Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
218/10.8TASSB.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Data do Acordão: 05/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – A prestação de declarações para memória futura tem por finalidade a preservação, tanto quanto possível, da dignidade e da integridade moral e física do menor, as quais poderão ser mais facilmente colocadas em perigo por uma inquirição em audiência, mesmo com as restrições de publicidade previstas na lei.

II - Nesta ordem de ideias, a tomada de depoimento em audiência a menor ofendido por crime atentatório de bem jurídico conotado com a sexualidade, que tenha sido previamente ouvido para memória futura, apenas se justificará se o Tribunal de julgamento, oficiosamente ou por iniciativa de algum dos sujeitos processuais, decidir que a mesma é indispensável à descoberta da verdade ou à boa decisão da causa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 218/10.8TASSB, que correu termos no Tribunal da Comarca de Setúbal, Instância Local de Sesimbra, Secção de Competência Genérica, por sentença proferido em 15/7/15, foi decidido:

1 - Julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público, e, em consequência:

a) Absolver A. da prática, como autora material, de um crime de abuso sexual agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal;

b) Condenar A. pela prática, como autora material, de um crime de abuso sexual agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

c) Suspender a execução da pena de prisão imposta em b), nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal, pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses;

d) Condenar a arguida no pagamento das custas processuais, fixando em 4UC a taxa de justiça, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 513.º, n.ºs 1 e 2, 514.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e dos artigos 8.º, n.º 9, 16.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa àquele diploma legal;

e) Ordenar a remessa, após trânsito, do boletim aos serviços de identificação criminal (DSIC);

2 – Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado por B, em representação da menor JF, e, em consequência:

a) Condenar A. a pagar à Demandante Civil a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data, à taxa legal de 4% e demais que sobrevierem, e vincendos até efetivo e integral pagamento;

b) Custas do peticionado civilmente pela Demandada;

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. B, foi casada com M, entre 10.09.1994 e 07.10.2004.

2. Fruto da união conjugal, nasceram, respetivamente, em 22.04.1997, DF e, em 21.04.2002, JF.

3. Por acordo e em virtude do divórcio, ficaram os menores a residir com a mãe B.

4. J e DF, com alguma regularidade, privavam com a avó paterna, a arguida, mãe do M, na casa desta, sita na…, Quinta do Conde

5.As visitas de J e DF à arguida incluíam a pernoita dos menores, de sexta-feira para sábado, na casa daquela, sita na…, Quinta do Conde

6. Em datas e horas não concretamente apuradas, mas durante o período que os menores permaneciam em casa da arguida, por várias vezes, esta massajava a barriga da menor JF, e ao massajar, descia as mãos, para a zona dos genitais desta, acariciando a vagina da menor JF.

7. A JF, tentava impedir, retirando a mão da arguida, mas esta insistia com o mesmo acto, descendo as mãos até aos genitais para acariciar tal zona.

8. Entre 21 a 27 de Fevereiro de 2010, B, por motivos de natureza profissional, teve de deslocar-se à Turquia.

9. Por essa razão, acordou com a arguida, que durante esse lapso de tempo, os seus filhos ficariam em casa dos avós paternos, na morada já referida, o que veio a suceder.

10. Em datas e horas não concretamente apuradas, mas durante o período que os menores permaneceram em casa da arguida (durante o período compreendido do dia 21 a 27 de Fevereiro de 2010), por várias vezes, a arguida chamava a menor JF e cheirava os genitais da mesma e dizia que “ela era porca e que tinha de se ir lavar.

11. De seguida, na casa de banho, a arguida lavava a J no bidé, e com as mãos, esfregava os genitais desta, mas durante mais tempo que o normal, isto é, insistia na lavagem prolongada e repetida dos genitais da menor.

12. Tais atos, aconteceram por um número indeterminado de ocasiões, mas pelo menos duas vezes, em que a arguida cheirou os genitais da menor JF e no mesmo ato, disse-lhe: "És uma porca;" Tens o pipi todo sujo;" "Tenho que o ir lavar”.

13. Levando-a de seguida para a casa de banho, lavando a mesma no bidé, e com as mãos, esfregava os genitais desta, mas durante mais tempo, que o normal, para lá do tempo necessário, insistindo na lavagem prolongada e repetida dos genitais da menor JF.

14. Em data e hora não concretamente apurada, mas numa tarde no período compreendido entre o dia 21 a 27 de Fevereiro de 2010, os menores JF e o DF, estavam em casa da arguida, na morada referida, concretamente, na sala de jantar e sentados no sofá, a ver televisão, quando a arguida chamou a menor JF para se sentar ao seu colo.

15. A arguida, já com a menor JF ao colo, de forma imediata, começou a acariciar com as suas mãos, os genitais da criança, sobre as calças de pijama que esta trazia vestidas.

16. De seguida, a arguida baixou as calças do pijama da menor JF e colocou as mãos, por cima das cuecas desta, e continuou a acariciar com as mãos, os genitais desta.

17. Na manhã do dia 28.02.2010, B, regressada da Turquia e na sua residência, perguntou aos filhos se tinham gostado de estar em casa dos avós e, notou em ambos um estranho comportamento, nomeadamente, de retraimento.

18. Insistiu com a pergunta e para além do mais, estes contaram os factos supra descritos.

19. De imediato, a B, diligenciou para que os seus filhos fossem consultados por uma psicóloga, a Dra. DM.

20. A arguida em conversa posterior ao conhecimento dos factos, disse que o que fez, tinha sido "a brincar.

21. Semanas depois, a arguida foi ao encontro dos menores JF e DF, que se encontravam em casa do pai M, dirigiu-se aos dois e disse: Não me lembro de nada do que vocês dizem; a J é que costuma mexer na picha do D e ele no pipi da irmã.

22. A menor JF é neta da arguida.

23. Sabia a arguida, que sobre esta impendia um especial dever de cuidado dessa menor, que estava à sua guarda e cuidado, quer pela relação familiar e de parentesco que tem, e que lhe era exigível um comportamento diverso.

24. Ao agir da forma descrita, tinha a arguida perfeito conhecimento da idade da menor JF (com 8 anos de idade), e que esta não tinha mantido qualquer acto de natureza sexual anterior.

25. Tinha a arguida consciência da incapacidade da menor JF, face à sua idade para se auto determinar sexualmente e para resistir e aproveitou-se conscientemente da inexperiência e ingenuidade desta, para uma relação de índole sexual como a descrita.

26. A arguida representou e quis com ela manter actos sexuais de relevo, acariciando de forma repetida os genitais da menor JF, e agiu com a intenção de concretizar tal desiderato, o que alcançou.

27. Sabia ainda a arguida, que aquela menor não tinha a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão e até entendimento aos actos sexuais praticados, como os descritos, o que prejudicava o normal desenvolvimento da mesma.

28. Não obstante, praticou tais atos para satisfazer os seus apetites e prazeres sexuais.

29. A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo que toda a sua conduta era proibida e punida por lei.

30. Sabia que tais condutas lhe estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições ainda assim não se inibiu de as realizar.

Mais se provou:
31. A arguida está reformada e aufere € 600,00 de pensão de reforma.

32. O marido da arguida está reformado.

33. O agregado familiar reside em habitação paga.

34. O agregado familiar tem as normais despesas domésticas, os seguros da habitação e do veículo automóvel e o condomínio.

35. A arguida tem o 4.º ano de escolaridade.

36. Do certificado do registo criminal da arguida não constam antecedentes criminais.

Mais se provou quanto ao pedido de indemnização civil deduzido:

37. A Demandada era uma pessoa de quem a menor gostava e confiava.

38. As condutas praticadas pela Demandada ficaram gravadas na memória da menor, originando medos e receios que perduram.

39. Na sequência das condutas de Demandada a menor passou a sofrer distúrbios do sono e pesadelos constantes.

40. A menor manifesta receio persistente em circular por locais próximos da residência da Demandada ou locais onde a presença desta seja habitual.

41. Tais receios estendem-se à sua participação em atividades lúdicas ou desportivas (curriculares e extracurriculares), onde é usual a presença de pais e avós.

42. A menor manifesta resistência em participar em tais eventos, manifestando vergonha e medo.

43. A menor sente medo, ansiedade e tristeza persistente.

44. A menor, no relacionamento com familiares, amigos e colegas, ficou mais retraída.

45. A menor é assistida por psicóloga.

Da sentença proferida a arguida e demandada A. veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

A) A Sentença ora recorrida reflete uma deficiente e errada valoração da prova produzida em sede de audiência de julgamento, impondo-se uma decisão diversa, através de uma alteração da matéria de facto, em nome do Princípio da Verdade Material, que enforma o nosso processo penal;

B) Entende a Recorrente que o iter seguido pelo Tribunal a quo para tomar a decisão de que ora se recorre, salvo o devido respeito, não foi o melhor, valorando determinados meios de prova em detrimento de outros, sem o justificar adequadamente, designadamente privilegiando a prova da acusação, violando o disposto no artigo 127.º, do CPP, no que respeita ao Princípio da Livre Apreciação da Prova;

C) Verifica-se uma grande imprecisão e abstracção na redação dada aos pontos da matéria de facto dada com provada (talvez pela dúvida e pela incerteza da sua ocorrência), porquanto são frequentes expressões com «em datas e horas não concretamente apuradas…», «… mas durante mais tempo que o normal…»;

D) O nível de incerteza e fragilidade resultante da matéria de facto dada como provada na Sentença recorrida, roçando a abstracção e a impressão, violam flagrantemente o Princípio da Verdade Material, permitindo, erradamente, ao Tribunal a quo concluir pela condenação da Recorrente;

E) Crê a Recorrente que as preocupações de rigor e de avaliação do risco de falibilidade dos depoimentos das testemunhas de acusação em que a Sentença recorrida assentou a sua decisão não foram devidamente consideradas pelo Tribunal a quo, o que, aliás, é perceptível pela simples audição dos registos de gravação da audiência de julgamento;

F) No global, a Sentença recorrida assentou a condenação da Recorrente com base em depoimentos indiretos em relação aos quais não aferiu da sua verdadeira fiabilidade, isenção e objectividade, valorando erradamente os mesmos por forma a sustentar a tese da acusação;

G) Por estas razões, é entendimento da Recorrente que a reapreciação da prova, designadamente dos depoimentos gravados, permitirá ter uma visão diferente daquela que veio a ser vertida na Sentença recorrida;

H) É certo que esta mesma Sentença se esteia nas declarações para memória futura prestadas pela menor JF perante o Juíz de Instrução Criminal, em 2010, mas também é certo que as declarações para memória futura constituem uma exceção ao Princípio da Imediação da Prova, o que, também, deveria ter sido ponderado na situação sub judice;

I) Resulta da justificação dada pelo Tribunal a quo para a valoração por si dada a este meio de prova na situação em apreço, que o mesmo foi considerado de forma tal que o depoimento mais parece ter sido prestado na presença deste mesmo Tribunal a quo e não em regime de declarações para memória futura;

J) O Tribunal a quo não enquadrou essas declarações para memória futura da menor tomadas em 2010, valorando-as, a ver da Recorrente, erradamente, as quais ocorrem depois da conversa havida entre a menor JF e a sua mãe, B, e de todo o processo desenvolvido a partir daí, envolvendo a família e uma psicóloga, não sendo totalmente espontâneas, nem tomadas imediata e directamente na sequência dos alegados factos em causa nestes autos;

K) O Tribunal a quo perdeu de vista o Princípio da Investigação e da Verdade Material, consagrado no disposto no n.º 1, do artigo 340.º, do CPP, o qual dispõe que «o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.»;
L) Tanto assim é que, por exemplo, nem mesmo o relatório de perícia psicológica realizado à ora Recorrente foi considerado pelo Tribunal a quo para contextualizar e retirar as devidas consequências da fragilidade da prova acusatória, ou para enquadrar as declarações da arguida aqui Recorrente;

M) O Tribunal a quo violou, assim, flagrantemente o disposto no n.º 1, do artigo 163.º, do CPP, o qual dispõe que «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.»

N) Vista a Sentença recorrida e após a audição do registo da audiência de discussão e julgamento, conclui-se que o Tribunal a quo não fez a melhor apreciação e valoração da prova, como se impunha, violando princípios básicos e estruturantes do processo penal.

O) É, em respeito do Princípio da Verdade Material e na procura da mesma no seio do presente processo que entende a Recorrente haver uma necessidade imperiosa de alteração da matéria de facto face à prova produzida em sede de audiência de julgamento, que leva e suporta uma decisão diferente da tomada;

P) Efetivamente, dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, na parte penal, designadamente os vertidos nos pontos 6 a 16 da Sentença recorrida, considera-se que, por força das declarações e dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente pelos depoimentos da Assistente/Demandante Civil e das testemunhas da acusação, não deveriam ter sido dados como provados, pelo que se requer aqui a sua alteração e dando os mesmos como não provados;

Q) Sem prejuízo do que se disse quanto à necessidade de reapreciação da prova produzida e a consequente decisão de absolvição da Recorrente, é entendimento desta que o Tribunal a quo violou também o Princípio in dubio pro reo, porquanto a incerteza dos factos é equiparada à insuficiência de prova e, como tal, ela é favorável, neste caso, à Recorrente, já que só é possível uma condenação quando a prova dos factos for feita para além da dúvida razoável, o que não sucede na situação vertente;

R) O Princípio in dubio pro reo assenta no princípio constitucional que é o Princípio da Presunção da Inocência, consagrado no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, o qual diz que «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.», o que a Sentença recorrida acaba por violar;

S) Entende, pois, a recorrida que a valoração pretendida dar pelo Tribunal a quo aos testemunhos indiretos de B, DF e AG, viola todos estes princípios estruturantes do processo penal;

T) Atenta a tese da Recorrente quanto à necessidade de reapreciação da prova produzida e valorada pelo Tribunal a quo, retira-se também que não podem ser dados como provados os factos constantes dos pontos 38 e 39, no que respeita ao pedido de indemnização civil;

U) Em matéria de responsabilidade civil, ainda que enxertada no processo penal, o que vigora é o disposto no artigo 483.º- n.º 1, do Código Civil, o qual diz que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.

V) Posto isto, entende a Recorrente que não se verificam os pressupostos indispensáveis para que haja lugar à sua condenação no pedido de indemnização civil, falhando o nexo da causalidade adequada exigido;

W) Acrescente-se ainda que, apenas por mera hipótese de raciocínio e sem conceder, caso se venha a entender confirmar a Sentença recorrida na parte penal, ainda assim a decisão tomada quanto ao pedido civil não deverá ser mantida, pois o estado emocional da menor JF, do ponto de vista jurídico e como demonstrado, e no cenário, que não se aceita, de se manter a condenação penal da Recorrente, não resultaria exclusiva e totalmente da conduta ilícita em causa nestes autos alegadamente praticada pela Recorrente, mas também da dita conversa de 28 de fevereiro de 2010 feita pela sua mãe.

Y) Entende, assim, a Recorrente que a Sentença ora recorrida deverá ser reformulada.

Nestes termos e face a tudo o supra exposto, quer de facto quer de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP e a assistente e demandante civil B responderam individualmente à motivação da recorrente, tendo formulado, cada um, as seguintes conclusões:

MP
1. O Tribunal “a quo”, por sentença datada de 15.07.2015, foi a arguida A. condenada na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, pela prática de um crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelos artigos 171º, nº 1 e 177º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal;

2. A ora recorrente alega que atenta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, deveria ter sido absolvida da prática do crime de que vinha acusada;

3. Fundamentando tal pretensão no facto de a convicção do Tribunal “a quo” se ter fundamentado em depoimentos indirectos e nas declarações para memória futura prestadas pela ofendida em 2010, as quais constituem uma excepção ao princípio da imediação da prova;

4. As declarações para memória futura, bem como os demais depoimentos das testemunhas foram correctamente valoradas pelo Tribunal a quo, não se verificando a violação e qualquer princípio de direito penal;

5. Com efeito, a douta sentença recorrida procede à comparação, através da análise critica, dos diversos elementos de prova, especificando aqueles que foram decisivos para a formação da convicção do julgador, dando cumprimento ao disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal;

6. A sentença recorrida refere claramente os meios de prova a que atendeu para formar a sua convicção, seguindo um processo lógico e racional na apreciação da prova;

7. Face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, analisada “à luz das regras da experiência comum e juízos de normalidade”, bem andou o Tribunal “a quo” ao considerar provados os factos constantes dos pontos 6 a 16, dos factos provados;

8. Impondo-se assim, a condenação da arguida, ora recorrente;

9. A douta sentença ora recorrida não merece qualquer reparo ou censura, tendo feito uma correcta avaliação da prova produzida em audiência, conjugando-a com os demais elementos probatórios juntos aos autos, observando o princípio da livre apreciação da prova, e aplicando o direito à matéria de facto provada, não violando qualquer disposição legal;

10. Por tudo, a decisão proferida e ora em crise deverá manter-se nos precisos termos em que foi proferida.

B
1. A arguida recorre sustentando a reapreciação da prova na parte penal, sendo dado como não provada a factualidade descrito nos pontos 6 a 16 da sentença recorrida.

2. A arguida alega que a douta sentença do Tribunal a quo violou o princípio da investigação ou da verdade material, bem como o princípio da livre apreciação da prova.

3. Uma decisão só incorre no vício violação do princípio da investigação ou da verdade material, quando o tribunal a quo, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.

4. Ou seja, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais longe, não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa.

Ora, nenhum destes vícios se vislumbram na sentença recorrida.

5. A recorrente, discordando da livre convicção do Tribunal “a quo”, pretende apenas fazer sobrepor a sua própria convicção estribada na sua própria perspectiva da prova que foi produzida em julgamento.

6. A Recorrente tem convicção diversa da do Tribunal “a quo”, mas tal como resulta da douta sentença, não consegue abalar por qualquer forma, a convicção, a que bem chegou o Tribunal “a quo”e que se encontra devidamente motivada.

7. Perscrutados os fundamentos da decisão recorrida, deles resulta que o Tribunal “a quo” se fundamentou, essencialmente, na análise crítica, ponderada e conjugada de toda a prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum.

8. Considera a Recorrente que na redacção dada aos pontos de matéria de facto dada como provada verifica-se uma grande imprecisão e incerteza, Todavia, os pontos por si indicados não revestem nenhuma dessas características;

9. Quer porque a conduta da Recorrente, ocorrida no período em os menores permaneciam na sua casa, encontra-se perfeitamente concretizada (6,10 e 14); quer porque o lapso de tempo na execução da conduta, encontra-se suficientemente concretizado, pois é esclarecido que a Recorrente insistia na lavagem prolongada e repetida dos genitais (11 e 13); Quer por, não sendo possível concretizar o número total de vezes em que a Recorrente teve a conduta abusadora, foi possível, através da prova produzida, apurar um número mínimo (ponto 11, que na realidade deverá ser o 12).

10. A Recorrente considera que as preocupações de rigor e de avaliação do risco de falibilidade dos depoimentos das testemunhas de acusação em que a Sentença recorrida assentou a sua decisão não foram devidamente consideradas.

11. A fundamentação da matéria de facto vertida na douta sentença do tribunal “a quo” permite acompanhar o processo lógico-racional que alicerçou a sua convicção, pois analisando a prova produzida, na sua globalidade, e em detalhe, surge a conclusão a que o tribunal chegou em relação aos factos constantes da acusação e pedido cível e aos factos dados como provados e não provados (neste caso, nenhum).

12. Como resulta dos registos de gravações dos depoimentos e da douta sentença, as testemunhas arroladas na acusação pública e no pedido de indemnização covil depuseram de forma isenta, rigorosa e espontânea.

13. Reconhecendo o Tribunal “a quo” que B, denotou ressentimento relativamente à arguida, angústia e tristeza quanto à situação da qual a filha foi vítima e ao actual estado emocional de JF, acrescenta que a mesma afirmou peremptoriamente que, até à data dos factos, nada tinha a dizer sobre a arguida, em quem confiava cegamente, que sempre a auxiliou nos cuidados e educação dos filhos e sempre tratou os netos com grande afecto e dedicação.

14. O depoimento indirecto deve ser objecto de valoração quando a testemunha referenciada comparecer, existindo, então, a necessidade de, com observância do princípio da livre apreciação da prova, conjugar e cotejar o depoimento indirecto e o depoimento directo, esclarecendo eventuais contradições ou convergência.

15. Ao contrário do que é defendido pela Recorrente, os testemunhos de B, DF (quanto aos factos que não presenciou) e DM foram valorados pelo tribunal nos exactos termos da lei, demonstrando, aliás, que a menor sempre manteve a mesma versão, inalterada e coerente, dos factos, desde a data em que o tornou públicos.

16. As declarações para memória futura respeitaram os pressupostos em que a produção é processualmente admitida, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório.

17. No direito português como, de resto ocorre em outros regimes processuais estrangeiros, a prova antecipada tem o mesmo valor que a prova produzida ou realizada em audiência de julgamento.

18. A Recorrente considera que a douta sentença violou o princípio da Investigação e da Verdade Matéria (n.º1, do art.º 340º do CPP), nomeadamente pelas consequências e contextualização que efectuou quanto ao Relatório de perícia psicológica efectuada a Recorrente.

19. Omite, todavia, que a mesma entidade também efectuou um relatório de exame de perícia psicológica forense à menor JF, pelo que bem andou o Tribunal a quo quando considerou que sem olvidar o relatório de perícia psicológica efectuada à arguida, a demais prova produzida (dentre as quais este relatório da perícia a menor) é irrefutável na corroboração do libelo acusatório.

20. O princípio do in dubio pro reo (vertido no art. 32 da CRP ) constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa;

21. Todavia, ao contrário do que a Recorrente pretende, não se trata porém de “dúvidas” que a mesma entende que o Tribunal a quo não teve e devia ter tido, pois o “in dubio pro reo” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas.

22. O princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.

23. A Recorrente defende que na hipótese de a sentença recorrida na parte penal vir a ser confirmada, mesmo assim deveria ser alterada a decisão quanto ao pedido cível, porquanto o estado emocional da menor JF não resultaria exclusiva e totalmente da conduta ilícita em causa, mas também da alegada conversa de 28/02/2005 com a sua mãe.

24. Resulta dos registos de gravação dos depoimentos e da própria matéria fáctica dada como provada que no dia 28/02/2005 os menores relataram à mãe (tornaram publico, nos termos da sentença ou “Revelação”, como consta do Relatório pericial efectuado a menor) os actos perpetuados pela Arguida.

25. Quanto ao nexo de causalidade, no caso dos autos, afigura-se manifesto que os danos provados resultaram de forma necessária da conduta da demandada, pois se a arguida não tivesse abusado sexualmente da Demandante esta não teria sofrido as consequências comportamentais e psicológicas denunciadas nos autos.

26. Bem andou o Tribunal “a quo” ao condenar o arguido pela prática dos crimes em causa, nos exactos moldes em que o fez.

Pelo que, deve o Recurso apresentado ser julgado totalmente improcedente, devendo a douta sentença condenatória ser integralmente confirmada nos seus precisos termos.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso em presença, tendo sustentado a respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de pronunciarem, não tendo exercido o seu direito de resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pela recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância do acórdão recorrido, expressa pelo recorrente nas suas conclusões, versa, em primeira linha, exclusivamente sobre matéria de facto e tem como finalidade, num segundo momento, a absolvição da arguida da acusação criminal e do pedido de indemnização civil contra ela deduzidos, em consequência da propugnada alteração da factualidade provada e não provada.

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

Em matéria factual, pretende a recorrente que este Tribunal julgue não provados os factos vertidos nos pontos 6 a 16, 38 e 39 da matéria julgada provada na sentença recorrida.

Faz basear tal pretensão na desvalorização para efeitos de convicção do depoimento da menor ofendida JF, por ter sido prestado com preterição do princípio da imediação de forma não espontânea, das declarações da assistente B (mãe da menor) e dos depoimentos de DF (irmão da menor) e AG (avó materna da menor), pelo seu carácter indirecto.

Insurge-se também a recorrente contra o facto de o Tribunal de julgamento não ter tomado em consideração, em seu entender, o relatório da perícia psicológica que lhe foi feita, ao analisar a prova que sustentou a acusação ou as declarações da própria arguida.

Alega a recorrente que o Tribunal de julgamento, ao decidir como decidiu, violou diversos princípios legais e constitucionais, que regem o processo penal, nomeadamente os da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), do valor da prova pericial (art. 163º nº 1 do CPP), da investigação e da verdade material (art. 340 nº 1 do CPP) e d a presunção de inocência (art. 32º nº 2 da CRP).

Deixamos a seguir reproduzido o texto das disposições do CPP e da CRP que a recorrente afirma terem sido transgredidas pela sentença recorrida:

- art. 127º do CPP
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

- Art. 163º nº 1 do CPP
O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

- Art. 340º nº 1do CPP
O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

- Art. 32º nº 2 da CRP
Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

Para fundamentar o juízo probatório emitido, na parte que pode interessar ao presente recurso, o Tribunal «a quo» expendeu (transcrição com diferente tipo de letra):

A.3.) MOTIVAÇÃO DE FACTO
De acordo com o artigo 205.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.

Por sua vez, o Código de Processo Penal explicita, nos seus artigos 97.°, n.°4 e 374.°, n.° 2, que a sentença deve especificar os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: deve o Tribunal lançar se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca, derivados da(s) finalidade (s) do processo.

Conforme decorre do Código de Processo Penal, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação que, como se afere do artigo 355.°, se traduz no facto de a convicção do Tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza.

Por seu turno, tal prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, segundo o qual aquela é apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade julgadora (cfr. art. 127.º do CPP).

Quer isto significar que a prova deve ser apreciada na sua globalidade, não através do livre arbítrio, mas de acordo com as regras comuns da lógica, da experiência e dos conhecimentos científicos e vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.

Todavia, não podemos esquecer que, pese embora este princípio seja a regra geral, existem algumas excepções, nomeadamente: o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169.° do CPP), a confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344.° do CPP) e a prova pericial (art. 163.° do CPP).

Em suma, a convicção do Tribunal forma-se, não só com base em dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Relativamente às declarações do arguido haverá que ter em conta, porém, o princípio da presunção da inocência, o qual se traduz em que até prova em contrário, o arguido deverá ser considerado inocente – cfr. art. 32.° n.°2 da Constituição da República Portuguesa.

Importa, pois, desta forma, proceder a uma fundamentação de facto que permita alcançar o raciocínio seguido pelo Tribunal na sua decisão.

Nesta conformidade, o Tribunal formou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A.3.1) Quanto ao crime de abuso sexual agravado
É costume dizer-se que na vida judiciária convivem diversas verdades: a dos arguidos e ofendidos; a das testemunhas; a verdade do julgador e a verdade processual. A que mais interessa para a prolação de uma sentença justa e conforme com os ditames de um Estado de Direito Democrático é a verdade processual porque, estribada na concatenação de toda a prova produzida e sujeita a contraditório, é o produto daquilo que o julgador consegue racionalmente fundamentar e defender e, por conseguinte, é facilmente sindicável através do confronto dos seus fundamentos.

O princípio da prova livre só quer dizer que o Tribunal livremente aprecia as provas (mas as provas), sem subordinação a regras ou critérios formais pré- estabelecidos. Não há qualquer convicção íntima do juiz que não se alicerce nas provas produzidas. Está afastado qualquer julgamento com base em meras opiniões ou conjeturas do julgador.

Por outro lado, o Tribunal na apreciação das provas, na reflexão dos factos, deve utilizar o seu saber da experiência, a sua capacidade de raciocínio, a reflexão nas regras da experiência comum, a sua compreensão das coisas. Mas esta essencial atividade só lícita na apreciação das provas e nunca se lhes substitui.

A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados formou-se com base, essencialmente, na análise crítica, ponderada e conjugada de toda a prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum.

Cumpre desde logo referir que, pela sua própria natureza, os crimes sexuais, em sede de sua comprova, não assentam geralmente em prova direta, donde que, por via disto, assume, neste campo, papel decisivo o princípio da livre convicção na apreciação da prova, posto que se traduza em termos inculcadores de não ser essa convicção estribada em meras presunções ou em impressivos simplesmente mentais, resultado de um imotivável juízo apreciativo mas, antes, numa base de apoio objetiva, criteriosa e suscetível de motivação e controlo.

Existem factos da acusação pública que estão provados, ou por prova documental, ou por concordância de declarações da arguida e depoimentos das testemunhas.

Assim, os factos provados em 1), 2) e 3) e 22), resultam do teor dos documentos juntos aos autos a fls. 90 e 91.

O relacionamento da menor JF e seu irmão, DF, com os avós paternos (e, designadamente com a arguida), as visitas à casa destes com pernoitas de sexta-feira para sábado, bem como a permanência dos jovens durante a semana quando a mãe B viajava em trabalho, (factos provados em 4), 5), 8) e 9)) são factos comumente aceites pela arguida, por B, por JF e DF nas declarações e depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento.

A arguida A prestou declarações e negou os factos constantes dos pontos 6.º, 7.º, 10.º a 16.º da douta acusação, constitutivos do crime de abuso sexual de menor, alegando que insistia com a J para que esta se levasse porque estava a entrar nos oito anos de idade e devia adquirir hábitos de higiene, o que a menor fazia no bidé pois não queria tomar banho.

Quanto à circunstância que terá ocorrido no sofá da sala (factos provados em 14.º a 16.º), a arguida nega a sua prática, afirmando que não tinha o hábito de se sentar no sofá com os netos porque eles quando ali se sentavam ocupavam os únicos três lugares disponíveis.

No que concerne ao encontro que ocorreu em casa do seu filho, pai da J e do DF, (facto provado em 21.º) a arguida afirma que foi confrontada pelos netos com o relato dos factos que lhe são imputados nos autos mas que lhes respondeu que não se lembrava de ter feito aquilo que que era acusada, não sabendo explicar a razão pela qual os seus netos afirmaram (e afirmam) tais factos mas justificando essas afirmações com a eventual necessidade de agradarem à mãe.

B, mãe de J e DF, prestou declarações denotando ressentimento relativamente à arguida, angústia e tristeza quanto à situação da qual a filha foi vítima e ao atual estado emocional de JF.

Nas declarações prestadas, B confirmou os factos constantes da acusação pública e considerados provados. Mais explicou que, perante o relato dos filhos (facto provado em 17.º), chamou a sua mãe (que residia no mesmo edifício) para ouvir e ajudá-la a perceber o que a menor lhe contava. Ambas integraram tal relato no contexto de um abuso sexual, pelo que, B contatou M, pai da J e do D, a contar-lhe a situação. Posteriormente, M, tendo confrontado a mãe com a situação relatada, disse a B que a mesma tinha admitido a prática dos factos mas afirmado que fora uma brincadeira e sem qualquer intenção sexual e/ou abusiva.

DF, atualmente com 18 anos de idade, prestou um depoimento objetivo, desinteressado, não denotando qualquer interesse em acrescentar mais factos do que aqueles que realmente observara e não demonstrando qualquer sentimento de rancor ou vingança relativamente à arguida.

DF relatou, circunstanciada e pormenorizadamente, a situação que ocorreu no sofá da sala de casa dos avós paternos: os menores estavam sentados no sofá a ver televisão e a bisavó estava no sofá ao lado. A arguida entrou na sala, sentou-se no sofá onde J e D estavam sentados e pediu à menor que se sentasse ao seu colo, o que J fez, ao mesmo tempo que disse ao D que fosse tomar banho.

Quando a J estava sentada ao colo da avó, a arguida começou a esfregar os genitais da menor com a mão, por cima das calças do pijama. Como se situação incomodou DF, este saiu da sala e foi tomar banho.

DF também confirmou no seu depoimento que, quando os menores chegavam a casa da escola, a arguida dizia à J “Deixa cá ver. Cheiras mal do teu pipi. Vamos lavá-lo”, demorando cerca de 15 minutos a fazê-lo no bidé da casa-de-banho.

DF confirmou que, assim que a mãe chegou da Turquia, os menores contaram-lhe o que se passara e, nesse momento, J contou à mãe situações que nunca tinha contado antes ao irmão.

Por fim, explicou que, cerca de dois meses após os factos, quando estavam em casa do pai, a arguida apareceu e pediu aos netos que lhe contassem o que haviam dito à mãe para B a odiar tanto.

D e J contaram os factos narrados na acusação pública e a arguida disse-lhes que era mentira e que, mesmo que tivesse feito, teria sido na brincadeira, posição, aliás, que o pai já lhe havia antes transmitido quando falaram do assunto.

Quanto à restante prova produzida, foram, desde logo, determinantes as declarações para memória futura prestadas pela menor JF perante o Senhor Juiz de Instrução Criminal, cuja transcrição se encontra a fls. 193 a 212 dos autos.

Evidentemente que a imediação e a oralidade da audiência de julgamento assumem um papel muito relevante no apuramento e na prova dos factos. Mas não pode de modo algum este tribunal desvalorizar o depoimento prestado pela menor J que, no relato dos factos, nos pareceu espontânea, coerente e credível, não se indiciando que o mesmo tenha sido produzido por sugestão.

Foi também possível apreender a sua relutância relativamente aos factos que teve que relatar.

Com efeito, as suas declarações foram no sentido de confirmar os factos vertidos na acusação, em especial quanto ao modo de execução dos factos praticados pela arguida.

A menor J esclareceu as circunstâncias concretas em que ocorreram os factos, explicando pormenores importantes para a consistência do relato e para a sua credibilidade.

As declarações da menor foram, assim, sob o ponto de vista do tribunal, suficientemente esclarecedoras e convincentes. Verifica-se que a descrição que a menor fez dos factos ocorridos é pormenorizada, sequencial, referindo aspetos da anatomia humana e utilizando expressões, cujo conhecimento e utilização não é provável na sua idade à data dos factos e das declarações para memória futura (oito anos), a menos que os tenham visualizado/vivenciado ou ouvido de outrem.

A menor mereceu ao tribunal credibilidade sendo sintomático da veracidade do seu relato o facto de não imputar à arguida factos que considera não terem acontecido, designadamente quando referiu durante a prestação de depoimento quando o senhor juiz lhe perguntou “vocês eram mentirosos, era?” e a menor respondeu: “Não, isso não disse (…)” – fls. 210.

No relatório pericial psicológico referente à menor (prova pericial) pode ler-se, além do mais, (cfr. fls. 173 a 183 e 53 a 56) “considera-se estarmos perante um relato coerente e lógico, contextualizado no espaço e no tempo, com diversos detalhes, incluindo detalhes de natureza mais periférica. J descreve ainda, verbalmente e também com o auxílio aos bonecos, as diversas interações que terão ocorrido.

Admite falhas na memória, o que se admite como muito pouco frequente em falsas declarações.

O seu relato é ainda coerente com aquele efetuado em auto de inquirição em 11.08.2010, o que nos permite afirmar existir coerência inter-relatos. Por outro lado, as declarações da menor são também consistentes com aquelas efetuadas pelo seu irmão D em auto de inquirição.

As declarações da menor são ainda consistentes com aquelas descritas em relatório de avaliação psicológica (fls. 27-30).

No mencionado relatório conclui-se que “A avaliação efetuada permite-nos afirmar estarmos perante uma criança com um nível de desenvolvimento global adequado para a sua faixa etária. Distingue verdade de mentira e realidade de fantasia, evidencia capacidade para narrar eventos de forma lógica e coerente e manifesta adequada capacidade de compreensão. O seu raciocínio é considerado lógico, conseguindo relacionar diferentes aspetos e tirar conclusões”.

Apesar da sua idade – oito anos na data das declarações para memória futura -, a menor J produziu um testemunho circunstanciado dos factos, caracterizado, nos aspetos fundamentais, pelo rigor e objetividade e, deste modo, merecedor de ampla credibilidade.

Por outro lado, a prova testemunhal produzida, sem ser uma prova direta (com exceção do depoimento de DF quanto aos factos por si presenciados ocorridos na sala dos avós paternos), conferiu também credibilidade às declarações da menor.

Inquiriu-se DM, psicóloga clinica que acompanha a J desde 2010 (data dos factos) mas que a conhece desde bebé porque acompanhou B no processo de divórcio.

A testemunha descreveu a J como uma menina responsável, adulta, coerente, perentória, honesta, frontal e sofrida. De acordo com a testemunha, no relato dos factos que lhe fez, os quais fez constar do seu relatório junto aos autos a fls. 53 a 56, a J não demonstrou qualquer dúvida sobre o que acontecera. A sua angústia era não perceber o motivo, ou seja, a razão pela qual tinha acontecido.

Nos respetivos depoimentos, as testemunhas não denotaram qualquer interesse ilegítimo que pudesse motivar a prestação de depoimentos não consentâneos com a verdade material.

A relação positiva e o sentimento de afeto de J pela avó até à data em que despoletaram os factos, são premissas aceites e afirmadas pela própria menor nas declarações prestadas, pelo seu irmão D e por B

DF chega mesmo a admitir que a J gostava mais de estar em casa dos avós do que ele, que já estava a ficar mais crescido e gostava de outras atividades (circunstância que é perfeitamente natural).

B afirmou perentoriamente que, até à data dos factos, nada tinha a dizer sobre a arguida, em quem confiava cegamente, que sempre a auxiliou nos cuidados e educação dos filhos e sempre tratou os netos com grande afeto e dedicação. Aliás, tal era essa relação e o desejo de a arguida ser avó que os seus filhos têm o apelido da avó (“F”) e não do avô e pai (“S”).

Efetivamente, face ao auxílio prestado pela arguida a B, quer durante a pendência do casamento com o filho da arguida, quer após o divórcio (note-se que os factos vêm a público durante um período de tempo em que os menores estavam com os avós paternos porque B estava ausente em trabalho), não é coerente, nem consentâneo com as regras da experiência e normalidade das coisas, que a mesma tivesse contribuído e sustentado a invenção dos factos dos autos.

O fim da relação dos seus filhos com os avós paternos causou necessariamente a B um transtorno na organização do seu dia-a-dia pois deixou de contar com aquela estrutura de apoio.

Posto isto, não se vê a razão pela qual as testemunhas teriam interesse em imputar tais factos à arguida, caso os mesmos não fossem efetivamente a verdade.

Não se olvida que o relatório de perícia psicológica efetuada à arguida, e junto aos autos a fls. 400 a 422, conclui que “(…) a examinada não padece de nenhuma parafilia ou distúrbio sexual. O instrumento de avaliação do risco da violência aplicado corrobora os de avaliação global da personalidade, apontando para um risco muito reduzido (baixo) ou inexistente, particularmente para situações com contornos semelhantes às alegações que motivaram o exame pericial”.

Porém, a demais prova produzida, nos termos supra expostos, é irrefutável na corroboração do libelo acusatório.

Particularmente relevante é o facto de, desde a data da prática dos factos e não obstante os naturais lapsos de memória inerentes ao decurso do tempo – cerca de cinco anos –, J e DF manterem os respetivos relatos dos acontecimentos, não hesitando, nem demonstrando constrangimento ou arrependimento no seu discurso e/ou atitude.

Também significativo é o estado emocional da J que se mantém instável, o qual é demonstrativo e elucidativo das circunstâncias vividas.

Quanto às consequências na personalidade e vida de JF que os factos objeto dos autos produziram, foram ouvidas as seguintes testemunhas, arroladas em sede de pedido de indemnização civil:

- B, mãe da menor, a qual esclareceu o acompanhamento psicológico que a menor tem desde a data dos factos, o receio que a mesma sente em andar sozinha na rua, a perturbação do sono e os pesadelos recorrentes, que impedem que durma com a luz do quarto desligada, e a recusa em frequentar os locais próximos da casa dos avós paternos, seja em lazer ou em atividades extracurriculares (tendo dado o exemplo de um sarau de ginástica que ocorreu na Quinta do Conde e onde a arguida esteve presente, provocando na menor incapacidade de executar os exercícios e a vontade de abandonar de imediato o local).

- DF, irmão da J, o qual esclareceu o estado de ansiedade que sentiam sempre que iam para casa do pai, devido ao receio de encontrarem a arguida, bem como o medo, o nervosismo, a ansiedade da J, os pesadelos noturnos, o receio de dormir no escuro e a falta de confiança nos outros.

- DM, psicóloga clinica que conhece a menor desde bébe e a acompanha desde a data dos factos tornados públicos, a qual carateriza a J com referência ao seu comportamento antes e depois dos factos. Antes dos factos, a testemunha carateriza a menor como uma criança alegre, brincalhona, bem-disposta e generosa. Após os factos, a J evidencia stress pós-traumático, perturbação do sono grave, receio de andar sozinha na rua e insegura.

As consequências em temos futuros não são certas mas podem ser compatíveis com uma personalidade “borderline”, com uma pessoa com perturbação da sexualidade e com stress pós-traumático.

- AG, avó materna da J, prestou um depoimento emotivo, denotando preocupação quanto ao comportamento atual e futuro da J, mas avaliando as suas reações quanto a determinados factos da vida, que procurou contextualizar e explicar, com objetividade e não adotando uma postura demasiado protetora ou justificante no sentido de considerar J uma “vítima”.

A testemunha, no depoimento prestado, reiterou as mesmas características e comportamentos que já haviam sido concretizados pelas testemunhas anteriores.

Da conjugação dos aludidos depoimentos e considerando que os comportamentos da J relatados são compatíveis com a vivência de uma experiencia traumática como aquela que é objeto destes autos, sendo certo que as reações são potenciadas pelo facto de o “agressor” ser a sua avó, pessoa com quem mantinha uma relação positiva, de afeto e carinho, e da qual ficou privada desde 2010, dúvidas não teve o tribunal em considerar provados os factos alegados no pedido de indemnização civil.

Arroladas pela defesa da arguida, depuseram:

- TG, advogada, visita da casa da arguida e do pai de J e DF há mais de 16 anos, que referiu que o relacionamento entre a arguida e a J processava-se normalmente, com grande afeto, atenção e dedicação, vivendo a arguida com uma grande mágoa e introspeção.

A testemunha referiu que não teria receio de entregar aos cuidados da arguida um filho seu.

Quanto ao estado emocional da J, a testemunha referiu que, em 2013, a sua família, o pai da J e do D e os menores, foram de férias para o Gerês e a J, educada e disponível, era a alegria da mesa.

- O, amiga da arguida há 30 anos e sua vizinha, esclareceu que muitas vezes quer a J, quer o D brincavam com a sua neta Inês, em sua casa, e o relacionamento da arguida com a neta era normal.

- JS, marido da arguida, que referiu ser B a responsável por toda a situação porquanto inventou os factos. Todavia, não conseguiu explicar com clareza, não obstante várias vezes interpelado para o efeito, o porquê dessa certeza e convicção.

A testemunha confirmou, à semelhança das testemunhas da acusação, que J gostava de estar em casa dos avós e que D mostrava-se mais reticente.

A testemunha negou que fosse a arguida a lavar a J no bidé e nega os factos ocorridos no sofá da sala afirmando que estava presente e sentado no local. Todavia, instado sobre os lugares do sofá, as pessoas presentes na sala, as posições ocupadas nos sofás pelas pessoas presentes, a testemunha contradisse-se, ficou confusa e baralhada, evidenciando que efetivamente não estava presente quando tais factos ocorreram.

- M pai da J e do DF e filho da arguida, afirmou que os factos não passam de um equívoco e que é perseguido por B que apenas está interessada em dinheiro. Todavia, a testemunha não negou que, quando confrontou a arguida, a mesma não negou a prática dos factos mas apenas disse que não foi com a intenção que lhe estava a ser imputada e aconteceu na brincadeira.

Fazendo uma análise global e sumária dos testemunhos da defesa, diremos que não são minimamente incompatíveis com os depoimentos das testemunhas de acusação e do pedido de indemnização civil, nem põem em causa a credibilidade que estes mereceram. Como é óbvio, e resulta das regras da lógica e da experiência comum, a arguida não iria praticar na presença das testemunhas que arrolou os factos de que é acusada.

Por outro lado, o facto de TG se referir a J como a alegria da mesa, numas férias de 2013, e ao pai da menor procurar justificar de todas as formas possíveis a razão pela qual a J também em sua casa lhe pediu uma luz de presença no quarto (diz M que foi porque numa noite não encontrou o candeeiro e assustou-se…), não colide com a caracterização da J feita pelas demais testemunhas.

O desequilíbrio psicológico evidenciado pela menor surge, de acordo com as testemunhas, em circunstâncias específicas (não andar sozinha na rua, não dormir de luz apagada, não frequentar locais onde a arguida possa estar) e não tem caráter permanente.

O tribunal não teve, pois, dúvidas em dar como provada a tese da acusação, não só porque o depoimento da ofendida foi merecedor de credibilidade, como também foi corroborado por outros elementos de prova.

Por outro lado, a prova testemunhal produzida, sem ser uma prova direta, conferiu também credibilidade às declarações da menor, bem como a prova pericial consistente no relatório de exame de psicologia forense realizado à J.

A lei processual penal não proíbe o depoimento indireto. Só a admissibilidade do “depoimento de ouvir dizer” justifica que haja um preceito legal (o art.º 129.º do Cód. Proc. Penal) a regular os termos em que pode ser produzido e valorado em julgamento o depoimento indireto.

A regra é a de que a testemunha deve ser inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto (art.º 128.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal), mas não é, de todo, proibido o testemunho de ouvir dizer, desde que se indique a pessoa a quem se ouviu dizer e que essa pessoa seja chamada a depor (1.ª parte do n.º 1 do citado artigo 129.º), o que sucedeu no caso em apreço, ou, mesmo não se fazendo comparecer a fonte do conhecimento dos factos para ser inquirida, isso aconteça por impossibilidade devida a morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (2.ª parte do n.º 1 do mesmo preceito legal).

Como se esclarece no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/99 (DR, II, de 09.11.1999), “…embora o testemunho direto seja a regra, o depoimento indireto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (…).

Depoimento direto é aquele em que a testemunha que o presta revela uma aquisição originária do conhecimento dos factos, ao passo que no depoimento indireto esse conhecimento do depoente é uma aquisição derivada (em segunda mão), não resulta de uma perceção (visual, auditiva, olfativa, etc.) direta e imediata, antes é transmitido por outrem.

Como se escreveu no acórdão do TRP, de 24.09.2008 (www.dgsi.pt), “o critério operativo da distinção entre depoimento direto e indireto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade, o seu depoimento é direto, se não, é indireto”.

No acórdão do TRC, de 02.02.2005 (CJ XXX, Tomo I, 42) lê-se:
“Os depoimentos de testemunhas que ouviram o relato de factos da boca do próprio ofendido, quase de seguida à ocorrência dos mesmos, podem ser valorados pelo tribunal, não constituindo prova proibida”.

Tudo isto para dizer que os depoimentos prestados por B , DF (quanto aos factos que não presenciou) e DM foram valorados pelo tribunal não constituindo prova proibida.

O depoimento de diversas testemunhas oferecidas pela acusação (isento, rigoroso e espontâneo) demonstrou, aliás, que a menor sempre manteve a mesma versão, inalterada e coerente, dos factos, desde a data em que o tornou públicos.

Quanto aos aspetos de ordem subjetiva, sem a colaboração da arguida, que negou os factos, igualmente entendeu o tribunal que se provaram.

É sabido que os elementos subjetivos são apurados em função dos factos objetivos que indiciam a atitude psicológica do agente para com o facto.

Com efeito, as intenções, as vontades, os conhecimentos, as representações mentais, porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente percetíveis, hipostasiáveis. Desse modo, a inerente perceção, nomeadamente para efeitos judiciais, só pode ser alcançada por via da ponderação dos comportamentos exteriorizados que, de um modo mais ou menos conclusivo, demonstrem esses estados psicológicos (nas palavras de Germano Marques da Silva, e na linha de pensamento de Cavaleiro de Ferreira, “a maior parte das vezes os atos interiores não se provam diretamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores.”, Curso de Processo Penal, II, 1999, p. 101).

Pretender o contrário, conduziria a apenas ser possível demonstrar a atitude psicológica do agente para com o facto no caso de confissão. Tal perspetiva afigura-se manifestamente improcedente.

Assim, quanto aos aspetos de ordem subjetiva, socorreu-se o Tribunal dos elementos objetivos disponíveis, chamando ainda à colação a doutrina do acórdão da Rel. do Porto de 23.02.83:quanto à intencionalidade, pertencendo o dolo “à vida interior de cada um”, sendo “portanto de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, como maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”. - cfr. in BMJ n.º 324/620.

Com efeito, a convicção do Tribunal quanto a estes factos, resultou da conjugação de todos os elementos de prova supra enunciados entre si, bem como, com as regras de experiência comum.

Atento tudo o que ficou dito, e acrescido do que não se pode explicar por palavras, os elementos que sempre se tem em conta na valorização judiciária dos depoimentos, e que se prende com as garantias da sua imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a sua verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências e as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio cultural, a linguagem gestual, a interpretação dos olhares, das pausas dos depoentes, tudo foi atendido e ponderado, em ordem a aceitar um sentido e uma versão dos factos (a da acusação).

Procedemos à audição da gravação dos elementos de prova pessoal produzidos em audiência com relevo para a pretensão recursiva e tivemos em consideração as declarações para memória futura, tomadas à menor ofendida JF, e transcritas a fls. 192 a 212.

Aparentemente, a recorrente não põe em causa a legalidade, em tese geral, da tomada de declarações para memória futura relativamente à menor JF.

De todo o modo, sempre diremos que o nº 2 do art. 271º do CPP prescreve a obrigatoriedade da tomada de declarações para memória futura, na fase de inquérito, ao ofendido menor por um crime contra a liberdade e autodeterminação sexuais, desde que não tenha, entretanto, atingido a maioridade.

Por sua vez, o nº 8 do mesmo artigo estatui que a audição para memória futura, em momento processual anterior, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, se este for ainda possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de quem tenha de prestá-lo.

Contudo, se bem compreendemos, esta segunda inquirição, pelo menos nos casos abrangidos na previsão do nº 2 do normativo em referência, não é obrigatória, mas apenas facultativa, já que o procedimento das declarações para memória futura tem por finalidade a preservação, tanto quanto possível, da dignidade e da integridade moral e física do menor, as quais poderão ser mais facilmente colocadas em perigo por uma inquirição em audiência, mesmo com as restrições de publicidade previstas na lei.

Nesta ordem de ideias, a tomada de depoimento em audiência a menor ofendido por crime atentatório de bem jurídico conotado com a sexualidade, que tenha sido previamente ouvido para memória futura, apenas se justificará se o Tribunal de julgamento, oficiosamente ou por iniciativa de algum dos sujeitos processuais, decidir que a mesma é indispensável à descoberta da verdade ou à boa decisão da causa.

Ora, não há notícia nos presentes autos de que alguém, mormente a defesa da defesa da arguida tenha procurado accionar, relativamente à menor JF, o procedimento previsto no nº 8 do art. 271º do CPP.

Neste contexto, entendemos que não deverá ser denegado ou diminuído, conforme a recorrente parece pretender, o poder de convicção inerente ao depoimento prestado pela menor ofendida JF, apenas por ter sido produzido com preterição, legalmente admitida, do princípio da oralidade e da imediação, que marca decisivamente o processo penal na fase de julgamento.

A recorrente censura ao depoimento da menor ofendida o não ter sido prestado de forma espontânea, atento o lapso de tempo decorrido entre os factos sobre que versou e a sua prestação.

Conforme consta da matéria provada, os factos praticados pela arguida em detrimento da menor JF, pelos quais ela foi condenada em primeira instância ocorreram, no essencial, entre 21 e 27 do mês de Fevereiro de 2010, tendo a mãe da menor e sua representante legal deles tomado conhecimento no dia 28 do mesmo mês (vd. ponto 18 da matéria assente).

Como pode verificar-se a fls. 2, a queixa que deu origem ao processo foi apresentada em 5/7/10 pela mãe da menor ofendida, entretanto constituída assistente e demandante civil nos autos.

A inquirição para memória futura da menor JF foi levada a efeito em 13/1/11, conforme o respectivo auto a fls. 142 e 143.

Atento o lapso de tempo decorrido entre a ocorrência dos factos participados e a apresentação da queixa que iniciou o processo (mais de 4 meses), a urgência na tomada de declarações à menor, a fim de garantir a sua espontaneidade e autenticidade, fica, de algum modo, relativizada, já que, se tivesse sido intenção da queixosa condicionar ou adulterar o depoimento da menor sua filha, há muito que teria tido oportunidade de o fazer.

Neste contexto, admite-se como legítimo que a determinação do momento em que se procedeu à tomada de declarações para memória futura à menor ofendida tenha obedecido a um juízo de oportunidade investigativa, por parte de entidade que efectuou a investigação, que a nós não compete sindicar.

Em todo o caso, não é pela simples possibilidade abstracta de a queixosa (ou quem quer que seja) ter de alguma forma influído no conteúdo do depoimento prestado pela menor ofendida que deve ser negado a esse meio de prova poder de convicção.

A credibilidade do depoimento da menor JF (como, aliás, a de qualquer meio de prova) terá de ser ajuizada em função do seu próprio conteúdo e mediante o confronto com outros meios de prova disponíveis e os factos já assentes no processo.

No caso em presença, a convicção do Tribunal «a quo», para a prova dos factos integradores do crime por cuja prática a arguida foi condenada em primeira instância, assentou, em termos a bem dizer exclusivos, no depoimento da menor ofendida (como frequentemente acontece), a não ser, quanto ao episódio descrito nos pontos 14 e 15 da matéria assente, o depoimento da testemunha DF, irmão de J, que também o presenciou.

Neste contexto, as declarações da assistente B, o depoimento de DF e o depoimento da psicóloga DM desempenham a função de elementos coadjuvantes, no processo de formação da convicção do Tribunal «a quo».

Tais declarações e depoimentos revestem a natureza de testemunhos directos, não em relação aos factos que preenchem o crime, que os seus autores, com a já aludida excepção, relativa à testemunha DF, não presenciaram, mas sim a outros por eles percepcionados e que conferem solidez ao relato feito pela menor JF.

Em sede de julgamento, a arguida arrolou testemunhas com a finalidade de fazer prova da sua versão dos factos ou, pelo menos, contrariar a prova em que se apoiava a acusação.

O Tribunal «a quo» não reconheceu poder de convicção aos depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa da arguida – pelo menos na medida em que contrariaram a factualidade articulada na acusação e que foi dada como provada – por razões que ficaram expressas no trecho da fundamentação da sentença recorrida, transcrito supra, e que se nos afiguram razoáveis, racionais e compatíveis com os critérios que devem orientar a apreciação da prova.

Na motivação do recurso e suas conclusões, a arguida não fez apelo aos depoimentos das testemunhas por si arroladas, conformando-se, implicitamente, com a sua ineficácia.

De todo o modo, há uma hipótese que foi recorrentemente evocada nos depoimentos das testemunhas próximas da arguida e que esta veio esgrimir em oposição ao juízo probatório formulado pelo Tribunal de julgamento e que reside, em síntese, na eventualidade de a mãe da menor JF ter de alguma forma urdido as imputações formuladas no depoimento desta e que depois vieram a ser recolhidas na acusação deduzida contra arguida e dadas como provadas em primeira instância, sem que estas correspondessem à verdade, com a finalidade de obter uma vantagem monetária, materializada na indemnização que veio a ser arbitrada.

Ora, tal construção foi desmontada pelo Tribunal com uma argumentação que se nos afigura perfeitamente lógica e merece toda a nossa concordância.

A esse respeito, diremos ainda que é verdade que a assistente B, em representação da sua filha menor JF, um pedido de indemnização civil contra a arguida, pelo que, pelo menos a partir de então, tem interesse objectivo no desfecho do processo.

No entanto, toda a prova produzida, aponta inequivocamente no sentido de que, até à ocorrência dos factos por que a arguida responde e ao seu conhecimento pela assistente, a arguida e a assistente mantinham um bom relacionamento, que se manifestava, designadamente, no facto de os filhos da segunda, na altura crianças, permanecerem ou pernoitarem em casa da primeira, sua avó paterna.

Nessa altura, a assistente confiava plenamente na arguida para cuidar dos seus filhos menores e estes gostavam de estar com a avó, sobretudo, a filha mais nova JF.

Também resulta da prova que a assistente tinha uma vida profissional intensa, com deslocações ao estrangeiro.

Neste contexto, a arguida funcionava, do ponto de vista da assistente e para empregar a expressão utilizada pelo Tribunal «a quo», como uma relevante «estrutura de apoio» no processo de cuidar dos seus filhos menores, que estavam entregues ao cuidado exclusivo da mãe, desde o divórcio entre esta e o seu ex-marido, filho da ora arguida.

Assim sendo, não se compreende, a que título seja, que a assistente tivesse posto fim a um contexto relacional, que era do seu interesse e dos seus filhos que se mantivesse, inventando os factos imputados à arguida ou atribuindo a um comportamento inócuo desta uma dimensão e uma conotação que objectivamente não tinha, com o fito numa indemnização cujo valor estaria sempre dependente das áleas do processo e cuja cobrança efectiva seria por demais incerta.

Como tal, a hipótese factual que nos vem ocupando não faz o mínimo de sentido, à luz da experiência comum e da normalidade das coisas, mesmo se tivermos em consideração que as pessoas, em situações de conflito, tendem a agira de forma não totalmente racional.

A recorrente mobilizou em apoio da sua pretensão o resultado da perícia psicológica que lhe foi feita, cujo relatório figura fls 400 a 422, que ela critica ao Tribunal «a quo» ter ignorado, ao apreciar a prova pessoal.

Ora, como pode ver-se na fundamentação transcrita, o Tribunal de julgamento não deixou de tomar em consideração o aludido relatório pericial, mas, provavelmente, não terá retirado dele a conclusão probatória que, na opinião da recorrente, o mesmo imporia.

Com interesse para questão em discussão, o relatório pericial em causa concluiu que arguida não padece de parafilia ou distúrbio sexual e que o risco de repetição de condutas da mesma natureza daquela pela qual responde no presente processo é muito reduzido.

Tendo a perícia psicológica apurado que a arguida não sofre de qualquer patologia que a torne propensa a incorrer em condutas sexualmente violentas ou abusivas, daí não se segue, necessariamente, que ela não possa ter praticado os factos por que foi acusada e condenada em primeira instância, tal como eles emergem da restante prova.

A arguida prestou declarações sobre os factos, que lhe foram imputados, mas a sua postura em relação a estes não é isenta de ambiguidade, pois nega tê-los praticado, mas, ao mesmo tempo, admite que, «se fez alguma coisa, foi por brincadeira».

Tudo visto, não vislumbramos razão válida, à luz dos critérios orientadores da apreciação da prova, para não atribuir poder de convicção ao depoimento prestado para memória futura, nos termos em que o Tribunal «a quo» o fez, o mesmo se aplicando ao depoimento prestado em audiência por DF, quanto aos factos por ele presenciados.

Reportando-nos agora ao alegado pela arguida no sentido de o Tribunal de julgamento ter violado, ao emitir o juízo probatório por ela questionado, todo um conjunto de normas e de princípios de direito processual penal, diremos que o art. 127º do CPP define o regime geral de apreciação da prova.

Contudo, a emissão pelo Tribunal de um juízo probatório erróneo, dentro da margem de livre apreciação prevista pelo art. 127º do CPP, não comporta uma violação autónoma desta norma legal, mas se reconduz a uma pura questão de facto.

Quanto à invocada preterição do valor da prova pericial, previsto no nº 1 já se verificou que o juízo pericial emitido no relatório da perícia psicológica feita à arguida, junto a fls. 400 a 422, não exclui que ela possa ter praticado os factos por que foi acusada e que foram julgados provados na sentença recorrida, pelo que tal preterição não existiu.

Relativamente ao princípio da verdade material a que se refere o nº 1 do art. 340º do CPP, dir-se-á que a arguida, na motivação do recurso, não indicou qualquer facto relevante para a justa decisão da causa, que o Tribunal «a quo» tivesse deixado de averiguar ou qualquer meio de prova, necessário à descoberta da verdade, cuja produção tenha sido omitida, nem nós os descortinamos.

Aquilo que a recorrente exprimiu na motivação é antes a discordância do juízo probatório, que recaiu sobre certos factos, o que não é a mesma coisa.

Finalmente, o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no nº 2 do art. 32º da CRP tem como corolário, ao nível da apreciação da prova, o postulado «in dubio pro reo», que obriga o Tribunal a julgar não provado qualquer facto constitutivo ou agravante da responsabilidade criminal do arguido, quando sobre o mesmo subsista uma dúvida razoável, racional e insanável.

Temos entendido que só se verifica uma dúvida justificativa do funcionamento da regra «in dubio pro reo», quando, depois de efectuado pelo julgador o exame crítico da prova, permaneça em aberto alguma hipótese factual alternativa à probanda, que não seja de excluir por contrária aos critérios orientadores da valoração probatória, a saber a experiência comum, a normalidade das coisas e a lógica geralmente aceite.

No caso apreço, a análise da prova efectuada pelo Tribunal «a quo» e por nós secundada e de molde a não deixar espaço lógico para outra hipótese factual, quanto aos factos questionados pela recorrente, que não aquela que foi julgada provada.

Como tal, a sentença sob recurso tão pouco in correu na preterição do princípio da presunção da inocência e da regra «in dubio pro reo», que lhe está associada.

Consequentemente, terá de julgar-se improcedente a impugnação da decisão sobre aa matéria e, com ela, a totalidade do recurso.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Notifique.

Évora, 24/5/16 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)
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