Apelado para com a Apelante ao dirigir contra esta última o presente incumprimento e peticionar o que peticionou.
Como também não se vislumbra que tal conduta do Apelado tenha excedido manifestamente os “bons costumes”, por não revelar a mesma um procedimento imoral ou atentatório de normas básicas de convivência pessoal, relembrando que está em causa a salvaguarda do direito a alimentos de alguém que, pela sua incapacidade jurídica e judiciária devido à sua pouca idade, não pode agir por si mesmo.
E igualmente não se alcança que a conduta do Apelado tenha excedido manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito em apreço, atendendo à importância que reveste a protecção do direito ao sustento de uma criança, amplamente reconhecido por todos os cidadãos nas sociedades modernas actuais.
Improcedem, em consequência, igualmente, as conclusões recursivas quanto a esta última questão sendo assim de negar provimento ao recurso interposto pela Apelante.
*
V – DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta 1ª Secção Cível em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação interposto por (…) e, em consequência disso, decidem:
a) Confirmar a decisão recorrida;
b) Condenar em custas a Apelante – artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC.
*
DN.
Évora, 07/05/2020
José António Moita (relator)
Silva Rato (1º Adjunto)
Mata Ribeiro (2º Adjunto)