Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
569/10.1TBVRS.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
CAUSA PREJUDICIAL
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:

O procedimento administrativo consagrado no artigo 17º, da Lei n 54/2005, de 15 de novembro não constitui uma causa prejudicial, legitimadora da suspensão da instância de processo judicial pendente.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

Na presente ação declarativa de simples apreciação, intentada por BB e mulher, CC[1], residentes, outrora, em Vila Real de Santo António, e FF, com domicílio profissional em Lisboa, contra o Estado, pedindo que se reconheça “(….) nos termos do nº 1, do art. 15 da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, o direito de propriedade dos AA. sobre uma parcela da Ria Formosa/Mar, com a área de 18.260 m2, contados da L.M.P.A.V.E., com a largura de cinquenta metros e o comprimento, a sul, da estrema nascente à estrema poente do prédio rústico denominado “Quinta dos …”, sito na freguesia de Vila Nova de Cacela, no sítio do Buraco, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças de Vila Real de Santo António, sob o art. … da Secção AQ e descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o nº …/19880922 (…)”, decidiu-se - após se lavrar despacho a ordenar a notificação da “(…) Agência Portuguesa do Ambiente I.P. (APA), através do seu serviço desconcentrado da Administração da Região Hidrográfica do Algarve (ARHA), para, no prazo de 30 dias, vir juntar aos autos a delimitação da linha máxima de preia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) da região do Algarve, mais concretamente do concelho de Vila Real de Santo António, porquanto a mesma se mostra absolutamente essencial à conclusão da perícia ordenada nestes autos”[2]-, notificar os demandantes “(…) para dar início ao (…) procedimento administrativo com a maior brevidade possível, devendo juntar aos autos comprovativo do mesmo”, ordenando-se, também, “a suspensão da presente instância por causa prejudicial, nos termos do nº 1, do art. 272º, do CPC, enquanto não for decidido o aludido procedimento administrativo” [3].


Inconformados com esta decisão, recorreram os mencionados demandantes, com as seguintes conclusões[4]:

- Com a presente ação pretendem os recorrentes obter o reconhecimento, por sentença judicial, de que o imóvel dos autos, confrontando a sul com o mar/Ria Formosa, era propriedade privada, em data anterior a 1864, sendo, por isso, reconhecida como privada a parcela do leito ou água do mar, com a delimitação dada pelo artigo 11º. da Lei nº 54/2005;


- Tendo em conta o pedido, os recorrentes, em sede de instrução, requereram a produção de prova pericial, a efetuar por perito a nomear pelo Tribunal;


- O perito nomeado pelo Tribunal não realizou qualquer perícia, tendo os recorrentes reclamado;


- O Tribunal recorrido determinou a notificação da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., através do serviço desconcentrado da Administração da Região Hidrográfica do Algarve, para, no prazo de 30 dias, vir juntar aos autos a delimitação do LMPAVE do concelho de Vila Real de Santo António, porquanto a mesma se revelava essencial à conclusão da perícia ordenada nos autos;


- Dando o dito por não dito, proferiu o mesmo Tribunal o despacho ora impugnado, notificando os recorrentes para requererem o procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico/marítimo, em concreto do leito da Ria Formosa, no limite (a sul) do prédio dos autos, por entender ser necessário à conclusão da perícia e, por isso, suspendeu a instância até que tal procedimento se mostrasse concluído;


- Os presentes autos não devem ser suspensos, devendo ao invés prosseguir com a prova pericial;


- Não existe qualquer motivo justificado que determine a suspensão da presente instância, que deverá prosseguir os seus termos, quer com a realização da perícia, quer com as diligências necessárias que vierem a ser oficiosamente determinadas para a sua conclusão;


- O despacho impugnado viola as normas constantes dos artigos 20º., nº 4 da Constituição da República, 15º., nº 1, 17º., nº 7 da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, 2º., 6º., 272º, do Código de Processo Civil e 388º. do Código Civil;


- Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado sendo substituído por outro, determinando o prosseguimento dos autos.


O Exmo. Procurador da República não contra-alegou.


O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se é de manter ou não o despacho impugnado.



Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação

A - Os factos

A.a - Pedido formulado pelos recorrentes

Reconhecimento, “(….) nos termos do nº 1, do art. 15 da Lei 54/2005, de 15 de Novembro (…)”, do direito de propriedade “(…) dos AA. sobre uma parcela da Ria Formosa/Mar, com a área de 18.260 m2, contados da L.M.P.A.V.E., com a largura de cinquenta metros e o comprimento, a sul, da estrema nascente à estrema poente do prédio rústico denominado “Quinta dos …”, sito na freguesia de Vila Nova de Cacela, no sítio do Buraco, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças de Vila Real de Santo António, sob o art. … da Secção AQ e descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o nº …/19880922 (…)”.

A.b - Despacho lavrado a fls. 441 e 442

“ (…)

b) Da perícia

Indique a secção pessoa idónea para exercer as funções de perito, o qual deve ser, preferencialmente um topógrafo ou geógrafo da Direção Geral do Território de Faro, melhor identificado a fls. 391, que desde já se nomeia.

A perícia terá por objeto os quesitos 5 e 7 da base instrutória, bem com a questão 3ª colocada pelos Autores e a questão colocada pelo Réu a fls. 392 e 434 dos autos.

Remeta cópia da base instrutória e dos requerimentos de fls. 392 e 434 dos autos.

Fixa-se em 60 dias o prazo para apresentação do relatório pericial - Cfr. art. 585º, nº1, do CPC.

O compromisso de honra será prestado por escrito no relatório pericial, nos termos do disposto no art. 581º., nº 3 do CPC.

Diligência necessárias.

Notifique.”

A.c - Artigos 5º e 7º da base instrutória

5. Em 1775 o prédio referido confrontava a sul com o Mar/Oceano e constituía a quinta do Governador da Vila Real de Santo António de Arnilha?

7. Desde data anterior a 1864 que o prédio referido abrange a faixa de terreno contíguo à linha que limita o leito da Ria Formosa, com a largura de 50 metros, contados da linha máxima preia-mar de águas vivas equinociais (L.M.P.A.V.E.) para dentro (norte), ao longo de todo o seu comprimento que corresponde atualmente a uma faixa de tereno com a área de 18.260 m2, contados daquela linha, com cinquenta metros de largura e o comprimento, a sul, da sua estrema nascente à estrema poente do atual prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …/19880922, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças de Vila Real de Santo António, sob o art. … da Secção AQ ?

A.d - Questão 3ª colocada pelos Autores

“A parcela da margem da Ria Formosa, com cinquenta metros de largura contados da L.M.P.A.V.E., e com o comprimento que vai da estrema nascente à estrema poente, a sul, do imóvel dos autos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …/19880922, inscrito na matriz predial rústica do Serviço de Finanças de Vila Real de Santo António, sob o art. … da Secção AQ, tem a área de 18.260m2?

A.e - Questão colocada pelo Réu

Qual a área do imóvel descrito em A dos factos assentes até ao limite da L.M.P.A.V.E?

A.f - Despacho lavrado a fls. 600 e 601

“ (…)

Assim, em sede de reclamação ao relatório pericial apresentado pelo perito, vieram os autores dizer que o mesmo, em resumo, não realizou qualquer perícia, limitando-se a circunscrever o âmbito das suas competências, esclarecendo que, no seu entender, não tinha à sua disposição os meios necessários à realização da perícia.

Termina dizendo que se o perito necessita da delimitação da linha máxima de preia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) para realizar a perícia ordenada e a mesma não existe, deve a mesma ser feita pela entidade competente e posteriormente, se necessário, ser então realizada a perícia, sem qualquer custo acrescido para os Autores, o que se requer.

(…)

Desde já se deixa expresso que assiste razão aos Autores quando afirmam que o Sr. Perito não realizou qualquer perícia, pois da análise do relatório pericial junto a fls. 505 podemos retirar que nenhum dos quesitos formulados e admitidos obtiveram resposta, tendo aquele fundado essa ausência de resposta na falta de elementos necessários para formular uma conclusão e na falta de competência para os obter.

A ser assim, dir-se-á que, perante essa ausência de elementos necessários à realização da perícia, sempre podia o Sr. Perito ter previamente solicitado ao Tribunal a sua obtenção junto das autoridades competentes.

De todo o modo, a sua necessidade parece indiscutível para a realização cabal da perícia ordenada e impõe-se a sua obtenção.

À semelhança dos Autores e após análise da Lei nº 54/2005, de 15.11, também o Tribunal conclui (…) que a entidade competente para a delimitação da linha máxima de preia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) é a Agência Portuguesa do Ambiente I.P. (APA), através do seu serviço desconcentrado da Administração da Região Hidrográfica do Algarve (ARHA).

Assim julga-se a reclamação ao relatório pericial feita pelo Autores procedente e, consequentemente, determina-se que: a) Com cópia do despacho que ordena a perícia, do relatório pericial, do requerimento dos Autores de fls. 509 a 511 e deste despacho, se notifique a Agência Portuguesa do Ambiente I.P., através do seu serviço desconcentrado da Administração da Região Hidrográfica do Algarve (ARHA), para, no prazo de 30 dias, vir aos autos juntar a delimitação da linha máxima de preia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) da região do Algarve, mais concretamente do concelho de Vila Real de Santo António, porquanto a mesma se mostra absolutamente essencial à conclusão da perícia ordenada nestes autos. Notifique. “

A.g - Resposta da Agência Portuguesa do Ambiente

“ (…)

3. Não tendo sido enviada à APA, I.P., nem o respetivo registo predial, nem qualquer planta com a identificação do prédio em causa, este foi identificado por recurso ao registo das secções cadastrais disponibilizado pela Direção-Geral do Território e considerando o artigo …º da secção AQ, da freguesia de Vila Nova da Cacela, anexando-se as respetivas imagens.

4. Por outro lado, verificou-se que na confrontação com este prédio não se encontra efetuada, na forma de auto, a delimitação do domínio público hídrico, no caso do domínio público marítimo, nos termos da lei para este procedimento administrativo.

5. Assim e sendo necessário conhecer qual a parcela da margem da Ria Formosa em questão, procedeu-se à sua identificação por estimativa, conforme imagem em anexo, resultando os indicados traçados das linhas limite do leito (LMPAVE) da Ria e limite da respetiva margem no troço sul do prédio, junto à Ria Formosa, da aplicação dos critérios legais de leito e margem constantes da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, na redação atual (republicada pela Lei nº 31/2016, de 23 de agosto), conjugados com os critérios técnicos constantes da Portaria nº 204/2016, de 25 de julho, e conforme estipulado para a definição da área de jurisdição da Autoridade Nacional da Água a que se refere o artigo 9º. da Lei nº 54/2005.

6. No entanto, a referência do perito à ausência no terreno da “demarcação da LMPAVE” e o pedido expresso desse Tribunal para que a APA, I.P., junte aos autos “delimitação da LMPAVE” tem-se como indicativos de que o que de facto se pretende é a materialização, no terreno, do limite do leito da Ria Formosa na faixa correspondente ao prédio em causa, o que se configura a necessidade de um efetivo procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico/domínio público marítimo em que são interessados os autores e titulares do prédio que deu origem ao processo 569/10.1 TBVRS.

7. Assim, mas salvo melhor entendimento, julga-se que no âmbito deste processo relevará conhecer o limite do leito (LMPAVE) da Ria Formosa (e bem assim, da respetiva margem) mas apenas nos limites (zona sul) do prédio em causa, não vendo a necessidade de dispor tal informação para uma mais extensa faixa: toda a Região do Algarve ou mesmo só para toda a frente litoral do concelho de Vial Real de Santo António, como expresso por esse Tribunal.

8. Procedimento de delimitação que está sujeito ao regime em vigor aplicável e que é o estabelecido na Lei nº 54/2005 (artigo 17º) e Decreto- Lei nº 353/2007, de 26 de outubro, e que, em face da situação/localização e dimensão do prédio correspondente ao artigo …º da secção AQ, da freguesia de Vila Nova da Cacela, pode ser enquadrado no previsto no nº 3 do artigo 3º deste último diploma.

9. Ou seja, podem os atuais titulares do prédio confinante com o domínio público marítimo requerer a delimitação instruindo o respetivo pedido nos termos da citada norma em conjugação com a Portaria nº 931/2010, de 20 de setembro, sendo fundamental a apresentação de levantamento topográfico do prédio executado segundo as normas enunciadas no Anexo II desta portaria.

(…)

11. Por fim, cabe ainda salientar que, além da necessidade de instruir o processo nos termos legalmente fixados, o procedimento de delimitação do domínio público hídrico está sujeito a diversas vicissitudes próprias, que não permitem garantir a sua célere conclusão (citando, nomeadamente, a necessidade de consulta a entidades externas, a necessidade de nomeação, por portaria, da comissão de delimitação ou a necessidade de homologação do respetivo auto de delimitação pelo Conselho de Ministros e sua posterior publicação no Diário da República).”

A.h - Despacho recorrido

(…)

Na sequência do pedido de informação determinado pelo despacho de fls. 600 a 601, veio a Agência Portuguesa do Ambiente. I.P. informar que para a materialização, no terreno objeto dos presentes autos, do limite do leito da Ria Formosa na faixa correspondente ao prédio em causa, elemento essencial para a realização da perícia determinada nestes autos, é necessário a instauração de um efetivo procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico/domínio público marítimo em que são interessados os aqui autores e titulares do referido prédio.

Considera, assim, aquela entidade pública que importa conhecer o limite do leito (LMPAVE) da Ria formosa apenas nos limites (zona sul) do prédio em causa - conclusão com a qual se concorda - devendo os titulares atuais do mesmo requerer essa delimitação instruindo o respetivo pedido nos termos do art. 17, da Lei nº 54/2005 e do DL nº 353/2007, de 26.10 em conjugação com a Portaria nº 931/2010, de 20.09.

Assim, e não obstante as razões discordantes apresentadas pelos Autores a fls. 621 a 625, em face da necessidade de conhecer a delimitação do leito (LMPAVE) da Ria Formosa apenas nos limites (zona sul) do prédio em causa para a conclusão da perícia ordenada e prossecução dos presentes autos, sendo os Autores os atuais titulares do referido prédio e sob quem impende a legitimidade para instaurar o competente procedimento administrativo, determina o Tribunal: a) a notificação dos mesmos para dar início ao referido procedimento administrativo com a maior brevidade possível, devendo juntar aos autos comprovativo do mesmo; b) a suspensão da presente instância por causa prejudicial, nos termos do nº 1, do art. 272, do CPC, enquanto não for decidido o aludido procedimento administrativo. Notifique.”


B - Direito/doutrina/jurisprudência


- “Os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a ação e a julgá-la, como se fosse a primeira vez, indo antes controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. É, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso na cabe conhecer questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la” [5];


- “ (…) todas as pessoas - partes ou terceiros - têm o dever de prestar a sua cooperação para a descoberta da verdade e boa administração da justiça.” O conteúdo do dever de cooperação “(…) está definido como segue: As partes e terceiros são obrigados: a) A responder ao que lhes for perguntado; b) A submeter-se às inspeções que forem julgadas necessárias; c) A facultar o que lhes for requisitado; d) A praticar os atos que lhe forem determinados[6];


- Concede-se ao Tribunal “(…) o poder de ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando pender causa prejudicial. Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada”[7]; “O nexo de prejudicialidade ou de dependência define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão duma poder afetar o julgamento a proferir na outra. Aquela ação terá o caráter de prejudicial em relação a esta” [8]; por outras palavras: “Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou razão de ser da segunda (…)”[9];


- “Proferida a sentença (ou despacho …), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, ou seja: “o juiz não pode, por sua iniciativa alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela, um todo incindível” [10];


- “O princípio justifica-se cabalmente por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática. Razão doutrinal; o juiz quando decide, cumpre um dever - o dever jurisdicional que é a contrapartida do direito de ação e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado, ficam em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão, extinguiu-se pela decisão (…). A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar a sentença ou despacho é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão” [11];


- “IV - Nem todos os terrenos inseridos nos limites considerados na legislação como margens integram o domínio público, reconhecendo-se a natureza privada aos imóveis terenos que tiverem entrado por título legítimo no património dos particulares. V - O reconhecimento dos direitos de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens tidos como públicos deve ser obtido pelos meios procedimentais e de prova estabelecidos pelo artigo 15º da Lei nº 54/2005, sob pena de caducidade do referido direito. VI - O artigo 15º da Lei 54/2015 prevê as condições excecionais em que os particulares podem pedir o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, exigindo sempre que seja reconstituída a situação das parcelas em causa desde as datas previstas no diploma habilitador” [12];


- “O procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico não é formalidade prévia necessária à apreciação de pretensão no sentido de ser declarado e reconhecido direito de propriedade, para efeito do disposto no artigo 15º., nº1, da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro” [13];


- “O regime instituído pelo DL 35/2007, de 26.10 que estabelece “o regime a que fica sujeito o procedimento de delimitação do domínio público hídrico” não contende com ação destinada ao reconhecimento da propriedade” [14].


C - Aplicação do direito aos factos


Num parêntesis importa referir a que esta Relação compete apenas, em sede do presente recurso, “(…) controlar a correção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último”. Por ouras palavras: não vai julgar a questão, “ (…) como se fosse a primeira vez (…)”.


Assim sendo, não vai pronunciar-se quanto, nomeadamente, à nomeação de peritos, nem quanto à necessidade ou não de “prévia delimitação da LMPAVE” para dar resposta à “(…) 3ª questão formulada pelos Recorrentes e única questão formulada pelo Recorrido (…)”.


Tendo em vista “(…) a descoberta da verdade e boa administração da justiça (…), Tribunal recorrido notificou a Agência Portuguesa do Ambiente I.P. - instituto público integrado na administração indireta do Estado, sob tutela do Ministério do Ambiente - para, no prazo de 30 dias, vir aos autos juntar a delimitação da linha máxima de preia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) da região do Algarve, mais concretamente do concelho de Vila Real de Santo António, por, em seu critério, tal “pedido de informação” ser essencial à conclusão da perícia ordenada nos autos.


Face a esta opção, vedado estava ao mesmo Tribunal, por se encontrar esgotado, quanto à matéria em causa, o seu poder jurisdicional, vir, mais tarde, decidir a mesma questão de outro modo, deixando cair o “pedido de informação” solicitado, remetendo, em consequência, os recorrentes BB, CC, DD EE e FF para um procedimento administrativo, dando, assim, o dito por não dito, com a inerente “desordem” e ”confusão”.


Acresce, por sinal, que o próprio recorrido - o Estado - tinha, também, interesse no dito “pedido de informação”, dado o teor da questão que colocou ao perito nomeado.


Sucede, porém, que Agência Portuguesa do Ambiente I.P., apesar de, no seu ofício, opinar que o “pedido de informação” solicitado “(…) configura a necessidade de um efetivo procedimento administrativo de delimitação do domínio público hídrico/domínio público marítimo (…)”, acabou por facultar, minimamente, o que lhe foi requisitado - fls. 616 -, em linha com o ponto 5 do seu ofício, cooperando, deste modo, com o Tribunal, como não podia deixar de ser.


De referir, ainda, que o mencionado procedimento administrativo não configura, de modo algum, uma causa prejudicial. Pendente está, somente, a presente ação.


Inexiste, pois, qualquer motivo para suspender a tramitação destes autos, com fundamento na verificação de um nexo de prejudicialidade.


Subscreve, deste modo, esta Relação a pretensão dos ditos recorrentes, veiculada através do recurso.


Em síntese[15]: o procedimento administrativo consagrado no artigo 17º, da Lei n 54/2005, de 15 de novembro não constitui uma causa prejudicial, legitimadora da suspensão da instância de processo judicial pendente.


Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando a apelação procedente, revogar ao despacho recorrido, devendo, assim, prosseguir a fase da instrução do processo, sem esquecer que o objeto da perícia, na sequência de recurso para esta Relação - julgado procedente - foi alterado, circunstância que ainda não foi tida em conta.


Custas pela parte vencida, a final, sem prejuízo da isenção do demandado.


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Évora, 13 de setembro de 2018


Sílvio José Teixeira de Sousa


Manuel António do Carmo Bargado


Albertina Maria Gomes Pedroso


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[1] Devido ao seu falecimento, a ação prosseguiu com os seus filhos CC, DD e EE.
[2] Folhas 601
[3] Folhas 628 e 629.
[4] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das prolixas “conclusões” dos recorrentes.
[5] José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Antado, vol. III, tomo I, 2ª edição, págs. 7 e 8 e artigo 627º., nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
[6] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª edição, págs. 319 e 320 e artigos 7º., nº 1 e 417º., nº 1 do Código de Processo Civil.
[7] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Antado, vol. I, 2ª edição, pág.544, e artigo 272º., nº 1, do Código de Processo Civil.
[8] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 384.
[9] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, 1946, pág. 268.
[10] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, pág. 126, e artigo 613º., nº 3 deste diploma.
[11] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, pág. 127.
[12] Acórdão da Relação de Évora de 23 de março de 2017 (processo nº 473/13.1 TBTVR.E1), in www.dgsi.pt..
[13] Acórdão da Relação do Porto de 3 de novembro de 2014 (processo nº 8445/13.0 TBVNG.P1), in www.dgsi.pt..
[14] Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de maio de 2015 (processo nº 97/14.6 TBPST-8), in www.dgsi.pt..
[15] Artigo 713º., nº7 do Código de Processo Civil.