Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3438/16.8T8FAR.E1
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
QUESTÃO NOVA
NEGLIGÊNCIA
SUBSÍDIO DE NATAL
Data do Acordão: 12/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Em processo de contra-ordenação laboral, a admissibilidade de recurso para a Relação deve aferir-se em função da coima concretamente aplicada a cada infracção, e não em função do montante da coima única aplicada em cúmulo jurídico.
II – Colocando os recorrentes apenas no recurso para a Relação que sejam responsáveis pelo pagamento dos créditos devidos aos trabalhadores, trata-se de uma questão nova, pelo que da mesma não é de conhecer, sendo certo, também, não ser de conhecimento oficioso.
III – Não pode afirmar-se, sem mais, que a arguida tenha agido com falta de cuidado ou com falta de diligência, ou ainda que tenha assumido um comportamento culposo que levou a não pagar o subsídio de Natal de 2012 aos trabalhadores e, por consequência, não pode concluir-se que tenha cometido a contra-ordenação decorrente desse não pagamento, por falta de verificação do elemento subjectivo da infracção, se decorre da matéria de facto que pelo menos a partir de 2010 a arguida apresentava significativos resultados líquidos negativos, que os capitais próprios vieram anualmente a decrescer (€ 413.087,25 em 2010, € 205.518,20 em 2011 e € 23.011,41 em 2012) e, inversamente, o passivo a aumentar (€ 58.7841,21 em 2010, € 811.838,71 em 2011 e € 865.164,54 em 2012), constatando-se ainda que no ano de 2012 (ano do pagamento do subsídio de Natal em falta) tinha um capital próprio (de € 23.011,41) inferior ao devido por subsídio de Natal (€ 32.897,00) – que em 2013 correu em relação a si um processo especial de revitalização (PER) e no ano de 2014 veio a ser declarada a insolvência da mesma.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3438/16.8T8FAR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
BB, C.R.L. e CC, devidamente identificados nos autos, impugnaram judicialmente – sendo este na qualidade de responsável solidário – a decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho (Unidade Local de Faro) que condenou aquela por infracção (i) ao disposto no artigo 263.º do Código do Trabalho (falta de pagamento a alguns trabalhadores do subsídio de Natal de 2012), na coima de 32 UC e (ii) ao disposto no artigo 278.º, n.ºs 2 e 4, também do Código do Trabalho (falta do pagamento da retribuição devida a alguns trabalhadores no ano de 2013 e dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2014), na coima de 7 UC, e em cúmulo jurídico na coima de € 3.264,00, correspondente a 32 UC.
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Por decisão de 05-05-2017, da Comarca de Faro (Juízo do Trabalho de Faro – J2) foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão administrativa impugnada.
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De novo inconformados, os recorrentes interpuseram recurso para este Tribunal da Relação, tendo na respectiva motivação formulado as conclusões que se transcrevem:
«I – Para além dos factos dados como provados pelo douto tribunal ad quo, deveria este ter também dado como provados os factos plasmados de ponto 5 a ponto 10, inclusive, das alegações supra. Isto porque,
II – Tal se impunha das regras da experiência comum da vida e da análise crítica do conjunto da prova carreada para os autos. Nomeadamente,
III – Dos autos de notícia e dos docs. nºs 6 e 7 juntos pela arguida e pelo responsável solidário na impugnação judicial da coima aplicada. Pelo que,
IV – Deveria a ACT ter reclamado os créditos sub iudice resultantes da coima no processo de insolvência, como fizeram todos os outros credores. E,
V – A isso obriga o CIRE. Nomeadamente,
VI – Os seus artigos 88º e 128º.
VII – Se o crédito do ACT só passou a existir após a decisão administrativa de aplicar a coima sub iudice – em 08/11/2016, o património responsável por tal crédito é a massa insolvente. Pelo que,
VIII – Deveria o mesmo (crédito) ser exigido à massa e não à arguida/insolvente e ao responsável solidário (artigos nºs 51º e 219º do CIRE). Consequentemente,
IX – Não pode a decisão de aplicação da coima constituir título executivo nem relativamente ao responsável solidário nem à arguida.
X – Sem condescender, a douta decisão recorrida, violou o disposto no artigo 8º do Regime Geral das Contra Ordenações. Dado que,
XI – A arguida não agiu com culpa, em qualquer das suas modalidades.
XII – Por outro lado, sem condescender, nunca o douto tribunal recorrido deveria ter decidido manter a decisão administrativa impugnada relativamente ao responsável solidário. Dado que,
XIII – O douto tribunal deu como provado que o dito responsável civil fez parte da direcção desde 01/02/2013, tendo cessado as suas funções a 05/02/2013.
XIV - Nunca CC, à luz da lei, poderia ser responsável solidário pelo pagamento da coima referente aos subsídios de Natal não pagos relativamente ao ano de 2012.
XV – Ao decidir como decidiu, o douto tribunal fez aplicação incorrecta, na parte que diz respeito ao subsídio de Natal, das disposições conjugadas nos artigos 262º nº 1 e 551º nº 3, ambos do Código do Trabalho.
XVI – Pelo exposto, deve, ao caso sub iudice, ser aplicado o preceituado no artigo 8º nº 1 do R.G.C.O., bem como nos artigos 88º e 128º do CIRE e ainda nos artigos 262º nº 1 e 551º nº 3 do Código do Trabalho.
Termos em que, com o douto suprimento de V.Excelências Meritíssimos Juízes Desembargadores, devem revogar a decisão ora recorrida, absolvendo da coima quer o arguido quer o responsável solidário, pois, só assim deliberando se fará Justiça.
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Por despacho de 13-06-2017, o recurso foi admitido na 1.ª instância, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Ainda na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, a pugnar pela sua improcedência, assim concluindo a respectiva motivação:
«A. A sem razão da recorrente vem largamente demonstrada na decisão administrativa e na sentença.
B. Esta merece total confirmação».
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Recebidos os autos neste tribunal, presentes à Exma. Procuradora-Geral Adjunta neles emitiu parecer, que não foi objecto de resposta, no qual se pronunciou pela improcedência do recurso.
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II. Objecto do recurso
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que os recorrentes extraem da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas) e do artigo 50.º, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro (diploma que estabelece o regime jurídico processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social)].
Como questão de conhecimento oficioso, coloca-se uma, digamos que prévia, referente à inadmissibilidade do recurso quanto à infracção ao disposto no artigo 278.º, n.ºs 2 e 4, do Código do Trabalho, ou seja, por falta do pagamento da retribuição devida a alguns trabalhadores no ano de 2013 e nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2014.
Já se deixou referido que em relação a tal infracção foi a arguida sancionada com a coima de 7 UC (€ 714,00).
O artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, estipula as decisões judiciais que admitem recurso para o Tribunal da Relação: interessam ao caso os n.ºs 1 e 3 do referido artigo, sendo que o n.º 2 regula situações em que é admissível recurso excepcional para a Relação (quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência), situações essas não invocadas pelos recorrentes, pelo que não há que apreciar as mesmas.
E dentro das situações previstas no n.º 1 do artigo 49.º, pelo que resulta do próprio relatório supra, só releva para o caso a alínea a), que determina a admissibilidade de recurso para o Tribunal da Relação quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente.
Retenha-se, pois, que de acordo com a referida alínea só é admissível recurso para a Relação se for aplicada uma coima de valor superior a 25 UC (correspondentes a € 2.550,00, uma vez que cada UC equivale a € 102,00).
Todavia, com vista à resolução desta questão, importa também atentar no que dispõe o n.º 3 do mesmo artigo: «Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.».
Isto é: no n.º 3 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, expressamente se prevê que se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites.
Refira-se que o mesmo regime resulta do artigo 73.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO).
Daqui decorre que a admissibilidade de recurso face ao valor da coima se há-de aferir em função da coima concretamente aplicada a cada infracção, e não em função do montante da coima única aplicada em cúmulo jurídico.
Este tem sido, de resto, o entendimento uniforme deste tribunal, como podem ver-se, entre outras, as decisões sumárias de 20 de Março de 2012 (Proc. n.º 350/11.0TTEVR.E1), de 21-06-2012 (Proc. n.º 405/11.1TTSTB.E1) e de 13-08-2013 (Proc. n.º 271/12.0TTEVR.E1).
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-10-2012 (Proc. n.º 602/11.0TTGMR.P1, disponível em www.dgsi.pt), «o legislador, ao dispor, como dispôs, no nº 3 do art. 49º da Lei 107/2009, de 14.09, não poderia deixar de saber que, contemplando a decisão condenatória várias infracções, estas não poderiam deixar de ser objecto de cúmulo jurídico e, por consequência, da aplicação de uma coima única encontrada a partir das coimas parcelares correspondentes a cada uma das infracções cometidas, pelo que a citada norma reporta-se ao valor da coima parcelar.».
Ora, no caso em apreciação, a coima de 7 UC por falta de pagamento pontual da retribuição é manifestamente inferior a 25 UC, irrelevando para tal fim, como se disse, o montante da coima única.
Assim, não pode o recurso ser admitido em relação a tal infracção.
Nesta sequência, rejeita-se o recurso quanto à contraordenação por infracção ao disposto no artigo 278.º, n.ºs 2 e 4, do Código do Trabalho, admitindo-se o mesmo apenas por infracção ao disposto no artigo 263.º do mesmo compêndio legal.
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Ainda em relação ao objecto do recurso, extrai-se das conclusões da motivação de recurso que os recorrentes sustentam que não são responsáveis pelo pagamento dos créditos salariais apurados nos autos.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 564.º do Código do Trabalho, sempre que a contra-ordenação laboral consistir na omissão de um dever, o pagamento da coima não dispensa o infractor do seu cumprimento, se este ainda for possível; e nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, a decisão que aplica a coima deve conter a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efectuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima, acrescentando-se no n.º 3 do mesmo artigo que em caso de não pagamento, a decisão em causa serve de base à execução efectuada nos termos do artigo 89.º do regime geral das contra-ordenações, aplicando-se as normas do processo comum de execução para pagamento de quantia certa.
Ou seja, da norma legal em causa extrai-se que apurando-se no processo de contra-ordenação a existência de créditos laborais devidos aos trabalhadores, os mesmos deverão ser aí pagos ou, não o sendo, o Estado (naturalmente por intermédio do Ministério Público) intentará a competente execução para cobrança de tais créditos.
Os recorrentes põem em causa que sejam responsáveis pelos pagamentos de tais créditos: porém, só o fazem no presente recurso, sendo certo que a decisão recorrida não abordou tal problemática.
Ora, não estando em causa questão de conhecimento oficioso ou, de qualquer modo, de uma nulidade insanável (cfr. n.º 10 do artigo 410.º do Código de Processo Penal) –, importará ter presente que os recursos se destinam a apreciar as questões que tenham sido submetidas à apreciação do tribunal a quo e não a criar decisões sobre questões novas, entendendo-se estas como aquelas que, colocadas ao tribunal de recurso, não tenham merecido pronúncia por parte do tribunal a quo, sendo indiferente que essa omissão provenha de insuficiência alegatória da parte, nos seus articulados, ou do mero silêncio do tribunal a quo, desde que, nesta última situação, não tenha sido tempestivamente arguido o vício de omissão de pronúncia.
Isto é, o recurso tem por objecto, pela sua natureza, uma determinada decisão – a decisão recorrida – e a correcção de erros ou vícios de que a mesma enferme, não lhe cabendo conhecer de questões novas que naquela não foram conhecidas.
No caso, reitera-se, o tribunal a quo não se pronunciou sobre tal matéria, e não foi arguida a nulidade da decisão com tal fundamento, pelo que a questão em causa se apresenta aqui como questão nova.
Daí que não cumpra, aqui e agora, conhecer da mesma.
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Excluídas as matéria em causa do objecto do recurso, este encontra-se então delimitado pelas seguintes questões:
1. saber se existe fundamento para alterar a matéria de facto;
2. se é de imputar a título negligente as contra-ordenações à arguida/recorrente Cooppofa – Cooperativa de Consumo Popular de Faro;
2. se CC deve responder solidariamente pela coima.
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III. Matéria de facto
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade:
A) A arguida BB, CRL tem sede na Rua …, em Faro;
B) Neste local, a arguida mantinha ao seu serviço, sob as suas ordens e direcção e no exercício da sua actividade as trabalhadores …., …, …., …, …, …, …, …, … e…
C) As trabalhadoras …., …, …., …, …, …, …, …, … e… comunicaram à arguida, através de cartas registadas com aviso de recepção, a suspensão do contrato de trabalho que haviam celebrado com a mesma, com fundamento na falta de pagamento pontual do subsídio de Natal de 2012, e retribuições em dívida referentes a Fevereiro, Março, Abril e Dezembro de 2013, Janeiro e Fevereiro de 2014;
D) O montante das retribuições referentes ao trabalho prestado pelos trabalhadores …., …, …., …, …, …, …, …, … e…deveria estar à disposição dos mesmos, respectivamente, nos últimos dias de cada mês;
E) A arguida não colocou à disposição dos trabalhadores trabalhadoras …., …, …., …, …, …, …, …, … e… o subsídio de Natal de 2012, e retribuições em dívida referentes a Fevereiro, Março, Abril e Dezembro de 2013, Janeiro e Fevereiro de 2014;
F) A arguida foi notificada, na pessoa da sua trabalhadora …, em 18.03.2014, para proceder à entrega na unidade de Faro da Autoridade Administrativa, dos comprovativos do pagamento das retribuições e subsídios e emissão e entrega às trabalhadoras do Modelo GD018-DGSS;
G) Na sequência de tal notificação, a arguida apresentou o apuramento dos montantes em dívida e procedeu à emissão do Modelo GD018-DGSS contendo nestes o reconhecimento do atraso no pagamento do subsídio de Natal de 2012 a 38 trabalhadores e retribuições do ano de 2013, Janeiro e Fevereiro de 2014 a 43 trabalhadores;
H) A título de retribuições do ano de 2013, Janeiro e Fevereiro de 2014 a 43 trabalhadores, a arguida deve € 98.158,00;
I) A título de subsídio de Natal de 2012, a arguida deve a 38 trabalhadores € 32.897,00;
J) Tendo em conta os anos em que exerce a sua actividade e o número de trabalhadores que tem ao seu serviço, tem capacidade técnica e organizativa para se informar e cumprir as disposições que lhe são legalmente impostas, nomeadamente as regras relativas ao vencimento dos créditos remuneratórios e subsídios dos trabalhadores (este facto é eliminado infra);
K) Relativamente à arguida BB correu termos um Processo Especial de Revitalização com o nº. 1511/13.3TBFAR, no extinto Tribunal Judicial de Faro;
L) Por sentença datada de 25.03.2014, foi a arguida BB declarada insolvente no âmbito do Processo Nº. 645/14.1TBFAR do mesmo Tribunal Judicial de Faro;
M) Em 11.07.2014 foi publicada a homologação do Plano de Insolvência;
N) A sociedade arguida apresentou em 2013 um volume de negócios de € 973.405,00
O) No relatório relativo a 2010, a mesma apresentou um resultado líquido negativo de e 148.144,11, um total de capital próprio de € 413.087,25 e um passivo de € 587841,21;
P) No relatório relativo a 2011 apresentou um resultado líquido negativo de € 208.559,09, um total de capital próprio de € 205.518,20 e um passivo de € 811.838,71;
Q) No relatório relativo a 2012 apresentou um resultado líquido negativo de € 182.551,83, um total de capital próprio de € 23.011,41 e um passivo de € 865.164,54;
R) Em reunião da direcção no dia 21 de Fevereiro de 2014, foi deliberado que a arguida se iria apresentar à insolvência.
S) CC faz parte da direcção da arguida desde 01.02.2013 só tendo cessado em 05.02.2014.
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IV. Fundamentação de direito
1. Da impugnação da matéria de facto
Como resulta das conclusões da motivação de recurso, os recorrentes pretendem que sejam aditados vários factos à matéria que assente ficou: tratam-se de factos referentes, no essencial, à sua situação económica-financeira e à impossibilidade de cumprir os compromissos para com os credores; alguns desses factos, como os referentes aos resultados líquidos dos anos de 2012 já constam, de resto, da matéria de facto provada.
Para a pretendida alteração sustentam os recorrentes que [t]al se impunha das regras da experiência comum da vida e da análise crítica do conjunto da prova carreada para os autos” (conclusão II).
De acordo com o que estatui o artigo 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro – que, recorde-se, estabelece o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social –, os Tribunais da Relação apenas conhecem da matéria de direito, salvo as questões de conhecimento oficioso que decorrem do artigo 410.º do Código de Processo Penal (em suma, insuficiência para a decisão da matérias de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório n apreciação da prova).
Ora, a pretendida alteração da matéria de facto não se enquadra na referida norma legal, pelo que a mesma não pode obter acolhimento.
Entende-se, porém, face à leitura da matéria de facto, que o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova quanto a um desses factos [artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP].
Como é sabido, ocorre o referido vício quando existe um erro de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão: as provas revelam claramente num sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela algum elemento.
Escrevem Simas Santos e Leal Henriques (Recursos em Processo Penal, 7.ª Edição, 2008, Rei dos Livros, pág. 77) que para se considerar a existência deste vício é necessário que se verifique uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, ou seja, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que, efectivamente, se provou ou não provou, seja que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável: “há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”.
Apreciemos então a matéria de facto relevante, numa sequência lógica e cronológica, o que torna mais facilmente apreensível o erro notório quanto a um dos factos:
- No relatório relativo a 2010, a sociedade arguida apresentou um resultado líquido negativo de e 148.144,11, um total de capital próprio de € 413.087,25 e um passivo de € 58.7841,21 [alínea O)];
- No relatório relativo a 2011 apresentou um resultado líquido negativo de € 208.559,09, um total de capital próprio de € 205.518,20 e um passivo de € 811.838,71 [alínea P)];
- No relatório relativo a 2012 apresentou um resultado líquido negativo de € 182.551,83, um total de capital próprio de € 23.011,41 e um passivo de € 865.164,54 [alínea Q)];
- Em relação à arguida correu termos em 2013 um processo especial de revitalização (PER), tendo nesse ano um volume de negócios de € 973.405,00 [alíneas K) e N)];
- Em 21 de Fevereiro de 2014 a direcção da arguida deliberou a apresentação desta à insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença de 25-03-2014.
Pois bem: da referida matéria de facto decorre que pelo menos a partir de 2010 a arguida apresentava significativos resultados líquidos negativos, que os capitais próprios vieram anualmente a decrescer (€ 413.087,25 em 2010, € 205.518,20 em 2011 e € 23.011,41 em 2012) e, inversamente, o passivo a aumentar (€ 58.7841,21 em 2010, € 811.838,71 em 2011 e € 865.164,54 em 2012).
Note-se, por exemplo, que em relação ao ano de 2012, ano em que devia ter pago o subsídio de Natal em causa nos autos e que determinou o levantamento da infracção (cfr. n.º 1 do artigo 263.º do Código do Trabalho) tinha um capital próprio de € 23.011,41 – inferior, portanto, aos € 32.897,00 de subsídio de Natal que não pagou – e um passivo de € 865.164,54.
E como decorrência dessa muito precária situação económico-financeira, diremos até agonizante, em 2013 correu termos um processo especial de revitalização que, não tendo obtido êxito, culminou com o pedido e subsequente declaração de insolvência em 2014.
Perante este quadro fáctico, não se alcança como se possa concluir – como se concluiu na alínea J) da matéria de facto – que a arguida tinha capacidade para cumprir as obrigações referentes ao subsídio devido aos trabalhadores: o que resulta do relatório da arguida referente aos anos de 2010 a 2012 é precisamente o contrário, a impossibilidade da arguida cumprir a sua obrigação de pagamento dos subsídios aos trabalhadores, tanto assim que logo no ano seguinte – 2013 – correu em relação a si um processo de revitalização, e no ano de 2014 se apresentou à insolvência, a qual veio a ser decretada logo em 25-03-2014.
Assim, tendo em conta que a matéria de facto em apreço aponta decisivamente em sentido contrário à (ilação) que consta da alínea J) da mesma matéria de facto – no sentido de que a arguida tinha capacidade para proceder ao pagamento dos subsídios aos trabalhadores –, tendo presente o disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, elimina-se este “facto”.
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2. Do cometimento, ou não, pela arguida da contra-ordenação
A decisão recorrida concluiu que a arguida ao não proceder ao pagamento do subsídio de Natal de 2012 aos trabalhadores nela referidos cometeu a contra-ordenação em causa e, por consequência, condenou-a na coima de € 3.264,00.
Adiante-se desde já que não acompanhamos tal entendimento.
Expliquemos porquê.
Importa ter presente que nos termos do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (aqui aplicável subsidiariamente), só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
E de acordo com o disposto no artigo 548.º do CT, constitui contra-ordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima; nas contra-ordenações laborais a negligência é sempre punível (artigo 550.º do mesmo compêndio legal).
A negligência consubstancia-se na falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei (artigo 15.º do Código Penal), mais precisamente, no que às contra-ordenações diz respeito, reside na conduta do agente ao omitir um dever de cuidado a que estava obrigado por lei.
Como se assinalou no acórdão deste tribunal de 09-06-2016 (Proc. n.º 222/16.2T8EVR.E1, disponível em www.dgsi.pt), o elemento subjetivo nas contraordenações, fora os casos de dolo, materializa-se na factualidade imputada ao agente a quem incumbia observar determinado procedimento.
Ora, no caso em apreciação afigura-se pacífico – face aos factos provados sob as alíneas C), E) e G) – que se verifica o elemento objectivo da contraordenação em causa: com efeito, a própria arguida não põe em causa que não tenha pago o subsídio de Natal de 2012 aos trabalhadores em causa.
E quanto ao elemento subjectivo?
Ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, não se lobriga como possa o mesmo ter-se por verificado.
Perante a já descrita situação económico-financeira da arguida – em que no ano de 2012 (ano do pagamento do subsídio de Natal em falta) tinha um capital próprio (de € 23.011,41) inferior ao devido por subsídio de Natal (€ 32.897,00) e tinha um passivo de € 865.164,54 – não se vê que falta de cuidado a mesma possa ter tido, ou com que falta de diligência tenha actuado, ou ainda que comportamento culposo possa ter assumido que a tenha levado a não pagar o subsídio de Natal de Natal em causa.
Aliás, é do conhecimento comum que sobretudo a partir do ano de 2012 se vivenciou uma crise económica que, infelizmente, afectou muitas empresas, assim como muitas famílias, e, enfim, de um modo geral o País, e que impossibilitou que muitas das respectivas obrigações pecuniárias fossem pontualmente cumpridas.
Foi, certamente, o que se verificou com a arguida: não se põe em causa que ela sabia, como qualquer outro empregador, que era sua obrigação pagar o subsídio de Natal dos trabalhadores; no entanto, para cometer a infracção não basta saber qual é a sua obrigação: é preciso mais, é também preciso que a empregadora possa cumprir essa obrigação.
Ora, no caso, perante a matéria de facto, verifica-se que a arguida não tinha possibilidade de cumprir essa obrigação; isto é, tendo em conta que a punição da contra-ordenação depende da prova de culpa do agente da infração (artigo 8.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, aplicável ex vi artigo 549.º do Código do Trabalho), no caso o comportamento da arguida não se pode considerar culposo.
Nesta sequência, impõe-se revogar a decisão recorrida, no que à contra-ordenação em causa diz respeito, e dela absolver a arguida/recorrente.
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3. Da responsabilização solidária do administrador/recorrente pela coima
O n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho, estabelece que se o infractor for uma pessoa colectiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respectivos administradores, gerentes ou directores; não se trata, pois, de imputar a estes qualquer solidariedade quanto à infracção, mas apenas a solidariedade quanto ao pagamento da coima, de forma a garantir o pagamento desta face a quaisquer riscos decorrentes do funcionamento da pessoa colectiva.
Ora, no caso em apreciação, sendo a arguida absolvida da coima correspondente à infracção do não pagamento do subsídio de Natal de 2012 aos trabalhadores, consequentemente terá também que ser absolvido o responsável solidário, aqui recorrente, CC.
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V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Por inadmissibilidade legal, não conhecer do recurso quanto à infracção ao disposto no artigo 278.º, n.º 1 e 4, do Código do Trabalho (falta de pagamento pontual da retribuição aos trabalhadores);
2. Julgar procedente o recurso quanto à infracção ao disposto no artigo 263.º, n.ºs 1 e 3, do Código do Trabalho, e, em consequência, absolve-se a arguida BB, bem como o responsável solidário CC, da respectiva coima (no montante de € 3.264,00).
Sem custas, por não serem devidas.
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(Documento elaborado e integralmente revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).
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Évora, 06 de Dezembro de 2017
João Luís Nunes (relator)
Paula do Paço

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[1] Relator: João Nunes; Adjunta: Paula do Paço.