Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
282/14.0GBLLE-A.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: ARGUIDO ESTRANGEIRO
PERIGO DE FUGA
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Afirmar que existe perigo de fuga porque o arguido é estrangeiro é afirmação deveras abstracta num perigo que se quer concreto. De tal forma que se correria o risco de a qualidade de estrangeiro ser critério de agravação da situação processual.
2 - No caso, tratando-se de país de língua oficial portuguesa com o qual se estabeleceu já um acervo razoável de instrumentos de cooperação internacional que se têm mostrado operantes e eficazes, designadamente através do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde, assinado na Praia em 2 de Dezembro de 2003, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n. 6/2005 (DR n. 32 de 15 de Fevereiro de 2005) e a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 (Diário da República, 1.ª série — n.º 178 — de 15 de Setembro de 2008, pag. 6664), essa circunstância isolada não revela qualquer perigo concreto.
Decisão Texto Integral:


Proc. nº 282/14.0GBLLE-A.E1

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de Inquérito que corre termos no Tribunal de F - L, por despacho lavrado em acta em 16 de Abril de 2014 a Mmª. Juíza decretou a sujeição à medida de coacção de apresentações trissemanais no posto policial da área de residência, proibição de se ausentar para o estrangeiro e proibição de contactos com pessoas associadas ao consumo/tráfico de estupefacientes, pela eventual prática de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º do Dec-Lei n. 15/93, de 22-01.


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Inconformado com tal decisão interpôs o Digno magistrado do Ministério Público o presente recurso, com as seguintes conclusões:

1- Existem nos autos fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes pp pelo artigo pelo artigo 210 n" 1 do Decreto-lei ri" 15/93, de 22 de Janeiro e não tão-só de um crime de tráfico de menor gravidade previsto pelo art° 250 do mesmo diploma legal, como pretende a Mma Juíza “a quo" no despacho recorrido.

2 - No que concerne a esse crime fortemente indiciado pela sua detenção em flagrante delito no dia 15 de Abril de 2014, o arguido encontra-se incurso e fortemente indiciado em crime cuja pena vai de 4 a 12 anos de prisão.

3 - O arguido foi detido e) apresentado a 1 o interrogatório judicial reconheceu que toda a droga apreendida lhe pertencia.

4 - Foram apreendidos ao arguido vinte e cinco (25) pacotes contendo heroína com o peso total aproximado de 52,7 gramas de heroína e um plástico com 3 panfletos contendo aproximadamente 0,5 gramas de cocaína.

5 - Foram-lhe também apreendidos, e ele reconheceu como seus, os restantes objetos descritos no Auto de Apreensão, designadamente uma balança de precisão, uma embalagem de um medicamento (com diclofenac, sódio e misoprostol) usado para juntar (corte) cocaína com vista a rentabilizar o produto e aumentar o lucro obtido com a venda de estupefaciente.

6 - A heroína apreendida é suficiente para cerca de 520 doses de heroína e o valor total provável da venda dessa substância seria de cerca de 1820 Euros. A situação do social, económica e laboral do arguido é de tal modo precária o que nos leva a crer que existe em concreto um forte perigo de continuação da actividade criminosa.

7 - O arguido é estrangeiro - de Cabo Verde - e incorre na prática de crime punível com pena que vai até 12 anos de prisão. Existe, só por isto um concreto e real perigo de fuga.

8 - Na zona de Almancil, onde o arguido se encontrava quando na sua detenção foi abordado pelos agentes da autoridade policial, o tráfico de droga é um flagelo por demais conhecido de toda a população e comunidade desta comarca de L pelo que, existe também, no caso, um intenso perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de grande alarme social.

9 - Com toda a prova já recolhida, a que acrescem as declarações do arguido no 10 interrogatório judicial que irão certamente ser reproduzidas e/ou lidas em sede de audiência de discussão e julgamento ao abrigo do art° 3570 ri" 1, alínea b) do Código de Processo Penal, pode-se concluir com alguma segurança que pelo crime fortemente indiciado de tráfico de estupefacientes pp pelo artigo pelo artigo 21º n. 1 do Decreto-lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, atenta a moldura penal abstrata do mesmo (até 12 anos de prisão), é bem provável que ao arguido Edmir Maria Teixeira Gomes venha a ser aplicada, no decurso dos presentes autos, em sede de julgamento, uma pena de prisão efectiva na sua execução, pelo que, a prisão preventiva afigura-se-nos uma medida de coacção proporcional.

10 - Por tudo o exposto, entendemos que, sendo adequada e proporcional ao caso, a prisão preventiva é a única medida de coação capaz de, de uma forma eficiente, obstar à continuação da actividade criminosa por parte do arguido, ao perigo da sua fuga e bem assim de eliminar o perigo de perturbação da tranquilidade ordem públicas que causa na comunidade desta comarca de L a colocação em liberdade do arguido.

11• - Assim, o Mmo Juiz “a quo", ao não aplicar ao arguido a citada medida de coacção de prisão preventiva, violou o disposto nos arts 193° nOs 1 e 2, 202° n° 1 alínea a) e 2040 alíneas a) e c), todos do Código de Processo Penal, violando outrossim as normas dos artigo 21° n° 1 e 25°, ambas do Decreto-lei n° 15/93, de 22 de Janeiro.

Por isso deve o douto despacho recorrido ser totalmente revogado e substituído por outro, que ordene que o arguido aguarde os ulteriores termos do presente processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva.


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Apresentou resposta o arguido, com as seguintes conclusões:

1. Ao contrário elo que alega o recorrente, a matéria constante do auto de denúncia, aponta, claramente, para uma situação ele tráfico de menor gravidade. O despacho colocado em crise, concluiu, bem, pela aplicação ele medida coativa não privativa ela liberdade.
2. Perigos do artigo 204.º
a. Perigo de continuação da atividade criminosa
O arguido, apesar de esporadicamente, vem trabalhando na construção civil, auferindo proventos que lhe permitem fazer face às suas despesas da vida corrente.
O arguido, nas declarações que lhe foram tomadas, deu conhecimento que vive com a companheira em casa dos pais desta, desenvolvendo trabalhos em colaboração com o progenitor da companheira
A situação económica do arguido, ainda que precária, permite-lhe, como tem permitido fazer face às suas despesas.
b. Perigo de fuga
O recorrente alega, em escassas linhas, que o arguido é cidadão estrangeiro, pelo que existe perigo de fuga.
O arguido tem dois filhos em Portugal, país em que se encontra a residir há vários anos com a sua situação regularizada e, portanto, com fortes ligações à comunidade portuguesa, onde está inserido com sua mãe, dois irmãos, filhos e companheira.
Ao arguido foi também aplicada a medida de coação de proibição de se ausentar para o estrangeiro, tendo este entregue o passaporte que se encontra junto aos presentes autos.
O arguido, além de não ter familiares próximos em Cabo Verde, seu país natal, tem a sua vicia organizada no nosso país.
c. Perigo de perturbação da tranquilidade e ordem pública
O arguido ficou sujeito a medidas de coação severas que, entre outras, o proíbem de permanecer nos locais conotados com o tráfico de droga e de contactar com indivíduos ligados ao consumo de estupefacientes.
Ora, vivendo o arguido num meio pequeno, se incumprisse, sujeitar-se-ia, de imediato à aplicação de medida privativa da liberdade.
A verdade é que, como se esperava, o arguido não incumpriu nem incumprirá nenhuma das medidas a que ficou sujeito
Pelo supra exposto, deve o recurso ao qual se responde improceder, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, como é de inteira

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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência total do recurso.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal, respondendo o arguido manifestando surpresa pela subida do recurso um ano de pois da sua interposição, defendendo a improcedência do mesmo e afirmando que se encontra em Portugal e tem cumprido as medidas de coacção impostas e não tendo cometido ilícitos.


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B - Fundamentação:

B.1 - Os elementos de facto relevantes constam do antecedente relatório.

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«Valido a detenção do arguido, porquanto efectuada em flagrante delito nos termos do artigo 255, nº 1, al. a) e 256º, ambos do CPP tendo os mesmos sido apresentados no prazo legalmente previsto nos art.s 254º, nº 1, al. a) e 141º, nº 1 daquele diploma legal.

Os elementos probatórios que foram dados a conhecer ao arguido, e que são os relevantes para a aplicação de medida de coacção e que foram todos aqueles expressamente indicados pelo MP na sua promoção, acrescido dos autos de inquirição das testemunhas, elemento probatório igualmente comunicado ao arguido, indiciam fortemente a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados.

Efectivamente, dos autos transparece claramente que o arguido detinha para venda a terceiros (consumidores) heroína e cocaína, fazendo-o já desde Janeiro de 2014 (assim o afirmam as testemunhas inquiridas).

A forma como o estupefaciente estava acondicionado, dividido em pequenos pacotes (sendo-o em quantidade de 25 pacotes (doses) de heroína e 2 pacotes de cocaína), e bem assim ter o arguido sido surpreendido a proceder à venda directa desses mesmos pacotes a consumidores, não deixa dúvida de que fortemente se indicia que o arguido se dedicou à venda de heroína a terceiros consumidores.

Acresce não ter colhido credibilidade a versão do arguido na parte em que referiu ser consumidor de heroína considerando que não soube explicar com precisão quanto consumia, refugiando-se em considerações vagas que culminaram na afirmação de que só às vezes consome não o fazendo diariamente por, com base na sua "força de vontade", conseguir consumir só às vezes, facto que é, designadamente no caso da heroína, contrariado pelas regras da experiência.

Os factos até aqui apurados, de forma fortemente indiciada, resumidos à dedicação por parte do arguido, desde Janeiro de 2014, à venda de heroína, sendo certo que até aqui apenas está concretizada a tentativa de uma venda, na via pública, e detenção de 25 pacotes de heroína (cerca de 54,05 gramas) e 2 pacotes de cocaína (cerca de 4,7 gramas) com vista à sua venda a terceiros consumidores, entende-se, sem prejuízo de as ulteriores diligências de investigação possam vir a concretizar outros factos, que presentemente os factos mais consubstanciam um crime de tráfico de menor gravidade, previsto pelo artigo 25.º do DL 15/93, e punido com pena de 1 a 5 anos de prisão, do que um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º do mesmo diploma legal.

Cumpre então determinar o estatuto coactivo do mesmo.

Ora, é manifesto, e resulta das regras da experiencia que o tráfico de estupefacientes é uma actividade ilícita que coloca em causa uma panóplia de bens jurídicos, sendo no caso concreto a heroína um dos produtos estupefacientes mais nocivos, e que propicia aos seus agentes avultadas compensações económicas. Bastará para tal atentar que o arguido foi surpreendido na posse de 165,00 € na sua carteira no momento em que procedia à venda da droga.

E embora o arguido tivesse declarado que essa quantia não era proveniente das vendas da droga, a mesma mostra-se totalmente incompatível com os rendimentos que declarou auferir (35,00 € por cada dia de trabalho que presta para o seu sogro enquanto ajudante de pedreiro, sendo certo que esse trabalho não é diário e que no próprio dia o arguido não tinha trabalhado).

Assim, sendo actividade propiciadora de elevados lucros económicos, é grande a probabilidade de o arguido, se lhe for possibilitado, continuar a envolver-se na prática do mesmo tipo de factos, pois que, conforme referiu o arguido, tem dívidas e do alegado trabalho dado pelo sogro, pela sua irregularidade, não retirará os rendimentos suficientes para fazer face às suas necessidades básicas.

Para além deste manifesto perigo de continuação da actividade criminosa, temos que ter em consideração que existe um concreto e efectivo perigo de perturbação do inquérito, ao nível da aquisição e manutenção da prova, pois que o possível contacto do arguido com as testemunhas poderá vir a tentar influenciá-las a mudar os seus depoimentos, inviabilizando com isso até a necessária concretização de factos ainda por apurar.

O perigo de fuga não é premente, considerando que o arguido se encontra em situação regular em território nacional com termo de residência válido até 06.04.2016 e, segundo as suas declarações, até aqui não contraditadas por qualquer outro elemento, em Portugal desde 2007 com os pais e irmãos, sem que desde aí tenha regressado a Cabo Verde, e que tem residência fixa onde vive com a sua actual companheira e filha desta.

Existe perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, dada a danosidade social associada ao crime em causa.

Assim as exigências cautelares que se verificam são intensas e justificam indubitavelmente a aplicação ao arguido de medida de coacção para além do TIR, não devendo porém a mesma, atendendo ao crime em causa e a previsibilidade de, a manterem-se indiciados apenas os factos que até aqui se encontram indiciados, vir a ser aplicada pena de prisão suspensa na sua execução visto não serem conhecidos antecedentes criminais ao arguido pela prática de crime de igual natureza, ser a medida de coacção privativa da liberdade.

Nestes termos, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e ao abrigo das disposições conjugadas dos art.s 191º, 193º, 196º, 200º al.s b) e d), e 204º, ais. b) e c), todos do Código do Processo Penal, devidamente conjugados com o disposto no artº 25, aI. a), do D.L. 15/93, de 22/01, com vista a debelar os aludidos perigos afigura-se-nos adequado às exigências cautelares do caso e proporcionais à gravidade do crime, aplicar ao arguido, para além do TIR já prestado, as seguintes medidas de coacção:

1. Medida de coacção de obrigação de apresentações periódicas com periodicidade trissemanal, sendo às segundas, quartas e sextas-feiras no horário de expediente do Posto Policial da sua área de residência.

2. Proibição de se ausentar para o estrangeiro, para o que o arguido deverá entregar à guarda deste tribunal o passaporte que possuir;

3. Proibição de contactar por qualquer meio com pessoas associadas ao consumo e/ou tráfico de estupefacientes.

Restitua o arguido à liberdade, devendo porém o arguido, caso não tenha consigo o passaporte, ser acompanhado pelas autoridades policiais à sua residência com vista a proceder de imediato à entrega do seu passaporte o qual deverá ser, por sua vez, entregue pelas autoridades policiais neste Tribunal.

Comunique ao SEF nos termos do disposto no artigo 200/3 CPP, bem como, ao posto policial da área de residência do arguido, a fim de, ser fiscalizado o cumprimento da medida de coacção de obrigação de apresentações periódicas aplicada ao arguido.

Do antecedente despacho foram todos os presentes notificados».


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Cumpre conhecer.

B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal por isso que as questões abordadas no recurso reconduzem-se a apurar se foi adequadamente operada a qualificação jurídica do crime imputado ao arguido e se as medidas de coacção são as adequadas ao caso concreto, tendo em mente a solicitação de imposição de medida de prisão preventiva peticionada pelo Digno magistrado recorrente.


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B.3 – Não é necessário repisar que estamos em fase indiciária e o juízo a formular tem essa mesma natureza.

Quanto ao primeiro ponto é certo que os parâmetros de apreciação abstracta estão perfeitamente delimitados pela ordem jurídica e se centram - na distinção entre o tipo de tráfico da previsão do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e o tipo privilegiado do artigo 25.º, al. a), do mesmo diploma – na ilicitude do facto.

Tem sido posição constante da jurisprudência portuguesa que no tipo contido no artigo 25º do Dec-Lei nº 15/93, de 22-01, se prevê uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, por referência à constante do artigo 21º do diploma, através da indicação de elementos factuais inseríveis na ilicitude do facto como indicadores dessa menor ilicitude e que devem ser analisados de forma global.

Daí pretende-se que decorra, da menor gravidade do ilícito, um mais atenuado tratamento penal e um tratamento mais equitativo ou proporcional dos factos praticados, o que se concretiza no afastar da aplicabilidade do artigo 21º do diploma.

É disso exemplo o Ac. do STJ de 24-01-2007 (Proc. 06P3112 - Cons. Santos Monteiro):

I - O tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade, construído sobre o tipo matriz, ou seja sobre o tipo-base previsto no art. 21.°, n.º 1, do DL 15/93, de 22/1, procura dar resposta, em nome da proibição de excesso, da equidade e da justiça, àquelas situações que, sem atingirem a gravidade pressuposta no tráfico simples, merecem reprovação, sendo injusto, sem se lançar mão de atenuação especial, não diversificar os campos de incidência, revelando-se, ainda, a perseguibilidade penal como um dos mais eficazes métodos para se atingir o tráfico no seu escalão médio e de maior dimensão.

II - A gravidade à escala assim delineada encontra tradução na conformação da acção típica, enquanto não prescinde de a ilicitude, ou seja o demérito da acção típica, na sua expressão de contrariedade à lei, ser consideravelmente reduzida, um acto de repercussão ética de menor gravidade, em função da consideração, além do mais, dos meios utilizados, da modalidade ou circunstância da acção, da qualidade ou quantidade das substâncias ou preparações – al. a) daquele art. 25.º.

III - Essa ponderação, tal como este STJ tem repetidamente afirmado, não prescinde, antes exige, uma valoração global do evento, sem fazer avultar um seu elemento em detrimento do outro.

Assim, a consideração da “diminuição considerável da ilicitude do facto”, apresenta índices de ponderação assentes na ponderação dos meios utilizados, da modalidade ou das circunstâncias da acção, da quantidade ou qualidade do produto traficado ou a traficar. [1]

Ora, que revelam os factos provados?
De material, nos autos, a colocação do arguido em “ponto de venda”, a posse no local de dois pacotes de heroína (teste rápido) e a posse na residência de outras 23 pacotes idênticos aos anteriores e da mesma substância. Detectado apenas um acto de venda.

Há que reconhecer que o período temporal decorrido de provável venda de estupefaciente e referido (?) por duas testemunhas é igualmente curto – desde Janeiro de 2014, sendo certo que a detenção é de 15 de Abril do mesmo ano – e se desconhece a frequência e quantidade traficada nem se descortina forma de a quantificar com os elementos indiciários existentes.

Ou seja, a quantidade global de estupefaciente (52,7 gr de heroína e 0,5 gr de cocaína) não permite um claro delimitar de fronteiras sancionatórias do lado “quantidade”, apesar de a posse de tais substâncias, pela sua qualidade, mostrar maior gravidade do que a posse de cannabis, por exemplo. Nem, por outro lado, se pode impor a ideia de um tráfico arrastado no tempo e já com uma certa dose de habitualidade, já que curto o espaço de tempo referido e falíveis os elementos probatórios que – mesmo assim – apenas permitem retroagir a conduta do arguido a 3 meses antes.

É claro que “traficante de rua” não é sinónimo de “pequena-gravidade”, já que esta se afere pelos critérios já supra referidos, mas no caso concreto nem essa diferenciação conceptual permite um claro delimitar de fronteiras na posse destes simples elementos indiciários.

Tudo constatações que afastam a possibilidade de qualificar diversamente a conduta do arguido - nesta fase e com os elementos de prova disponíveis - como saindo claramente de uma situação de uma “considerável diminuição da ilicitude”.

Ora, face a este quadro fáctico é evidente que não existem elementos seguros que permitam decidir de forma diferente da assumida pelo tribunal recorrido quanto à qualificação dos factos indiciados.


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B.3 – Já na avaliação a fazer aos perigos existentes e expostos pelo artigo 204º do Código de Processo Penal por referência ao caso concreto, há que realçar que não parece haver muita urgência ou perigo eminente pois que o recurso – com entrada a 16-05-2014 - teve resposta a 24-06-2014, esta só foi notificada ao Ministério Público em 20-02-2015 e só chegou a esta Relação a 24-02-2015.

Ou seja, se havia perigos eles já se concretizaram – ou se criou um amplo espaço de tempo de concretização - e este parece ser um caso de prática inutilidade do recurso. Se tais perigos se não concretizaram então está demonstrada a sem razão do recurso.

De qualquer forma impõe-se argumentar formalmente como se de perigos eminentes se tratassem, pelo menos na sua virtualidade abstracta, apesar da inutilidade face à qualificação operada.

Afirmar que existe perigo de fuga porque o arguido é estrangeiro é afirmação deveras abstracta num perigo que se quer concreto. De tal forma que se correria o risco de a qualidade de estrangeiro ser critério de agravação da situação processual. É caminho perigoso.

No caso, tratando-se de país de língua oficial portuguesa com o qual se estabeleceu já um acervo razoável de instrumentos de cooperação internacional que se têm mostrado operantes e eficazes, designadamente através do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde, assinado na Praia em 2 de Dezembro de 2003, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n. 6/2005 (DR n. 32 de 15 de Fevereiro de 2005) e a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 (Diário da República, 1.ª série — n.º 178 — de 15 de Setembro de 2008, pag. 6664), essa circunstância não revela qualquer perigo concreto.

Quanto ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a razão invocada pelo Digno recorrente parece assentar mais na falta de policiamento e, neste, na recolha paciente e eficaz de dados através de vigilâncias, do que num real perigo provocado pela singularidade pessoal do arguido.

Quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa já afirmámos que os factos indiciados não são claros na demonstração de tal risco, mas o decurso de um ano sem notícia de prática de outros ilícitos é a demonstração da sua inexistência.

O único perigo que se concretizou nos autos foi o da inutilidade do recurso por inércia.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Sem tributação. Notifique (Processado e revisto pelo relator).

Évora, 16 de Junho de 2015

João Gomes de Sousa

Felisberto Proença da Costa

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[1] - Da abundante jurisprudência sobre esta matéria apenas se refere, por todos, o acórdão do STJ de 21-09-2011, por ser dos mais recentes.